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“Esquecer Williams?”: materialismo cultural, estruturas de sentimento e pesquisas sobre música popular no Brasil

“Forget Williams?”: cultural materialism, structures of feeling and popular music researches in Brazil

RESUMO

Desenvolvida por Raymond Williams, a hipótese cultural das estruturas de sentimento vem sendo, no Brasil, bastante referenciada em pesquisas sobre manifestações artísticas diversas, em particular - o que nos interessa especificamente - em pesquisas de caráter histórico ou sociológico sobre a música popular gravada. A partir de impressões colhidas em nosso percurso acadêmico, notamos, entretanto, certa desarticulação da noção em pauta em relação ao materialismo cultural concebido e defendido pelo autor. De início, retomamos algumas questões fundamentais que nortearam o debate crítico de Williams com os estudos culturais de tradição marxista em sua época, para, em seguida, discutir o potencial teórico-metodológico de suas reflexões para a pesquisa em música popular.

PALAVRAS-CHAVE:
Raymond Williams; materialismo cultural; estruturas de sentimento; pesquisas em música popular

ABSTRACT

Developed by Raymond Williams, the cultural hypothesis of structures of feeling has been increasingly referenced by Brazilian researchers, in particular - what matters to this paper - by historians and sociologists of recorded popular music. From impressions collected in our academic trajectory, we notice, however, certain disconnect between this notion and the cultural materialism conceived and defended by the author. At first, we elucidate fundamental questions that guided Williams’ critical debate with the cultural studies of the Marxist tradition in his time, and then, we discuss the theoretical and methodological potential of his reflections for research in popular music.

KEYWORDS:
Raymond Williams; cultural materialism; structures of feeling; popular music researches

Não posso alegar inocência porque também me ocupo dessas coisas. Mas, nos últimos anos, produziu-se uma inflação conceitual: como o dinheiro quando todos os preços sobem e se multiplicam, há noções que agora valem muito pouco. Deveríamos depositá-las em algum lugar e assumir o compromisso de não usá-las por algum tempo para dar-lhes a oportunidade de se recuperar.

(SARLO, 1997bSARLO, Beatriz. Esquecer Benjamin. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997b, 97-105., p. 98)

Reli com entusiasmo, já faz algum tempo, o ensaio de Beatriz Sarlo “Esquecer Benjamin”, um dos que compõem a coletânea, lançada no Brasil, Paisagens imaginárias. Utilizados de maneira fortuita e descompassada em relação às preocupações e questões de época que guiaram o pensamento de Walter Benjamin, termos como flâneur seriam, nesses casos, nada mais que moda acadêmica, espécie de ficha extraída de um estoque lexical (SARLO, 1997bSARLO, Beatriz. Esquecer Benjamin. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997b, 97-105., p. 104). Sob o olhar da escritora e crítica literária argentina, essa “erosão teórica” do vocabulário benjaminiano instigou as reflexões que eu vinha tecendo sobre os usos e os abusos de noções desenvolvidas por Raymond Williams, a quem Sarlo (1997a) também dedicou um ensaio da coletânea.

Basta uma busca simples no Google Acadêmico, por exemplo, para constatar que, nos últimos anos, no Brasil, Raymond Williams é cada vez mais citado em pesquisas na grande área das humanidades, o que se deve, em boa medida, à publicação de seus livros até então sem tradução para o português. No que me interessa especificamente, ou seja, pesquisas históricas e sociológicas dedicadas à música popular2 2 Música popular (ou música popular gravada/comercial, conforme vem sendo especificada por alguns pesquisadores) discerne a música industrializada/de entretenimento, produzida e reproduzida nas malhas da indústria cultural, da música de concerto (erudita) e daquela tida como folclórica, de tradição oral. Para mais detalhes sobre o termo, ver, por exemplo, Middleton, 1990. , noções-chave do autor, como formação cultural e estruturas de sentimento, surgem às vezes descoladas do pilar teórico-metodológico que as sustenta: o materialismo cultural. Resultado de diálogos, impressões, leituras, anotações e incômodos, por assim dizer, tal afirmação tomou forma de reflexão: estaria o vocabulário de Williams passando por um mesmo processo de erosão teórica e inflação conceitual? Até que ponto a utilização frequente de suas noções em estudos sobre música popular faria jus ao materialismo cultural? A propósito das estruturas de sentimento, noção para a qual dou destaque, não é incomum encontrar abordagens psicologizantes, outras que acabam cindindo “estrutura” e “sentimento”, e tendências, recorrentes, em que a ênfase no caráter simbólico das práticas e discursos abafa a materialidade dos artefatos culturais.

Evidentemente que não se trata, aqui - como poderia supor uma leitura distraída do ensaio inspirador de Beatriz Sarlo -, de “esquecer Williams”, tampouco de preterir a sua célebre formulação, ainda que, ciente da complexidade da proposta e alvo de críticas, ele próprio o tenha feito pós-Marxismo e literatura (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.). Retomo e discuto pressupostos fundamentais que conduziram o pensador e crítico literário galês a construir essa que denominou de hipótese cultural das estruturas de sentimento. A partir dessa revisão tão necessária a quem se dispõe a analisar práticas, produções e reproduções artísticas sob a perspectiva do materialismo cultural, apresento algumas reflexões e balanços de como, no Brasil, a noção vem sendo incorporada em trabalhos sobre música popular, objeto de pesquisa do qual Williams - diga-se de passagem - nunca se ocupou. Viso igualmente, portanto, discutir não só os ganhos como os limites dessa articulação, pertinente, todavia, quando interessa ao pesquisador desvelar certa atmosfera de mudança social impregnada coletivamente na própria matéria musical, que a ele caberá interpretar munido de outras referências que possibilitem maior compreensão dessa linguagem.

