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A enfermagem e o protagonismo do usuário no CAPS: um estudo na perspectiva construcionista

RESUMO

Objetivo:

Analisar as ações da equipe de Enfermagem que promovem o protagonismo do usuário no Centro de Reabilitação Psicossocial.

Métodos:

Estudo qualitativo, baseado no referencial do Construcionismo. Participaram do estudo 16 membros da equipe de enfermagem em dois serviços de saúde mental da cidade do Rio de Janeiro no período de setembro de 2017 a janeiro de 2018. Os dados coletados nas entrevistas e na observação foram organizados no Software Nvivo e analisados a partir do conteúdo temático.

Resultados:

O estudo analisou que o cuidado protagonizador é construído através da comunicação criativa, do trabalho em rede e na percepção de que a equipe de Enfermagem funciona como uma antena.

Considerações finais:

A equipe de enfermagem não reduz o usuário às impossibilidades de seu diagnóstico psiquiátrico, usa da comunicação criativa e construção de redes de apoio no território. Ela se constitui como uma antena no cuidado na reabilitação psicossocial.

Palavras-chave:
Autonomia pessoal; Reabilitação; Enfermagem psiquiátrica

ABSTRACT

Objective:

To analyze the actions of the Nursing team to promote the leading role of the patient in the Psychosocial Rehabilitation Center.

Method:

A qualitative study, with reference to Social Constructionism. The study was conducted with 16 members of the Nursing team in two CAPS in the city of Rio de Janeiro from September 2017 to January 2018. The data collected from interviews and observation were organized in the Nvivo Software and the thematic content was analyzed.

Results:

The study analyzed leading care. This is constructed through creative communication, networking and the perception of the Nursing team as an “antenna”.

Final considerations:

The Nursing team does not reduce the users to the impossibilities of their psychiatric diagnoses, it uses creative communication and the construction of support networks in the territory. It constitutes itself as an antenna in care in psychosocial rehabilitation.

Keywords:
Personal autonomy; Rehabilitation; Psychiatric nursing

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las acciones del equipo de Enfermería que promueven el protagonismo del usuario en el Centro de Rehabilitación Psicosocial.

Método:

Estudio cualitativo, con referencia al construccionismo social. En el estudio participaron 16 integrantes del equipo de enfermería de dos CAPS de la ciudad de Río de Janeiro de septiembre de 2017 a enero de 2018. Los datos recopilados de las entrevistas y la observación se organizaron en el software Nvivo y se analizó el contenido temático.

Resultados:

El estudio analizó los significados de la atención protagonista. Esta se construye a través de la comunicación creativa, de la creación de redes y de la percepción del equipo de enfermería como una antena.

Consideraciones finales:

El equipo de enfermería no reduce al usuario a las imposibilidades de su diagnóstico psiquiátrico, utiliza la comunicación creativa y la construcción de redes de apoyo en el territorio. Se constituye como una antena en el cuidado de la rehabilitación psicosocial.

Palabras clave:
Autonomía personal; Rehabilitación; Enfermería psiquiátrica

INTRODUÇÃO

O presente estudo aborda as ações produzidas pela equipe de Enfermagem em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para promover o protagonismo do usuário à luz do Construcionismo Social. A perspectiva construcionista orienta uma investigação que se preocupa com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem, explicam, argumentam e constroem as noções de si mesmo e do mundo em que vivem, considerando um determinado momento histórico e durante as relações sociais11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010..

A mudança de paradigma no campo da saúde mental assume uma transformação, além de uma dimensão técnica (revisão das práticas de cuidado), uma dimensão cultural, na defesa por uma mudança no valor social das pessoas, que permitam aos sujeitos vivenciarem e participarem da vida comunitária. Busca-se, desse modo, que as pessoas desenvolvam maneiras peculiares de estarem no mundo e de vivenciarem seus sofrimentos, alegrias, frustrações, vitórias e inseguranças22. Ferreira TPS, Sampaio J, Souza ACN, Oliveira DL, Gomes LB. Care production in Mental Health: the challenges beyond institutional walls. Interface (Botucatu). 2017;21(61):373-84.doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0139
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. Destaca-se como problema do estudo, que as ações de Enfermagem em saúde mental ainda necessitam efetivar-se como terapêuticas e com uma abordagem no cuidado psicossocial e não apenas em planos e procedimentos prescritivos que desvalorizam a autonomia da pessoa que necessita do serviço de saúde mental.

A reabilitação psicossocial é atravessada por diversos desafios, sendo um deles a promoção da cidadania do sujeito, mediada tanto pela promoção do protagonismo do usuário quanto pela manutenção da autonomia diante das propostas terapêuticas. A reabilitação em si é uma visão, é poder ser, é a reconstrução da contratualidade social do cidadão, que envolve a casa ou habitat e a vida social, incluindo o intercâmbio, o aprendizado e o trabalho33. Saraceno B. Ações dos serviços territoriais para inclusão social. In: Barros S, Batista LE, Santos JC, editores. Saúde mental e reabilitação psicossocial: avanços e desafios nos 15 anos da Lei 10.2016. Uberlândia: Navegando Publicações; 2019. p.125-41..

