Acessibilidade / Reportar erro

Estudos feministas brasileiros: (re)conhecer e continuar

Brazilian feminist studies: (re)knowing and continuing

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro: formação e contextoRio de Janeiro: Bazar do Tempo2019400

RESUMO

A obra resenhada é uma coletânea de textos com pesquisas iniciais para a construção de uma perspectiva epistemológica feminista. Foram compilados 19 artigos seminais, escritos por 20 pesquisadoras que atuaram ou atuam em diferentes universidades brasileiras e instituições afins. A obra visa contribuir para a elaboração de uma produção teórica feminista brasileira a partir de temáticas centrais que estão relacionadas com as questões de raça, gênero, classe e nacionalidade. Portanto, esta resenha apresenta o pensamento feminista brasileiro a partir do seu desenvolvimento social, histórico, político e cultural embasado pelas pesquisas reunidas nessa obra e que visam à expansão, à resistência e à continuidade dos estudos feministas brasileiros.

PALAVRAS-CHAVE:
Feminismos brasileiros; estudos feministas; estudos brasileiros

ABSTRACT

The reviewed work is a collection of texts with initial research for the construction of a feminist epistemological perspective. 19 seminal articles were compiled, written by 20 researchers who worked or work in different Brazilian universities and similar institutions. The work aims to contribute to the elaboration of a Brazilian feminist theoretical production, based on central themes that are related to issues of race, gender, class and nationality. Therefore, this review presents the Brazilian feminist thought from its social, historical, political and cultural development based on the researches gathered in this work and which aim at the expansion, resistance and continuity of Brazilian feminist studies.

KEYWORDS:
Brazilian feminisms; feminist studies; Brazilian studies

A organizadora Heloisa Buarque de Hollanda formou-se em Letras Clássicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e realizou mestrado e doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Possui pós-doutorado em Sociologia da Cultura na Columbia University (Estados Unidos). Atualmente é professora emérita de Teoria Crítica da Cultura na Escola de Comunicação e coordenadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea vinculado ao Programa de Pós-Graduação Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da UFRJ. Em suas pesquisas e em diversas publicações, busca abordar questões relacionadas à cultura e à política, com ênfase nos aspectos teóricos da teoria literária e dos estudos culturais nas áreas da poesia, relações de gênero, relações étnicas, culturas marginalizadas, desenvolvimento tecnológico e impacto no consumo cultural.

A obra discorre sobre contribuições seminais que emergiram entre os anos 1970 e 2000, apresenta a história dos estudos feministas brasileiros para a nova geração de feministas brasileiras a partir do reconhecimento sobre os principais temas discutidos ao longo desses 30 anos, bem como ressalta discussões contemporâneas sobre os estudos feministas do início do século XXI. Conforme afirma a organizadora da obra, é “curioso observar, embora com certa tristeza, que os estudos de gênero nas universidades e centros de pesquisa brasileiros são marcados fortemente por bibliografias e referências anglo-americanas e eurocêntricas” (p. 9). Assim podemos destacar o primeiro aspecto de relevância dessa obra para os estudos brasileiros.

Hollanda justifica a seleção dos textos para essa obra considerando-os como férteis e reconhece suas contribuições e emergências da temática a partir dos anos 1970 e das décadas subsequentes até a atualidade. Trata-se de uma coletânea com 19 textos escritos por 20 pesquisadoras que investigam sobre feminismos brasileiros relacionados com o período da ditadura militar, a censura, a redemocratização do país e os direitos básicos da vida. As autoras atuam ou atuavam em diferentes regiões do Brasil, e os textos estão compilados em quatro eixos temáticos centrais: aspectos históricos dos estudos feministas brasileiro, bandeiras como objeto de estudo, pioneiras no feminismo brasileiro e novos caminhos críticos. A estrutura da coletânea é dividida em sete componentes: “Introdução”, “Algumas histórias sobre o feminismo no Brasil”, “Bandeiras tornam-se objeto de estudo”, “Interseccionalidades: pioneiras no feminismo brasileiro”, “Em busca de novos caminhos críticos”, “Sobre a organizadora” e “Sobre as autoras”.

