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Suspensão de garantias no pós-independência do Brasil: indefinições legais, vigilância parlamentar e vulnerabilidade de direitos

Suspension of rigths in post-independent Brazil: legal uncertainties, parliamentary surveillance and vulnerability of rights

RESUMO

O artigo visa a analisar os debates parlamentares e implicações políticas que cercaram a adoção e o recurso à suspensão das garantias constitucionais dos cidadãos do Império brasileiro nas primeiras décadas do pós-independência. A Carta de 1824 determinava, em seu artigo 179, parágrafo 35, a possibilidade de dispensa das formalidades que garantiam a liberdade individual, nos casos de rebelião e invasão de inimigos, quando a segurança do Estado exigisse a tomada de semelhante providência. Entre 1824 e 1842, as garantias dos cidadãos do Império foram dispensadas em diferentes localidades afetadas por agitações políticas e movimentos populares de contestação à ordem.

PALAVRAS-CHAVE
Constituição; direitos; contestação à ordem

ABSTRACT

The article aims to analyze the suspension of rights in Brazil’s representative constitutional monarchy, examining contemporary legislation regarding this issue, as well as its application under specific circumstances, especially when riots and rebellions rattled the country. The Brazilian Charter of 1824 determined the suspension of certain civil rights via its article 179, paragraph 35. The application of this legal clause was, however, limited to circumstances of rebellion, foreign invasions and imminent danger to the State. Between 1824 and 1842, the rights of Brazilian citizens were suspended in different localities affected by political unrest and popular movements.

KEYWORDS
Constitution; rights; civil unrest

Illm. e Exm, Sr. – Tendo recebido o ofício de 27 de Maio próximo passado, em que o antecessor de V. Ex. me comunica, para ser presente a S.M. o Imperador, que querendo a câmara dos deputados obter um exato conhecimento de todos os negócios da publica administração, a fim de deliberar com maior acerto sobre as providências legislativas de que necessita cada um dos seus ramos, resolveu que pedisse ao governo a conta de todos os atos que a constituição obriga a dar às câmaras, logo que se acham reunidas em sessão; vou desempenhar o dever, que pelo cargo de ministro e secretario de estado dos negócios da justiça, me incumbe o §35 do art. 179 da constituição, remetendo a V. Ex. para serem constantes à câmara dos deputados as listas inclusas, tanto das pessoas que sendo classificadas em cabeças das rebeliões das províncias de Pernambuco e Ceará, foram processadas, sentenciadas pelas respectivas comissões militares criadas pelos decretos de 26 de junho [sic] e 5 de outubro de 1824 nas sobreditas províncias, como das que foram remetidas às justiças ordinárias, por não serem compreendidas na primeira classificação, posto que acusadas de influentes nos atos destas rebeliões.

As listas mostram a sorte, que tiveram os réus presos, ou ausentes fugitivos, e é escusado produzir razões para justificar perante uma câmara composta de membros tão conspícuos, as medidas extraordinárias que o governo firmado na suprema lei da salvação da pátria, e autorizado pelo citado §35 do art. 179, empregou na dura necessidade de aniquilar uma rebelião, cujos autores, recusando com insolente tenacidade todos os meios, e até mesmo uma plena anistia, que lhes foi oferecida por decreto de 24 de abril de 1824, para voltarem à ordem, e à devida obediência ao governo legítimo, se puseram fora da lei, fazendo incompatível a guarda de seus direitos individuais com a conservação, e defesa dos cidadãos pacíficos das demais províncias do Império, que eles esforçadamente procuravam ilaquear, para os envolver com subversão total do estado da anarquia, e subsequentes calamidades, a que haviam arrojado as duas províncias de Pernambuco e Ceará, como a todos é bem notório.

Deus guarde a V. Ex. Paço, em 12 de junho de 1826. Visconde de Caravelas. Sr. José Ricardo da Costa Aguiar de Andrada. (Anais do Parlamento Brasileiro-Câmara dos Deputados, sessão de 15 de junho de 1826, p. 44 – grifos meus)

Lido na sessão da Câmara dos deputados de 15 de junho de 1826, o ofício transcrito acima, de autoria do então ministro da Justiça do Império, José Joaquim Carneiro de Campos – então visconde de Caravelas –, pode ser visto como resultado da pressão exercida sobre o governo por parte dos representantes do país, em sua busca por informações e esclarecimentos acerca do recurso à suspensão de garantias e formação de comissões militares nos anos que haviam imediatamente antecedido a abertura da Assembleia nacional.

Notoriamente interessados, desde as primeiras sessões ordinárias da Câmara baixa, em maio de 1826, em esclarecer os fundamentos legais das medidas repressivas empreendidas pelo governo no interregno que separou a outorga da Carta de 1824 da abertura dos trabalhos parlamentares no país, parte considerável dos representantes da primeira legislatura parecia concordar que, ante um quadro nacional de “liberdade vacilante”, cumpria averiguar qualquer ameaça apresentada às garantias individuais dos cidadãos. Visavam cuidar, assim, para que medidas como a formação de comissões militares, o recrutamento forçado ou o exílio e a prisão sem culpa formada de cidadãos, sabidamente realizadas e/ou autorizadas nos anos anteriores, não persistissem no Brasil, ou fossem mesmo totalmente impedidas a partir de então (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 33-48).

Inicialmente concentrados, e ainda claramente impactados, pelos acontecimentos transcorridos em Pernambuco e Ceará na conjuntura de forte repressão estatal imposta à Confederação do Equador em 1824, os deputados brasileiros viriam rapidamente a descobrir, no entanto, que para além do caso específico a que atentavam, ao menos outras três comissões militares haviam se formado no país entre a outorga da Constituição e a abertura dos trabalhos legislativos. Ou seja, para além daquelas autorizadas pelos decretos de 26 de julho e 5 de outubro de 1824 (COLEÇÃO DE LEIS DO IMPÉRIO DO BRASIL - CLIB, 1824, p. 47-48, p. 68), respectivamente nas províncias de Pernambuco e Ceará, com o fito de darem “pronto castigo” e extirparem “tão contagioso mal”, um decreto exarado em 16 de novembro de 1824 também havia previsto a formação de comissão militar para o julgamento “breve” e “sumário” dos réus envolvidos no Levante dos Periquitos, na Bahia (CLIB, 1824, p. 82), enquanto um decreto de 19 de maio de 1825 autorizara a formação de outras duas comissões militares nas províncias Cisplatina e do Rio Grande do Sul, onde se desenrolava, então, a chamada Guerra da Cisplatina (COLEÇÃO DE DECRETOS, CARTAS IMPERIAIS E ALVARÁS DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1825, 1885, p. 52-54).