Nesse contexto, a equipe de Enfermagem é um potencial importante no cenário da reabilitação, pois o cuidado de enfermagem pautado pela singularidade é fundamental para a pessoa psicótica, uma vez que permite a escuta, o acolhimento, o vínculo, a corresponsabilização e apoio emocional. Outrossim, a participação dessa equipe no Projeto Terapêutico Singular pode favorecer um retorno à condição de sujeito para o usuário44. Pintor LA, Toledo VP, Garcia APRF. Nursing care based on the perspective of the subject of the unconscious and its contribution to the Singular Therapeutic Project. Rev Eletrôn Saúde Mental Álcool Drog. 2018; 4(1):20-2. doi: https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000395
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.

O trabalho de Enfermagem no CAPS é primordial nessa articulação, uma vez que a Enfermagem atua em tempo integral nos cuidados cotidianos. É a única equipe de profissional de saúde que trabalha 24 horas com o usuário. Nesse contexto, o estudo trouxe o seguinte questionamento: como a equipe de enfermagem produz ações para promover o protagonismo do usuário na Reabilitação Psicossocial? O objetivo é analisar as ações da equipe de Enfermagem que promovem o protagonismo do usuário no CAPS III.

O estudo é justificado pelo pioneirismo da Enfermagem no cuidado integral do usuário e na valorização da pessoa assistida nesse espaço, mesmo que no passado a atuação da enfermagem tenha sido marcada pela institucionalização de regras manicomiais, focada na doença e na medicalização55. Oliveira LC, Silva AR, Medeiros MN, Queiroz JC, Guimarães J. Humanized care: discovering the possibilities in the practice of nursing in mental health. Rev Pesqui Cuid Fundam Online. 2015;7(1):1174-82. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2015.v7i1.1774-1782
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-77. Bruggmann MS, Souza AIJ, Costa E, Schneider DG, Schmitz EL, Mazera MS. Development of a collective knowledge for implementation of the nursing process in a specialized psychiatric hospital. Rev Min Enferm. 2019;23:e-1270. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20190118
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. Após a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a implantação da Política Nacional de Humanização a equipe de Enfermagem vem desenvolvendo liderança no manejo de ações cotidianas que valorizam a subjetividade da pessoa e contribuindo para sua inclusão social e autonomia88. Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediating autonomy: an essential care practice in mental health. Esc Anna Nery 2017;21(3):e20160284. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0284
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-99. Maftum MA, Silva AGS, Borba LO, Brusamarello T, Czarnobay J. Changes in professional practice in the mental health area against Brazilian psychiatric reform in the vision of the nursing team. Rev Pesqui Cuid Fundam online. 2017;9(2):309-14. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2017.v9i2.309-314
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.

Este estudo é relevante visto que produz conhecimentos para um saber/fazer para a equipe de Enfermagem, a fim de construir dispositivos terapêuticos na promoção do protagonismo do usuário, no intuito de ofertar uma possibilidade de produção criativa no cuidado de Enfermagem na Reabilitação Psicossocial alinhada aos avanços da Reforma Psiquiátrica.

Vale ressaltar que o presente artigo apresenta dados analisados de uma tese de doutorado vinculada ao Núcleo de Estudo e Pesquisa em Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental da Escola de Enfermagem Ana Nery da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

MÉTODO

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório de abordagem qualitativa. Foi utilizado no desenho do estudo instrumento Equator: SRQR- Standards for Reporting Qualitative Research1010. O'Brien BC, Harris IB, Beckman TJ, Reed DA, Cook DA. Standards for reporting qualitative research: a synthesis of recomendations. Acad Med. 2014;89(9):1245-51. doi: https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000388
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, a fim de orientar a metodologia do estudo.

O Cenário da pesquisa ocorreu em dois Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tipo III, localizados na cidade do Rio de Janeiro. Vale destacar que o município conta com um universo de quatro CAPS III. A escolha dos locais foi feita de forma aleatória, conforme interesse e disponibilidade dos participantes. O período da coleta de dados, tanto da observação participante quanto das entrevistas não estruturadas, foi realizado de setembro de 2017 a janeiro de 2018.Os participantes da pesquisa foram os enfermeiros e os técnicos de enfermagem atuantes nesses espaços. Foram excluídos participantes com menos de seis meses de experiência no cenário e incluídos enfermeiros e técnicos com tempo igual ou superior a seis meses, contrato de trabalho permanente ou temporário. A indicação do respectivo tempo em serviço se deve ao fator da maior probabilidade do desenvolvimento de vínculo com os usuários, equipe e projetos terapêuticos.

A coleta de dados foi realizada por meio da observação participante e entrevista não estruturada. Foram entrevistados 16 participantes, abrangendo enfermeiros e técnicos de enfermagem. Eles responderam à entrevista não estruturada baseados em um checklist construído pelos pesquisadores. Esse guia possui eixos temáticos com perguntas abertas baseadas nos pressupostos da Reforma Psiquiátrica Brasileira, na conduta ética da equipe de Enfermagem, processo de trabalho e nas ações que proporcionam e/ou colaboram com a autonomia e a cidadania dos usuários. Os eixos que nortearam as diálogos na entrevistas foram: 1) ações para o protagonismo; 2) participação no projeto terapêutico singular; 3) percepção sobre o cuidado de enfermagem; 4) reconhecimento sobre os direitos do usuários e cidadania; 5) rede de apoio e rede assistencial; 6) mecanismos de comunicação para conhecimento do usuário sobre a doença mental, sofrimento psíquico e tratamento; 7) a experiência pessoal de trabalho no CAPS.