Na primeira parte, “Algumas histórias sobre o feminismo no Brasil”, encontram-se abordagens teóricas sobre a história do feminismo no Brasil a partir da perspectiva da formação das autoras, que são das áreas de letras, literatura, história e ciências sociais, e de seus estudos e atuações, seja na docência, seja nos movimentos sociais: “Feminismo: uma história a ser contada”, de Constância Lima Duarte; “A luta das sufragistas”, de Branca Moreira Alves; “Na literatura, mulheres que reescrevem a nação”, de Rita Terezinha Schmidt; “A carta das mulheres brasileiras aos constituintes: memórias para o futuro”, de Jacqueline Pitanguy; “O feminismo na encruzilhada na modernidade e pós-modernidade”, de Bila Sorj; “Pesquisa sobre mulher no Brasil: do limbo ao gueto?”, de Albertina de Oliveira Costa, Carmen Barroso e Cynthia Sarthi. Em síntese essa parte apresenta a história sobre a luta pelo direito ao voto da mulher no Brasil, o movimento sufragista, as discussões em torno da classe no que tange a pautas de combate à ditadura militar.

Em relação à segunda parte, “Bandeiras tornam-se objeto de estudo”, destacam-se textos elaborados sob a ótica das áreas de formação das pesquisadoras, que são das ciências sociais e do direito: “Violência de gênero: o lugar da práxis na construção da subjetividade”, de Heleieth Saffioti; “Modernidade e cidadania reprodutiva”, de Maria Betânia Ávila; “Legalização e descriminalização: dez anos de luta feminista”, de Leila Linhares Barsted; “Mulheres sindicalizadas: classe, gênero, raça e geração na produção de novos sujeitos políticos, um estudo de caso”, de Mary Garcia Castro. No âmbito geral, a discussão abordada nas investigações diz respeito à sobrevivência das mulheres na sociedade, pautando os estudos de gênero, classe, raça/etnia para tratar sobre a identidade das mulheres e também sobre os direitos reprodutivos e a luta pela legalização do aborto.

Na terceira parte, “Interseccionalidades: pioneiras no feminismo Brasileiro”, constam reflexões críticas que partem de áreas diversas, como antropologia política, educação, história, filosofia, comunicação social e de espaços de atuação na educação básica e superior, como também no ativismo do movimento negro: “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de Lélia Gonzalez; “A mulher negra no mercado de trabalho” e “A mulher negra e o amor”, de Beatriz Nascimento; “Mulheres em movimento: contribuições do feminismo negro”, de Sueli Carneiro. Ressalta-se nessa parte uma ampla visão para os estudos feministas brasileiros, uma vez que que os textos discutem a sobreposição de identidades sociais e de sistemas de opressão, dominação e discriminação racial. Diante disso, desponta uma nova agenda feminista. Sueli Carneiro destaca que:

A consequência do crescente protagonismo das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro pode ser percebida na significativa mudança de perspectiva que a nova Plataforma Política Feminista adota. Essa Plataforma, proveniente da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras realizada em 6 e 7 de junho de 2002, em Brasília, reposiciona a luta feminista no Brasil, neste novo milênio, sendo gestada (como é da natureza feminina) coletivamente por mulheres negras, indígenas, brancas, lésbicas, nortistas, nordestinas, urbanas, rurais, sindicalizadas, quilombolas, jovens, de terceira idade, portadoras de necessidades especiais, de diferentes vinculações religiosas e partidárias...que se detiveram criticamente nas questões candentes da conjuntura nacional e internacional, nos obstáculos contemporâneos persistentes para a realização da igualdade de gênero e nos desafios e mecanismos para a sua superação, [...]. (p. 283).

Na quarta parte, “Em busca de novos caminhos críticos”, são apresentadas pesquisas relacionadas com as áreas de antropologia social, ciências sociais, filosofia, história, psicologia: “Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação”, de Lourdes Maria Bandeira; “Fazendo gênero? A antropologia da mulher no Brasil”, de Maria Luiza Heilborn; “Feminismo, gênero e representações sociais”, de Angela Arruda; “Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma hermenêutica das diferenças”, de Maria Odila Leite da Silva Dias; “Epistemologia feminista, gênero e história”, de Margareth Rago.

