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O uso da própria voz no trabalho de parto: um estudo fenomenológico

RESUMO

Objetivo:

Compreender o significado atribuído pelas mulheres ao uso da própria voz notrabalho de parto.

Método:

Estudo qualitativo descritivo fundamentado no referencial teórico-filosófico-metodológico de Heidegger. Realizou-se entrevistas fenomenológicas com 20 mulheres que vivenciaram o parto vaginal sem intervenções no segundo trimestre de 2020 na cidade do Rio de Janeiro - Brasil.

Resultados:

A análise compreensiva revelou que a voz pode provocar uma reação do ambiente que as deixe sofrer. A expressão da voz engloba medo e desespero. É a partir do que ouvem, que as mulheres receiam serem deixadas em sofrimento por terem incomodado os profissionais.

Conclusão:

Compreendeu-se o sentido do uso da própria voz no parto como um pedido de ajuda ou uma expressão da liberdade. Partindo desta compreensão pode se dar uma abertura do profissional para o cuidado sensível e individualizado, que ultrapassa a tecnologia.

Palavras-chave:
Parto; Filosofia; Saúde da mulher

ABSTRACT

Objective:

To understand the meaning attributed by women to the use of their own voice in labor.

Method:

Descriptive qualitative study based on the theoretical-philosophical-methodological framework of Heidegger. Phenomenological interviews were carried out with 20 women who experienced vaginal delivery without interventions in the second quarter of 2020 in the city of Rio de Janeiro - Brazil.

Results:

The comprehensive analysis revealed that the voice can provoke a reaction from the environment that makes them suffer. The expression of the voice encompasses fear and despair. It is from what they hear that women fear being left in suffering for havingbothered the professionals.

Conclusion:

The meaning of using one's own voice in childbirth was understood as a request for help or an expression of freedom. Based on this understanding, the professionals can be opened to sensitive and individualized care, which goes beyond technology.

Keywords:
Parturition; Philosophy; Women's health

RESUMEN

Objetivo:

Comprender el significado atribuido por las mujeres al uso de la propia voz en el trabajo de parto.

Método:

Estudio cualitativo descriptivo basado en el marco teórico-filosófico-metodológico de Heidegger. Se realizaron entrevistas fenomenológicas a 20 mujeres que vivieron parto vaginal sin intervenciones en el segundo trimestre de 2020 en la ciudad de Río de Janeiro - Brasil.

Resultados:

El análisis comprensivo reveló que la voz puede provocar una reacción del entorno que los hace sufrir. La expresión de la voz abarca el miedo y la desesperación. Es por lo que escuchan que las mujeres temen quedar en sufrimiento por habermolestado a los profesionales.

Conclusión:

El significado de usar la propia voz en el parto se entendía como un pedido de ayuda o una expresión de libertad.A partir de esa comprensión, el profesional puede abrirse a un cuidado sensible e individualizado, que va más allá de la tecnología.

Palabras clave:
Parto; Filosofía; Salud de la mujer

INTRODUÇÃO

Nos cenários cotidianos de assistência ao parto a vivência das mulheres é atravessada por maus tratos e diferentes formas de violências. Esses determinantes afetam o processo de parto tornando-o traumático, inseguro e amedrontado11. Vedam S, Stoll K, Taiwo TK, Rubashkin N, Cheyney M, et al. The giving voice to mothers study: inequity and mistreatment during pregnancy and childbirth in the United States. Reprod Health. 2019;16(1):77. doi: https://doi.org/10.1186/s12978-019-0729-2.
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. Persiste no país um modelo de cuidado baseado em intervenções que deveriam ser abolidas ou reduzidas e uma presença tímida de práticas adequadas. As mulheres brasileiras ainda estão parindo, na sua maioria, deitadas, submetidas a venóclise, amniotomia e episiotomia22. Leal MC, Bittencourt SA, Esteves-Pereira AP, Ayres BV, Silva LB, Thomaz EB, et al. Avanços na assistência ao parto no Brasil: resultados preliminares de dois estudos avaliativos. Cad Saude Publica. 2019;35(7):e00223018. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00223018.
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.

Obstante, os significados que residem na dimensão subjetiva da experiência de parto possibilitam um caminho para compreensão de como o outro se sente diante do cuidado prestado33. Guerrero-Castañeda RF, Menezes TM, Ojeda-Vargas MG. Characteristics of the phenomenological interview in nursing research. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(2):e67458. doi: http://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458.
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. Esse olhar amplo do cuidado ao parto entende que na vivência da mulher não se dissocia mente e corpo. De modo que a experiência positiva de parto é direcionada também pelo emocional.