Em todos estes contextos, a criação dos tribunais extraordinários em questão esteve associada à aplicação, pelo poder Executivo, do dispositivo regulado pelo §35 do artigo 179 da Carta de 1824. Citado por duas vezes, como vimos, no ofício de Caravelas, o §35 do art. 179 – último parágrafo do último artigo da Carta outorgada de 1824 – fixava os casos (supostamente extraordinários) em que ficava autorizada a dispensa das formalidades constitucionais que garantiam a liberdade individual dos cidadãos do país.

Nesse sentido, se os 34 parágrafos anteriores do mesmo artigo 179 listavam as garantias fornecidas pelo texto constitucional à inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, estabelecendo que nenhum poder poderia suspender a Constituição no que dizia respeito aos direitos individuais, o §35 abria exceção aos casos de rebelião interna e invasão de inimigos, havendo perigo iminente da pátria; ou seja, quando a segurança do Estado exigisse a tomada de semelhante providência.

A efetivação de tal medida, em acordo com o texto constitucional, cabia ao poder Legislativo, por meio de um ato especial. Não se achando reunida a Assembleia, contudo, e correndo o país perigo iminente, o governo ficava autorizado a exercer a providência como medida provisória e indispensável, a ser interrompida assim que finda sua necessidade. Reunida a Assembleia, dizia ainda o parágrafo, cabia ao Executivo remeter aos representantes uma relação motivada das prisões e outras medidas de prevenção tomadas no interregno, sendo as autoridades que as tivessem mandado proceder plenamente responsáveis por tais deliberações e pelos abusos eventualmente praticados em seu decurso2 2 Consoante o §35 do art. 179: “Nos casos de rebelião, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado, que se dispensem por tempo determinado algumas das formalidades, que garantem a liberdade individual, poder-se-á fazer por ato especial do Poder Legislativo. Não se achando porém a esse tempo reunida a Assembleia, e correndo a pátria perigo iminente, poderá o Governo exercer esta mesma providência, como medida provisória, e indispensável, suspendendo-a imediatamente que cesse a necessidade urgente, que a motivou; devendo num, e outro caso remeter à Assembleia, logo que reunida for, uma relação motivada das prisões, e d’outras medidas de prevenção tomadas; e quaisquer Autoridades, que tiverem mandado proceder a elas, serão responsáveis pelos abusos, que tiverem praticado a esse respeito.”. Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm. .

O que a fórmula constitucional permitia, portanto, era que, em casos excepcionais de perigo à nação, parte dos direitos dos cidadãos cuidadosamente garantidos pelos 34 outros parágrafos do mesmo artigo 179 fossem suspensos por um período específico de tempo. Dentre os direitos previstos pelo artigo 179, estavam: a igualdade formal dos cidadãos perante a lei (§13); as liberdades de ir e vir (§6), de religião (§6) e de imprensa (§4); o direito à inviolabilidade do lar (§7); o segredo das cartas (§27); a proibição de prisão sem culpa formada (§8); a obrigatoriedade de que as sentenças fossem exaradas por autoridades competentes e em virtude de leis anteriores (§11); o direito à fiança (§9); a proibição de julgamentos por comissões especiais (§17); a abolição das penas cruéis e infamantes (§§ 19 e 20); e os direitos de propriedade (§22) e petição (§30).

Ao descobrirem, assim, que entre julho de 1824 e maio de 1825 o Executivo nacional havia recorrido ao §35 para lidar com ao menos três diferentes sublevações políticas transcorridas no país, suspendendo, em cada uma das ocasiões, uma parcela ou mesmo a totalidade das formalidades que garantiam a liberdade individual dos cidadãos das respectivas províncias rebeldes e criando, para o julgamento dos envolvidos, comissões militares desobrigadas de seguirem as formalidades dos processos crime, os representantes parecem ter se sentido impelidos a compreender o significado e circunscrever os limites precisos de tal dispositivo e, para isso, cobraram veementemente do ministério as prestações de contas devidas nos casos de recurso à medida.

A vigilância parlamentar dos “guardiões das liberdades individuais”

Se, como vimos acima, o ofício exarado por Caravelas em junho de 1826 era um sinal de que o governo não pudera resistir por completo à pressão dos deputados por notícias e esclarecimentos no que tangia à defesa das garantias dos cidadãos do país nos anos anteriores, vale atentar ao absoluto pragmatismo do documento, cujo texto não dava abertura a questionamentos ou ponderações acerca das atitudes empreendidas na repressão à Confederação do Equador.

Dizendo responder, assim, aos pedidos de esclarecimento dos deputados nacionais e frisando mesmo a obrigatoriedade constitucional de semelhante prestação de contas, Caravelas se eximia abertamente de produzir qualquer avaliação acerca das medidas repressivas adotadas pelo governo. Nas palavras do ministro, como vimos, não haveria motivos para que ele precisasse justificar, “perante uma câmara, composta de membros tão conspícuos”, as medidas extraordinárias que o governo, “firmado na suprema lei da salvação da pátria, e autorizado pelo citado §35 do art. 179, empregou na dura necessidade de aniquilar” a rebelião em questão, cujos autores, ademais, haviam tornado incompatíveis a guarda de seus próprios direitos individuais com a conservação e defesa dos direitos dos demais cidadãos do país (APB-CD, sessão de 15 de junho de 1826, p. 44).

Acontece que, para os deputados da primeira legislatura, mais do que conhecer a lista dos processados e sentenciados pelas comissões militares instaladas em Pernambuco e Ceará, interessava justamente investigar a legalidade da formação de semelhantes comissões, bem como a constitucionalidade do recurso à suspensão de garantias naquela e em outras conjunturas anteriores à abertura da Assembleia nacional e, para isso, desejavam ouvir mais dos ocupantes das cadeiras ministeriais.

Em acordo com Lino Coutinho (deputado eleito pela província da Bahia), por exemplo, ainda que o recurso à suspensão de garantias estivesse constitucionalmente previsto no país, havia limites legais à sua aplicação, balizados, dentre outros aspectos, pela circunscrição precisa das “formalidades” passíveis de suspensão (restritas, em sua opinião, àquelas relacionadas à prisão dos suspeitos) e pela mandatória prestação de contas, pelo governo, à Assembleia (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 35-36; APB-CD, sessão de 22 de maio de 1826; p. 117).

Já para Bernardo Pereira de Vasconcelos (eleito por Minas Gerais), o desatino com que o governo vinha recorrendo ao §35 do art. 179 era motivo mais que suficiente para que o ministério seguisse sendo cobrado a dar explicações. Enquanto estas não chegavam, o deputado dizia buscar compreender quais dentre as garantias previstas pelo artigo 179 seriam, ou não, passíveis de suspensão e, especialmente, se entre elas estavam as que asseguravam aos cidadãos um julgamento em acordo com a ordem vigente do processo e no interior dos juízos previamente estabelecidos no país.