As entrevistas e o registro da observação foram cessados após a exaustividade da comunicação identificada por intermédio da repetição de temas na fase inicial da análise no tratamento dos dados. A observação participante totalizou 112h de registro e cada entrevista durou em média uma hora. Elas foram gravadas em gravador de áudio mp3 e a observação foi registrada no diário de campo do pesquisador. Essas entrevistas foram devolvidas para os respectivos participantes do estudo, por meio do e-mail pessoal, para aprovação do conteúdo transcrito.

Vale apontar que os pesquisadores não possuem vínculo de trabalho com os cenários do estudo. Apenas um pesquisador esteve presente na coleta de dados e antes de iniciar a pesquisa participou das reuniões da equipe CAPS III para apresentar o estudo para todos os membros do CAPS. Dessa maneira, o estudo foi apresentado tanto para os participantes (enfermeiros e técnicos) quanto não participantes do estudo (gerentes, outros profissionais e usuários), a fim de comunicar todo o grupo integrante do serviço sobre a realização do estudo com pessoal da enfermagem. O pesquisador que realizou a coleta também elaborou as respectivas transcrições dos dados. Os demais pesquisadores participaram da organização dos dados, análise, relatório final e devolução aos participantes.

Os dados foram analisados à luz do Construcionismo Social de Kenneth J. Gergen11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.. Para apontar as ações da equipe de enfermagem que provem o protagonismo do usuário no CAPS III, o estudo se baseou em uma teoria relacional ligada à prática que é ancorada no paradigma da construção social pós-modernista11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.. No Brasil, diversos estudiosos do construcionismo ponderam que os estudos por intermédio de teorias relacionais fazem mais sentido ao Sistema Único de Saúde1111. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade. In:Spink MJ, editor. Práticas Discursivas e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2013..

Nas palavras de Gergen “O Construcionismo Social é um modo de estar no mundo”. Por consequência, ao adotar o referencial construcionista é necessário fundamentar-se nas descrições teóricas que, amiúde, fazem parte das nossas experiências cotidianas para apontar uma realidade social. Logo, o significado é criado no contexto das relações11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010..

Dessa forma, na perspectiva construcionista é apresentado “o que é real, racional e bom”11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.) nas relações entre o usuário do CAPS III e a equipe de Enfermagem para promover protagonismos da pessoa em atenção psicossocial naquele espaço.

Na análise de dados, foi utilizado a técnica denominada por Spink de mapa de associação de ideias e produção de sentido do Construcionismo Social. Essa abordagem técnica é fundamentada no Construcionismo Social por intermédio da análise da linguagem, do discurso e do conteúdo para a produção de sentidos e preservando o conteúdo e tempo presente e vivido da fala1111. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade. In:Spink MJ, editor. Práticas Discursivas e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2013..

Foi efetivada a análise de conteúdo temático dos depoimentos dos entrevistados bem como dos registros da observação pela técnica do mapa de associação de ideias e produção de sentido. “A construção de mapas se inicia pela definição de categorias gerais, de natureza temática, que refletem, sobretudo, os objetivos da pesquisa”1111. Spink MJ, Lima H. Rigor e visibilidade. In:Spink MJ, editor. Práticas Discursivas e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2013.:84).

Para a organização e codificação dos dados, o estudo utilizou o software N Vivo Pro 12. Esse é um dispositivo para análise de conteúdo temático para as pesquisas qualitativas da saúde, que permite criar categorias, codificar, filtrar, fazer buscas e questionar os dados, para responder às questões de um estudo científico1212. QRS. Nvivo. Versão Nvivo Pro 12 for Windows 2018 [Software]. 2017 [cited 2020 Jan 25] Available from: Available from: http://www.qsrinternational.com/nvivo-portuguese
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.

A codificação dos dados no software foi realizada por pares. Após a organização e codificação dos dados foi realizada a análise de conteúdo temático por meio do mapa de associação de ideias e produção de sentido. Tanto os dados das transcrições das entrevistas quanto do registro da observação também foram analisados por pares.

Foram cumpridos os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos, preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde, de acordo com as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016. O projeto de pesquisa foi submetido à Plataforma Brasil, sendo aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery- Hospital Escola São Francisco de Assis e da Secretaria Municipal da Saúde do Rio de Janeiro sob o n° CAAE Nº: 68003617.2.0000.5238, parecer nº 2.117.532.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ressalta-se que a intencionalidade do presente trabalho possui uma construção militante influenciada pelo contexto dos desafios ligados ao movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, uma vez que as intencionalidades se consolidam nas reflexões e ações para as mudanças mais concretas sobre a atuação da Enfermagem Psiquiátrica e em saúde mental na dimensão ética da sua clínica de cuidados.