A pluralidade de significados pessoais e individuais que o parto possui na vida de uma mulher torna importante o sentimento de satisfação em relação a experiência de parto positiva11. Vedam S, Stoll K, Taiwo TK, Rubashkin N, Cheyney M, et al. The giving voice to mothers study: inequity and mistreatment during pregnancy and childbirth in the United States. Reprod Health. 2019;16(1):77. doi: https://doi.org/10.1186/s12978-019-0729-2.
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-55. World Health Organisation. WHO recommendations: intrapartum care for a positive childbirth experience [Internet]. Geneva: WHO; 2018 [cited 2021 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf .
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. Se sentir satisfeita com a assistência recebida é um direito, assim como, ser cuidada, respeitada e suas necessidades valorizadas, sem distinções66. Seibt CL. Sobre o conhecimento na tradição e em Heidegger. Kalagatos. 2017 [citado 2022 jun 27];14(2):339-50. Disponível em: Disponível em: http://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/6280/5053 .
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. Reconhecendo seu protagonismo como forma de deixar mostrar-se por si mesmo, refletimos acerca do fenômeno uso da voz como parte da expressão comportamental da mulher, inerente ao processo de trabalho de parto33. Guerrero-Castañeda RF, Menezes TM, Ojeda-Vargas MG. Characteristics of the phenomenological interview in nursing research. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(2):e67458. doi: http://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458.
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.

Buscar compreender o sentido do uso da voz no trabalho de parto possibilita a aproximação com uma realidade ainda oculta, e apesar do conhecimento acerca de diferentes desdobramentos da limitação imposta às mulheres em trabalho de parto, retorna-se aqui às raízes do fundamento da expressão comportamental que a mulher acessa ao vivenciar o parto66. Seibt CL. Sobre o conhecimento na tradição e em Heidegger. Kalagatos. 2017 [citado 2022 jun 27];14(2):339-50. Disponível em: Disponível em: http://revistas.uece.br/index.php/kalagatos/article/view/6280/5053 .
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.

O solo da tradição é o modo como as ciências lidam com os objetos para conhecê-los77. Heidegger M. Ser e tempo. 1. ed. Petrópolis: Vozes; 2015.. Por outro lado, a filosofia heideggeriana toma o próprio conhecimento como objeto, desviando o foco dos objetos conhecidos para o próprio conhecer. Ao desviar o foco das coisas a atenção é apontada para o compreender, para o conhecer que conhece as coisas77. Heidegger M. Ser e tempo. 1. ed. Petrópolis: Vozes; 2015.. Recuperando esse solo da tradição, o cérebro primitivo é responsável por uma série de ações conjuntas e complementares de diferentes sistemas. Quando os hormônios estão em equilíbrio, o organismo propicia relaxamento mental favorecendo o trabalho de parto. Além disso, o acesso ao inconsciente encontra-se facilitado, bem como o comportamento imprevisível e instintivo. Mergulhada em si mesma, a mulher expressa e responde ao que ela vivencia internamente88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
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. A ativação da região primitiva do cérebro e a consequente liberação de hormônios, como a ocitocina, ocorre em diferentes episódios da vida sexual e reprodutiva humana. Isso nos indica que os mesmos cenários favoráveis estão envolvidos, bem como, os mesmos inibidores99. Russo JA, Nucci MF. Parindo no paraíso: parto humanizado, ocitocina e a produção corporal de uma nova maternidade. Interface. 2020;24:e180390. doi: https://doi.org/10.1590/Interface.180390.
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.

Assim, o caminho investigativo abriu-se ao questionar o significado, ainda velado, acerca do uso da voz durante o trabalho. Assim, se propôs o presente estudo com a questão de pesquisa: Qual é o significado atribuído pelas mulheres ao uso da própria voz no trabalho de parto? E como objetivo: compreender o significado atribuído pelas mulheres ao uso da própria voz no trabalho de parto.