Se o governo pode suspender as formalidades, deve contudo fazer processar os culpados nos juízos estabelecidos. A constituição declara expressamente que ninguém será julgado por uma lei posterior ao delito, nem por um tribunal desconhecido nas leis, nem por meio de um processo, em que não é ouvido o réu. [...] Ainda mesmo a autoridade, que dá a constituição para se levantarem as formalidades, não é tão ampla, que fique a arbítrio dos ministros o fazê-lo, quando e como quiserem. (APB-CD, sessão de 22 de maio de 1826, p. 117).

No decorrer do ano legislativo de 1826, em sua ânsia por averiguar a atuação prévia do governo no que tangia, dentre outras coisas, à proteção das liberdades individuais dos cidadãos, os representantes brasileiros mergulharam fundo no universo de questões que circundava o recurso ao §35 do art. 179, na tentativa não apenas de compreender as peculiaridades desse dispositivo constitucional, mas também de impor limites claros à sua utilização e, consequentemente, ao poder Executivo do país.

Desempenharam oficialmente, então, a partir da abertura da Assembleia nacional, o papel de vigilantes do governo e guardiões das liberdades e garantias individuais que fora arquitetado e legitimado, em terras nacionais, ao longo (pelo menos) dos seis anos anteriores, particularmente a partir do impacto do vintismo português e das muitas expectativas criadas pela perspectiva de adoção de um regime constitucional no país. Seguindo a trilha do chamado “constitucionalismo moderno”, esperava-se que o novo regime se fundasse em uma ideia voluntarista de poder, em acordo com a qual cabia aos homens em sociedade instituir seu governo e fixar, por meio de uma Constituição escrita, as regras básicas de seu exercício, disciplinando as atividades dos governantes e suas relações com os governados e garantindo, por meio de tais normas, o respeito aos direitos criados ou declarados como seus (LORENTE, 2012LORENTE, Marta. Constitucionalismo antiguo y moderno. In: LORENTE, Marta; VALLEJO, Jesús (Coords.). Manual de Historia del Derecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 2012., p. 289-329; COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 16-24).

Lembremos, nesse sentido, que no contexto de ebulição e proposição de novas ideias políticas e modelos legais que marcou os anos de 1820 a 1822, a perspectiva de uma Constituição nacional foi cada vez mais valorizada no Brasil, juntamente a uma progressiva legitimação do Parlamento como lócus por excelência dos representantes da nação e espaço de imposição de limites às ações do governo pelos cidadãos (SLEMIAN, 2009SLEMIAN, Andréa. Sob o Império das Leis: Constituição e unidade nacional na formação do Brasil (1822-1834). São Paulo: Aderaldo & Rothschild / Fapesp, 2009., p. 17-44; NEVES, 2009NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das, “Constituição: usos antigos e novos de um conceito no Império do Brasil (1821-1860). In: CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. (Org.). Repensando o Brasil do Oitocentos. Cidadania, política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 183-205., p. 183-205).

Inseridos no contexto constitucionalista posterior às revoluções norte-americana e francesa, contudo, tanto Portugal quanto o Brasil tiveram seus textos constitucionais fortemente marcados pelas ideias de priorização da estabilidade política e ênfase no protagonismo da lei, em oposição à imagem constitucional protagonizada por um povo soberano dotado de poder constituinte (FIORAVANTI, 2001FIORAVANTI, Maurizio. Constitución. De la Antigüedad a Nuestros Días. Madrid: Editorial Trotta, 2001., p.120-133; COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 26-28). Nesse contexto, os modelos de declaração prévia de direitos como o Bill of Rights norte-americano e a Declaração universal dos direitos do homem e do cidadão francesa foram substituídos por uma concepção legicentrista no interior da qual os direitos do homem e do cidadão passaram a ser entendidos como concessões do Estado, tornando-se integralmente dependentes da norma. Sendo assim, mesmo contando com seções especificamente dedicadas à listagem de direitos e garantias, tanto o texto constitucional português quanto o brasileiro privaram tais direitos de qualquer condição de anterioridade (SERVÁN, 2012SERVÁN REYES, María del Carmen. “De la Constitución al Estado (1814-1914). In: LORENTE, Marta; VAL-LEJO, Jesús (Coords.). Manual de Historia del Derecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 2012., p. 363-405), considerando-os atributos dos sujeitos unicamente a partir de sua regulamentação legal3 3 Nas palavras de Carmen Serván (2012; p. 380-381).: “La Revolución francesa asumió un fundamento jusnaturalista de los derechos que permitió concebirlos como condiciones indeclinables del individuo […]. El pensamiento jurídico posterior se construyó a partir de la experiencia revolucionaria, pero no siempre identificándose con sus principios. En el ámbito de los derechos pueden destacarse algunos cambios esenciales. En primer lugar, el pensamiento liberal del siglo XIX no concibió a los derechos como naturales y, por consiguiente, no los consideró preexistentes al Estado sino identificados y determinados en sus leyes.”. .

Como já tratamos em outro local:

Foi a esta altura da história do constitucionalismo ocidental que passaram a aparecer, nas Cartas de diferentes países, artigos relativos a uma possível dispensa dos direitos dos cidadãos por elas garantidos. Até então, as Constituições não possuíam disposições relativas a esta matéria “porque la pretendida superioridad de los derechos impedía contemplar cualquier posibilidad de que fueran suspendidos”. Na nova conjuntura, cada vez mais pautada pela busca de estabilidade e por uma recusa aos “excessos” vivenciados no período anterior, o constitucionalismo passou a incluir as chamadas medidas extraordinárias de proteção à ordem pública estatal, regulando a possível dispensa dos direitos individuais dos cidadãos lado a lado a dispositivos que previam a lei marcial e o estado de sítio. (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 21).

Para além de algumas Cartas francesas do período (particularmente as de 1799 e 1814) e da Constituição espanhola de Cádiz, de 1812, também a Constituição portuguesa de 1822, o projeto constitucional elaborado pela Assembleia constituinte brasileira, em 1823, e a Carta outorgada por Pedro I, em 1824, previam dispositivos de proteção extraordinária da ordem pública fundados na possível dispensa de uma parcela das garantias constitucionais dos cidadãos.

A despeito de não configurar, portanto, uma exclusividade, ou mesmo uma novidade nacional, o dispositivo de suspensão de garantias previsto pelo §35 do art. 179 da Carta brasileira possuía especificidades que não apenas o distinguiam de mecanismos semelhantes previstos em outros textos constitucionais do período, como marcariam profundamente a história de sua utilização nos vinte primeiros anos que se seguiram à Independência do Brasil.