As ações da equipe de Enfermagem na promoção do protagonismo do usuário no CAPS III marcam um sentido que aponta para o cuidado protagonizador em negociação com o território. O tratamento dos dados resultou em três categorias temáticas:1) comunicação criativa; 2) trabalho em rede; e 3) A equipe de Enfermagem como antena.

A comunicação criativa

A comunicação criativa foi observada pelos pesquisadores como uma ferramenta de cuidado para dialogar com o usuário sobre seu adoecimento, sofrimento psíquico, tratamento e orientações gerais sobre saúde e cidadania. Ela é um recurso utilizado na Enfermagem para produzir efeitos na linguagem de modo a favorecer a troca e o cuidado em saúde mental em uma relação de horizontalidade junto ao sujeito:

Nós elaboramos métodos para que esse cuidado não se perdesse, um dos exemplos é você estabelecer, criar um documento que fala através da linguagem: um sol, uma lua, uma xicara de café indica os horários. (E3)

Eu percebi que o usuário identificava a medicação pela cor e não pelo nome [...] ele sabia até qual era o efeito medicamentoso, mas não sabia qual era a medicação que ele estava tomando [...] Eu vi que era necessário que ele soubesse o que ele estava tomando. (E4)

A gente aqui monta pacote com tipo manhã, tarde, noite, que é o horário da medicação [...]então, acho que isso é uma parte bem de Enfermagem que a gente mostra para eles a medicação e o protagonismo deles de tomar. (E16)

A equipe de enfermagem investe no usuário, a fim de gerenciar a terapia medicamentosa e permanece sobre o uso da terapêutica medicamentosa de forma correta, e se mantém em prontidão, para auxiliar nesse manuseio, usando uma linguagem simbólica (figuras com sol, lua, cafezinho para expressar os horários) quando necessário. Além disso, estabelece uma linguagem criativa sobre os horários das medicações e reconhece a necessidade de orientar os usuários sobre as finalidades do uso das medicações.

No ato comunicativo, há uma transmissão da mensagem (verbal e não verbal) do emissor com a finalidade de enviar uma mensagem ao receptor (indivíduos ou grupos), a fim de obter uma resposta, um canal do diálogo, uma ideia, estabelecendo-se, assim, um elo com o processo comunicativo para a transmissão de uma mensagem11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.. “A comunicação efetiva, portanto, é entrelaçada para o entendimento mútuo, cooperação dos atores, compreensão dos contextos individuais e ao posicionamento do receptor frente ao ato da fala”1313. Alves KYA, Bezerril MS, Salvador PTCO, Feijão AR, Santos VEP. Effective communication in nursing in the light of Jürgen Habermas. Rev Min Enferm. 2018;22:e-147. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20180078
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-1414. Soares IP, Lima EMM, Santos ACM, Ferreira CB. How do i talk to you? The communication of the nurse with the deaf user. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25978. doi: https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25978
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Para o Construcionismo “uma coisa é gerar ideias atraentes, mas a questão importante é verificar se existe uma relação produtiva entre as palavras e nossos modos de vida”11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.. A equipe de enfermagem informa, discute, provoca a possibilidade de o usuário negociar a prescrição medicamentosa. Contudo, a equipe deixa evidente que o usuário do CAPS necessita estar preparado para expressar tal negociação:

Quando a gente vai administrar medicamento, a gente reforça o protagonismo do usuário. ‘Olha, está tomando tal medicamento devido a esse motivo.... Por tais condições... Até você se organizar e aí o médico vai rever sua medicação, [...]dependendo, simplesmente você poderá parar, ou reduzir essa medicação[...] À medida que você for se organizando, você pode negociar com o médico. (E11)

Agora se o paciente, chegar aqui e dizer: “não vou tomar”, eu não forço. Então, você vai dirigir ao seu médico, vai conversar com ele e dizer o porquê você não quer tomar essa medicação. Então, eu considero que ele tem uma participação de negociação sobre a medicação. (E13)

A comunicação da equipe de enfermagem é atravessada por uma conduta clínica para trazer o sujeito ao encontro da terapêutica, traçando mecanismos criativos para o processo de cuidar1414. Soares IP, Lima EMM, Santos ACM, Ferreira CB. How do i talk to you? The communication of the nurse with the deaf user. Rev Baiana Enferm. 2018;32:e25978. doi: https://doi.org/10.18471/rbe.v32.25978
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. Dessa forma, a equipe faz o investimento do cuidado protagonizador em uma linguagem e comunicação próxima o usuário:

A gente tem um quadro de atividades possíveis. A gente descreve um pouco dessas atividades e coloca para eles. (E2)

Nas conversas informais, é uma coisa muito importante porque o cuidado aparece muito mais do que no consultório. Ali, na conversa que você saca né... um pouco como está sendo o cotidiano daquele sujeito, se ele está usando drogas, se não está, se ele está saindo, é um pouco ali naquela conversa muito informal, normalmente fumando um cigarro que essas coisas da vida começam a aparecer, e isso também é produto de trabalho. (E14)