Justifica-se a relevância da realização da presente investigação, em função das consequências decorrentes das interpretações sobre o comportamento das mulheres em trabalho de parto, especialmente as reaçõesaos gemidos e gritos1010. Carvalho IS, Brito RS. Forms of obstetric violence experienced by mothers who had normal birth. Enferm Glob. 2017;47:71-79. doi: https://doi.org/10.6018/eglobal.16.3.250481.
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-1111. Feitoza CSV, Niculau DS, Menezes MO. Reflexões sobre a violência obstétrica no brasil: aspectos culturais. Cad Grad Ciênc Biol Saúde Unit. 2021 [citado 2022 jun 27];6(3):95-108. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/cadernobiologicas/article/view/9394/4458 .
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.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de natureza fenomenológicaoriunda da dissertação de mestrado intitulada: O uso da própria voz como recurso no trabalho de parto. Utilizou-se o referencial teórico-filosófico-metodológico de Marting Heidegger de modo que a pesquisa foi desenvolvida a partir de uma pergunta dirigida às mulheres, cujo questionamento explorou as lembranças da experiência de se expressar usando a voz durante o trabalho de parto. Ao olhar para realidade com o intuito de refletir sobre como as coisas na vida são e como se manifestam, podemos pensar o sentido do ser e buscar o fundamento do comportamento humano. Para alcançarmos a compreensão de um fenômeno trilha-se um caminho de busca, obtendo sua descrição, sua forma de manifestação e os significados atribuídos a ele1212. Zveiter M, Souza IEO. Solicitude constituting the care of obstetric nurses for women-giving-birth-at-the-birth-house. Esc Anna Nery. 2015;19(1):86-92. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20150012.
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. A investigação ocorre ao voltarmos às coisas mesmas, como mostra-se na realidade e a partir de si, sem predefinições ou conceitos esperados1212. Zveiter M, Souza IEO. Solicitude constituting the care of obstetric nurses for women-giving-birth-at-the-birth-house. Esc Anna Nery. 2015;19(1):86-92. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20150012.
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. A escolha pela pesquisa fenomenológica heideggeriana foi motivada pela possibilidade de compreender o Ser ao permitir que ele acesse as memórias de suas vivências, evocando os significados ainda velados acerca da experiência de se expressar através da própria voz no trabalho de parto1313. Silva RV, Oliveira WF. O método fenomenológico nas pesquisas em saúde no brasil: uma análise de produção científica. Trab Educ Saúde. 2018;16(3):1421-41. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00162.
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. A partir de si, o ser-aí mulher que vivenciou o parto vaginal compartilhou suas vivências em encontros que geraram dados como um conjunto de significados, cuja investigação, em síntese, percorreu as seguintes etapas: 1ª - a interrogação do ente; 2ª - questionamento do Ser; 3ª - interpretação ou busca do sentido do Ser88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
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O método utilizado para captar as participantes foi a amostragem snowball, que possibilita o acesso a uma população específica através de uma rede de referências, na qual as próprias participantes da pesquisa indicaram mulheres que vivenciaram o fenômeno. A semente que deu o ponto de partida para a formação da rede foi uma mulher que participava de um grupo de mães, profissionais e gestantes, recrutada pela pesquisadora1414. Bockorni BRS, Gomes AF. A amostragem em snowball (bola de neve) em uma pesquisa qualitativa no campo da administração. Rev Ciênc Empres UNIPAR. 2021;22(1):105-17. doi: https://doi.org/10.25110/receu.v22i1.8346.
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A técnica de entrevista ocorreu com abordagem individual entre os meses de abril a junho de 2020 por meio de entrevista fenomenológica33. Guerrero-Castañeda RF, Menezes TM, Ojeda-Vargas MG. Characteristics of the phenomenological interview in nursing research. Rev Gaúcha Enferm. 2017;38(2):e67458. doi: http://doi.org/10.1590/1983-1447.2017.02.67458.
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) durante o primeiro ano da pandemia da Coronavírus Disease 2019 (COVID-19). A alta transmissibilidade entre os humanos gerou a disseminação progressiva para diversos países, exigindo medidas para contenção. Por se tratar de um vírus transmitido por vias aéreas e contato, dentre as medidas adotadas, o isolamento social e horizontal foi estabelecido1515. Mouta RJO, Prata JA, Silva SCSB, Zveiter M, Medina ET, Pereira ALF, et al. Contribuições da enfermagem obstétrica para o cuidado seguro às parturientes e aos neonatos no contexto da pandemia COVID-19. Res Soc Dev. 2020;9(8):e27985362. doi: http://doi.org/10.33448/rsd-v9i8.5362.
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. Assim, fez-se necessária a adaptação da coleta de dados para o ambiente virtual, embora tenha sido mantido como cenário da pesquisa a residência das mulheres, as entrevistas foram realizadas através de chamadas de vídeo pelo aplicativo Whatsapp.