Dentre tais particularidades, figura com destaque a absoluta indefinição, fosse no texto do próprio §35, fosse em qualquer outro artigo da Carta de 1824, do que seriam as tais “formalidades” passíveis de suspensão nas situações de ameaça extraordinária à ordem interna. Unindo-se a tal peculiaridade, o §35 do art. 179 admitia ainda que, para além do Legislativo, também o poder Executivo pudesse recorrer à suspensão das garantias em casos particulares, dando ao dispositivo um desenho único quando comparado a qualquer das outras Constituições vigentes ou pré-existentes no mundo ocidental4 4 Vale ressaltar, nesse sentido, que, se em seu artigo 92, a Constituição francesa de 1799 previa, assim como o §35 do art. 179, que nos casos de revolta armada ou turbulências que ameaçassem a segurança interna do país, o “conjunto da Constituição” pudesse ser legalmente suspenso no país, e se o mesmo artigo previa ainda, que estando o corpo legislativo no intervalo de suas reuniões, o governo pudesse recorrer à medida, estabelecia, contudo, diferentemente do caso brasileiro, que o decreto de suspensão em questão previsse explicitamente, em um de seus artigos, a reunião em breve tempo do Legislativo nacional. Já o art. 211 da Constituição portuguesa de 1822 permitia única e exclusivamente a suspensão das formalidades relativas à administração da justiça criminal para a prisão de “delinquentes” em circunstâncias extraordinárias de atentado à segurança nacional, enquanto o art. 27 do projeto brasileiro de Constituição, de 1823, restringia ao poder legislativo a faculdade de recurso à suspensão das formalidades que garantiam a liberdade individual, nos casos de rebelião declarada ou invasão de inimigos ao país, condicionando tal medida, no entanto, a um mínimo de dois terços de votos concordes da Assembleia nacional. .

Em acordo com o §35 do art. 179, como vimos, nos casos em que o Executivo recorresse à suspensão de garantias, ficavam seus representantes obrigados a prestar contas à Assembleia, remetendo uma relação motivada das “prisões e outras medidas de prevenção” tomadas em consequência da aplicação do dispositivo. Por conta de tal especificação, foram muitos os que acabaram por defender que a suspensão das “formalidades” garantidoras da liberdade individual prevista pelo §35 restringia-se às previsões concernentes à prisão dos cidadãos. No entanto, uma vez que o texto constitucional não era explícito quanto a esse ponto, a extensão das garantias passíveis de suspensão permaneceu em disputa por todo o período em que se recorreu à aplicação do §35 no país, gerando, desde a aprovação da Carta de 1824, um impasse que seguiu candente por muitos anos.

De 1826 em diante, portanto, a cada nova circunstância de recurso ou proposição de recurso ao §35 do art. 179, uma onda de debates no interior do Parlamento e na imprensa política era desencadeada, fazendo reverberar a extensão e generalidade das dúvidas a pairar sobre a possível suspensão de garantias dos cidadãos nacionais. É curioso observar ainda que, afinal, nenhuma das discussões travadas, fosse entre deputados, senadores, ministros ou na imprensa, fosse no Primeiro Reinado, na Regência ou nos primeiros anos do Segundo Reinado, foi efetivamente capaz de enquadrar esse dispositivo, que seguiu sem contornos definidos até seu abandono pelo governo, em 1842.

Mais do que devidas a uma questão textual/formal, no entanto, as disputas travadas sobre o §35 do art. 179 nos vinte primeiros anos do pós-Independência residiam, em grande medida, sobre a própria natureza desse dispositivo e sobre a extrema dificuldade de se justificar, no momento mesmo de aparelhamento do Estado nacional brasileiro e, portanto, de criação do constitucionalismo nacional e conformação dos direitos individuais dos cidadãos, “a necessidade de velar algumas vezes a estátua da liberdade, como em sacrifício à ordem pública”. Foi com estas exatas palavras que, em 1839, Francisco Ramiro de Assis Coelho, então ministro da Justiça do país, tentou justificar o que via como mais uma necessidade de recurso ao §35 do art. 179 no país.

Entre 1826 e 1842, a suspensão das garantias constitucionais seguiu sendo empregada e frequentemente debatida no Brasil, aparecendo em ocasiões como a Revolta de Afogados (1829), o Levante dos Malês (1835), a Cabanagem (1835-1837), a Sabinada (1838), a Farroupilha (1836-1841) e a Revolta Liberal (1842), e sendo ainda sugerida e intentada, ainda que não efetivada, em diversas outras situações, fosse por membros do poder Executivo, fosse pelo Legislativo nacional. Por todo esse período, e a despeito das inúmeras e prolongadas discussões a que a implementação ou proposição dessa medida deu azo nos plenários da Câmara e do Senado, o significado do instituto de suspensão de garantias, como veremos, nunca se estabilizou, mantendo-se no centro de acaloradas disputas políticas e interpretativas e objeto de reiteradas dúvidas que não se distanciaram muito daquelas enunciadas ainda em 1826.

Se o significado do instituto, no entanto, manteve-se indefinido por todo esse período, fato que repercutiu diretamente sobre o uso dele feito ao longo desses anos, é inegável que a insistência do governo em recorrer à suspensão de garantias e, mais do que isso, a busca incessante por rodeá-la, especialmente no últimos anos da década de 1830, de medidas repressivas mais eficazes – extraídas das leis militares e direcionadas, na maioria das vezes, à legitimação de previsões excepcionais também no que tangia ao julgamento dos envolvidos em revoltas e sublevações –, tinha por objetivo obter algum tipo de controle sobre a população do país, particularmente os livres pobres mais comumente envolvidos em agitações políticas e diante de cuja rebeldia o governo se via cada vez mais desprovido de alternativas no interior do Estado de direito.

O indefinível §35 do art. 179 e seu recurso nas duas primeiras décadas do pós-Independência

Nos primeiros dias de junho de 1828, entrou em discussão no Senado nacional o projeto de lei de abolição dos foros pessoais. Discutido na Câmara baixa desde o ano anterior, o artigo 2º do projeto previa a extinção dos juízos por comissões especiais no país (expressamente compreendidas aí as comissões militares), tanto nas causas cíveis como nas criminais, estabelecendo ainda que não fossem tais juízos novamente criados, ainda nos casos em que se tivesse recorrido à suspensão das garantias individuais.

Tratando desse artigo em particular, os senadores se dividiram entre aqueles favoráveis ao seu texto, para quem o §35 do art. 179 limitava as garantias passíveis de suspensão àquelas concernentes à segurança dos réus (particularmente à sua prisão), não permitindo nunca que tal dispensa se estendesse às garantias relacionadas ao seu julgamento; e aqueles para quem as “formalidades” a que se referia o parágrafo eram aquelas que o Executivo e/ou o Legislativo julgassem conveniente suspender, cabendo tal decisão, portanto, única e exclusivamente aos membros daqueles poderes.