Foi evidenciado pela observação participante que a equipe de enfermagem constrói mecanismos para facilitar e instruir a compreensão do usuário sobre os procedimentos terapêuticos. A equipe de Enfermagem utiliza meios criativos para produzir um diálogo construcionista, pois leva em consideração a realidade local e o contexto social do indivíduo, produzindo ressignificação por meio da linguagem compartilhada e relativizada em relação ao transtorno mental e/ou sofrimento psíquico:

A gente trabalha, trabalha mais com outras figuras de linguagem mesmo. Com desenhos, com a expressão corporal, com a própria fala, a gente grava. Ah! Você quer fazer um poema e não consegue escrever? Pode falar, a gente grava e tal, grava um vídeo, grava um pen drive, deixa guardado para ele ouvir. (E2)

Nós da equipe procuramos não ficar muito no termo técnico, procuramos mais ficar no jargão deles da comunidade em si, sabe? Então, assim, a gente tem uma facilidade maior do que outras equipes. (E5)

Para o Construcionismo Social: “as palavras ajudam a manter essas formas de vida, ao mesmo tempo em que as formas de vida conferem significados às palavras”11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.:27). Dessa maneira, a equipe de enfermagem do CAPS ressignifica sua forma de comunicação criativa por intermédio de uma escuta mais próxima do contexto do usuário, a fim de proporcionar diálogos construcionistas.

Essa comunicação criativa para instruir, está relacionada a uma perspectiva construcionista, pois: “É a verdade em operação tende a favorecer formas de diálogo a partir das quais possam emergir novas realidades e novos valores”11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.. O que pode ser observado em:

A gente da saúde mental trabalha muito com apostas[...] investe naquela aposta se der certo ótimo, se não der a gente vai tentar outro caminho. (E7)

[...]Eu vou ressignificando isso com ele e naturalizando bem subjetivamente e não trago o transtorno para ele [...] eu não faço nada disso igual o médico faz. (E15)

Dessa forma, é no encontro entre a equipe de enfermagem e o usuário do CAPS que se processa a comunicação criativa, encontros regrados por uma intersubjetividade, entre o saber do profissional e a experiência do usuário. “Enfermeiros apontam que não há verdades ou saberes prévios, porque são nas práticas cotidianas que as decisões estão pactuadas”88. Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediating autonomy: an essential care practice in mental health. Esc Anna Nery 2017;21(3):e20160284. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0284
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:7).

Em síntese, a comunicação criativa é uma ação da equipe de Enfermagem para promover o protagonismo do usuário. É evidenciada quando a enfermagem lança mecanismos para dialogar e negociar com a loucura e subjetividade de cada usuário. É necessária uma mediação com as territorialidades da pessoa, e, assim, conhecer, compreender e valorizar o contexto sociocultural do indivíduo e a sua história, para promover as ações de cuidado.

O Trabalho em rede

As ações de enfermagem para promover o protagonismo do usuário no CAPS estão relacionadas com o modo de construir redes de cuidado no trabalho focado nas ações territoriais.

Há a necessidade dos enfermeiros em instituir uma rotina de apoio matricial, a fim de integralizar um trabalho em rede para dividir experiências e diálogos com as demandas da saúde mental na atenção básica. Uma rede de cuidados é definida pelo meio social, que realiza ações de cuidados em saúde integrados ao território, como: a escola, o domicílio, a igreja, o clube, o cinema, associações1515. Oliveira GC, Schneider JF, Pinho LB, Camatta MW, Nasi C, Guimarães AN, Torres MEL. Matrix support in mental health in primary care: the vision of supporters and nurses. Rev Gaúcha Enferm. 2020;41(esp):e20190081. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2020.20190081
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. Tal integralização no território é identificada nas seguintes descrições:

A gente faz uma construção do trabalho junto com as unidades básicas de saúde, costurar para não centrar o cuidado dele no CAPS, para dissolver esse cuidado, porque ainda tem muito a ideia que o louco tem que ser visto da cabeça aos pés dentro do hospício. Então, a gente tenta desconstruir essa lógica no território a todo tempo, é um trabalho diário. (E1)

A gente tenta colocá-los, inseri-los sempre e nos colocamos também para estar nesse espaço junto com eles, para cada vez mais dentro do cuidado do CAPS que também está na construção junto à sociedade um espaço de aceitação e menos discriminatória. (E2)

[...] Esta vinculação, essa união da saúde básica com a saúde mental são muito importantes, ainda mais agora que viraram porta de entrada e tal. E aí, a gente tem um acesso um pouquinho maior e melhor da clínica da família. (E11)

A gente sempre está em contato com eles, porque a gente procura até em alguns territórios mais perigosos ir fazer a visita domiciliar junto com o Agente Comunitário de Saúde. (E12)

Para o Construcionismo Social, a criação de rede e de interligações produz efeito do que é verdadeiramente bom para o coletivo. “O desafio não é encontrar a melhor forma, mas criar tipos de relação através das quais se possa construir o futuro de maneira mais colaborativa”11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.:31). A rede de cuidados é um dispositivo essencial para a Enfermagem produzir ações para o protagonismo do usuário no CAPS. Essa teia vai além dos serviços de saúde, é um mecanismo provedor de trocas sociais e terapêuticas, a fim de trabalhar possibilidades da promoção da saúde e da cidadania para caber na vida:

Tenta trabalhar sempre a autonomia. [...], a gente se aproxima em alguns momentos que precisa, deixá-lo andar um pouco mais, quando a gente acha que ele está andando bem. (E2)

[...]Começamos a identificar a potencialidade dessas pessoas, eu estou falando de pessoas que até, então, não produziam nada e conseguimos inseri-los no mercado de trabalho, isso foi bem legal, aí você vê o protagonismo da pessoa podendo trabalhar, podendo ganhar o seu dinheiro, podendo tirar aquele rótulo. (E3)

Confirmamos esta fala em uma pesquisa realizada para elencar o cuidado clínico de enfermagem na saúde mental, em que foi identificado e caracterizado o cuidado como tendo integralidade, a partir de um trabalho em rede, interdisciplinaridade, intersetorialidade, acolhimento, escuta, noção de território, reabilitação psicossocial, ferramentas e oficinas de educação em saúde, vivência e um reconhecimento da subjetividade para promover a clínica1616. Azevedo DM, Silva GWS, Miranda FAN, Bessa MS, Lins SLF, Costa JE. Perceptions of health professionals on social inclusion in a Psychosocial Care Center. Rev Rene. 2019;20:e33537. doi: https://doi.org/10.15253/2175-6783.20192033537
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.

Nossos entrevistados apontam que as ações da enfermagem para o trabalho em rede extrapolam o muro do CAPS, e criam mecanismos de trocas sociais para além da figura institucional do serviço, e as ações se configuram como um movimento territorial para além dos muros:

Minhas práticas de cuidado não são medicamentosas, a questão da conversa com muitos usuários daqui que têm uma carência muito grande de estar conversando a respeito de si próprio. (E11)

Eu acho que quanto menos tempo o cara está no CAPS, eu acho mais interessante, a ideia é que ele possa estar em outros espaços, mas tem gente que precisa estar aqui todos os dias. (E14)

Eu entendo que os CAPS, como estrutura física, é apenas uma referência, porque os CAPS somos nós a equipe composta de todos os profissionais do trabalho da saúde mental, eu entendo que os CAPS são móveis, porque nós podemos circular nos territórios e compartilhar o cuidado, fazendo isso com a rede. (E15)

Os Profissionais do CAPS, consequentemente, grande parte dos enfermeiros, destacaram que as suas atividades de trabalho não são apenas internas, mas principalmente externas, pois no processo de trabalho há que se criar dispositivos mediadores da inclusão social, da autonomia e da cidadania para usuários que sofreram processos de exclusão66. Amarante P, Nunes MO. Psychiatric reform in the SUS and the struggle for a society without asylums. Ciênc Saúde Colet. 2018;23(6):2067-74. doi: https://doi.org/10.1590/141381232018236.07082018
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-88. Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediating autonomy: an essential care practice in mental health. Esc Anna Nery 2017;21(3):e20160284. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0284
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Estudo realizado nos países nórdicos aborda a evidência do impacto positivo em conhecer e encontrar amigos, familiares, parentes ou conhecidos, sobre o funcionamento significativamente mais alto na escala de autonomia -Global Assessment of Functioning- em comparação com os entrevistados que relataram ter encontrado raramente ou nunca amigos, familiares, parentes ou conhecidos1717. Levinsson H, Kjellin L, Östman M. Autonomy and severe mental illness: the relationship between social network and functioning. SOJ Nur Health Care. 2016; 2(2):1-5. doi: https://doi.org/10.15226/2471-6529/2/2/00118
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Conforme registrado na observação participante, encontramos uma equipe de Enfermagem com as ações de cuidado focadas no território para a construção de redes de cuidado, uma equipe comprometida com a promoção da saúde do sujeito e onde a condição psiquiátrica e suas dificuldade subjetivas não encapsularam o potencial do indivíduo, de modo que ainda permaneceu possível produzir saúde para a reabilitação. Por fim, considera-se que o trabalho em rede de cuidados é determinante sobre o produto pautado para o cuidado protagonizador.

Cabe ressaltar que as ações contidas no protagonismo não constituem uma prática que envolve apenas a equipe de Enfermagem, mas uma ampla rede de cuidados. Para tal fim, a enfermagem pode facilitar e agilizar a organização de uma prática que envolva o trabalho em rede, acionando atores e contextos para além do território em que a pessoa habita e, assim, promover trocas sociais para além do CAPS.

A equipe de Enfermagem como antena

Segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa, o sentido figurado da palavra antena significa a sensibilidade para captar um meio de informação. É um canal para receber e propagar uma informação1818. Houaiss A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Moderna; 2020..

A equipe de enfermagem como antena, funciona como uma guia de transmissão de energia primordial para uma comunicação de qualidade disponível para promover o protagonismo da pessoa na reabilitação psicossocial. Uma espécie de captadora de possibilidades, mas sempre secretariando o desejo dessa pessoa.

Nesse sentido, a enfermagem como antena constitui uma equipe que se disponibiliza a ficar atenta às necessidades do usuário CAPS, e proporciona um cuidado protagonizador. Uma equipe antenada é uma equipe atenta, disponível, que agrega a força de todos em um só movimento e intervém no cuidado prestado.

