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O significado das ações de enfermagem na internação de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas

RESUMO

Objetivo

Compreender o significado das ações desenvolvidas pela equipe de enfermagem em uma Unidade de Internação Psiquiátrica de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas à luz do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.

Método

Estudo qualitativo com abordagem da Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz. Participaram do estudo quatro enfermeiros e 17 auxiliares e técnicos de enfermagem de um Hospital Geral do município de Porto Alegre.

Resultados

Emergiram três categorias concretas: ações de enfermagem enquanto ser-com-o-outro; ações coletivas de enfermagem enquanto potencial do agir compartilhado e ações de enfermagem enquanto expectativas e desafios.

Considerações finais

As ações desenvolvidas pela equipe de enfermagem são estabelecidas por meio de relações intersubjetivas, pautadas pelo vínculo e diálogo, porém ainda há a necessidade de a enfermagem potencializar suas ações mediante a ampliação de oferta de atividades terapêuticas coletivas consoantes com o modelo de atenção psicossocial.

Palavras-chave
Enfermagem; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Saúde mental; Hospitalização; Adolescente

ABSTRACT

Objective

To understand the significance of the actions developed by the nursing team in a Psychiatric Inpatient Unit for adolescent female users of psychoactive substances in the light of Alfred Schutz’s phenomenological sociology framework.

Method

Qualitative study with Alfred Schutz’s Phenomenological Sociology approach. Four nurses and 17 nursing assistants and technicians from a General Hospital in the city of Porto Alegre participated in the study.

Results

Three concrete categories emerged: nursing actions as being-with-the-other; collective nursing actions as a potential for shared act and nursing actions as expectations and challenges.

Final considerations

The actions developed by the nursing team are established through intersubjective relationships, based on bonding and dialogue, but there is still a need for nursing to enhance its actions by expanding the offer of collective therapeutic activities aligned with the psychosocial care model.

Keywords
Nursing; Substance-related disorders; Mental health; Hospitalization; Adolescent

RESUMEN

Objetivo

Comprender el significado de las acciones desarrolladas por el equipo de enfermería en Unidad de Internación Psiquiátrica para mujeres adolescentes usuarias de sustancias psicoactivas, considerando el referencial de la sociología fenomenológica de Alfred Schutz.

Método

Estudio cualitativo basado en la Sociología Fenomenológica de Alfred Schutz. Participaron cuatro enfermeros y 17 auxiliares de enfermería y técnicos de una unidad de hospitalización psiquiátrica en hospital general de la ciudad de Porto Alegre.

Resultados

Surgieron tres categorías concretas: acciones de enfermería sobre estar-con-el-otro; operaciones colectivas de enfermería como potencial de acción compartida y las acciones de enfermería como expectativas y desafíos.

Consideraciones finales

Las acciones desarrolladas por el equipo de enfermería se establecen a través de relaciones intersubjetivas, guiadas por el vínculo y el diálogo, pero aún se demarca la necesidad de la enfermería de potencializar sus acciones ampliando la oferta de actividades terapéuticas colectivas alineadas con el modelo de atención psicosocial.

Palabras clave
Enfermería; Trastornos relacionados con sustancias; Salud mental; Hospitalización; Adolescente

INTRODUÇÃO

Diante de uma sociedade capitalista fortemente aliada ao consumismo, revela-se um aumento no uso de substâncias psicoativas, em especial na adolescência. Fato que tem preocupado pais, educadores e profissionais de saúde, exigindo que se coloque em prática estratégias de prevenção, de promoção e de combate ao uso de substâncias psicoativas11. Andrade ME, Santos IHF, Souza AAM, Silva ACS, Leite TS, Oliveira CCC, et al. Experimentation with psychoactive substances by public school students. Rev Saúde Pública. 2017;51:82. doi: https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2017051006929
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A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) dialoga diretamente com a Lei 10.216/2001 - Lei da Reforma Psiquiátrica -, e prevê a composição diversificada de serviços com ênfase no território e a importância de um trabalho interdisciplinar. Mas apesar dos avanços da saúde mental que passa a ser discutida na perspectiva de longitudinalidade do cuidado, ainda encontramos muitos obstáculos no que se refere a essa rede de atenção, em especial, a atenção a adolescentes usuários de substâncias psicoativas22. Ribeiro JP, Gomes GC, Santos EO, Pinho LB. Specificities of care to the adolescent crack user assisted in the psychosocial care network. Esc Anna Nery. 2019;23(2):e20180293. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-EAN-2018-0293
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A adolescência é uma fase de mudanças radicais, na qual o jovem vivencia descobertas significativas em busca da afirmação da sua individualidade e personalidade. É uma etapa crítica que compreende sua transformação até a fase adulta, na qual as drogas podem estar mais presentes, estando, inclusive, relacionadas ao alívio da angústia inerente à condição humana. É um período de riscos, em que o adolescente se encontra nessa fase de transição entre infância e idade adulta, na qual se evidencia a importância dos cuidados de um adulto para garantir a satisfação de suas necessidades básicas tais como alimentação, educação e de viver o amor, mas sem ainda ter aprendido a tolerar e enfrentar seus instintos por novas descobertas e desejo de reconhecimento e pertencimento no grupo33. Corso DL, Corso M. Adolescência em cartaz: filmes e psicanálise para entendê-la. Porto Alegre: Artmed; 2018..

