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CRISE DA REPRESENTATIVIDADE NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS

Resenha do livro:CASTELLS, Manuel. . Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução:Melo, Joana Angélica d’Avila. . São Paulo: Zahar, 2018.

Manuel Castells é doutor em sociologia pela Universidade de Paris, onde leciona nas áreas de Sociologia, Comunicação e Planejamento Urbano e Regional. Estudioso da era da informação, Castells avalia a influência da comunicação em rede nas sociedades conectadas e suas principais transformações no final do século XX. Das suas obras principais, destaca-se a coleção A era da informação, composta por três livros (A sociedade em rede, O poder da identidade e Fim de milênio). Nesta resenha, apresenta-se uma de suas mais recentes contribuições para o debate acerca da Democracia e dos inimigos que a rodeiam, oferecendo uma perspectiva de interpretação que aponta para a ruptura no processo de consolidação das democracias no mundo.

“Sopram ventos malignos no planeta azul”. Assim, Castells abre seu livro de cinco capítulos, montando, inicialmente, o panorama no qual sua contribuição se inscreve. Crises múltiplas, precariedades no mundo do trabalho, fanatismos de toda ordem, restrição das liberdades em nome de uma segurança vigiada - “Fomos transformados em dados” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 4), diz o autor. A era da comunicação foi convertida em uma era da pós-verdade, em que mentiras são torpedeadas por diversos mecanismos de comunicação e alçadas à categoria de verdades absolutas. Existe, porém, segundo o autor, uma crise ainda mais significativa: o colapso das instituições representativas, que se configura enquanto crise cognitiva e emocional. Nosso modelo de representação e governança, a democracia liberal caiu em descrença e enfrenta hoje a fúria das ruas. Dessa rejeição, surgem figuras políticas que negam a estrutura partidária e aprofundam a desordem mundial ao promover o segregacionismo e o protecionismo. De modo geral, o autor aborda nesse livro a crise da democracia liberal; a ruptura da representatividade entre cidadãos e governos; e os desafios da procura por instrumentos legítimos capazes de sanar esse “furacão sobre nossas vidas”.

No primeiro capítulo, “Era uma vez a democracia”, Castells elenca as bases que constituíram a democracia liberal: o respeito aos direitos básicos e políticos, as liberdades de associação e as eleições periódicas e livres. Ele menciona, além disso, que a democracia se forma fundamentada nas relações de poder social, privilegiando, entretanto, os poderes já consolidados e que, por isso, não há como afirmar que ela é representativa, exceto se os cidadãos assim acreditarem, “porque a força e a estabilidade das instituições dependem de sua vigência na mente das pessoas” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 10). Essa questão seria resolvida no âmbito da própria democracia, com eleições periódicas e com a livre escolha dos representantes, mas, na prática, os cidadãos acabam por escolher o que está de acordo com suas predisposições e dentro de determinado quadro de possibilidades, o que torna permanente os poderes consolidados, segundo o autor. “A política se profissionaliza, e os políticos se tornam um grupo social que defende seus interesses comuns acima dos interesses daqueles que eles dizem representarem” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 10). As raízes da ira estão na consolidação de uma economia global pactuada com a comunicação que desestruturou as economias nacionais e restringiu a atuação do Estado-Nação para oferecer respostas concretas aos problemas considerados mundiais, às crises financeiras e aos direitos humanos. Dessa forma, quanto mais o Estado se distancia da nação que representa, mais acentua a ruptura da representatividade e da consolidação de um Estado-Nação mais presente, aumentando a desigualdade. Para o autor, a corrupção é o principal fator de descrença na representatividade política. A manipulação política e o sistema de recompensas promovido pela ganância empresarial repercutem na própria figura da coisa pública, ou seja, eles transformam o Estado em uma empresa e reafirmam a visão de falência da coisa pública, em um processo em que muito se fala do corrupto, mas não de seus corruptores. A formação da opinião pública também é retratada pelo autor: “nossas decisões dependem dos sinais que recebemos e trocamos nesse universo” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 20). É no âmbito das impressões emocionais e visuais que constituímos o processo cognitivo de impressão sobre as coisas, transformando-as em opinião. Muito comum na ascensão de governos autoritários, esse movimento cristaliza as inverdades como estratégias de consolidação dessas alternativas à democracia liberal. No que diz respeito a uma realidade em que a comunicação é cada vez mais ampla e sem as censuras tradicionais, as ondas de mensagens e imagens são multiplicadas aos milhares e, no mundo da pós-verdade, transformam “a incerteza na única verdade confiável: a minha, a de cada um” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 22). Desse modo, Castells salienta, no primeiro capítulo, a descrença cada vez maior da representatividade democrática liberal institucionalizada e o surgimento de regimes autoritários como resposta a esse sistema em descrença, em um contexto em que as redes circulam conteúdos sem a menor preocupação e responsabilidade com a verdade, fecundando o ambiente propício para a instauração da pós-verdade.