A enfermagem como antena é um elo fundamental na mediação da crise. Ela produz um campo de cuidado que se propaga entre todos. Dessa forma, tem disponibilidade de exercer o cuidado protagonizador.

Em estudo sobre o cuidado da enfermagem no âmbito da psiquiatria, as autoras evidenciam que: a rotina de cuidados obedece à vontade do paciente e não a da enfermeira. Assim, podemos dizer que a rotina da enfermagem psiquiátrica é estabelecida pelo paciente e este vem a ser, para nós, o significado imediato de secretariar a loucura1919. Oliveira RMP, Alves M, Porto IS, Cavalcanti PCS. The psychiatrical nursing clinic and its new care technologies. J Res: Fundam Care online. 2016;8(1):3922-34. doi: https://doi.org/10.9789/2175-5361.2016.v8i1.3922-3934
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Portanto, a equipe de Enfermagem como antena proporciona as ações pautadas para a disponibilidade do cuidar. Tal fenômeno é traçado por meio da prontidão com que a Enfermagem se lança nas ações de cuidado com o outro, de maneira integral:

A gente consegue dar conta desse surto, né... Muitas das vezes, se colocando disponível para estar ocupando-o de alguma coisa, tirando o foco de alguma questão que ele tem dessa agitação e que ele não consegue trazer para gente, ele não consegue falar disso. (E10)

[...]Você ter que inserir de novo o indivíduo na sociedade é um trabalho, assim, muito difícil... até você convencer o outro, convencer a sociedade de que ele ainda é capaz de viver nessa sociedade. (E11)

[...]Estas funções mais específicas da enfermagem, daí eu acho que a gente promove esse protagonismo do usuário quando a gente está junto. (E14)

A disponibilidade do cuidado de Enfermagem no CAPS é elaborada através da entrega, da empatia e do compromisso com responsabilidade de um saber/fazer centralizado no indivíduo77. Bruggmann MS, Souza AIJ, Costa E, Schneider DG, Schmitz EL, Mazera MS. Development of a collective knowledge for implementation of the nursing process in a specialized psychiatric hospital. Rev Min Enferm. 2019;23:e-1270. doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20190118
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-88. Dutra VFD, Bossato HB, Oliveira RMP. Mediating autonomy: an essential care practice in mental health. Esc Anna Nery 2017;21(3):e20160284. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2016-0284
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. A Enfermagem como antena tende a mediar a sua clínica em cuidados e as ações cotidianas focadas nas necessidades de vida do indivíduo, com um olhar para além das limitações da doença mental, e que alcance uma visão holística do sujeito.

Dessa forma, ficar antenada é um movimento da equipe de Enfermagem que se coloca disponível no campo das relações cotidianas, para acolher e cuidar do indivíduo de modo que ele tenha competência para assumir o protagonismo na vida.

O Construcionismo Social privilegia a substituição do indivíduo pela relação, ou seja, é na relação que se constrói a verdade, o diálogo e o ato construtivo11. Gergen KJ, Gergen M. Construcionismo social: um convite ao diálogo. Rio de Janeiro: Instituto Noos; 2010.. Nesse sentido, apenas há disponibilidade para o ato de cuidar quando a equipe se coloca como antena e essa postura é um elo para o cuidado protagonizador.

Os participantes do estudo abordam o fenômeno da Enfermagem como antena, a qual proporciona a disponibilidade para um cuidado de enfermagem psiquiátrica e em saúde mental, a fim de promover o protagonismo do usuário por meio do cuidado protagonizador:

Eu acho que norteia de fato é o vínculo, porque eles têm muito vínculo com equipe de enfermagem mesmo eu não sendo a referência de um caso, às vezes, o paciente chega ele me procura. (E1)

[...] a gente vai construindo com ele todo esse processo para restaurá-lo e torná-lo uma pessoa que possa retornar a sociedade um pouco melhor. (E6)

Você parar, escutar o indivíduo como um todo, dali dar voz ao indivíduo que naquele momento que está precisando é um dos maiores pilares, não é só a questão medicamentosa de curativo, não. Acho que vai muito além disso, o cuidado. (E11)

A enfermagem está sempre mesmo na linha de frente[...]. Então, quando chega vem logo na enfermagem. Então, assim, eu procuro estar olhando para eles se está com alguma lesão, alguma coisa, ver se ele realmente está bem clinicamente. (E12)

[...] A primeira coisa que eu faço, é ler sobre eles, a maioria eu já conheço, mas tem um que não conheço então eu já chego e já procuro conversar. (E13)

Vale ressaltar que a equipe de enfermagem se coloca como antena disponível para acolher e captar as demandas e necessidades do usuário. Por consequente, é a enfermagem que se coloca “na linha de frente” nos quadros de agitação e crises:

A crise dentro deste serviço, por ser uma estrutura que não tem janela, a questão do fumar isso é uma coisa que a gente tem que ir lá fora com o paciente para fumar num momento de crise de uma contenção corporal se a gente não levar para fumar o paciente fica mais agitado. (E1)