Os encontros virtuais possibilitaram a adequação do horário e local de acordo com a disponibilidade das mulheres em seu cotidiano. As entrevistadas foram informadas de que a resposta à questão de pesquisa era livre e com a intenção de ouvir suas percepções, dessa forma definiu-se o tom da investigação como um convite à abertura. Cada mulher entrevistada escolheu um dia e horário em que teria disponibilidade para estar em um ambiente privativo e familiar que, sem as limitações de um deslocamento físico, possibilitou a realização em horários flexíveis para as mulheres, em um momento mais adequado para seu contexto de vida cotidiana. Diante da abertura das mulheres, coube à pesquisadora uma postura facilitadora do significado que era compartilhado, com intuito de manter a atenção na questão central da pesquisa, mas permanecendo aberta ao diálogo e à reflexão. Os encontros não assumiram o caráter de entrevistas dirigidas. Como interrogação de abertura, ainda no momento ôntico, foi colocada a pergunta norteadora: Como foi para você, usar a sua voz no trabalho de parto?. A escuta atenta e a empatia às histórias foram primordiais na análise1616. Szymanski L, Szymanski H, Fachim FL. Interpretação como des-ocultamento: contribuições do pensamento hermenêutico e fenomenológico-existencial para análise de dados em pesquisa qualitativa. Pro-Posições. 2019;30:e20180014. doi: http://doi.org/10.1590/1980-6248-2018-0014.
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. Desse modo se deu a experiência de abertura para outro e desvelamento do quem , o ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto.

Ao responder à pergunta, falando livremente a partir do seu próprio mundo, as mulheres se desvendaram em sua vivência do parir. Essa descoberta assumiu a forma de uma pré-compreensão. Dito de outro modo, quando se deu a abertura na qual o ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto se determinou, essa determinação traduziu-se como uma pré-compreensão que elas têm sobre o seu próprio ser e sobre ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto.

No que tange a análise compreensiva, esta possui dois momentos que se complementam: a compreensão vaga e mediana e a compreensão interpretativa ou hermenêutica. No primeiro momento da análise, os relatos das mulheres trouxeram os fatos que elas viveram. Neste momento as transcrições das entrevistas foram retomadas com as lembranças do tom de cada voz e os gestos nos diferentes momentos das falas, sem amarras em conceitos ou definições prévias. Sabendo que a consciência de si é também a consciência de algo no mundo, foram separados os fragmentos das falas com significados que se relacionavam diretamente com a questão norteadora. Os trechos que se assemelharam, foram coloridos de modo idêntico, reunidos em blocos e analisados à luz do referencial teórico-filosófico-metodológico heideggeriano1616. Szymanski L, Szymanski H, Fachim FL. Interpretação como des-ocultamento: contribuições do pensamento hermenêutico e fenomenológico-existencial para análise de dados em pesquisa qualitativa. Pro-Posições. 2019;30:e20180014. doi: http://doi.org/10.1590/1980-6248-2018-0014.
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. A identificação desses conjuntos se deu com uma ou duas palavras contidas nos recortes, que refletiam a temática ali reunida. Sequencialmente, os significados foram pouco a pouco acrescentados, constituindo as unidades de significação.

De forma a contemplar os aspectos éticos e legais preconizados, assumiu-se a responsabilidade com o cumprimento da Resolução 466/20121717. Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial União. 2013 jun 13 [citado 2022 jun 27];150(112 Seção 1):59-62. Disponível em: Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=13/06/2013&jornal=1&pagina=59&totalArquivos=140 .
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, do Conselho Nacional de Saúde. A investigação obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob Parecer nº 29733719.0.0000.5282.

RESULTADOS

Tendo em mente que toda consciência é consciência de si, foram entrevistadas 20 mulheres brasileiras maiores de 18 anos, com história obstétrica de parto fisiológico de risco habitual. Atendendo aos critérios de exclusão, não foram entrevistadas mulheres que durante o trabalho de parto foram submetidas a intervenções farmacológicas e/ou submetidas à cesarianas, por se considerar a alteração na liberação fisiológica dos hormônios do parto.

A escolha da fenomenologia como referencial teórico-metodológico está baseada no próprio objeto de pesquisa, foi ele que determinou o modo de aproximação. O significado atribuído pelas mulheres ao uso da própria voz no trabalho de parto é o fenômeno em questão. Não é possível separar o sujeito do fenômeno, é fundamental que eles estejam reunidos na estrutura intencional da experiência. Portanto, com a inquietação dirigida para as significações singulares buscou-se uma compreensão das mulheres como sujeitos, que têm seu mundo vivido a ser revelado e podem apontar uma via de acesso ao fenômeno.