Para além de recorrer a Williams em Cultura e sociedade ([1958] 2011b), Marxismo e literatura (1979), Problems in materialism and culture (1980), Cultura (1992), Cultura e materialismo ([1980] 2011c), A política e as letras ([1979] 2013), dentre outros livros, trago para o debate alguns comentadores: Beatriz Sarlo (1997aSARLO, Beatriz. Raymond Williams: uma releitura. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997a, p. 85-95., 1997b), Maria Elisa Cevasco (2001CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.), Paul Filmer (2009FILMER, Paul. A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Tradução de Leila Curi Rodrigues Olivi. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 371-396.), Adelia Miglievich (2016MIGLIEVICH, Adelia. Sobre “estruturas de sentimentos” e contra-hegemonia em Raymond Williams. Labemus, Blog do Laboratório de estudos de teoria e mudança social, 28 set. 2016. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2016/09/28/sobre-estruturas-de-sentimentos-e-contra-hegemonia-em-raymond-williams/. Acesso em: set. 2016.
https://blogdolabemus.com/2016/09/28/sob...
) e Enio Passiani (2009PASSIANI, Enio. Afinidades eletivas: uma comparação entre as sociologias da literatura de Pierre Bourdieu e Raymond Williams. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 285-299.). Este último, ao aproximar Raymond Williams e Pierre Bourdieu, fornece elementos para as minhas observações quanto à combinação dos dois autores em investigações sobre música popular. Chamo a atenção, nesses casos em que normalmente são acionadas as estruturas de sentimento de um e os conceitos de campo e de habitus do outro, para certo desequilíbrio na análise e conjugação de estruturas externas e internas à música, já que as primeiras geralmente sobressaem. Atendo-me a Williams, esclareço que sua noção tinha na linguagem artística um lócus privilegiado, sem se confundir com visões formalistas. Na experiência coletiva da obra de arte - um dos porquês de sua natureza hipotética - procurava descobrir o que ela tinha a revelar da experiência histórica de um período ou geração, o que em abordagens contextuais nem sempre logramos conhecer, tampouco naquelas mais exclusivamente voltadas para o que é dito sobre as obras e seu “conteúdo”, em detrimento de como esse conteúdo se estrutura e se organiza social e culturalmente na forma artística.

Espero, assim, contribuir, de um lado, com debates mais gerais sobre o alcance da fortuna crítica de Williams. E, de outro, ao cotejá-la com um objeto de estudos cujo um dos principais desafios consiste em equacionar a linguagem musical propriamente dita e a conjuntura mais ampla e plural de um período, colaborar com colegas pesquisadores, frisando a importância de bem assimilar o movimento teórico-metodológico desse que, ao lado de E. P. Thompson e R. Hoggart, foi fundador da New Left Review e dos chamados estudos culturais.

Hipótese cultural e recurso teórico-metodológico

O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina

sua consciência.

(MARX, [1859] 2008, p. 47)

Um dos principais pontos de partida e problematização para o materialismo cultural de Raymond Williams foi sem dúvida a metáfora da “base” e “superestrutura”. Não raras vezes impelido a responder, aos pares e à crítica, se era mesmo um intelectual marxista3 3 Conferir: “Você é marxista, não é?” (WILLIAMS, [1975] 2015c). , seu foco sempre residiu na necessidade de elucidar que, na transição de Marx para o marxismo, a premissa de que as condições materiais da existência determinam a consciência havia gerado equívocos e simplificações em estudos sobre arte e cultura. Alegar que Marx ou Engels desprezaram tal dimensão seria negligenciar que ambos reconheceram a sua complexidade e que, embora não tenham objetivado a elaboração de uma teoria cultural, eles a esboçaram naquela e em outras formulações, cujo debate foi profundamente polarizado4 4 Em carta a Joseph Bloch, Engels enfatizou: “Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante na história é em última instância a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso nem Marx nem eu jamais afirmamos. Se, portanto, alguém distorce isso em uma afirmação de que o elemento econômico é o único elemento determinante, ele o transforma em uma frase sem sentido, abstrata e absurda [...]” (ENGELS apud WILLIAMS, [1958] 2011, p. 292). . Em Cultura e sociedade, Williams comentou a respeito:

Ou as artes são passivamente dependentes da realidade social, uma proposição que considero ser a do materialismo mecânico ou uma má e vulgar interpretação de Marx; ou as artes, como criadoras da consciência, determinam a realidade social, uma proposição com frequência sugerida pelos poetas românticos; ou, finalmente, as artes, embora dependentes em última instância, com tudo mais, da estrutura econômica verdadeira, operam em parte para refletir essa estrutura e sua consequente realidade, e, em parte, assumindo atitudes com relação à realidade, para ajudar ou atrapalhar o trabalho constante de mudá-la. Acho que as teorias da cultura marxista são confusas porque elas me parecem, em ocasiões diferentes e em autores diferentes, fazer usos de todas essas proposições de acordo com a necessidade imediata (WILLIAMS, [1958] 2011b, p. 299).

Por envolver processos dinâmicos e contraditórios, a “base”, analogia para um modo de produção numa fase do seu desenvolvimento, jamais poderia ser concebida como um substrato fixo. Já a subordinação da “superestrutura” pouco condiria com a totalidade dos processos sociais tão cara a Marx. Williams, para quem a ideia de “interação” não extirparia a dualidade, questionou a qualidade determinante do elemento econômico. Sua preocupação com a clivagem semântica das palavras na história - vide o seu glossário Palavras-chave ([1976] 2007) - o levou a insistir que “determinar” dizia bem mais sobre exercer limites e pressões do que sobre leis rígidas. Se, portanto, são determinantes, o que as condições materiais da existência determinam é todo um modo de vida. É a este, e não apenas ao sistema econômico, que a literatura (ou quaisquer expressões artísticas) tem de ser relacionada (ver WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 87-92).

Ao se referir a todo um modo de vida, Williams se refere à cultura, concebendo-a como a “síntese da economia, da política e da sociedade” sem jamais subestimar “as relações de produção nas quais as experiências [culturais] se imiscuem” (MIGLIEVICH, 2020MIGLIEVICH, Adelia. Raymond Williams e “estruturas de sentimentos”: os afetos como criatividade social. Resgate, Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, v. 28, 2020, p. 1-22., p. 4-5). À cultura consagrou toda a sua trajetória intelectual, a ponto de confessar o desejo de “nunca ter ouvido a maldita palavra”, retificando, porém, que muitas questões nem sequer poderiam ser abordadas “a menos que tenhamos consciência das palavras como parte dos problemas” (WILLIAMS, [1976] 2007, p. 32-33; 2013)5 5 Ver também “A cultura é algo comum” (WILLIAMS, [1958] 2015b). Williams aproximou sua concepção de cultura daquilo que “Marx considerava como o resultado primordial do metabolismo do ser humano com a natureza, isto é, a criação, no decorrer da história, de modos de vida determinados” (DOSSIÊ..., 2017, p. 41). . Consubstanciada nos meios de produção e reprodução da vida social, a cultura não está isolada e nem é mero reflexo de práticas supostamente portadoras das “verdadeiras forças produtivas”. É a um só tempo - e aí está o fundamento de seu materialismo cultural - trabalho imaginativo, intelectual e material6 6 Nos Grundrisse, Marx afirmara que, ao contrário do fabricante de pianos, o pianista não seria a priori um trabalhador produtivo. Influenciada, segundo Williams (1979, p. 96-97), por Adam Smith, tal afirmação teria corroborado com os reducionismos de um “materialismo industrial”. .