Evidencia-se nessa parte a reflexão sobre os caminhos para a construção epistemológica feminista, que visa às diretrizes e configurações sociais e culturais do século XXI. De acordo com Margareth Rago,

Vamos dizer que podemos pensar numa epistemologia feminista para além do marxismo e da fenomenologia, como uma forma de produção do conhecimento que traz a marca especificamente feminina, tendencialmente libertária e emancipadora. Há uma construção cultural da identidade feminina, da subjetividade feminina, da cultura feminina, que está evidenciada no momento em que as mulheres entram em massa no mercado, que ocupam profissões masculinas e que a cultura e a linguagem se feminizam. As mulheres entram no espaço público e nos espaços do saber transformando inevitavelmente esses campos, recolocando as questões, questionando, criando novas questões, transformando-os radicalmente. (p. 379).

A abordagem da coletânea visa à diversidade de pensamentos acerca do feminismo no Brasil entre as décadas de 1970 e 1990, e aponta perspectivas contemporâneas sobre os estudos feministas e para as feministas do século XXI. Os textos identificam as referências internacionais e distinguem o contexto brasileiro, uma vez que ressaltam a discussão de gênero relacionado com as vivências da ditadura militar, políticas públicas no Brasil e a vivência nas universidades. A coletânea reflete o pensamento feminista pelas vivências sociais das mulheres, no período em questão, pelo marcador principal, classe. No entanto, são os aspectos da raça que direcionam a obra quando apresenta as pioneiras que mudaram o pensamento feminista brasileiro e a necessidade de discussão e destaque sobre o feminismo negro e suas pautas.

Na obra, a discussão sobre sexualidade está aprofundada em relação à luta pela legalização do aborto e dos direitos reprodutivos, todavia não confere a mesma atenção aos aspectos da orientação sexual, nem na perspectiva histórica nem na contemporânea. Pensando nos aspectos de expansão, resistência e continuidade dos estudos feministas brasileiros, a obra não discute as singularidades acerca das diversas orientações sexuais e de gêneros na comunidade LGBTQIA+, algo extremamente necessário para o combate à LGBTfobia no século XXI. Também não ressalta a questão referente à violência contra a mulher e feminicídio, tema socialmente sensível que, nas últimas décadas - e, principalmente, no atual contexto social de pandemia da covid-19 -, tem se destacado, mais especificamente, contra a mulher negra. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020), no “período entre março e maio de 2020 houve um pequeno aumento de 2,2% nos casos de feminicídios registrados em comparação com o mesmo período de 2019 - foram 189 casos este ano, contra 185 no ano passado”.

Hollanda deixa clara sua intenção na organização de textos seminais que retratam a construção do pensamento feminista brasileiro a partir de 1970 e que tratam da importância de discutir a história dos estudos feministas brasileiros. No entanto, a obra, por ter sido realizada em 2019, poderia ter apresentado alguns textos atuais que representam os múltiplos feminismos (HEMMINGS, 2009HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 1, jan. 2009, p. 215-241. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2009000100012. Acesso em: 30 set. 2020.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref...
) que existem e resistem no Brasil e na luta pelo direito básico à vida.

De qualquer modo, o livro é fundamental para os estudos feministas brasileiros, na medida em que reconhece os principais temas abordados ao longo dos últimos 30 anos do século XX. Ressalta-se que a obra Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto é um marco importante, um convite ao despertar da consciência e do interesse na produção teórica feminista brasileira para pesquisadoras e pesquisadores brasileiros, para ativistas de movimentos sociais, para quem se preocupa com a democracia, com a igualdade, com a democratização do conhecimento, com o antirracismo a e com a luta pelo direitos humanos.

Destaco como fundamental o diálogo dessa coletânea com o campo do patrimônio cultural e da museologia, uma vez que possibilita pensar a história e o desenvolvimento do pensamento feminista brasileiro em relação aos processos de patrimonialização e musealização no Brasil. Essa obra abre caminhos para os estudiosos da cultura brasileira identificarem, problematizarem e repararem as ausências e os silenciamentos da representação da mulher nos espaços de luta, de poder e de memória.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    21 Out 2020
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br