A história se compõe pela dimensão ôntica dos eventos, nos fatos e no movimento da existência, fornecendo continuamente a estrutura do acontecer o fluxo dos acontecimentos1818. Kahlmeyer-Mertens RS, Santos GA. A influência de Nietzsche na concepção de historicidade e historiografia de Heidegger. Aufklärung. 2020;7(1):67-78. doi: https://doi.org/10.18012/arf.v7i1.49010.
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. Cabe aqui um breve relato acerca da história das mulheres que participaram das entrevistas fenomenológicas. A identificação das vinte mulheres foi estabelecida com pseudônimos escolhidos livremente por cada uma delas, no início das entrevistas. No período dos encontros as idades variaram dos vinte e cinco aos cinquenta e nove anos. As idades que elas tinham quando vivenciaram seus partos variou dos dezessete aos trinta e sete anos.

No conjunto, o nível da escolaridade variou de nenhuma escolaridade até o ensino superior completo. Na ocasião do encontro, uma das mulheres estava em sua residência no estado de São Paulo, as demais no estado do Rio de Janeiro. Muitas mulheres pariram em ambiente hospitalar, cinco deram à luz nos seus domícilios e uma delas pariu no carro a caminho da Maternidade. Grande parte delas vivenciou um parto normal, mas também foram ouvidas mulheres que experienciaram dois, três, quatro e seis partos normais.

As entrevistas foram ouvidas e transcritas para que, partindo das vivências mesmas e como elas se dão, fossem destacadas descritas e identificadas as suas estruturas sintéticas e gerais1919. Feijoo AMLC, Goto TA. É possível a fenomenologia de Husserl como método de pesquisa em Psicologia? Psic Teor Pesq. 2016;32(4):e32421. doi: http://doi.org/10.1590/0102.3772e3241.
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. Assim, as estruturas significativas foram destacadas e organizadas em um grupo denominado unidade de significação. Aqui está a compreensão vaga e mediana com a unidade de significação e a compreensão mesma das mulheres. O caput dessa unidade expressa a compreensão do significado do uso da própria voz no trabalho de parto.

O uso da própria voz no trabalho de parto de parto se expressou como: medo, grito desesperado ou calado por vergonha e receio.

Porque eram muitas emoções diferentes. [...] Quando eu ficava com muito medo eu falava: É assim mesmo? Tá acontecendo isso e isso, é assim mesmo? (Flor)

Porque eu lembro que eu tava descontando no meu corpo. E eu tava com vergonha de gritar. [...] Aquele mito né, que se você grita eles te deixam sofrer. [...] Eu tinha um pouco de receio mesmo. (Pirita)

Eu gritava muito, chorava muito, pedia socorro, chamava por todo mundo. [...] Naquela época não podia ficar acompanhante. [...] Parecia que a dor nunca ia passar. Desespero, eu achava que ia morrer. Parece que você não vai aguentar. [...] Era só ali naquela posição deitada, sozinha na cama, gritando e pedindo socorro, até a hora da criança nascer. (Rosa)

Então, assim que eu comecei a sentir as contrações, eu fui pro banheiro e fiquei no chuveiro, fiquei na água quente. E lá eu já comecei a vocalizar, e aí começou um corre corre. (Girassol)

Porque eu nãotava gritando, tava com um pouco de vergonha no começo. (Gérbera)

Eu sentia desespero, cada vez que eu gritava. [...] Numa época, eu vou dizer pra você, desesperadora. [...] A minha voz era voz de desespero, de socorro. [...] Ali você pede, você implora, você pede ajuda, entendeu? (Morango)

Eu procurei não gritar muito. Porque eu achava que se eu gritasse muito, iria incomodar e não iriam vir me atender. Só quando eu comecei a sentir muita dor mesmo que comecei a gritar, que eu já nãotava mais aguentando. [...] Eu tentei ficar bem quietinha. [...] Eu me senti com muita dor, desesperada. Pedindo assim, pra pessoa me ajudar mesmo. Que eu já nãotava mais aguentando. [...] Porque as pessoas falam: Ah, porque não pode gemer muito, não pode gritar muito, que eles não atendem. Tentei ficar sentindo a dor o máximo mais quieta que pude. [...] Até porque eu não queria tomar nenhum tipo de medicação. [...] Só quando eu nãotava mais aguentando mesmo. Aí eu fui pedir ajuda. (Laranja)