A concepção de arte e cultura como “superestrutura” ou “reflexo da base” já havia sido contestada, por exemplo, por Theodor Adorno, que, em seu lugar, e à luz de sua teoria crítica imanente, sistematizou a ideia de mediação para descrever um processo ativo. A mediação estaria incrustrada nos próprios produtos do espírito, a partir dos quais seria possível descortinar aspectos da “estrutura social, posições, ideologias” (ADORNO [1967] 1986, p. 114; 2011). Em diálogo com a Escola de Frankfurt e compartilhando dessa primaria do objeto - que preferia chamar de práticas socioculturais -, Williams assinalou, contudo, que, se mediação ainda pressupuser um elo de coisas separadas, seria antes um estorvo do que um recurso analítico satisfatório. Não passaria, nesse caso, de mais uma sofisticação do “reflexo” (cf. WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 101-102).

Antonio Gramsci se fez então crucial à teoria cultural de Williams. Do marxista italiano o galês revitalizou o conceito de hegemonia, enfatizando o seu caráter processual e a sua complexidade, não reduzida ao resultado da ação unilateral dos dominantes sobre os dominados. No cerne desse processo, salientou a importância da tradição seletiva7 7 Para Williams (1979, p. 1960 119), a tradição é sempre uma “versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural”. e o papel não menos relevante das instituições e do que chamou de formação cultural, uma de suas mais ricas contribuições para o estudo de tendências, movimentos, escolas ou círculos artístico-culturais8 8 Williams (1992, p. 68; ver também p. 57-85) identificou três tipos de formações culturais: “(i) as que se baseiam em participação formal de associados, com modalidades variáveis de autoridade ou decisão interna [...]; (ii) as que não se baseiam na participação formal de associados, mas se organizam em torno de alguma manifestação pública coletiva [...]; (iii) as que não se baseiam na participação formal de associados nem em qualquer manifestação pública coletiva continuada, mas nas quais existe associação consciente ou identificação grupal, manifestada de modo informal ou ocasional”. . Despendeu igual atenção às formas residuais e emergentes que aí se articulam, sendo que as primeiras, constituídas efetivamente no passado, ainda operam na dinâmica cultural, enquanto as outras - emergentes ou pré-emergentes - abarcam a criação contínua de novos significados, valores, práticas, relações e tipos de relações, sendo dotadas, por isso, de um potencial contra-hegemônico (cf. WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 111-117; p. 123-130).

O materialismo cultural é também tributário da recuperação de categorias - sujeito, história, experiência e consciência prática - que haviam sido estigmatizadas tanto pelo estruturalismo francês quanto pelo marxismo althusseriano. Procurando ler o passado (e o presente) sob a ótica de “uma cultura vivida”, foi a perseverança de Williams nesse sentido - não obstante as críticas de que seria um “culturalista” ou idealista9 9 Remontando à recepção de Williams na Argentina, nos anos 1960-1970, Beatriz Sarlo (1997a, p. 89) lembra que a noção de experiência foi “acusada de ideológica porque implicava sujeitos e classes sociais que tinham experiência e podiam modificar-se por meio delas”. - que lhe permitiu construir a hipótese cultural das estruturas de sentimento, assim definida em Marxismo e literatura:

Falamos de elementos característicos do impulso, contenção e tom; elementos especificamente afetivos da consciência e das relações, e não de sentimento em contraposição ao pensamento, mas de pensamento tal como sentido e de sentimento tal como pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada. Estamos então definindo esses elementos como uma “estrutura”: como uma série, com relações internas específicas, ao mesmo tempo engrenadas e em tensão. (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 134)10 10 Teria sido a partir de Lucien Goldman e suas “estruturas homólogas” na literatura que Williams formulou a hipótese das estruturas de sentimento (cf. FILMER, 2009, p. 376). No 18 Brumário, porém, Marx fala de “toda uma superestrutura de sentimentos” que erigiria das condições reais da existência, passagem citada por Williams em Cultura e sociedade ([1958] 2011b, p. 292). Nada mais sugestivo do que daí também derivar o seu oximoro calcado no materialismo cultural, intimamente embasado que é no materialismo histórico. A título de curiosidade, a expressão “estruturas de sentimento” já havia sido empregada, porém noutro sentido e contexto, pelo crítico literário alemão Levin Schücking, informação que devo ao professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Alexandro Paixão, cuja interlocução no I Simpósio Teoria Crítica e Estudos Culturais: Arte e Sociedade (Unesp/Franca) foi igualmente instigante às minhas reflexões. .

Apesar de tão firmes quanto sugere a palavra “estrutura”, tais elementos afetivos da consciência e das relações se manifestariam nos lugares mais intangíveis, evanescentes e corriqueiros de nossa prática e vida cotidiana, conforme indicado desde as primeiras menções à noção - ver Preface to film (WILLIAMS; ORROM, 1954WILLIAMS, Raymond; ORROM, Michael. Preface to film. Londres: Film Drama, 1954.) e The long revolution (WILLIAMS, 1965). Embora estruturas de sentimento sejam encontradas na escrita da história social ou da cultura de pensamento, trata-se de um oximoro direcionado especialmente para a produção artística de um período ou geração. Williams sempre considerou a existência do diferente numa simultaneidade densa, não circunscrita “à unidade definida por uma só predominância histórica ou social” (SARLO, 1997aSARLO, Beatriz. Raymond Williams: uma releitura. In: SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997a, p. 85-95., p. 89-91). Na medida em que então buscava captar e interpretar a práxis e os traços comuns entre discursos, práticas e materiais diferentes (cf. FILMER, 2009FILMER, Paul. A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Tradução de Leila Curi Rodrigues Olivi. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 371-396., p. 373), almejava em última instância o que de mais característico impregnaria uma época, ou, noutros termos, o seu “tom geral” (SARLO, 1997a, p. 90).