Na opinião desse segundo grupo de representantes, soava absurdo que se tentasse limitar, por meio do artigo em discussão, a faculdade até então “ilimitada” que se havia tido para eleger as garantias a serem dispensadas para a salvação do Estado5 5 Nas palavras do Marquês de Paranaguá: “A salvação da Pátria é o mais atendível de todos os objetos: tudo se lhe deve sacrificar, sendo necessário, quanto mais essas garantias, estando tão sabiamente providenciado na Constituição contra os abusos que nisso pode haver.” (ASIB, sessão de 10 de junho de 1828; p. 215). , cabendo sim assegurar ao país a possibilidade de julgamentos por comissões especiais nos casos considerados necessários (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 60-66).

Dentre o primeiro grupo de senadores – contrários, como vimos, à formação de comissões militares –, figurava ninguém menos que José Joaquim Carneiro de Campos, agora marquês de Caravelas e senador eleito pela província da Bahia, que, nesse novo contexto, colocava-se veementemente contrário à formação de comissões militares no país. Falando com a propriedade de quem participara ativamente da redação do texto que conformara a Carta de 1824, Caravelas defendia agora, diferentemente de 1826, a restrição das medidas autorizadas pelo §35 do art. 179 àquelas concernentes à prisão dos suspeitos (Anais do Senado do Império do Brasil, sessão de 9 de junho de 1828; p. 212-213).

Assim como Caravelas, uma série de políticos envolvidos em debates concernentes ao §35 do art. 179 mudou de opinião ou de entendimento sobre o assunto no intervalo que foi de 1826 a 1842. Na direção oposta de Caravelas, por exemplo, Bernardo Pereira de Vasconcelos, obstinado opositor da latitude de garantias dispensadas nas conjunturas de recurso ao §35 do art. 179 no Primeiro Reinado, tornar-se-ia um ferrenho defensor da ideia de que, nos casos de ameaça à pátria, a salvação do Estado se sobrepunha à própria Constituição. Em acordo com essa nova visão, portanto, defendia que nos casos de atentado à ordem interna ficasse o Estado autorizado a atuar da maneira que considerasse necessária, suspendendo, para tanto, as garantias e direitos que lhe parecessem imprescindíveis à mais rápida e eficiente reposição da ordem.

Reivindicando, em agosto de 1839, um voto público de agradecimento ao general Francisco José Soares de Andréa pela “vitoriosa” repressão imposta aos rebeldes da Cabanagem, Vasconcelos se exprimiria da seguinte maneira:

[...] porquanto eu sou de opinião que, ainda que seja dever do homem obedecer á lei, casos ha em que elle deve considerar que a primeira lei é a salvação do Estado. (Apoiados). A mesma severidade a este respeito chega ao ponto de me persuadir que o homem que foge diante desta responsabilidade é criminoso; eu nunca louvarei a quem disser: – A Constituição está salva, mas a patria está perdida. (Muitos apoiados). (ASIB, sessão de 7 de agosto de 1839; p. 113-114)

Os posicionamentos cambiantes de Vasconcelos e Caravelas e, mais do que isso, a adaptabilidade do recurso de suspensão das garantias constitucionais – de suas prerrogativas e limites legais, do modo de se encarar sua legitimidade e as consequências políticas e jurídicas de seu uso – a depender da conjuntura em questão, dos grupos propositores da medida e, particularmente, dos destinatários das medidas de exceção, foram, como dissemos, uma constante ao longo de todo o período de utilização do §35 do art. 179. Longe de configurarem casos isolados, portanto, os pontos de vista mutáveis descritos acima representaram, antes, a regra no que tangeu aos debates sobre o §35 no Império.

O fato de tais debates terem se concentrado, como dissemos, nos primeiros vinte anos do pós-Independência do Brasil, tomando corpo especialmente entre 1826 e 1842, seguramente contribuiu para tal inconstância, uma vez que tratou-se de período chave da configuração e institucionalização do Estado nacional brasileiro, em cujo decurso uma série de conceitos, leituras e projetos foram disputados diariamente no seio do governo e da Assembleia nacional. Nestas conjunturas, como buscamos demonstrar em outro trabalho (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020.), a temática da suspensão de garantias veio à tona em diferentes ocasiões, imiscuindo-se em debates tão centrais quanto o da preservação e extensão (ou não) dos direitos dos cidadãos, o da criação de mecanismos de controle dos atos da administração, o da responsabilidade ministerial, o do equilíbrio de poderes, o das disputas entre diferentes modelos judiciais e governativos para o país, e ainda, a um debate fundamental do pós-Independência, relativo à necessidade de criação de mecanismos efetivos de controle social e manutenção da ordem e integridade territorial no bojo de um quadro de frequentes convulsões políticas.

Nesse período, ademais, o dispositivo regulado pelo §35 do art. 179 passou por algumas importantes modificações, como por ocasião da Lei da Regência, aprovada aos 14 de junho de 1831, cujo §6º do art. 19 retirou do poder Executivo a prerrogativa de recurso à medida. Também o Ato Adicional de 6 de agosto de 1834 legislou sobre o assunto, estabelecendo, em seu art. 11, §8º, que as Assembleias Legislativas Provinciais do país passassem a exercer cumulativamente com o governo, nos casos e pela forma marcados no §35 do art. 179 da Constituição, as prerrogativas concedidas por este mesmo parágrafo ao governo nacional.

Enquanto a primeira dessas duas medidas compôs uma lei voltada eminentemente a limitar as atribuições do Executivo e do Moderador no país, conferindo ao Legislativo grande poder de decisão e buscando corrigir, em certa medida, os desequilíbrios que os representantes haviam identificado como a raiz das “práticas despóticas” do Primeiro Reinado e às quais haviam associado o recurso constante ao §35 pelo imperador Pedro I; o §8º do art. 11 do Ato Adicional “provincializou” o recurso à suspensão das garantias no país, tornando possível sua aplicação em conjunturas em que o Legislativo nacional não se encontrasse reunido, mas as assembleias provinciais sim. Mais do que restringir as possibilidades legais de aplicação do §35 no país, portanto, os representantes da segunda legislatura parecem ter se interessado em tomar para si o poder de decisão sobre a questão, confirmando uma leitura do dispositivo como possível aliado na luta pela manutenção dos arranjos de governo recém-implementados no Império.