Basicamente eram gemidos, gritos, nem sei te dizer exatamente. Foi uma loucura, parto é uma loucura. (Margarida)

E eu moro numa área que fica isolada, no meio da natureza. [...] Então isso me dá mais liberdade, não tenho vizinhos que eu tenha que me preocupar com gritos [...] No primeiro eu vocalizei muito, no segundo nem tanto e acho que foi porque eu já tinha ele pequeno dormindo no quarto do lado. [...] Talvez isso tenha me limitado um pouco nesse aspecto de vocalização. (Flora)

Como eu tive que ir pro hospital, eu acho que eu fiquei meio calada. Com medo das intervenções que eu poderia sofrer. [...] Mas eu, eu fiquei muito contida. [...] Eu acho que naquele momento eu tava me entregando, mas assim, querendo que tudo acabasse porque eu tinha medo que se acontecesse alguma complicação, ou se ficasse um parto muito prolongado, começasse as intervenções. [...] Na minha mente eu ficava assim: Tem que ser rápido pra eu não sofrer nenhum tipo de violência, que no meu primeiro parto eu tive. Calada o tempo todo. [...] Nem quando foi pra nascer eu gritei. [...] Eu preferi canalizar a dor que eu tava sentindo e fazer a força, pra ser mais rápido. (Lírio)

Para as mulheres entrevistadas, a voz pode provocar uma reação do ambiente que as deixe sofrer. A expressão da voz engloba medo e desespero. É a partir do que ouvem, que as mulheres receiam serem deixadas em sofrimento por terem incomodado a equipe. Para as mulheres a voz provoca vergonha fundada na limitação, o que dificulta a livre expressão dos sentimentos. Como uma forma de se sentirem seguras, as mulheres assumem uma postura mais contida, caladas na maioria do tempo, quietas e sem pedir muito. Para as mulheres, o uso da voz vai além da expressão da dor, ela se volta contra o próprio corpo. Quando estão em sofrimento extremo e com medo de morrer, gritam por socorro. Quando a necessidade de usar a voz se torna incontrolável no parto e elas não aguentam mais, gritam. Com isso, o conceito do uso da própria voz no trabalho de parto se mostrou como uma expressão do medo do sofrimento, desvelado na pressuposição do incômodo ao outro.