Em que pese isso, sua hipótese cultural não se confunde com a hegemonia tal qual trabalhada a partir de Gramsci11 11 Alguns chegaram a supor que a noção de Williams seria redundante em relação ao conceito gramsciano de hegemonia (ver FILMER, 2009, p. 387-388). . As estruturas de sentimento tendem a ser incorporadas e/ou repelidas pelo processo hegemônico. O desafio, portanto, é atentar para o que ainda não estava (ou está) cristalizado no tecido social, mesmo que, adiante, ou simultaneamente, seja formalizado em gêneros, rótulos, convenções, ideologias ou visões de mundo12 12 Com a palavra “sentimento”, Williams buscava afastar sua proposta de noções formalizadas como “visão de mundo” e “ideologia”. “Experiência” foi outra palavra que lhe pareceu pertinente, obstaculizada, porém, por carregar um sentido ligado ao passado, não contemplando de todo o que seu constructo queria abarcar. . Excepcionalmente difíceis de serem distinguidas dentre aspectos que, em realidade, exprimem alguma fase nova da cultura dominante - daí também o caráter hipotético -, as estruturas de sentimento se comportam, principalmente, como formas emergentes e, sobretudo, pré-emergentes, pois, acrescenta Williams:

[...] estamos também definindo uma experiência social que está ainda em processo, com frequência ainda não reconhecida como social, mas como privada, idiossincrática, e mesmo isoladora, mas que na análise (e raramente de outro modo) têm suas características emergentes, relacionadoras e dominantes, e na verdade suas hierarquias específicas. Essas são, com frequência, mais reconhecíveis numa fase posterior, quando foram (como ocorre muitas vezes) formalizadas, classificadas, e em muitos casos incorporadas às instituições e formações. Mas a essa altura o caso é diferente: uma nova estrutura de sentimento já terá começado a se formar, no verdadeiro presente social. (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 134-135).

A leitura perspicaz de Adelia Miglievich auxilia a captar essa natureza tácita e não menos dinâmica e provocativa das estruturas de sentimento, que

[...] não têm que ter uma forma sociopolítica explícita nem estão submetidas às redes burocráticas. São indefinidas e difusas, por isso mesmo, capazes de “driblar” a hegemonia. Williams está interessado nos tipos de mudanças incrementais que se reúnem em torno de uma ou mais gerações. Quer saber como podemos falar de “atmosfera de mudança” (ou de permanência) sem que pareçamos abdicar do mundo factual. Eis que sentimentos são reais. Talvez os artistas, como “antenas”, possam expressá-las melhor em suas obras, que não se descolam de suas trajetórias e de seus grupos. (MIGLIEVICH, 2016MIGLIEVICH, Adelia. Sobre “estruturas de sentimentos” e contra-hegemonia em Raymond Williams. Labemus, Blog do Laboratório de estudos de teoria e mudança social, 28 set. 2016. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2016/09/28/sobre-estruturas-de-sentimentos-e-contra-hegemonia-em-raymond-williams/. Acesso em: set. 2016.
https://blogdolabemus.com/2016/09/28/sob...
).

Como já havia sustentado Paul Filmer (2009FILMER, Paul. A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Tradução de Leila Curi Rodrigues Olivi. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 371-396., p. 373), “a estrutura é sempre a do sentimento real, ligado à particularidade da experiência coletiva histórica e de seus efeitos reais nos indivíduos e nos grupos”. Grafadas no plural muitas vezes por Williams - sugerindo assim a coexistência de estruturas de sentimento diferentes num mesmo período e contexto históricos -, essas estruturas estão menos na relação de conteúdo do que na maneira como esse conteúdo é histórica e coletivamente organizado e estruturado na forma artística, que, por sua vez, é “conteúdo sócio-histórico sedimentado”. E perceber esse conteúdo formalizado depende impreterivelmente do “caráter do momento em que se dá a interpretação, ou se elabora a teoria” (CEVASCO, 2001CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001., p. 18).

Nunca somente naturalística ou sociológica, a qualidade empírica das estruturas de sentimento13 13 Essa qualidade empírica remeteria à fenomenologia de Alfred Schütz, isto é, à consciência intersubjetiva e aos processos interativos estruturais “por meio dos quais é formado e subsequentemente transformado em estruturas sociais e culturais nascentes e emergentes” (FILMER, 2009, p. 373). Apesar de atravessar praticamente toda a sua obra, talvez O campo e a cidade ([1973] 1990) seja aquela em que Williams melhor mobilizou, empiricamente, a sua hipótese cultural. demanda um olhar para além daqueles centrados no contraste das opiniões dos sujeitos envolvidos, o que eles pensam ou deixam de pensar sobre as suas práticas e criações. Também quer escapar de análises detidamente formalistas e daquelas em que a arte é paráfrase ou ilustração para conclusões acerca de contextos políticos, econômicos e socioculturais14 14 Em seu estudo sobre o Bloomsbury Group, no qual aciona tanto a noção de formação cultural quanto a de estruturas de sentimento, Williams apontava para a insuficiência de análises que ou se pautam somente nos termos nativos ou apostam unicamente em abordagens contextuais de grupos culturais: “Temos então de pensar em modos de análise que evitem a redução de um tipo de definição pelo outro” (WILLIAMS, [1980] 2011, p. 206). . Sendo hipótese cultural, é a ferramenta teórico-metodológica mais refinada do materialismo cultural de nosso autor, com a qual trilhou um caminho crítico através de dicotomias arraigadas nos diagnósticos - sobretudo sociológicos - sobre arte e cultura.

Estruturas de sentimento e música popular: contribuições teórico-metodológicas 15 15 Esclareço antecipadamente que optei por não citar trabalhos sobre música popular nos quais os usos da noção de estruturas de sentimento me parecem indevidos ou insuficientes, já que meu intuito é menos criar polêmicas do que contribuir com uma leitura de Williams. 1979

Se tivermos aprendido a ver a relação de qualquer trabalho cultural com o que aprendemos a chamar de “sistema de signos” (e essa foi a contribução importante da semiótica cultural), também chegaremos a ver que um sistema de signos é em si uma estrutura específica de relações sociais: “internamente”, porque os signos dependem de, foram formados em, relações; “externamente”, porque o sistema depende de, é formado de, instituições que o ativam (e que são ao mesmo tempo culturais, sociais e econômicas); integralmente, porque um “sistema de signos”, devidamente compreendido, é ao mesmo tempo uma tecnologia cultural específica e uma forma específica de consciência prática. Esses elementos aparentemente diversos estão, na verdade, unificados no processo social material. (WILLIAMS, 1979WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979., p. 142).