No CAPS III, a gente trabalha isso com o paciente, trabalha no corpo a corpo com o paciente mesmo ele em crise é um cuidado totalmente diferente ele te vê até mesmo como um familiar e não como faz parte da equipe de enfermagem. (E8)

Eu gosto muito mais de atuar na questão da organização do dispositivo no dia do meu trabalho como mediador de crise. Por isso, que eu fico nessa circulação entre convivência, corredor e aí eu fico nessa como antena captando as coisas. (E15)

É importante evidenciar que a equipe de enfermagem como uma antena, se configura pela disponibilidade que é capaz de acolher a autonomia do usuário e promover seu protagonismo por intermédio do cuidado protagonizador:

Tenta trabalhar sempre autonomia, aquele que consegue a gente vai fazer uma orientação tem que ‘procurar lugar tal, ligar, vai ligar e etc... a gente vai vendo o desenrolar, daí a gente se aproxima em alguns momentos que precisar, deixá-lo andar um pouco mais, quando a gente acha que ele está andando bem. (E3)

O projeto terapêutico dele é basicamente sair da residência e vir aqui ao CAPS comigo, a gente fica aqui um pouco, e depois eu acompanho ele até uma feira que tem aqui que é o que faz bem pra ele [...], porque acho que ele já trabalhou com isso, não sei, mas isso tem um contorno na questão da vida dele. (E4)

Observamos, que no acolhimento de uma demanda espontânea de uma usuária idosa, o enfermeiro e um técnico de enfermagem desenvolveram o processo de escuta. A usuária se encontrava muito agitada e verbalizava que iria cometer suicídio. Os profissionais permitiram que ela falasse sobre a questão do suicídio. Em seguida, eles fizeram perguntas sobre sua história de vida. E ela contou partes de sua história de vida. Ao final do acolhimento constatamos que a usuária estava mais tranquila e satisfeita com o atendimento, e ainda verbalizou que o CAPS era a sua segunda casa.

Esse registro ilustra que a ação de Enfermagem como antena é ter disponibilidade para o cuidado no CAPS. É necessária a construção de uma clínica de Enfermagem em saúde mental e psiquiátrica, que se paute nas ferramentas de escuta, vínculo, acolhimento, corresponsabilização e apoio matricial. Esses instrumentos são essenciais para uma enfermagem antenada com as necessidades do usuário e com disponibilidade para cuidado protagonizador.

O conceito a enfermagem como antena diz respeito à capacidade da equipe de Enfermagem em captar o cuidado, sentir que há uma demanda, reconhecendo situações de crises, promovendo projetos de vida, para além dos muros do CAPS, na mediação com os familiares e na terapêutica que valorize o direito e cidadania do usuário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apontar as ações de enfermagem para promover o protagonismo da pessoa usuária do Centro de Atenção Psicossocial possibilitou traçar dimensões de uma tríade política, ética e clínica para o cuidado protagonizador.

O estudo aponta como a equipe de Enfermagem produz ações para promover o protagonismo do usuário na Reabilitação Psicossocial. Tais ações operam principalmente por meio da comunicação criativa e por intermédio do trabalho em rede. Tudo isso mediado por uma equipe de Enfermagem que se percebe como antena disponível para ações psicossociais e em negociação com o território da pessoa assistida. Dessa forma, evidencia-se um cuidado protagonizador nesse cenário.

Em suma, há pontuais avanços da equipe de enfermagem em promover ações que vão além da questão administrativa nos Centros de Atenção Psicossocial. A equipe de enfermagem faz uma tradução do tempo em coisas concretas como sol e lua , acompanha o uso da medicação com atenção para autonomia; usa a importância da aparente informalidade dos encontros para discutir o cuidado protagonizador, utiliza se de formas de linguagem e de registro variados (vídeo, desenho), não reduz o usuário às impossibilidades de seu diagnóstico psiquiátrico e trabalha na construção de redes de apoio no território e, principalmente, se constitui na antena do cuidado, conceito este que significa perceber, receber e integrar o melhor do cuidado oferecido por cada membro da equipe.

O trabalho traz contribuições sobre mecanismos e construções de ferramentas no campo social para a assistência da Equipe de Enfermagem no cenário da Reabilitação Psicossocial. Para o ensino da Enfermagem Psiquiátrica, possibilita novos horizontes de trabalhar categorias inovadoras da equipe de Enfermagem no processo terapêuticos e para a pesquisa aponta possibilidades de traçar avanços e desafios da Enfermagem no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da Política da Humanização da Assistência.

O estudo aponta limitação referente à abrangência da coleta de dados em diversos cenários da atenção psicossocial, pois apresenta dados de dois Centros de Atenção Psicossocial do tipo III, isto é, não foi desenvolvido o estudo em outros contextos da assistência em saúde mental, bem como em outros tipos de Centros de Atenção Psicossocial. Além disso, a recusa de um dos campos e a não possibilidade de coletar dados em outro, devido a aspectos relacionados à insegurança territorial pelo confronto da política militar e tráfico de drogas, foi outro fator limitador em relação a ampliação da coleta de dados.

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Editado por

Editor associado:

Dagmar Elaine Kaiser

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2020
  • Aceito
    04 Ago 2020
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