Para além desses casos de alteração oficial nas prerrogativas de recurso ao §35, a medida também acabou se modificando e tendo seus significados alterados em função dos diferentes grupos que a ela recorreram, ou intentaram recorrer, entre 1835 e 1842. Nessas ocasiões, o dispositivo foi aplicado, ou sugerido, como parte da estratégia repressiva contra as sublevações políticas que grassavam o país, mostrando-se absolutamente ineficaz, no entanto, em auxiliar, ou melhor encaminhar, a resolução dos conflitos e acabando por gerar mais problemas que soluções para o governo. Tal cenário, por sua vez, parece ter contribuído diretamente para que a mobilização do §35 fosse cada vez mais acompanhada pelo uso de medidas repressivas auxiliares (recorrendo-se por várias vezes, por exemplo, a mecanismos extraídos das leis militares na repressão a levantes eminentemente civis) e para que o dispositivo passasse a ser pensado como parte de um pacote mais amplo de medidas, voltadas não apenas à repressão dos movimentos políticos em si, mas talvez especialmente a uma mais pronta reposição da ordem nas conjunturas pós-conflitos (ligando-se, nesses casos, a propostas de alterações legais no julgamento dos réus de revoltas, rebeliões e sedições, por exemplo); até ter seu próprio abandono colocado em pauta tanto pelo governo quanto pelos representantes.

Se as particularidades do país e da história nacional nesses primeiros anos que se seguiram à Independência parecem ter contribuído, assim, para tornar mais difícil a definição de um contorno preciso para o dispositivo constitucional de suspensão de garantias, é inegável que a medida, a despeito de suas indefinições, teve um uso consistente no que tangia a seus alvos preferenciais, quais fossem, populações pobres e marginalizadas que de alguma forma se sublevassem contra o estado posto das coisas e cujos já frágeis direitos pareciam ser vistos como ainda mais facilmente descartáveis do que aqueles do restante da população.

Não à toa, alguns dos casos mais desconcertantes de recurso à suspensão das garantias ou mesmo de um desrespeito total e absoluto aos direitos dos habitantes do país, se deram em movimentos como o da chamada “República de Afogados”, o do Levante dos Malês, o da Cabanagem e o da Sabinada, protagonizados, todos, por indivíduos pertencentes àquela classe de homens sobre cuja efetividade dos direitos e garantias ainda restavam muitas dúvidas nas primeiras décadas do pós-Independência.

Transcorrido no início de 1829 na província de Pernambuco, o movimento da “República dos Afogados” carece até hoje de estudos mais aprofundados. Ainda que, a princípio, tenha se tratado de movimento de pequeno volume e baixo impacto nas localidades que acometeu, ficaria marcado pela desproporcionalidade da repressão imposta pelo governo central, bem como pelos desdobramentos gerados pela atuação do governo no interior do Parlamento nacional.

Como já tratado em detalhes em outro trabalho (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 68-136), o governo reagiu prontamente às notícias de Afogados recorrendo (por meio de três decretos exarados aos 27 de fevereiro de 1829) à suspensão das garantias constitucionais na província de Pernambuco e autorizando, ali, a formação de uma comissão militar com carta branca para a execução imediata de sentenças capitais aos envolvidos na sublevação. Ainda que se saiba muito pouco acerca das reais consequências dessas medidas na província de Pernambuco, fato é que sua repercussão no Parlamento seguramente superou qualquer expectativa do governo central, levando os deputados a apostarem em uma tentativa de acusação formal contra os ministros responsáveis pelos decretos. As discussões geradas em torno da questão, bastante focadas no §35 do art. 179, em seus limites e prerrogativas, acabaram por ocupar grande número das sessões parlamentares de junho e julho de 1829.

Ainda que não caiba aqui entrar em detalhes sobre o movimento de Afogados, ou sobre suas repercussões na imprensa, no governo ou na Assembleia, é interessante destacar a absoluta desqualificação com que seu protagonistas foram tratados mesmo entre os opositores mais ferrenhos dos decretos de suspensão de garantias, que dirá entre os integrantes do governo. Fosse na imprensa política da época (local ou fluminense), fosse nos discursos parlamentares ou nos ofícios e correspondências trocados entre autoridades envolvidas de alguma forma na pacificação da província, os rebeldes de Afogados raramente foram referidos por outros adjetivos que não os de “miseráveis”, “insignificantes”, “homens perdidos”, “abjetos”, “canalhas” incapazes sequer de “compreenderem o real significado de conceitos como liberdade e democracia” (Diário de Pernambuco, nº 29 – 06/02/1829), “bandidos”, enfim, “faltos de armas e recursos” (A Aurora Fluminense, Jornal Politico e Literario, nº 161 – 04/03/1829; p. 661-663).

Ainda mais paradigmático é o caso do Levante dos Malês, protagonizado por africanos nagôs libertos e escravizados de Salvador e cujo impacto na província baiana e em outras regiões do país, como o Rio de Janeiro, acabou por justificar um amplo leque de medidas preventivas e repressivas contra a população negra e especialmente contra os africanos, mesmo que libertos (GOMES, 2006GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2006., p. 213-215). Indivíduos já absolutamente desprovidos de quaisquer direitos, tais populações viram, no decorrer de 1835 e pelos anos subsequentes, suas poucas liberdades ainda mais cerceadas com a intensificação de uma onda de violência e controle sobre os escravizados do país.

Nesse sentido, para além da lei específica de suspensão de garantias aprovada pela Assembleia provincial baiana em 28 de março de 1835 – dispensando o direito de inviolabilidade do lar e consequentemente legitimando as revistas e invasões de propriedade que as forças da ordem vinham empreendendo em Salvador desde janeiro daquele ano, na busca por quaisquer indícios que autorizassem a prisão de indivíduos supostamente envolvidos no levante –, uma série de outras medidas repressivas, ou de controle, foram aprovadas pelas autoridades da província no pós-Levante dos Malês, visando à amplificação do controle das forças policiais sobre a população de Salvador e áreas adjacentes. Dentre elas, sentenciamentos sumários à prisão ou às galés, medidas cerceadoras da liberdade de deslocamento de africanos da Bahia para quaisquer outras regiões do Império, toques de recolher, ou ainda, a deportação arbitrária de mais de uma centenas de libertos presos como suspeitos de participação no Levante, contra quem as autoridades brasileiras não haviam conseguido colher quaisquer provas incriminadoras, ou que, ainda pior, haviam sido inocentados pelo júri nos julgamentos realizados (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 254-262).

Também de 1835, mais especificamente de 22 de setembro deste ano, foi a lei de suspensão de garantias aprovada para a província do Pará com vistas à repressão à Cabanagem, a primeira dentre as leis de suspensão propostas e aprovadas pelos representantes brasileiro no interior do Parlamento nacional. A despeito de suas inúmeras particularidades, o histórico de arbítrio e desrespeito das forças da ordem aos direitos e garantias dos indivíduos envolvidos na Cabanagem repousa, uma vez mais, em sua absoluta “desqualificação” social e no fato de o movimento ter sido composto e protagonizado eminentemente por grupos armados de lavradores pobres, indígenas e até escravos que investiam com violência contra aqueles identificados como seus algozes (portugueses, comandantes militares, senhores de escravo, entre outros).