Maturada por Williams ao longo de sua vida intelectual, sua hipótese cultural gerou compreensões diversas, tanto por parte de quem debateu diretamente com o autor quanto por parte dos que o incorporam em suas pesquisas. Sobretudo a partir dos anos 2000 e 2010, quando alguns de seus livros começam a ser traduzidos e publicados no Brasil, a maioria pela editora da Unesp, vem aumentando o número de trabalhos acadêmicos que, oriundos das áreas de história social ou cultural e da sociologia da cultura, recorrem às estruturas de sentimento. Isso também muito se deve ao estudo pioneiro de Maria Elisa Cevasco, Para ler Raymond Williams (2001CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001.), no qual ela realiza uma análise meticulosa do movimento teórico e do vocabulário do autor, tornando-se uma bibliografia indispensável aos interessados. Não menos influente, mas principalmente a quem se dedica às relações entre cultura e política brasileira durante o período da ditadura militar, é o diálogo do sociólogo Marcelo Ridenti com Williams em Brasilidade revolucionária (2010RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Ed. Unesp, 2010.), livro no qual retoma e incrementa reflexões desenvolvidas anteriormente no Em busca do povo brasileiro (2000).

Essas e outras referências contribuíram para difundir o pensamento de Williams no meio acadêmico brasileiro, além das próprias obras do autor agora mais acessíveis do que antes. Dissertações e teses sobre música popular - nas quais me incluo (DINIZ, 2017DINIZ, Sheyla Castro. Desbundados e marginais: MPB e contracultura nos “anos de chumbo” (1969-1974). Tese (Doutorado em Sociologia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017.) - encontraram na noção-chave das estruturas de sentimento - convidativa de antemão, haja vista sugerir afeto e criatividade tão rentes ao universo musical - um instrumental pertinente de análise. Alguns desses usos, contudo, se não cumprem um papel quase que protocolar, parecem insistir justamente naquilo que Williams apontava como deficiência.

Em meus itinerários de pesquisas e de leituras, deparei-me com trabalhos que, não obstante a contextualização de um artista ou um grupo musical, vez ou outra resvalavam em comentários personalistas ou psicologizantes - “a estrutura de sentimento de fulano” -, esvaziando o sentido sócio-histórico da noção que sempre requer um portador coletivo, seja um grupo cultural ou geração artística. Percebi, igualmente, certa incompreensão dos termos empregados por Williams em seu oximoro, como se “estrutura” e “sentimento” correspondessem respectivamente à metáfora binária da “base” e “superestrutura”, decorrendo daí interpretações em que a música continua sendo uma espécie de “reflexo” de circunstâncias histórico-sociais predeterminadas, mesmo que isso seja explicitamente negado.

Relacionar uma obra de arte com qualquer aspecto da totalidade observada pode ser, em diferentes graus, bastante produtivo; mas muitas vezes percebemos na análise que quando se compara a obra com esses aspectos distintos sempre sobra algo para o qual não há uma contraparte externa. Este elemento é o que denominei de estrutura de sentimentos, e só pode ser percebido através da experiência da própria obra de arte. (WILLIAMS apud CEVASCO, 2001CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001., p. 152).

Nessa passagem categórica de Preface to film (livro, de 1954, assinado em parceria com Michael Orrom), Williams, ao contrário do que possa parecer, não reivindica análises puramente formalistas, mas sim chama a atenção para a necessidade de se ater à obra de arte para, assim, acessar as estruturas de sentimento e suas relações inerentes e reflexivas com os contextos socioculturais em que elas são produzidas e aos quais elas respondem (cf. FILMER, 2009FILMER, Paul. A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Tradução de Leila Curi Rodrigues Olivi. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 371-396., p. 374). Se “o artista pode até perceber como única a experiência para a qual encontra uma forma”, aquele algo para o qual não “sobra” uma contraparte externa aparente consiste, na verdade, na articulação de respostas sociais a mudanças objetivas (CEVASCO, 2001CEVASCO, Maria Elisa. Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra, 2001., p. 153).

Trabalhar, portanto, com as estruturas de sentimento exige uma incursão que leve realmente em conta a dinâmica externa e interna, o que pode ser um empecilho a quem não domina minimamente ou ignora os códigos de uma linguagem artística. Os tons, impulsos e contenções de que fala Williams ao definir a noção, citada pela primeira vez num texto sobre cinema (de Preface to film) e constantemente acionada para pensar o teatro16 16 Ver, por exemplo, Tragédia moderna (WILLIAMS, 2011a). e, sobretudo, a literatura, certamente não são os mesmos quando o assunto é a música popular gravada/comercial, que, ademais do texto, no caso da canção, envolve aspectos específicos e fundamentais à compreensão - instrumentação, ritmo, harmonia, melodia, performances, interpretação, técnicas de estúdio, suportes de armazenamento e comercialização, dentre outros de acordo com o que se estuda. Ao pesquisador da música popular que se dispõe a lidar com a hipótese cultural de Williams cabe atentar, então, não só para o que é dito sobre a música - compositores, instrumentalistas, intérpretes, crítica jornalística, público consumidor etc. - ou para o que a música diz - sua letra, se houver -, mas para como ela diz.

Estabeleço aqui um paralelo com uma tradição consolidada nos estudos literários brasileiros, afinada, grosso modo, com o materialismo cultural de Williams. Seria no mínimo inapropriado se basear em referenciais teóricos do porte de Antonio Candido e Roberto Schwarz e ignorar a problemática da forma, procurando apreender social e culturalmente a obra literária somente a partir de seu “conteúdo” mais evidente, da sua recepção, do público consumidor, da opinião dos autores e outros sujeitos ou do mercado editorial. Relevantes sob ângulos diversos, não suponho que pesquisas que negligenciem a forma literária sejam de fato devedoras daquela abordagem. De modo mais ou menos similar, alguns estudos sobre música popular no Brasil recorrem a Williams - estudos de vieses formalistas ou semióticos raramente o fazem - sem se comprometerem com o diferencial da crítica materialista17 17 Sobre o diferencial da crítica materialista (notadamente Williams, Adorno e os expoentes brasileiros Candido e Schwarz), ver: Cevasco, 2013. , ora pressupondo na música - ou apenas na letra - o que já concluímos em termos políticos, econômicos e sociais, ora concebendo a música mais como objeto desencadeador de discursos e debates que ganham o centro das análises. Em todo caso, a música popular como uma produção coletiva simultaneamente artística, estética, sociocultural e histórica a ser examinada fica um tanto quanto à deriva.