A atenção disponibilizada pela enfermagem direcionada a adolescentes usuários de substâncias psicoativas pode incluir ações voltadas para a promoção do bem-estar físico e mental com a centralidade no diálogo como espaço de expressão das necessidades do adolescente, constituindo-se uma forma importante de estabelecer comunicação e relacionamento terapêutico. A enfermagem também pode incluir nas suas ações perspectivas emancipatórias dos adolescentes, visando à prevenção do uso de drogas e promoção da saúde, com uma abordagem ética que considere seu contexto e subjetividade44. Teixeira LA, Freitas RJM, Moura NA, Monteiro ARM. Mental health needs of adolescents and the nursing cares: integrative review. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180424. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2018-0424
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Em unidades de internação psiquiátrica a enfermagem vem alterando sua atuação progressivamente, de uma abordagem de valorização do tratamento medicamentoso, distanciamento do cuidado direto devido às atividades burocráticas55. Oliveira RM, Siqueira Júnior AC, Furegato ARF. Enfermería en unidad de internación psiquiátrica. Cultura Cuidados. 2020 [cited 2021 Jan 18];24(57):250-63. Available from: https://ciberindex.com/index.php/cc/article/view/57250cc
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desenvolvimento de atividades assistenciais de natureza técnica; para outra de investimento na relação terapêutica, dando prioridade à subjetividade do usuário, do ambiente terapêutico e organizacional. Além disso, vem propondo o cuidado integral e especializado, para alcance do bem-estar e desinstitucionalização dos usuários atuando de forma científica, sistematizada e humanizada66. Silva TG, Santana RF, Dutra VFD, Souza PA. Nursing process implantation in mental health: a convergent-care research. Rev Bras Enferm. 2020;73(suppl 1):e20190579. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2019-0579
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Na intenção de contribuir para este debate, emerge no presente estudo a questão norteadora: Qual é o significado das ações da equipe de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas? Para este estudo, entende-se ação como sendo a conduta baseada em um projeto. Está diretamente ligada aos pensamentos, ao planejamento e ao interesse, ou seja, a sua interpretação está baseada no estoque de conhecimento relacionado à experiência de cada um que está em constante transformação77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

A partir da escuta dos profissionais, é possível a reflexão das suas práticas e a produção de novas tecnologias. Assim, o objetivo do estudo é compreender o significado das ações desenvolvidas pela equipe de enfermagem em uma Unidade de Internação Psiquiátrica de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas à luz do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza fenomenológica, com o referencial da Sociologia Fenomenológica de Alfred Schutz77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. O significado das ações desveladas neste estudo diz respeito ao comportamento motivado da equipe de enfermagem, ou seja, os motivos porque, enquanto uma categoria objetiva, acessível ao observador que se revela, quando olhamos de maneira retrospectiva para as experiências passadas, relacionada diretamente ao projeto da ação. E os motivos para, que se referem ao devir, aquilo que se pretende, é essencialmente subjetiva, sendo acessível somente quando indagada ao ator.

O cenário da pesquisa foi uma unidade de internação psiquiátrica feminina para adolescentes usuárias de substâncias psicoativas de um hospital geral público de referência para a região sul do país. Oferece oito leitos SUS destinados às adolescentes de 12 a 17 anos e 11 meses. O tratamento nesta unidade prevê a desintoxicação, o tratamento da dependência química, das comorbidades psiquiátricas, acompanhamento da família e a continuidade do tratamento pós alta88. Grupo Hospitalar Conceição (BR) [Internet]. Porto Alegre; HNSC; c2020 [cited 2021 Jan 18]. Internação Hospitalar; [about 1 screen]. Available from: https://www.ghc.com.br/default.asp?idMenu=cartacidadao&idSubMenu=14
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A ocupação de leitos dessa Unidade se dá pela Central de Regulação do Município de Porto Alegre, via Emergências em Saúde Mental ou consultorias enviadas pelas Unidades Internas do Hospital à Unidade de Internação Psiquiátrica88. Grupo Hospitalar Conceição (BR) [Internet]. Porto Alegre; HNSC; c2020 [cited 2021 Jan 18]. Internação Hospitalar; [about 1 screen]. Available from: https://www.ghc.com.br/default.asp?idMenu=cartacidadao&idSubMenu=14
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Os participantes da pesquisa foram quatro enfermeiros e 17 auxiliares e técnicos de enfermagem da unidade de internação psiquiátrica deste hospital geral. O critério de inclusão foi ser trabalhador de enfermagem da internação psiquiátrica feminina para adolescentes há pelo menos seis meses. Já como critério de exclusão foi estar em concessão de férias e/ou afastamento no período da coleta de informações. A equipe de enfermagem era exclusivamente desta unidade.

A coleta de informações foi realizada por meio de entrevistas fenomenológicas nos meses de outubro a novembro de 2018. As entrevistadas foram individuais, aplicadas pela pesquisadora e agendadas. Aconteceram em uma sala da unidade, sem comprometer o funcionamento do serviço, com duração média de 40 minutos. Os depoimentos foram gravados e transcritos em sua íntegra, sendo assegurada a veracidade dos dados. Na etapa de transcrição foi realizada uma dupla checagem das transcrições, sendo que as entrevistas e as transcrições foram feitas pela própria pesquisadora.