O segundo capítulo é destinado à reflexão acerca do terrorismo global e do medo como política. Nele, é apresentado o menage à trois composto pelo terrorismo, o medo e a política. “O medo é a mais poderosa das emoções humanas” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 23). Após os ataques de 11 de setembro nos Estados Unidos, a chamada guerra ao terror vem produzindo narrativas cada vez mais assustadoras, pois há sempre um inimigo da humanidade a ser abatido. O mal da vez é o Estado Islâmico, grupo terrorista que ganhou forças a partir das lacunas deixadas pela Al-Qaeda e que promoveu uma série de ataques a países da Europa, sobretudo a partir de 2004. O terrorismo islâmico global, com manifestações em diversos territórios, se transformou em perigo constante e em forte ameaça ao chamado mundo civilizado. O autor complementa essa interpretação, lembrando que o pânico produzido pelo terror e pelo estado de vigilância constante cria o imaginário coletivo do medo do Outro, legitimando, indiretamente, a xenofobia, a islamofobia e o autoritarismo.

O capítulo seguinte demonstra como o medo ao terror, atrelado à desconfiança dos partidos e instituições, fomenta a busca por novos atores políticos eficazes para garantir a proteção. Nesse palco de medo e incertezas, os indivíduos buscam discursos claros e sem rodeios, como a xenofobia e o racismo. “É assim que a crise de legitimidade democrática foi gerando um discurso do medo e uma prática que propõe voltar ao início” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 29). Esses discursos, nos diz Castells, retomam posições superadas e reforçam conservadorismos - por exemplo, o Estado como centro das decisões e a raça como “fronteira aparente do direito ancestral da etnia majoritária. Voltam, também, à família patriarcal, como instituição primeira de proteção cotidiana diante de um mundo em caos” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 29). Surge, assim, a figura do líder como resposta eficaz contra um sistema em decadência que não consegue garantir os elementos necessários. Esse fenômeno está na raiz de diversas manifestações, por exemplo a ascensão de “um personagem estrambólico, narcisista e grosseiro como Trump à Presidência dos Estados Unidos” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 30). Ao refletir sobre as causas da ascensão de Trump, que reúne o pior de todos os lados, Castells relembra que, anos antes, os americanos elegeram um negro progressista para, a partir daí, analisar a inacreditável vitória do republicano “tosco e vulgar”.

Fenômeno semelhante à vitória nacionalista de Trump, o Brexit representa outro movimento inacreditável até poucos anos atrás: a maioria da população do Reino Unido aprova o referendo pedindo a saída do país da União Europeia. Em cena, o chamado “projeto medo”, que alertava para o risco de uma crise econômico-financeira sem precedentes, não teve apelo. Por outro lado, surge uma reação popular contra as elites políticas que defendiam a permanência na União Europeia. O autor conclui dizendo que, para além das divisões sociais e culturais, o Brexit não é uma campanha pelo referendo, mas, sim, “da integração entre sociedade e política na qual se expressam as novas relações de poder” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 51).

A descrença na legitimidade também chega à França após a crise econômica de 2008, que puxou 3 milhões de franceses para o desemprego. Com duas catastróficas experiências presidenciais de Sarkozy e Hollande, criou-se o imaginário de que a globalização seria a principal responsável pelo descrédito em relação aos principais partidos do país. Favorecido com essa descrença, Macron “é quase o arquétipo do que as elites financeiras e tecnocráticas estão buscando na Europa como resposta à crise” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 60). Formado na tecnocracia do Estado e avesso tanto às demandas dos socialistas quanto dos políticos de direita, o presidente francês tem uma posição clara frente aos partidos políticos.

Segundo o autor, o liberalismo econômico e o autoritarismo político aparecem como “resistência da pós-democracia liberal” (CASTELLS, 2018, p. 61). Dessa forma, a crise dos principais partidos franceses derrubou a soberania que exerciam e reuniu o que restou deles em torno de um novo líder que encabeça um “movimento personalizado em sua liderança com o estandarte de renovação e modernidade” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 61). Ao mencionar o processo que vive hoje a Europa, Castells nomeia as principais causas do enfraquecimento da ideia de unidade em bloco: “a primeira, a falta de uma identidade comum”, que gera a xenofobia, entre outros problemas, e a segunda, a concepção maior de identidade-projeto, ou seja, a ideia de defender um projeto comum de crescimento (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 65).