Observo, nessa direção, a tendência de se combinar Raymond Williams e Pierre Bourdieu em trabalhos sociológicos e historiográficos em torno da música popular, isso geralmente justificado pelas afinidades que existiriam entre o que um chamou de estruturas de sentimento e o outro de habitus. Para Enio Passiani é simplória a visão predominante de que Williams é o teórico por excelência da “transformação” e Bourdieu exclusivamente o da “reprodução social”, já que, não obstante as ênfases distintas, nenhum deixou de lado tais dimensões. Cada qual teria tentado “traduzir uma espécie de consciência prática adquirida pelos agentes sociais a partir de um processo particular de socialização” (PASSIANI, 2009PASSIANI, Enio. Afinidades eletivas: uma comparação entre as sociologias da literatura de Pierre Bourdieu e Raymond Williams. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 285-299., p. 285). Enquanto as estruturas de sentimento são formadas no interior dos grupos culturais, é na experiência vivida num campo específico que o habitus se internaliza, sendo este “um conhecimento adquirido [...] e também um haver, um capital [...], a disposição incorporada, quase postural [...] de um agente em ação: tratava-se de chamar a atenção para o ‘primado da razão prática’” (BOURDIEU, [1989] 2009, p. 61). Segundo Passiani (2009, p. 285), as duas noções convergem para “um conjunto de valores compartilhados que aproximam e afastam certos agentes uns dos outros, criando solidariedade e rivalidades”.

Em artigo dedicado à sociologia da cultura de Pierre Bourdieu (cf. GARNHAM; WILLIAMS, 1980WILLIAMS, Raymond. Problems in materialism and culture: selected essays. London: Verso, 1980.), Williams detectou no conceito de habitus uma maneira alternativa de denominar o que entendia por consciência prática, ideia que, atrelada às estruturas de sentimento, é “quase sempre diferente da consciência oficial”, pois é “aquilo que está sendo realmente vivido, e não apenas aquilo que acreditamos estar sendo vivido” (WILLIAMS, 1979, p. 133). Ao abranger valores, práticas, relações e experiências, visando a uma “cultura vivida” e não necessariamente sistematizada - em convenções, estilos, ideologias, visões de mundo, formações culturais ou instituições -, sua hipótese tinha na linguagem artística um lócus primordial. É sobretudo na arte, ainda que não apenas, que se efetiva a articulação das estruturas de sentimento e a possível manifestação das formas emergentes e/ou pré-emergentes, somente plausíveis de identificação e avaliação se se tem em conta a atuação polissêmica (nunca monolítica) da tradição seletiva, bem como a pressão exercida pelos aspectos dominantes e residuais do processo hegemônico.

Como insiste Adelia Miglievich (2016MIGLIEVICH, Adelia. Sobre “estruturas de sentimentos” e contra-hegemonia em Raymond Williams. Labemus, Blog do Laboratório de estudos de teoria e mudança social, 28 set. 2016. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2016/09/28/sobre-estruturas-de-sentimentos-e-contra-hegemonia-em-raymond-williams/. Acesso em: set. 2016.
https://blogdolabemus.com/2016/09/28/sob...
), a utilização das estruturas de sentimento só faz pleno sentido quando trabalhamos com uma atmosfera de mudança (geralmente sutil) que tensiona ou “dribla” a hegemonia. Atmosfera que não exclui a permanência, e cuja dimensão política, econômica e sociocultural é formante e formadora. Isto é, estruturas de sentimento não se constituem unilateralmente “de fora para dentro” ou “de dentro para fora”, e sim a partir de um movimento processual, contínuo, engrenado e em tensão18 18 Agradeço o diálogo com Adélia Miglievich no VI Colóquio de Pesquisa Educação e História Cultural - Por que ler Raymond Williams no Século XXI? (Faculdade de Educação/Unicamp, mar. 2019). . Para Paul Filmer, que, ao contrário de Enio Passiani, vê mais diferenças que afinidades entre Williams e Bourdieu, essa unidade e conexão do processo material social demanda atenção redobrada “sobre a linguagem e sua relação com as formas de literatura e de escrita”. Ora, é justamente na linguagem artística e sua forma que a hipótese cultural das estruturas de sentimento se alinhava como metodologia.

[...] em comparação com a aplicação de Williams do conceito de estruturas de sentimento em sua análise das estruturas internas das linguagens de textos literários ou não, as análises de Bourdieu são essencialmente análises de estruturas contextuais, a que ele chama de campo de produção artística. Três elementos constituem a realidade social deste campo: a história e a posição do campo artístico no período contemporâneo dentro do campo de poder; a estrutura das relações do campo entre as posições ocupadas por indivíduos ou grupos competindo por legitimidade artística em um determinado momento; e a gênesis dos diferentes produtores do habitus [...]. Em nenhum momento há possibilidade para a análise [...] das obras de arte quanto às suas relações constitutivas reflexivas com o campo [...]. (FILMER, 2009FILMER, Paul. A estrutura do sentimento e das formações socioculturais: o sentido de literatura e de experiência para a sociologia da cultura de Raymond Williams. Tradução de Leila Curi Rodrigues Olivi. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 27, 2009, p. 371-396., p. 380; 382)19 19 Apesar de apontar semelhanças entre o conceito de habitus e as estruturas de sentimento, Filmer, citando Andrew Milner, com quem concorda, caracteriza o habitus de Bourdieu como um “sistema de disposições duráveis antes de ser um padrão de experiência sentida”, o que limitaria a “sua capacidade analítica de exploração das possibilidades para a ação coletiva direcionada à mudança social progressiva” (FILMER, 2009, p. 380). Já Passiani (2009, p. 286) insiste que a relação entre estruturas de sentimento e formas emergentes ou pré-emergentes pode contribuir para que se perca de vista a dimensão da “reprodução social” também presente em Williams. Embora esquadrinhar esse debate ultrapasse meus objetivos, compreendo que Williams, ao aproximar sua hipótese das formas emergentes ou pré-emergentes, sempre levou em conta a possibilidade condicionada da transformação - ou, para fazer jus ao seu vocabulário, a longa revolução -, tendo em vista formas e pressões dominantes do processo hegemônico (cf. WILLIAMS, 1979, p. 117; 126). .