Nas palavras do então ministro da Justiça do país, Manuel Alves Branco, a violência e ousadia dos paraenses só podia ser fruto da “ferocidade brutal”, do “fanatismo” e de “todos os horrores” de que era capaz o coração do “homem ignorante e sem educação”, ainda mais quando dominado pelo espírito de partido e da vingança e livre de todo o obstáculo e de toda a “repressão das Leis” (APB-CD, sessão de 23 de maio de 1835, p. 102).

A história da aprovação da lei de suspensão de garantias para o Pará, bem como de sua não aplicação na província no contexto de repressão à Cabanagem, a despeito de sua renovação em outubro de 1837, já foi contada em outro espaço e pode ser ali recuperada (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 281-313). Vale contudo reforçar aqui que, especialmente a partir de 1837, não obstante a consciência dos representantes brasileiros dos inúmeros arbítrios e absurdos empreendidos contra os paraenses e seus direitos mais básicos na repressão à Cabanagem, e a despeito, ainda, de todo o esforço empreendido por uma parcela da deputação nacional, em 1835, para barrar o projeto de lei de suspensão de garantias inicialmente apresentado à Casa (e que propunha, dentre outras coisas, a instalação de tribunais extraordinários para o julgamento dos rebeldes cabanos, implicando em uma verdadeira suspensão do devido processo legal na província e atropelando as previsões dos Códigos Criminal e de Processo Penal do Império, bem como parte dos preceitos da própria Carta de 1824), em poucos momentos o assunto foi capaz de efetivamente incendiar e mobilizar os parlamentares do país (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 346-358).

Preocupados em vigiar a atuação do general Andréa na província e em salvaguardar um mínimo de legalidade na atuação das autoridades locais contra os rebeldes, e chamando mesmo a atenção, por vezes, às diferenças entre o tratamento “complacente” dispensado pelo governo aos rebeldes sulistas da Farroupilha e a “ferocidade” com que eram tratados os rebeldes cabanos, em nenhum momento os representantes levaram às últimas consequências o conhecimento que tinham dos abusos praticados contra os cidadãos paraenses. Atitude que apenas confirma nossa impressão de que, por vezes, nem mesmo os “sentinelas da liberdade” se dispunham a ir até o fim pelos direitos de determinados setores da população.

Por fim, vale trazer à tona, ainda que muito brevemente, o caso da lei de suspensão aprovada pela Assembleia provincial baiana aos 30 de abril de 1838, no contexto da repressão à Sabinada, movimento que, nas palavras de Hendrik Kraay (2011, p. 278)KRAAY, Hendrik.“‘Tão assustadora quanto inesperada’: a Sabinada baiana, 1837-1838”. DANTAS, Mônica Duarte (Org.). Revoltas, Motins, Revoluções. Homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011., apesar de ter se iniciado como uma revolta política nos quartéis de Salvador, “terminou num terrível massacre racial”. Na opinião deste autor, o protagonismo assumido, ao final dos quase quatro meses de duração da revolta, pelos escravos e “classes inferiores de Salvador” explica, em grande medida, a brutalidade da repressão imposta ao movimento.

Nesta conjuntura, a lei de 30 de abril veio compor mais um dos instrumentos repressivos infligidos pelo governo à população mais pobre de Salvador, envolvida no conflito. Em acordo com a lei, ficava autorizada na província, pelo espaço de dois meses, a suspensão das garantias reguladas pelos §§ 6º, 7º e 8º do art. 179 da Constituição, dando azo à remoção dos suspeitos de envolvimento na revolta a outras províncias do Império, bem como autorizando as autoridades a devassarem as propriedades privadas de suspeitos, de dia ou de noite, e a prenderem, sem culpa formada, os comprometidos nos acontecimentos dos últimos meses, formando-lhes culpa quando possível fosse (Publicações do Arquivo do Estado da Bahia , vol. 4; p. 481).

Do “cumprimento” dessa lei, associada a uma série de outras medidas repressivas autorizadas no contexto da Sabinada, resultaram mais de mil rebeldes mortos, com registros de fuzilamentos sumários, tanto nos campos de batalha (por vezes, após deporem suas armas) como no interior das prisões, bem como aprisionamentos em massa, a partir dos quais contaram-se 2.989 indivíduos encarcerados nas 14 prisões da cidade ainda em 1838. Para além disso, cerca de 1.500 rebeldes foram forçados ao exílio pela via do recrutamento às tropas de primeira linha que, àquela altura, combatiam no Rio Grande do Sul, enquanto os libertos africanos envolvidos na revolta foram degredados com base na lei provincial nº. 9, que, aprovada aos de 13 de maio de 1835, havia servido de justificativa também para o degredo forçado de africanos que se seguira ao Levante dos Malês (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 369).

Para além dessas medidas, ficou famoso também, pelos piores motivos possíveis, o exílio de cerca de 200 suspeitos de envolvimento na Sabinada para a ilha de Fernando de Noronha, onde ainda se encontravam, nas piores condições possíveis e sem quaisquer notícias sobre seu destino, em maio de 1840 (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 478-479). Uma vez mais, contudo, a despeito da cobrança de explicações dos deputados ao governo, a revolta ante o atropelamento dos direitos dos indivíduos fuzilados em Salvador ou exilados em Fernando de Noronha não foi levada às últimas consequências pelos representantes que, após trocarem acusações contra o governo e contra seus principais opositores políticos, pareciam esquecer do assunto, optando por deixá-lo sob o tapete até que fosse novamente conveniente desenterrá-lo.

Considerações Finais

Cada vez menos atraente para o governo e os representantes, a medida de suspensão de garantias foi sendo paulatinamente abandonada no país a partir de 1839, numa altura em que tanto deputados quanto senadores e membros do governo pareciam apostar privilegiadamente em revisões legais que ou bem circundassem a medida das ferramentas necessárias à sua efetivação, ou que, ainda abrindo mão completamente do dispositivo regulado pelo §35 do art. 179, provessem o Império dos instrumentos que consideravam necessários à segurança pública nacional.