DISCUSSÃO

A disposição do ser, o seu humor, é a abertura que estabelece a forma de suas relações no mundo, na descoberta do mundo, sendo sensível ao que nele encontra88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020...
. Dentre os modos de disposição, tem-se o medo como uma forma de ser tocado, de construir e de atribuir significados em suas vivências. O medo, como disposição, possibilita que o outro no mundo se torne uma ameaça, e o ser-em um ameaçado. O ser-mulher tem no seu cotidiano o medo como modo de sua disposição existencial e, a partir dele, atribuem às suas vivências os seus próprios significados2020. Afonso C . A metafísica, o nada e o medo em Heidegger. Rev EstSemiot. 2017;7(1):115-9. doi: https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.
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O ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto é ser-aí no mundo e em um tempo. Esse tempo em que se é ser-no-mundo determina a estrutura de mundo, mundanidade de mundo, que vem ao seu encontro. Não pode o ser-aí escolher o tempo em que será lançado, de forma que não é possível escolher a estrutura de mundo em que existirá. Então, o ser é lançado no mundo, em um tempo que se finda com a morte, existindo em um contexto de mundanidade enquanto presença. Sendo presença, o ser se relaciona com o mundo através de uma convivência cotidiana e impessoal, pois o ser-em é ser-com o ser-no-mundo. Nessa convivência, a presença é pública e em suas ocupações sendo-com busca nivelar as diferenças em relação aos outros, evitando julgamentos e sendo aceito pelo ser-no-mundo pois atende a um ideal de existência determinado pela mundanidade. Essa copresença com outros vem de encontro em formas variadas em suas ocupações, sempre numa convivência cotidiana em que não é a presença ela mesma, pois convivendo com outros o seu si mesmo é tomado e se torna o ser impessoal da cotidianidade. O ser-mulher é, portanto, um ser-aí no mundo, em um tempo, cuja presença na convivência cotidiana a torna impessoal88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
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Ao usar a própria voz no trabalho de parto a presença não assume o caráter de medianidade de comportamento do impessoal que atende ao ideal imposto e previsto, ela desnivela a sua possibilidade de ser e surpreende o ser-no-mundo. Esse comportamento, por sua vez, pode gerar incômodo ao outro pois o ser-no-mundo espera a interpretação da presença enquanto pública, em que todo julgamento e decisão é prescrito, pois todos na sua impessoalidade vão de encontro ao outro de forma fácil e superficial, atendendo ao ideal do ser da cotidianidade. Desse modo, o ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto deixa de lado o ser público, para assumir um comportamento instintivo que não necessariamente atende ao ideal, resultando na pressuposição de um incômodo ao outro. Como já dito anteriormente, ser-em é ser-com o ser-no-mundo, e o impessoal é a forma esperada de se relacionar na cotidianidade. Com isso, a pressuposição do incômodo ao outro desvela o medo no ser-aí, uma vez que a presença possui a medrosidade como possibilidade existencial de sua disposição em mundo. Assim, o uso da própria voz no trabalho de parto é uma expressão do medo como disposição do ser-no-mundo, desvelado na possibilidade de incomodar o outro88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
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O ser-em se relaciona com o mundo e é tocado pelo que vem ao seu encontro na mundanidade. Diante das possibilidades de modos de ser, a presença como disposição é abertura do seu ser na descoberta do mundo, sendo sensível ao que nele encontra. Podemos dizer que o que vem ao encontro no mundo toca o ser-em como tal, que se entrega a esse mundo e abandona a si, uma vez que o modo de ser como disposição é abertura da presença para sensibilidade. O medo é um modo de disposição que, adormecido no ser-no-mundo, é possibilidade. Uma abertura da presença na descoberta do mundo e de sensibilidade ao que vem de encontro na mundanidade. O medo possui seus momentos constitutivos que definem possíveis formas de ser do ter medo. Ele pode ser pavor, quando a ameaça que é familiar subitamente se abate ao ser-no-mundo. Horror, quando a ameaça é totalmente não familiar. E, quando a ameaça que se abate subitamente não é familiar, o medo se torna terror. A presença é medrosa, uma vez que as variações possíveis do medo compõem as possibilidades da sua disposição enquanto ser-no-mundo. O fenômeno do medo é considerado a partir de três perspectivas: ter medo; de que se tem medo; e pelo que se tem medo88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
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O medo, como disposição, abre o outro que está no mundo em sua possibilidade de ser uma ameaça para aquele ser-em, o ameaçado. Na possibilidade de incomodar o outro, a ameaça de que se tem medo vem ao encontro pelo uso da voz, o amedrontador. Essa ameaça possui uma conjuntura, um campo de ação e se aproxima, ainda que em seu ainda não, mas pode ser a qualquer momento. O ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto teme o amedrontador, pois a ameaça é, em sua estranheza, familiar uma vez que já se descobriu previamente. Em outras palavras, a mulher teme o uso da voz pois a ameaça advinda da pressuposição do incômodo ao outro já lhe é familiar, ela a conheceu por mitos ou por vivências negativas anteriores, ainda que o incômodo seja estranho por não se poder prever, apenas entende-se como uma ameaça possível. Contudo, pelo que a presença teme, não é o amedrontador ou a ameaça, mas a ela mesma, a si mesma em sofrimento usando a voz, uma vez que somente o ente sendo no mundo, enfrentando-o em seu próprio ser, pode ter medo. Ele abre o ente para seus possíveis perigos, predominantemente de uma maneira privativa e individual88. Olza I, Leahy-Warren P, Benyamini Y, Kazmierczak M, Karlsdottir SI, Spyridou A, et al. Women’s psychological experiences of physiological childbirth: a meta-synthesis. BMJ Open. 2018;8(10):e020347.doi: https://doi.org/10.1136/bmjopen-2017-020347.
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O medo é uma disposição da presença enquanto ser-em, uma possibilidade de ser-com e do abandono a si-mesmo para o ser impessoal. No impessoal da cotidianidade, a presença atende a um ideal de existência e segue uma constante fuga de si mesmo, pois a angústia a partir do entendimento de seu ser finito para a morte é desviada, como uma fraqueza. O sentido do ser-para-a-morte é então encoberto e o comportamento público na cotidianidade espera tranquilidade e indiferença frente ao morrer77. Heidegger M. Ser e tempo. 1. ed. Petrópolis: Vozes; 2015.. Somente quando algo nos falta, falha ou se torna um obstáculo, é que seu significado se torna manifesto, como o tempo no mundo sendo si-mesmo. O que não se torna possível frente a indiferença com a finitude do ser-para-a-morte. Como consequência, a angústia do ser impessoal é revertida em um medo covarde de algo pontual. Essa angústia desencorajada, de forma que o ser-no-mundo foge de si e da morte, provoca o retorno para a cotidianidade do mundo das ocupações, alienando-se de seu poder-ser mais próprio. Pois, a possibilidade mais própria e certa do ser é a morte e o ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia. A angústia é a disposição que permite a constante ameaça e insistência a si mesmo, para que dela emerja o seu ser mais próprio77. Heidegger M. Ser e tempo. 1. ed. Petrópolis: Vozes; 2015..