Para a realização das entrevistas, utilizaram-se as seguintes questões: “Como você desenvolve suas ações de enfermagem na unidade de internação psiquiátrica de meninas adolescentes usuárias de substâncias psicoativas?”; “O que você espera com suas ações de enfermagem na unidade de internação psiquiátrica de meninas adolescentes usuárias de substâncias psicoativas?” e “Quais as dificuldades e potencialidades nas suas ações de enfermagem?”. Para fins de privacidade dos participantes, as falas foram referenciadas pela letra “E” de entrevistados, seguida do número da entrevista.

A análise das informações deu-se à luz do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Para compreender o significado das ações de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas, seguiram-se as seguintes etapas preconizadas por pesquisadores deste referencial99. Camatta MW. Ações voltadas para saúde mental na Estratégia de Saúde da Família: intenções de equipes e expectativas de usuários e familiares [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2010 [cited 2021 Jan 18]. Available from: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/27895/000767787.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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: leitura atenta das falas, a fim de captar as informações, tendo em vistas os objetivos da pesquisa; identificação das categorias concretas que abrigam as ações dos sujeitos; releituras das falas para selecionar e agrupar trechos que contivessem aspectos significativos semelhantes das ações dos sujeitos; e, por fim, a partir das características típicas das falas, estabeleceu-se o significado das ações dos sujeitos, buscando descrever o típico da ação da equipe de enfermagem.

A partir das convergências das unidades de significado que emergiram das falas, organizaram-se os resultados das vivências da equipe de enfermagem em três categorias concretas: “ações de enfermagem enquanto ser-com-o-outro”; “ações coletivas de enfermagem enquanto um agir compartilhado” e “ações de enfermagem enquanto expectativas e desafios”. Ao final do processo de análise, agendou-se junto a unidade de internação a devolutiva dos resultados, a fim de contribuir com o cuidado junto às adolescentes usuárias de substâncias psicoativas.

Foram cumpridos os aspectos éticos de pesquisa com seres humanos, preconizados pelo Conselho Nacional de Saúde, de acordo com as Resoluções número 466/2012 e número 510/2016. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob CAEE 94286418.7.0000.5530. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise dos relatos à luz do referencial da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018., apresentam-se três categorias concretas: ações de enfermagem enquanto ser-com-o-outro, ações coletivas de enfermagem enquanto potencial do agir compartilhado e ações de enfermagem enquanto expectativas e desafios.

Ações de enfermagem enquanto ser-com-o-outro

A maioria das internações na unidade parte do desejo dos cuidadores ou de pessoas que se sentem em risco com a presença das adolescentes usuárias. De maneira geral, segundo a equipe de enfermagem, elas não reconhecem o uso da substância psicoativa como nocivo, não identificam os riscos que se colocam e que podem colocar os outros:

[...] sem o senso crítico dos riscos que estão correndo, dos riscos que estão submetidas à violência [...] Eu só fumei um baseado, é mais ou menos isso é bem normal (E4).

O que elas vivenciam é muito perigoso e às vezes elas não têm noção, elas acham que vão ser a preferida do chefe da gang, a primeira-dama do lugar, e aí a gente tenta reverter essa ideia (E15).

O cuidado é um encontro relacional que envolve o “eu”, o “outro” e o “nós”, formando uma tríade necessária para a constituição de saberes, independentemente do campo científico em que esteja inserida. Mas como operar esse encontro se nem todos os envolvidos estão disponíveis?1010. Borges RF. Cuidado educativo: relações e possibilidades de uma práxis transformadora no ensino superior [tese]. Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2015 [cited 2021 Jan 18]. Available from: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/6129/2/470412%20-%20Texto%20Completo.pdf
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Tal fato que exige uma discussão sobre o cuidar e ser cuidado, entendendo que um completa o outro, o que implica uma resposta afetiva. Embora para o cuidador esteja explícito o comprometimento, a receptividade para o outro, não necessariamente esteja presente para a pessoa a ser cuidada, como evidenciado no presente estudo1111. Waldow VR. Enfermagem: a prática do cuidado sob o ponto de vista filosófico. Investig Enferm Imagen Desarr. 2015;17(1):13-25. doi: https://doi.org/10.11144/Javeriana.IE17-1.epdc
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Os atores estão situados no mundo da vida da internação em uma relação face-a-face, na qual há intencionalidade de cuidar. No entanto, evidencia-se uma fragilidade na reciprocidade de perspectivas entre os envolvidos, o que pode ser justificado, em parte, pela maioria das internações serem contrárias à vontade das adolescentes.

Esse contexto reforça o desejo delas em não contar suas histórias, que tantas vezes são marcadas por negligências, maus tratos, violências. Não percebem o sentido de compartilhar sua situação biográfica com a equipe de enfermagem, como uma forma de cuidado.

Mesmo diante do silêncio das adolescentes, um dos destaques nas entrevistas foi a condição de saúde das mesmas na admissão hospitalar, seja pelo uso abusivo e/ou de outras situações estreitamente ligadas ao mesmo, tais como a exposição a violência, a prostituição, o abandono do lar, da escola, entre outros, o que evidencia a complexidade da dependência química. Uma maior apropriação com o passado e com o plano geral em que se situa a ação da pessoa permite ao observador extrair conclusões mais confiáveis sobre o sujeito77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

[...] são dependentes químicas, mas tem algumas com transtornos de conduta, depressão devido ao problema de droga e familiar, tem muita coisa envolvida nisso. [...] algumas chegam em péssimas condições (E6).