Ainda que se discorde da interpretação, tem sido basicamente essa a perspectiva - isenta de análise das obras - a embasar parte das teses e dissertações sobre música popular no Brasil cujos referenciais teóricos são Williams e Bourdieu. Importantes e necessários, tais trabalhos nos mostram como se dão as hierarquias e disputas simbólicas na dinâmica envolvente de um campo artístico-musical, do qual participam músicos, críticos, jornalistas, a indústria fonográfica, a mídia e demais agentes, conforme nos ensina o vocabulário de Bourdieu. Com nuanças distintas, nada disso passou ao largo de Williams. Basta conferir o seu estudo, já mencionado (ver nota 14), sobre o Bloomsbury Group, no qual ele esmiúça a organização interna e o que essa formação cultural devia à conjuntura mais ampla dos anos 1920 e 1930 na Inglaterra e, inclusive, às suas origens de classe - fator condicionante, mas não o único, que tanto Williams quanto Bourdieu, guardadas as devidas singularidades, nunca desconsideraram.

Promete ser promissor, portanto, combinar esses dois incansáveis pensadores da cultura - que tiveram Marx e o marxismo como fontes e interlocutores comuns - no exercício sociológico e/ou historiográfico da música popular. Valer-se, todavia, das estruturas de sentimento sem que se busque também na própria música valores, práticas, experiências, estilos ou convenções que, via de regra, já julgamos conhecer, seja através do “contexto”, das letras de canção ou de discursos os mais diversos, significa, em suma, empobrecer ou desperdiçar a potência teórico-metodológica da hipótese cultural de Raymond Williams e, consequentemente, as problemáticas da determinação, mediação, hegemonia, forma e formação cultural, dentre outras, nela implicadas.

Falta, por último, acentuar o óbvio: Williams nunca se debruçou sobre a música tampouco sobre a música popular, embora se referisse à música em comentários mais genéricos e insistisse sobre a urgência de os estudos culturais encararem seriamente a tecnologia, os suportes e os sistemas de comunicação como processos indissociáveis da forma artístico-cultural, algo que desenvolveu oportunamente em seu estudo Televisão (WILLIAMS, [1974] 2016). Se sintonizados com a noção de estruturas de sentimento e, inevitavelmente, com o materialismo cultural, os sociólogos e historiadores da música popular gravada/comercial necessitam se inteirar de outros referenciais e recursos analíticos que lhes proporcionem mais familiaridade e os aproximem dessa linguagem: um continuum simbólico, prático, ideológico e material que não é só texto nem só contexto, nem só forma nem só conteúdo20 20 Dentre vários autores, brasileiros ou não, limito-me a citar uma contribuição recente. O estudo do músico Sérgio Molina (2017) pode ser útil a sociólogos e historiadores da música popular, acima de tudo, e independente de Williams ser ou não uma referência, aos interessados em produções pós-década de 1960, quando o desenvolvimento técnico, dentre outros fatores, impulsiona novas formas de concepção e registro musical, originando o que chama de “música de montagem”. Aprofundando o que já havia sugerido, por exemplo, Carlos Sandroni (2001), Molina também põe em xeque tradições analíticas disseminadas a partir da música clássica europeia, já que boa parcela da música popular feita no Brasil deve ao complexo rítmico afro-diaspórico. .

Como socióloga, não posso alegar inocência, muito menos apontar algum demérito a priori na “sociologia da música sem música” com a qual tanto aprendo, não obstante considerar ainda apropriadas as críticas de Theodor Adorno à tendência, então em voga nos anos de 1960, envolvendo sondagens sobre o consumo e os efeitos sociais da música, raramente enfrentada em sua linguagem e sua significação social (cf. ADORNO, [1968] 2011, p. 361-398). Mas na “sociologia da música sem música” que lança mão das estruturas de sentimento não posso deixar de detectar alguma incongruência. Seria o caso de “esquecer Williams”? Não recomendo. Coerente seria, porém - e parafraseando Beatriz Sarlo a propósito da erosão teórica do léxico benjaminiano -, depositar o oximoro em algum lugar para que ele tenha a chance de se recuperar.

Estruturas de sentimento não carecem de instrumentalização - no sentido limitador do termo. Como hipótese cultural e recurso teórico-metodológico, quer antes ser um guia a amparar e a orientar nossas análises do que convertida forçosa ou antecipadamente em atributo denominativo ou normativo. Apesar das objeções de que foi alvo e de reconhecer a dificuldade de sua proposta, creio ter sido mais por prudência que, depois de Marxismo e literatura (1979), Williams preferiu deixar de lado, em suspenso, a sua mais célebre formulação21 21 Críticas e debates em torno do materialismo cultural e das estruturas de sentimento se estendem nas longas entrevistas concedidas por Williams à nova geração da New Left Review. Ver A política e as letras (WILLIAMS, [1979] 2013). . Refinado e dialético, e por uma sociologia radicalmente histórica, “que insiste no caráter produtivo da cultura [...], com sua geração de significados, valores e práticas que legitimam, questionam ou recusam a ordem vigente” (GLASER, 2008, p. 156), todo o seu esforço em apreender e interpretar as imbricações entre arte, cultura e sociedade nada tinha a ver com a fixação de conceitos engessados.