Perdida no impessoal da cotidianidade, o ser-mulher-que-usa-a-própria-voz-no-trabalho-de-parto denuncia a covardia à angústia e abre a possibilidade de superar o medo. Vivendo as dores do trabalho de parto, quando a mulher se lança na dor e no instinto, ela se projeta para morte em sentido próprio. Ser-para-a-morte em sentido próprio é liberdade de angustiar-se e a partir da angústia encontrar a singularidade do seu ser. Desse modo, ela se mostra a si mesma de dentro para fora, apropriando-se do seu ser e escolhendo o seu poder-ser, uma vez que na liberdade do ser-para-a-morte, com certeza acerca de seu ser e seu si mesma sem ilusões de um comportamento ideal e impessoal, é que se angustia. Usar a própria voz no trabalho de parto desvelou-se como uma abertura da presença77. Heidegger M. Ser e tempo. 1. ed. Petrópolis: Vozes; 2015..

Na angústia, usando a própria voz no trabalho de parto, a mulher tem a abertura da possibilidade de viver o que é mais próprio da existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O significado de usar a própria voz como um recurso no trabalho de parto se mostrou como uma expressão do medo do sofrimento, na pressuposição do incômodo ao outro. A hermenêutica apresenta o ser-mulher como ser-aí no mundo e em um tempo, cuja convivência cotidiana a torna o ser impessoal. A vergonha e o receio de usar a voz, que estão ligadas ao ser impessoal, dificulta a expressão dos sentimentos e, perante a dor, ela se volta contra o próprio corpo.

Ao usar a própria voz no trabalho de parto, ela deixa de lado o ser público para sua viagem interior, desnivelando sua possibilidade de ser. O medo ainda adormecido, se desvela ao pressupor um incômodo ao outro. Uma ameaça estranha, mas possível e familiar a partir do que ouvem ou por suas próprias vivências anteriores. Ela teme o sofrimento por usar a voz e isso gera uma constante fuga de si mesmo.

Por outro lado, o uso da sua própria voz é abertura da presença enquanto possibilidade de poder-ser si mesmo durante o trabalho de parto, sem imposição ou pressão de um ideal de comportamento. E quando a necessidade de usar a voz é incontrolável, quando a mulher supera o medo e se desamarra das ilusões do impessoal, essa voz se torna manifesto. A mulher se projeta para a experiência em sentido próprio na liberdade de angustiar-se como ser finito e a partir da angústia encontrar a singularidade do seu ser.

O período de desenvolvimento da pesquisa foi atravessado por uma pandemia. Como reflexo disso, a limitação do estudo residiu nas entrevistas fenomenológicas por meio virtual, cabendo às pesquisadoras o esforço e a reflexão para adaptação do método. Esse desafio deve ser discutido e refletido pelos pesquisadores da presente abordagem, pois barreiras como o momento pandêmico atual nos exige refinamento das habilidades características de entrevista fenomenológica.

A contribuição do estudo reside no convite à compreensão do sentido do uso da própria voz no parto, seja como pedido de ajuda ou expressão da liberdade. Esse entendimento pode potencializar a abertura do profissional para um cuidado sensível e individualizado que ultrapassa a tecnologia. O envolvimento da equipe na redução de aspectos da assistência que favorecem o medo das mulheres, como o caráter limitador que o ambiente pode assumir, é um desdobramento possível do presente estudo.

Por fim, recomenda-se que mais investigações se debrucem sobre o cuidado da enfermagem tomando como ponto de partida a percepção das mulheres ao se aproximarem do vivido. Reforçando que o cuidado centrado é uma ponte que conecta as necessidades das mulheres e o saber científico para aplicação de ações necessárias. O conhecimento ainda maior acerca da experiência daquele que recebe o cuidado, aqui discutido, a mulher em trabalho de parto, é um campo para maiores aprofundamentos e novas formas de se alcançar pontos cegos na busca de promoção da qualidade da assistência ao parto.

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Editado por

Editor associado:

Helena Becker Issi

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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