[...] devido a fragilidade que elas vêm para a unidade, às vezes muitas são da rua, muitas são maltratadas então, a gente procura dar o máximo de orientação possível apesar de elas não aceitarem, às vezes elas vem com resistências devido ao que passam na rua (E12).

Na relação face-a-face pode-se afirmar que o participante se torna consciente da pessoa diante dele, ou seja, há a “orientação pelo tu”, o que consiste em dirigir-se intencionalmente para a outra pessoa, o que não implica ter consciência daquilo que se passa na mente do outro77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

Estar junto e apropriado do mundo da vida que compartilhamos com os nossos permite-nos estabelecer a relação terapêutica, mas que só se completa quando há apropriação do que se passa com a outra pessoa, sendo a forma possível para isso o estabelecimento do diálogo.

Para a enfermagem, a principal ação profissional é o cuidado. O cuidado é considerado uma arte desenvolvida pela subjetividade de cada “ser” constituída pelo seu posicionamento pessoal, suas escolhas, seu agir e a maneira como percebe o outro na vida1010. Borges RF. Cuidado educativo: relações e possibilidades de uma práxis transformadora no ensino superior [tese]. Porto Alegre (RS): Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; 2015 [cited 2021 Jan 18]. Available from: http://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/6129/2/470412%20-%20Texto%20Completo.pdf
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Além de se ocuparem das questões de desintoxicação e síndrome de abstinência, as ações da enfermagem na unidade, também buscam atender as dimensões integrais das internas, apostando no estabelecimento do diálogo:

Eu tento chegar o mais próximo delas para dizer que tudo tem seu tempo e que aqui a gente está para ajudar elas a amadurecer em todas as suas ideias erradas e tentar mostrar a forma certa (E1).

[...] nem sempre são só drogas, elas devem ser tratadas numa íntegra então podem ter problemas de ordem física, pode ter alguma doença sexualmente transmissível l(E9).

São jovens que recém, vamos dizer, não tem maturidade ainda, então elas retornam, aí a gente tenta conversar novamente, mas é difícil devido a vivência delas [...] é muita imaturidade, é muito sofrimento, umas acabam em morte (E12).

O trabalho em saúde assume o compromisso com a sociedade e com as necessidades diretas do usuário, é centrado no trabalho vivo, que opera com graus de incertezas, presentes no encontro. Um encontro que existe entre aquele que cuida (agente produtor com suas ferramentas, conhecimentos e equipamentos) e aquele que é cuidado (agente consumidor com suas intencionalidades, conhecimentos e representações), o que torna o segundo, também, operador de sua autonomia1212. Merhy EE, Baduy RS, Seixas CT, Almeida DES, Slomp Júnior H, organizadores. Avaliação compartilhada do cuidado em saúde: surpreendendo o instituído nas redes. Rio de Janeiro: Hexis; 2016..

Ao falar em cuidado na adolescência, leva-se em consideração seres em desenvolvimento e que deveriam ter contato com pessoas acolhedoras, preferencialmente em suas famílias operando nos sentimentos de identificação e pertença. Mas, infelizmente, em muitos depoimentos, pode-se observar o quanto a família não consegue oferecer a proteção a essas adolescentes, já que o núcleo familiar está adoecido:

Uma menina maravilhosa, mas a mãe com problemas com drogas, então ela estava morando com o pai e os dois irmãos; o pai bem fragilizado (E6)

A falta dos pais, muitas vezes já faleceram ou usam drogas também, então eu sei como é difícil [...] (E14)

Nos depoimentos a seguir fica evidente a aposta, o investimento emocional nas adolescentes por parte dos profissionais, o que remete à situação biográfica dos mesmos que acionam os conteúdos de seus outros papéis como pai e mãe, ou até mesmo recordando sua adolescência, o que direciona para uma ação humanizada.

Quem é vó como eu, a gente se enternece em relação a isso, a gente tem uma preocupação em dar um apoio que lá fora elas não têm, um carinho, uma palavra de incentivo ou um estímulo que é para elas procurarem sair dessa (E17).

Quando eu era adolescente eu aprendi a fazer tricô, crochê, pintar, depois aprendi fazer minha própria sobrancelha, arrumar o cabelo [...] eu queria que elas tivessem isso que eu tive quando adolescente [...] quero que elas absorvam isso um pouco, do que elas precisam (E21).

O cuidado transpessoal marca as relações, tanto na posição de cuidar, educar e de mostrar o caminho possibilitando uma visão do todo, mas não para generalizar, e sim para considerar o indivíduo como ser único e especial, extrapolando o cuidado técnico, dando lugar para um cuidado ampliado, atento e afetuoso. Dessa forma o diálogo, a escuta, o abraço e o carinho são importantes recursos terapêuticos1111. Waldow VR. Enfermagem: a prática do cuidado sob o ponto de vista filosófico. Investig Enferm Imagen Desarr. 2015;17(1):13-25. doi: https://doi.org/10.11144/Javeriana.IE17-1.epdc
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O cuidar se constitui para além das técnicas; envolve sentimento, conhecimento e aspecto moral. E torna-se um cuidado autêntico, quando os profissionais de enfermagem, além de responderem às necessidades de cuidado, buscam de maneira responsável desenvolver, restaurar ou aumentar o cuidado de si e do outro na melhor maneira possível1111. Waldow VR. Enfermagem: a prática do cuidado sob o ponto de vista filosófico. Investig Enferm Imagen Desarr. 2015;17(1):13-25. doi: https://doi.org/10.11144/Javeriana.IE17-1.epdc
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Com relação ao cuidado de si, as adolescentes talvez não tenham tido um momento para refletir sobre as relações, as repercussões do uso nocivo de substâncias psicoativas em suas vidas. A enfermagem entende como fundamental desenvolver ações educativas, relacionadas ao cuidado com o corpo e ao comportamento. As falas a seguir elucidam o exposto:

Eu digo sempre para elas, aqui é o lugar que vocês têm para refletir os prós e contras que vocês estão passando na vida, não é castigo como às vezes elas acham. Até nós saímos daqui com outro pensamento em relação a vocês, quando vocês estão legais a gente sai daqui bem (E11).

Seria como se a internação servisse como uma reflexão da qual elas têm um tempo para absorver tudo aquilo que passaram e ao mesmo tempo refletir sobre uma possível mudança de hábitos[...] (E20).

Na presente pesquisa, os entrevistados identificam que na internação psiquiátrica de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas, a atenção é um diferencial no cuidado, podendo ser desdobrada em observar o comportamento das meninas e estar junto a elas percebendo suas necessidades.

Com relação ao comportamento observado pelos entrevistados, destaca-se, principalmente, as alterações: conduta isolacionista, risco de abandono de tratamento e agressividade verbal e/ou física. A enfermagem está presente 24 horas no dia: em muitos casos, são os primeiros a identificar mudanças, que, quando reconhecidas logo no início, permitem medidas preventivas que diminuam agravos negativos às adolescentes e aos demais atores presentes, conforme demonstram as falas a seguir:

[...] pelo tempo que a gente trabalha com elas, a gente sabe quando uma menina vai entrar em crise ou quando ela vai se acalmar (E3).

Às vezes estão agressivas, não querem conversar, tem que respeitar também esse momento, não querer ficar invadindo, porque eu não acho adequado, também não vai surtir efeito nenhum (E15).

A gente, depois que medica, fica mais no controle vendo se está bem, às vezes brigam, se agarram, se dão lhe pau, tem tudo isso querem fugir, então a gente tem todo esse cuidado, para ter o nosso olhar. A gente procura estar sempre junto (E18).

Mas apesar da identificação precoce dos sinais e sintomas, nem sempre ocorre uma intervenção preventiva, que pode ser decorrente do distanciamento entre a Enfermagem e outros núcleos profissionais. Apesar de inúmeros esforços para um processo de trabalho mais horizontal e interdisciplinar, como traz o texto da Política Nacional de Humanização, que prevê a superação da fragmentação das relações de trabalho, desenvolvimento da dinâmica multiprofissional, incentivo da transversalidade e da grupalidade1313. Ministério da Saúde (BR. Secretaria de Atenção à Saúde) . Política Nacional de Humanização: Humaniza SUS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Oct 1]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_humanizacao_pnh_folheto.pdf
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A dificuldade que a gente tem maior enquanto enfermagem, é muitas vezes com o resto da equipe multidisciplinar. Porque a equipe médica pensa de uma forma, mas é a enfermagem que passa 24 horas, não somos ouvidos (E1).

A gente é meio podado, tipo assim, observar, dar carinho ou muita aproximação, vamos ser sincera aqui a gente não é muito valorizada, a gente está fazendo o nosso trabalho porque a gente gosta (E12).

Na internação, foi possível verificar como os entrevistados estão distantes de um ambiente comunicativo compartilhado, que é um local comum estabelecido pela compreensão que os sujeitos motivam um aos outros reciprocamente em suas atividades77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018.. Nos depoimentos aparece a falta de reconhecimento, o trabalho centrado em núcleos profissionais, o que, sem dúvida, reverbera na qualidade e satisfação do trabalho.

No cenário hospitalar, há a supremacia das tecnologias duras e leve-duras, que se mostram pela alta densidade tecnológica dos aparelhos e pela existência de protocolos assistenciais que objetivam a regulação, o controle das variáveis que podem comprometer a excelência diagnóstica e a qualidade do tratamento. Extremamente valiosas quando o foco é a doença, mas incompletas quando colocamos a “doença entre parênteses”1414. Merhy, EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3. ed. São Paulo: Hucitec; 2002..

No cenário de estudo, percebeu-se a fragilidade da interação da enfermagem com os demais membros da equipe, mas, por outro lado, com as adolescentes se mostra uma potente ferramenta de cuidado, conforme as falas a seguir:

A gente tenta conversar com elas, tentar trazer elas para nós, assim para terem certa confiança, contar um pouco da história delas, a gente troca muito experiência, na adolescência também não fui fácil, a adolescência foi terrível (E7).

Eu acho que não é só medicamento que vai ajudar, mas sim tentar dialogar bastante sobre como são jovens, que tem futuro, que elas podem fazer o que quiserem (E10).