Como buscamos demonstrar anteriormente:

Se o histórico de aplicações da suspensão de garantias, particularmente ao longo da Regência, revelava à classe política nacional, cada vez mais, a parca eficácia da medida na repressão aos conflitos, suas vantagens pareciam ainda mais duvidosas no que tangia à reposição da ordem e da normalidade uma vez controladas as sublevações. E isto porque, segundo eles, na ausência de leis especificamente concernentes à ordem do processo e ao julgamento dos réus dos crimes de rebelião, sedição, conspiração e afins, a prisão sem culpa formada de um sem número de indivíduos ou, ainda, a deportação de vários outros para fora das províncias sublevadas, gerava, ao final dos movimentos rebeldes, uma massa de indivíduos sem destino. Enquanto a pura e simples reposição destes homens na sociedade, sem qualquer julgamento, não interessava a quase ninguém, seu julgamento em conformidade com o devido processo legal, nos moldes previstos pelo Código de Processo de 1832, parecia, para muitos, não apenas custoso, como pouco vantajoso, pois fadado a manipulações e absolvições que manteriam abertas as feridas sociais. Já a submissão desses indivíduos ao recrutamento, particularmente para as tropas de 1ª linha em atividade no Sul, prevista por algumas vezes no país, vinha gerando grande insatisfação em relação ao governo, tornando-se insustentável a longo prazo. (COSTA, 2020COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira: debates parlamentares, práticas políticas e contestação à ordem (1824-1842). Tese (Doutorado em História). FFLCH/USP, São Paulo, 2020., p. 364).

Ainda que não caiba discutir aqui os atos finais a coroar o efetivo abandono do §35 do art. 179 no Brasil (particularmente a reforma do Código de Processo Criminal empreendida por meio da lei de 3 de dezembro de 1841), cabe jogar luz sobre o modo como esse uso por vezes vacilante do dispositivo no país, essa indefinição, por anos a fio, ao seu redor, e mesmo essa espécie de permissividade com que os representantes trataram não apenas a medida de suspensão de garantias em si, mas também toda a sorte de abusos praticados nas conjunturas de sua aplicação e sob a desculpa da sua necessidade, estiveram diretamente relacionados à tentativa de, em certa medida, compreender o que o dispositivo em questão poderia, ou não, fornecer ao país em seus primeiros anos como nação independente.

No conturbado ambiente político que marcou as primeiras décadas do Brasil independente, e em sua busca pela garantia da estabilidade interna, da integridade e da unidade territorial, o Estado frequentemente lançou mão de medidas que, como o §35 do art. 179, acabaram por conformar espécies de testes por meio dos quais se buscava compreender os limites do equilíbrio de poderes, dos arranjos de governo, da responsabilidade ministerial e da própria classe política ante seus opositores, dentro e fora das arenas do Parlamento.

Diante de uma previsão constitucional como a do §35 que, como vimos, possuía uma série de indeterminações jurídicas e que tocava fundo em questões caríssimas à constituição mesma de um Estado recém-independente, os representantes e membros do governo do país disputaram avidamente seus significados mais profundos, numa trajetória interpretativa no interior da qual novas normas foram criadas e revogadas, em que o perfil dos atores esteve em constante redefinição e na qual o significado do instituto de “suspensão de garantias” nunca se estabilizou (COSTA, 2021COSTA, Vivian Chieregati. Suspensão de garantias na monarquia constitucional representativa brasileira (1824-1842). In: DANTAS, Monica Duarte; BARBOSA, Samuel Rodrigues (Orgs.). Constituição de Poderes, Constituição de Sujeitos. Caminhos da História do Direito no Brasil (1750-1930). São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros/USP, no prelo (2021) (Coleção Cadernos do IEB), p. 81-100., p. 99). A despeito disso, é curioso observar como, no rescaldo mesmo do constitucionalismo liberal de poucos anos antes, os direitos dos cidadãos, ou ao menos de uma parcela específica deles (os quase-não-cidadãos), estiveram tão disponíveis e vulneráveis ante a procura e o desejo por estabilidade do Estado nacional.

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    Consoante o §35 do art. 179: “Nos casos de rebelião, ou invasão de inimigos, pedindo a segurança do Estado, que se dispensem por tempo determinado algumas das formalidades, que garantem a liberdade individual, poder-se-á fazer por ato especial do Poder Legislativo. Não se achando porém a esse tempo reunida a Assembleia, e correndo a pátria perigo iminente, poderá o Governo exercer esta mesma providência, como medida provisória, e indispensável, suspendendo-a imediatamente que cesse a necessidade urgente, que a motivou; devendo num, e outro caso remeter à Assembleia, logo que reunida for, uma relação motivada das prisões, e d’outras medidas de prevenção tomadas; e quaisquer Autoridades, que tiverem mandado proceder a elas, serão responsáveis pelos abusos, que tiverem praticado a esse respeito.”. Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm.
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    Nas palavras de Carmen Serván (2012; p. 380-381)SERVÁN REYES, María del Carmen. “De la Constitución al Estado (1814-1914). In: LORENTE, Marta; VAL-LEJO, Jesús (Coords.). Manual de Historia del Derecho. Valencia: Tirant lo Blanch, 2012..: “La Revolución francesa asumió un fundamento jusnaturalista de los derechos que permitió concebirlos como condiciones indeclinables del individuo […]. El pensamiento jurídico posterior se construyó a partir de la experiencia revolucionaria, pero no siempre identificándose con sus principios. En el ámbito de los derechos pueden destacarse algunos cambios esenciales. En primer lugar, el pensamiento liberal del siglo XIX no concibió a los derechos como naturales y, por consiguiente, no los consideró preexistentes al Estado sino identificados y determinados en sus leyes.”.
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    Vale ressaltar, nesse sentido, que, se em seu artigo 92, a Constituição francesa de 1799 previa, assim como o §35 do art. 179, que nos casos de revolta armada ou turbulências que ameaçassem a segurança interna do país, o “conjunto da Constituição” pudesse ser legalmente suspenso no país, e se o mesmo artigo previa ainda, que estando o corpo legislativo no intervalo de suas reuniões, o governo pudesse recorrer à medida, estabelecia, contudo, diferentemente do caso brasileiro, que o decreto de suspensão em questão previsse explicitamente, em um de seus artigos, a reunião em breve tempo do Legislativo nacional. Já o art. 211 da Constituição portuguesa de 1822 permitia única e exclusivamente a suspensão das formalidades relativas à administração da justiça criminal para a prisão de “delinquentes” em circunstâncias extraordinárias de atentado à segurança nacional, enquanto o art. 27 do projeto brasileiro de Constituição, de 1823, restringia ao poder legislativo a faculdade de recurso à suspensão das formalidades que garantiam a liberdade individual, nos casos de rebelião declarada ou invasão de inimigos ao país, condicionando tal medida, no entanto, a um mínimo de dois terços de votos concordes da Assembleia nacional.
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    Nas palavras do Marquês de Paranaguá: “A salvação da Pátria é o mais atendível de todos os objetos: tudo se lhe deve sacrificar, sendo necessário, quanto mais essas garantias, estando tão sabiamente providenciado na Constituição contra os abusos que nisso pode haver.” (ASIB, sessão de 10 de junho de 1828; p. 215).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Nov 2021
  • Aceito
    01 Jun 2022
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