No quarto capítulo, são mencionadas as quatro décadas de alternância de poder entre o Partido Popular e o Partido Socialista Operário Espanhol, justificando o fato de a aparente paz da região esconder conflitos e frustrações permanentes, sufocados pelos acordos políticos, que abrem caminho para uma corrupção sistêmica. Na Catalunha, Jordi Pujol, movimentando uma identidade nacional catalã e chefiando a rede Convergência e União (CiU), governou basicamente apoiado na extorsões de empresas. Com o sistema financeiro eclodindo e a credibilidade dos partidos em queda livre, surge o clamor por uma democracia real. O movimento de 15 de maio de 2011, por exemplo, nas praças das principais cidades espanholas, reuniu protestos de cunho diverso. Apartado dos sindicatos e movimentos sociais, o 15-M reuniu “os indignados” - como os manifestantes se denominavam - na tentativa de refazer a democracia a partir da prática, sendo considerado, por Castells (2018, p. 78)CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., a “manifestação mais latente da crise econômica tanto na Espanha quanto no mundo”.

Através dessa mobilização, surgem o Podemos e o Partido X. O último é o resultado da união de ativistas que buscavam uma representação fiel aos ideais do movimento. Entretanto, o Partido X não conseguiu se consolidar politicamente como o Podemos. A razão disso, segundo Castells, foi o enquadramento mais fiel do Podemos ao sentimento contrainstitucional, por ser ele composto majoritariamente por grupos de jovens acadêmicos, o que favoreceu a não relação com o sistema anterior. Para consolidar suas concepções sobre o Podemos, o autor diz: “O crescimento do Podemos, tanto na presença quanto em perspectivas eleitorais, é um caso único na história recente europeia: esta é uma observação empírica, não um juízo de valor” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 91). No subcapítulo destinado à questão catalã e à crise do Estado espanhol, Castells rememora os fatos ocorridos em 1º de outubro de 2017, quando mais de 2 milhões de cidadãos da Catalunha tentaram votar o referendo da independência da região, mas não conseguiram graças à negativa do governo de Mariano Rajoy em reconhecer o resultado. A consequência desse processo traumático foi a fratura ainda mais profunda entre a Espanha e a Catalunha. Além disso, rompeu-se o consenso constitucional em relação à questão dos governos autônomos na região. O autor atribui as dificuldades e a atual estrutura do Estado espanhol à organização duvidosa de uma monarquia cada vez mais sem sentido e “incapaz de expressar uma realidade plurinacional” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 107). O 15-M se transformou em fonte de inspiração para outros importantes movimentos sociais em rede que floresceram por toda a Europa, pelos Estados Unidos e pela América Latina. Vale lembrar que o Occupy Wall Street, nos EUA, e os movimentos na Place de la République, em Paris, têm em comum o fato de se fundamentarem na experiência espanhola. Ao mencionar essas mobilizações, Castells acredita que estamos diante de “embriões de regeneração democráticas” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 110).

No último capítulo, Manuel Castells defende a necessidade da criação de uma nova ordem, fruto da realocação dos movimentos da sociedade para novamente se acomodarem, pelo menos por um período. Dentre as razões para a crise da velha política e a ascensão de novas lideranças toscas, o autor menciona a subversão das instituições democráticas, que são tomadas por personalidades narcisistas que, aproveitando-se da repugnância das pessoas - provocada por escândalos de corrupção, violência, crises econômicas; “manipulação midiática das esperanças frustradas por encantadores de serpentes; [e] a renovação aparente e transitória da representação política” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 112) -, têm constituído poderes autoritários em todo o mundo, por vezes neofascistas ou teocráticos fundamentalistas, provocando “o entrincheiramento no cinismo político disfarçado de possibilismo realista” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 112). Evoluímos consideravelmente na tecnologia, mas nossa evolução política e ética não acompanhou esse processo. Faz-se necessário, portanto, achar uma solução para o caos atual, para as crises de identidade, econômicas e institucionais, a fim de que possamos “aprender a viver no caos” (CASTELLS, 2018CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018., p. 114), o que, para o autor, não é tão nocivo quanto parece. O livro oferece reflexões sobre fenômenos políticos e sociais na atualidade, resgatando movimentos em diversos países, principalmente na Europa, para explicar como a ruptura do modelo de vivência em bloco está em desuso, vítima de sucessivas crises econômicas, do desemprego e da exclusão de grupos postos à margem da globalização. Essas figuras, hoje, representam uma multidão de descontentes que tem, em cada canto do mundo, ajudado a eleger governos autoritários, neofascistas, nacionalistas, xenófobos, disseminadores de pós-verdade, mas, principalmente, figuras incapazes de oferecer respostas eficazes para os problemas pelos quais foram eleitos. Nesse sentido, Castells, ao discutir os fenômenos da nova onda conservadora e antiglobalização, nos permite acessar um arcabouço detalhado de fatos e reflexões que, sem dúvidas, nos auxiliam a entender esses fatores de maneira interligada, como uma corrente formada por tudo o que havíamos rechaçado outrora e que, aproveitando-se dos dilemas catastróficos atuais, ganha fôlego e força no imaginário e nas ações ferozes dos menos avisados.

Referência Bibliográfica

  • CASTELLS, Manuel. Ruptura: a crise da democracia liberal. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Zahar, 2018.

Editado por

Editor responsável: Francisco Alambert

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2019
  • Aceito
    18 Set 2019
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