A partir do exposto é possível identificar que o diálogo entre a equipe de enfermagem e as adolescentes está presente no estabelecimento do cuidado, da relação terapêutica. O cuidado é uma tecnologia leve que, por meio da relação respeitosa, do encontro com o outro, considera valores humanitários, morais, aspectos humanos e contextuais, sem deixar de identificar necessidades1515. Almeida Q, Fófano GA. Tecnologias leves aplicadas ao cuidado de enfermagem na unidade de terapia intensiva: uma revisão de literatura. HU Rev. 2016 [cited 2020 Oct 1];42(3):191-6. Available from: https://periodicos.ufjf.br/index.php/hurevista/article/view/2494/891
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Quando o discurso do outro e nosso escutar são experienciados como uma simultaneidade vívida e participamos do presente imediato do pensamento do outro, estamos diante da tese geral do alter ego na qual acontece um fluxo de consciência, cujas atividades eu posso perceber no presente, mediante minhas próprias atividades simultâneas77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

Ouvir, conhecer as histórias de vida das adolescentes, faz com que a enfermagem consiga ter acesso a alguns aspectos que os ajudam a ampliar a sua percepção frente ao uso de substâncias psicoativas na adolescência, ultrapassando o senso comum e discriminatório que acompanha a dependência química.

A enfermagem desempenha uma importante função no período de adaptação das adolescentes na internação, explicando o funcionamento do serviço, facilitando a aproximação como as demais internas e a equipe. Percebe-se o quanto os entrevistados tomam para si, o diálogo, a escuta terapêutica como fazeres de seu cuidado, subtraindo o peso histórico que a enfermagem ainda incorpora na Clínica Psiquiátrica e na Saúde Mental, na qual se ocupava apenas do controle dos sintomas, dos corpos e das instituições.

Assim, dentre tantos desafios, pode-se apontar a comunicação efetiva entrelaçada com um agir comunicativo que pressupõe uma atividade colaborativa dos atores: profissional da enfermagem, usuário e equipe multiprofissional1616. Alves KYA, Bezerril MS, Salvador PTCO, Feijão AR, Santos VEP. Effective communication in nursing in the light of Jürgen Habermas. Rev Min Enferm. 2018;22:e-1147 doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20180078
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. Desta forma, estar no mundo da vida é muito mais que estar presente, é necessário fazer-se presente por meio da intencionalidade para com o outro, é compartilhar o vivido, é deixar-se influenciar e influenciar o outro.

Ações coletivas de enfermagem enquanto potencial do agir compartilhado

A unidade tem as paredes grafitadas, o piso desenhado com jogos de amarelinha, é um local que busca ser acolhedor, mas é uma unidade fechada, sem pátio externo, situada no quarto andar do hospital, dispõe de poucos recursos audiovisuais, o que, de certa forma, limita a oferta de atividades, trazendo à tona o ócio.

A enfermagem é o núcleo profissional que está 24 horas junto às adolescentes, que compartilha os momentos em que o hospital diminui o seu ritmo como no final da tarde, à noite, finais de semana e feriados.

As internas, para além das questões da adolescência, são atravessadas pela dependência química, ou seja, anseiam minimizar a fissura, a abstinência, fazer algo para acabar com o ócio e com a morosidade do tempo. Paradoxalmente, a enfermagem está presente nos espaços coletivos, mas participa pouco de grupos e oficinas:

No final de semana não tem nada para fazer com elas(E5).

As meninas paradas, às vezes uma tarde toda sem ter uma atividade, só com os lápis para pintar, a gente vê o ócio que elas ficam, aqui tem a possibilidade de ter um serviço bacana (E7).

Pensa bem umas adolescentes trancadas aqui, passam o maior tempo na rua, daí ficam trancadas sem atividades, mas daí a gente procura fazer atividades com elas, mesmo não sendo reconhecida, a gente faz (E12).

É importante trazer que a equipe da internação contempla a presença apenas da enfermagem nos períodos acima descritos, sendo que terapeutas ocupacionais e assistentes sociais, além de terem suas cargas horárias compartilhadas com a unidade de adultos, trabalham de segunda à sexta-feira. Diante de tais situações, os entrevistados são tencionados a rever o seu processo de trabalho, predominantemente centrado em ações individuais, e tomar para si as ações coletivas desenvolvidas pela Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiatria, que estão respaldadas pela Resolução 0599/20181717. Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução nº 0599/2018, 19 de dezembro de 2018. Aprova Norma técnica para atuação da Equipe de Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiatria [Internet]. Brasília: COFEN; 2018 [cited 2020 Jan 15]. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2018/12/RESOLU%C3%87%C3%83O-599-2018.pdf
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, sendo: conduzir e coordenar grupos terapêuticos, e, no caso dos técnicos de enfermagem, participar de atividades grupais com os demais profissionais da equipe de Saúde Mental. Os entrevistados colocam algumas questões a serem discutidas:

No final de semana, o técnico de enfermagem inventa uma atividade pega um papel pardo para elas pintarem porque no final de semana não tem nada para fazer com elas (E5).

A gente faz o serviço especializado do técnico de enfermagem e mais algumas oficinas que a gente fazia, mas hoje em dia não são mais feitas, a gente deixou de fazer devido as cobranças (E7).

A primeira coisa é verificar os sinais, ver se está tudo certo, daí chega as medicações e depois é dado atenção para elas, feito algumas atividades como jogar cartas, pintar as unhas, essas coisas assim que tem na unidade (E10).