Referências

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  • Este artigo retoma parte das reflexões apresentadas no 43º Encontro Anual da Anpocs, Caxambu (MG), 2019.
  • 2
    Música popular (ou música popular gravada/comercial, conforme vem sendo especificada por alguns pesquisadores) discerne a música industrializada/de entretenimento, produzida e reproduzida nas malhas da indústria cultural, da música de concerto (erudita) e daquela tida como folclórica, de tradição oral. Para mais detalhes sobre o termo, ver, por exemplo, Middleton, 1990.
  • 3
    Conferir: “Você é marxista, não é?” (WILLIAMS, [1975] 2015c).
  • 4
    Em carta a Joseph Bloch, Engels enfatizou: “Segundo a concepção materialista da história, o elemento determinante na história é em última instância a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso nem Marx nem eu jamais afirmamos. Se, portanto, alguém distorce isso em uma afirmação de que o elemento econômico é o único elemento determinante, ele o transforma em uma frase sem sentido, abstrata e absurda [...]” (ENGELS apud WILLIAMS, [1958] 2011, p. 292).
  • 5
    Ver também “A cultura é algo comum” (WILLIAMS, [1958] 2015b). Williams aproximou sua concepção de cultura daquilo que “Marx considerava como o resultado primordial do metabolismo do ser humano com a natureza, isto é, a criação, no decorrer da história, de modos de vida determinados” (DOSSIÊ..., 2017, p. 41).
  • 6
    Nos Grundrisse, Marx afirmara que, ao contrário do fabricante de pianos, o pianista não seria a priori um trabalhador produtivo. Influenciada, segundo Williams (1979, p. 96-97), por Adam Smith, tal afirmação teria corroborado com os reducionismos de um “materialismo industrial”.
  • 7
    Para Williams (1979, p. 1960 119), a tradição é sempre uma “versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural”.
  • 8
    Williams (1992, p. 68; ver também p. 57-85) identificou três tipos de formações culturais: “(i) as que se baseiam em participação formal de associados, com modalidades variáveis de autoridade ou decisão interna [...]; (ii) as que não se baseiam na participação formal de associados, mas se organizam em torno de alguma manifestação pública coletiva [...]; (iii) as que não se baseiam na participação formal de associados nem em qualquer manifestação pública coletiva continuada, mas nas quais existe associação consciente ou identificação grupal, manifestada de modo informal ou ocasional”.
  • 9
    Remontando à recepção de Williams na Argentina, nos anos 1960-1970, Beatriz Sarlo (1997a, p. 89) lembra que a noção de experiência foi “acusada de ideológica porque implicava sujeitos e classes sociais que tinham experiência e podiam modificar-se por meio delas”.
  • 10
    Teria sido a partir de Lucien Goldman e suas “estruturas homólogas” na literatura que Williams formulou a hipótese das estruturas de sentimento (cf. FILMER, 2009, p. 376). No 18 Brumário, porém, Marx fala de “toda uma superestrutura de sentimentos” que erigiria das condições reais da existência, passagem citada por Williams em Cultura e sociedade ([1958] 2011b, p. 292). Nada mais sugestivo do que daí também derivar o seu oximoro calcado no materialismo cultural, intimamente embasado que é no materialismo histórico. A título de curiosidade, a expressão “estruturas de sentimento” já havia sido empregada, porém noutro sentido e contexto, pelo crítico literário alemão Levin Schücking, informação que devo ao professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Alexandro Paixão, cuja interlocução no I Simpósio Teoria Crítica e Estudos Culturais: Arte e Sociedade (Unesp/Franca) foi igualmente instigante às minhas reflexões.
  • 11
    Alguns chegaram a supor que a noção de Williams seria redundante em relação ao conceito gramsciano de hegemonia (ver FILMER, 2009, p. 387-388).
  • 12
    Com a palavra “sentimento”, Williams buscava afastar sua proposta de noções formalizadas como “visão de mundo” e “ideologia”. “Experiência” foi outra palavra que lhe pareceu pertinente, obstaculizada, porém, por carregar um sentido ligado ao passado, não contemplando de todo o que seu constructo queria abarcar.
  • 13
    Essa qualidade empírica remeteria à fenomenologia de Alfred Schütz, isto é, à consciência intersubjetiva e aos processos interativos estruturais “por meio dos quais é formado e subsequentemente transformado em estruturas sociais e culturais nascentes e emergentes” (FILMER, 2009, p. 373). Apesar de atravessar praticamente toda a sua obra, talvez O campo e a cidade ([1973] 1990) seja aquela em que Williams melhor mobilizou, empiricamente, a sua hipótese cultural.
  • 14
    Em seu estudo sobre o Bloomsbury Group, no qual aciona tanto a noção de formação cultural quanto a de estruturas de sentimento, Williams apontava para a insuficiência de análises que ou se pautam somente nos termos nativos ou apostam unicamente em abordagens contextuais de grupos culturais: “Temos então de pensar em modos de análise que evitem a redução de um tipo de definição pelo outro” (WILLIAMS, [1980] 2011, p. 206).
  • 15
    Esclareço antecipadamente que optei por não citar trabalhos sobre música popular nos quais os usos da noção de estruturas de sentimento me parecem indevidos ou insuficientes, já que meu intuito é menos criar polêmicas do que contribuir com uma leitura de Williams. 1979
  • 16
    Ver, por exemplo, Tragédia moderna (WILLIAMS, 2011a).
  • 17
    Sobre o diferencial da crítica materialista (notadamente Williams, Adorno e os expoentes brasileiros Candido e Schwarz), ver: Cevasco, 2013.
  • 18
    Agradeço o diálogo com Adélia Miglievich no VI Colóquio de Pesquisa Educação e História Cultural - Por que ler Raymond Williams no Século XXI? (Faculdade de Educação/Unicamp, mar. 2019).
  • 19
    Apesar de apontar semelhanças entre o conceito de habitus e as estruturas de sentimento, Filmer, citando Andrew Milner, com quem concorda, caracteriza o habitus de Bourdieu como um “sistema de disposições duráveis antes de ser um padrão de experiência sentida”, o que limitaria a “sua capacidade analítica de exploração das possibilidades para a ação coletiva direcionada à mudança social progressiva” (FILMER, 2009, p. 380). Já Passiani (2009, p. 286) insiste que a relação entre estruturas de sentimento e formas emergentes ou pré-emergentes pode contribuir para que se perca de vista a dimensão da “reprodução social” também presente em Williams. Embora esquadrinhar esse debate ultrapasse meus objetivos, compreendo que Williams, ao aproximar sua hipótese das formas emergentes ou pré-emergentes, sempre levou em conta a possibilidade condicionada da transformação - ou, para fazer jus ao seu vocabulário, a longa revolução -, tendo em vista formas e pressões dominantes do processo hegemônico (cf. WILLIAMS, 1979, p. 117; 126).
  • 20
    Dentre vários autores, brasileiros ou não, limito-me a citar uma contribuição recente. O estudo do músico Sérgio Molina (2017) pode ser útil a sociólogos e historiadores da música popular, acima de tudo, e independente de Williams ser ou não uma referência, aos interessados em produções pós-década de 1960, quando o desenvolvimento técnico, dentre outros fatores, impulsiona novas formas de concepção e registro musical, originando o que chama de “música de montagem”. Aprofundando o que já havia sugerido, por exemplo, Carlos Sandroni (2001), Molina também põe em xeque tradições analíticas disseminadas a partir da música clássica europeia, já que boa parcela da música popular feita no Brasil deve ao complexo rítmico afro-diaspórico.
  • 21
    Críticas e debates em torno do materialismo cultural e das estruturas de sentimento se estendem nas longas entrevistas concedidas por Williams à nova geração da New Left Review. Ver A política e as letras (WILLIAMS, [1979] 2013).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2019
  • Aceito
    17 Out 2020
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