Nas falas se percebe o quanto as atividades desenvolvidas apresentam mais um caráter lúdico do que propriamente terapêutico para os entrevistados. Com relação à fala que traz a cobrança, remete ao desconhecimento dos demais profissionais em entender que atividades grupais são atribuições da enfermagem e que maneira alguma estariam invadindo o escopo de trabalho de outros profissionais. Por outro lado, também se observa que alguns participantes não reconhecem grupos e oficinas como atividades da enfermagem, mas que, diante do ócio do cotidiano da internação, acabam realizando essas atividades.

A falta de entendimento que os grupos e as oficinas são ações da enfermagem pode ser explicado, em parte, pela trajetória da profissão nos serviços, que historicamente sofreu influências do domínio médico, que detém o poder de prescrever, e, por outro lado, das religiosas, que pregavam a subserviência, abnegação, docilidade e carinho1818. Coelho I. Os hospitais no Brasil. São Paulo: Hucitec; 2016. . Elementos que foram acolhidos pela enfermagem, predominantemente exercida por mulheres, e que logo assumiram para si um cuidado mais prescritivo e direcionado a cada pessoa.

As atividades de grupo e oficinas na Psiquiatria e na Saúde Mental geralmente são atribuídas aos psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Na unidade em questão, percebe-se o quanto as adolescentes ficam por períodos no ócio. Desta forma, a enfermagem se revela como um núcleo em potencial para as práticas coletivas.

Considera-se fundamental a sensibilização da enfermagem, bem como o desenvolvimento de capacitações, sob forma de educação permanente, para a apropriação das práticas e fundamentos dos processos grupais, bem como uma sensibilização com os demais integrantes da equipe da internação para que reconheçam e apoiem como um fazer da enfermagem, legítimo e fundamentado. Nas atividades grupais há uma interconexão intencional entre os envolvidos, em que um deveria motivar o outro. As pessoas são percebidas umas às outras, não como objetos, mas como contrassujeitos que, por meio dos atos comunicativos, o “eu” se volta para os outros, apreendendo-os como pessoas que se voltam para eles, e ambos compreendem o fenômeno77. Schutz A. A construção significativa do mundo social: uma introdução à sociologia compreensiva. Petrópolis: Vozes; 2018..

O desenvolvimento dessas práticas grupais poderia refletir uma atividade potente que articula as demandas das adolescentes, devendo ser devidamente planejada, com objetivos a serem atingidos, contribuindo para que a enfermagem reconheça as suas ações coletivas como parte importante no cuidado.

Ações de enfermagem enquanto expectativas e desafios

Concomitantemente ao cuidado às meninas, há uma intencionalidade dirigida para si, na qual a equipe de Enfermagem, ao perceber fragilidades e potencialidades relacionadas ao desenvolvimento de suas ações, também consegue trazer as expectativas e os desafios relacionadas ao seu trabalho.

As dificuldades são recorrentes nos discursos dos entrevistados e estão diretamente ligadas a organização do processo de trabalho interdisciplinar, mais especificamente na falta de horizontalidade das relações, uma vez que nem todos conseguem ser ouvidos e ter suas opiniões consideradas.

A dificuldade que a gente tem maior enquanto Enfermagem, é muitas vezes com o resto da equipe multidisciplinar. Porque a equipe médica pensa de uma forma, mas é a Enfermagem que passa 24 horas, não somos ouvidos (E1).

A dificuldade é a gente barrar em rotinas, criadas por pessoas que não usam essa rotina e muitas vezes não sabe, o potencial que a gente (Enfermagem) tem aqui dentro [...] (E7).

Dificuldade sempre tem, a gente tem o convívio, é toda uma equipe, então na maioria das vezes a gente pensa diferente e age diferente, a gente tenta se adaptar (E8).

Na internação embora exista a aproximação física entre os atores, não há garantia da intersubjetividade, o estabelecimento de relações integrativas, em que uns motivam uns aos outros44. Teixeira LA, Freitas RJM, Moura NA, Monteiro ARM. Mental health needs of adolescents and the nursing cares: integrative review. Texto Contexto Enferm. 2020;29:e20180424. doi: https://doi.org/10.1590/1980-265X-TCE-2018-0424
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.

Nos depoimentos, aparece a falta de reconhecimento permeando as relações e as ações desenvolvidas. Outro elemento que remete à complexidade em trabalhar na unidade é a apropriação das temáticas: adolescência e dependência química pelos entrevistados e a importância de ter e seguir rotinas do serviço numa perspectiva terapêutica e organizacional do espaço. O que coloca a educação permanente como um recurso potente para trabalhar tais questões, mas, no entanto, o que se verifica nas falas a seguir ainda é um processo a ser descoberto:

Somos um hospital escola, então temos mudança em período em período, tem os estagiários, os residentes, então tem mudança, então daí tem que retomar tudo de novo (E4).

Tem pessoas despreparadas para trabalhar com drogas porque acham que é como se diz sem vergonha, tá reclamando aqui, mas o que fazia na rua? (E5).

Toda hora estão fazendo uma rotina diferente, não tem como isso, porque nós temos que seguir uma rotina, claro que tem que haver algumas mudanças, mas tem coisas que são básica (sic) (E6).

Seguindo uma perspectiva interdisciplinar, na unidade existem encontros semanais para a discussão de casos e assuntos administrativos e também mensais, esses chamados de colegiados, o que poderiam ser espaços de educação permanente. Mas nem todos os trabalhadores conseguem participar e alguns não reconhecem como um lugar de compartilhamento:

A gente coloca uma coisa na pauta, a gente quer discutir e não deixam a gente falar, então eu não gosto de participar desses colegiados, para mim não tem importância nenhuma, sou bem franca para falar (E6).

A gente tem as reuniões de quarta-feira que é o round que a gente consegue conversar sim, mas como a reunião acontece de manhã, geralmente é a equipe da manhã que está. Então fica difícil conversar com todos, os outros profissionais (dos outros turnos) ficam um pouco isolados e acabam não participando das decisões, ficam de fora, não sabem o que está acontecendo (E14).

Nas falas se percebe que uma reunião agendada não necessariamente é um espaço coletivo que garante a horizontalidade das trocas e a construção linear de conhecimentos. É um desafio ver o outro e a si mesmo como sujeito implicado ativamente no processo de cuidar.

A partir de um olhar retrospectivo que acessou os motivos porque dos entrevistados foi possível evidenciar as fragilidades e potencialidades das ações desenvolvidas, mas também permitiu um movimento futuro - motivos para a identificação das expectativas.

Com relação às expectativas, há a busca pela melhora das adolescentes, mas também se testemunha questões que se tomam pela busca de autonomia, protagonismo, visibilidade e reconhecimento dos profissionais da Enfermagem como atores sociais do mundo da vida da Psiquiatria e da Saúde Mental.

Que pudéssemos trabalhar com uma equipe multiprofissional que todo mundo tivesse uma visão que alcançasse o mesmo ponto (E4).

Eu espero que a gente possa realizar mais, eu espero que a gente tenha oportunidade de trabalhar e que as pessoas tenham uma mentalidade melhor, abram sua cabeça para isso (E7).

Ser reconhecida, mas não somos, mas daí a gente vai continuando (E12).

Assim, diante de tantas possibilidades futuras que podem ser chamadas de objetivos à disposição, há a convergência das expectativas do ser que são intensamente influenciadas pelas situações biográficas determinadas de cada pessoa dotada de seu conhecimento: fala-se aqui de biografia, subjetividade, singularidade, individualidade e motivações1616. Alves KYA, Bezerril MS, Salvador PTCO, Feijão AR, Santos VEP. Effective communication in nursing in the light of Jürgen Habermas. Rev Min Enferm. 2018;22:e-1147 doi: https://doi.org/10.5935/1415-2762.20180078
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Entre tantas complexidades colocadas na unidade - a adolescência e a dependência química - é importante que haja uma apropriação dos trabalhadores sobre as temáticas, o que coloca a educação permanente como um recurso interessante, bem como aponta a continuidade das rotinas como terapêutico para as internas e para o bom andamento da unidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou compreender o significado das ações da equipe de enfermagem em uma unidade de internação psiquiátrica de adolescentes usuárias de substâncias psicoativas, sendo que foi possível identificar que essas ações são estabelecidas por meio de relações intersubjetivas, pautadas pelo vínculo e diálogo. O estudo apontou a necessidade de a enfermagem potencializar suas ações mediante a ampliação de oferta de atividades terapêuticas coletivas consoantes com o modelo de atenção psicossocial. Referente ao significado das ações realizadas pelos profissionais, o estudo contribui para a produção de conhecimentos na área de enfermagem em saúde mental, a partir do desvelar da relação intersubjetiva entre adolescentes e equipe de enfermagem.

Os participantes caracterizam o típico de sua ação como singular e empática a cada adolescente no contexto da internação para o tratamento do abuso de substâncias. A equipe de enfermagem parte inicialmente do reconhecimento da situação de vulnerabilidade que as adolescentes estão expostas. Assim, adotam uma postura empática, de escuta atenta e abertura ao diálogo com elas para a realização do cuidado. Proporciona espaço de ambientação com a unidade e pauta suas ações, sobretudo em abordagens individuais na relação cotidiana do trabalho, sendo eventualmente realizadas ações coletivas (lúdicas e de auto-cuidado), ainda desprovidas de uma conotação terapêutica, pois são realizadas de forma empírica (sem sustentação teórica) e motivadas pelo ócio vivido pelas adolescentes internadas.

Os resultados do estudo contribuem para reflexões sobre o potencial terapêutico dos profissionais de enfermagem para o cuidado em saúde mental para adolescentes usuárias de substâncias psicoativas. Essas constatações revelam uma latente necessidade dos profissionais de enfermagem em potencializar suas ações enquanto área de conhecimento para atender e cuidar dessas adolescentes, mediante a ampliação de oferta de atividades terapêuticas coletivas consoantes com o modelo de atenção psicossocial. O espaço de educação permanente já institucionalizado no serviço pode servir de suporte para a superação desse obstáculo. Esses achados podem servir de inspiração para outras realidades semelhantes ao do cenário do estudo.

Considera-se, como limitação do estudo, o fato do fenômeno estudado não contemplar a perspectiva das adolescentes usuárias de substâncias para compor a perspectiva dos profissionais de enfermagem. Assim sugerem-se outros estudos sobre a temática direcionados a este público.

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    O estudo é fruto da tese de doutorado intitulada Ações de enfermagem em unidade de internação psiquiátrica para adolescentes usuárias de substâncias psicoativas; apresentada ao Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Editado por

Editor associado

Carlise Rigon Dalla Nora

Editor-chefe

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Jul 2020
  • Aceito
    26 Fev 2021
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