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A crítica engajada de Paulo Emílio: cinema, subdesenvolvimento e seus impasses

The engaged critic of Paulo Emílio: cinema, underdevelopment and its standoff

RESUMO

Este artigo propõe uma análise dos debates em torno da noção de subdesenvolvimento no campo cultural brasileiro, nos anos 1960 e 1970, a partir do ensaio de Paulo Emílio Sales Gomes, “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” (1973). O cotejamento com artigos de Glauber Rocha (1965), Antonio Candido (1973) e Ferreira Gullar (1969) indica diferenças fundamentais no tratamento do problema. Enquanto Paulo Emílio via o subdesenvolvimento como estrutura a ser superada pelo campo cinematográfico, os demais autores recorriam ao conceito para expressar as precariedades estéticas da produção cultural do país.

PALAVRAS-CHAVE
Paulo Emílio Sales Gomes; cinema brasileiro; subdesenvolvimento; intelectual engajado

ABSTRACT

This article intends to analyze the debates around the notion of underdevelopment in Brazilian culture during the 1960s and 1970s, as first expressed in Paulo Emílio Sales Gomes essay “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” (1973). The comparison with articles written by Glauber Rocha (1965), Antonio Candido (1973) and Ferreira Gullar (1969) indicates fundamental differences in approaching this matter. While Paulo Emílio understood the concept of underdevelopment as a structure to be overcome in the cinematographic field, the other authors used this concept as a mean to express the aesthetic precariousness of the country’s cultural production.

KEYWORDS
Paulo Emílio Sales Gomes; Brazilian cinema; underdevelopment; intellectual commitment

Os dados do contexto

O célebre ensaio de Paulo Emílio Salles Gomes, “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento”, publicado em 1973, tem sido corretamente apontado como um marco nas reflexões sobre os impasses do desenvolvimento do cinema brasileiro. O balanço sintético dos acertos e desacertos históricos da produção cinematográfica, o exercício comparativo com outras realidades nacionais díspares, mas reguladas pela condição colonial, o diagnóstico assertivo sobre a precariedade do cinema brasileiro para o salto qualitativo, enfim, o brilhantismo das frases de efeito capazes de capturar nossa singularidade formativa, entre outros aspectos, transformaram o artigo de Paulo Emílio em referência obrigatória para o entendimento do país e sua conformação cultural (XAVIER, 1986XAVIER, Ismail. O observador cinematográfico. In: CALIL, Carlos Augusto; MACHADO, Maria Teresa (Org.). Paulo Emílio: um intelectual na linha de frente. São Paulo: Brasiliense; Rio de Janeiro: Embrafilme, 1986, p. 217-222.; ZUIN, 2012ZUIN, João Carlos Soares. Paulo Emílio: a compreensão da realidade brasileira através da crítica de cinema. Revista Sociedade e Estado, v. 27, n. 2, maio/agosto 2012, p. 221-244.).

O debate sobre a dependência econômica dos países pobres e seus entraves estruturais tomava corpo entre intelectuais e políticos brasileiros desde fins dos anos 1950, quando as reflexões da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), sob o comando de Raúl Prebisch, ganharam evidência a partir de publicações e encontros internacionais, cujo marco fundamental foi o lançamento do livro de Celso Furtado Desenvolvimento e subdesenvolvimento, em 1961 – época em que ele havia assumido a direção da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Incorporado ao vocabulário corrente, o termo “subdesenvolvimento” passou a circular lépido entre liberais, democratas e comunistas, quase todos influenciados pela tintura verde-amarela do nacional-desenvolvimentismo, cujas plataformas reformistas propunham, em uníssono, modernizar o país. Daí surgir uma batida comum entre instituições tão distintas como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb) e os setores intelectualizados do Partido Comunista, o PCB (TOLEDO, 1997TOLEDO, Caio Navarro de. Iseb: fábrica de ideologias. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.; BIELSCHOWSKY , 2000BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.; VIEIRA, 2010VIEIRA, Wilson. A construção da nação no pensamento de Celso Furtado. Tese (Doutorado em Sociologia). Departamento de Sociologia, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 2010.).

Em consonância com a atmosfera do seu tempo, Paulo Emílio, no artigo “Uma situação colonial?”, publicado no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo, em novembro de 1960, incorporou a noção de subdesenvolvimento para caracterizar a mediocridade que dominava as atividades relacionadas ao cinema brasileiro. O artigo, apresentado, dias antes, na Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, propunha um “exame em bloco” dos diversos setores da vida cinematográfica, avaliando a atuação dos produtores, distribuidores e exibidores, o comportamento do público, a ingerência dos órgãos de apoio, como as cinematecas e clubes de cinema, e, enfim, o desempenho da crítica diante do filme nacional. A condição de homens coloniais, afirmava, “implica em crescente alienação e na depauperação do estímulo para empreendimentos criadores” (GOMES, 1960bGOMES, P. E. Sales. Uma situação colonial?. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 19 de novembro de 1960b, p. 5.). Sem clima para ousadias no setor produtivo, ignorado pelos distribuidores e exibidores, permanecia um cinema rasteiro, desprestigiado pela crítica e pelos próprios produtores, assim como pelo público, que, ao comparar os filmes nacionais com o similar estrangeiro, optava, sem remorso, pelo segundo. Esse estado de espírito contaminaria também a crítica, que, incapaz de encontrar o terreno comum entre público-leitor e cineastas – onde a análise dos filmes poderia fertilizar –, orbitava em torno dos centros cinematográficos mundiais, alienando-se, ao deslocar seus interesses para o cinema estrangeiro e se influenciar por um mundo cultural do qual não fazia parte. No conjunto e no detalhe, tudo que se relacionava ao cinema brasileiro, afirmava Paulo Emílio, trazia a “marca cruel do subdesenvolvimento” (GOMES, 1960bGOMES, P. E. Sales. Uma situação colonial?. O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 19 de novembro de 1960b, p. 5.)3 3 Artigo publicado, posteriormente, em: Gomes, 2016a, p. 47-54. .

Na conclusão do artigo, convocava os críticos a se envolverem com os “problemas econômicos e legislativos” da política cinematográfica, pois essa postura os conduziria a transcender a própria alienação e se comprometer com o desenvolvimento do cinema nacional. Paulo Emílio afirmava ainda que apenas as soluções globais criariam as “condições básicas indispensáveis à cinematografia brasileira para emancipar-se do estatuto colonial” (GOMES, 1960aGOMES, Paulo Emílio Sales. Uma situação colonial?. Comunicação apresentada na Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, São Paulo, 12 a 15 de novembro de 1960a. Nota de Ruy Gardnier. Contracampo – revista de cinema, n. 15. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/15/umasituacaocolonial.htm>. Acesso em: fev. 2020.
http://www.contracampo.com.br/15/umasitu...
). Vê-se, portanto, que não havia apenas engajamento, mas perspectiva de superação da chamada “situação colonial” – o que justificava a interrogação grafada no título do artigo.

O ensaio de 1973 retomava o problema numa atmosfera nebulosa de indefinições, na qual o diagnóstico sobre o subdesenvolvimento se aprofundava, definindo uma condição irrevogável e aparentemente intransponível para o cinema nacional. Esse entrelaçamento mais nítido entre os temas da cultura e os dilemas da economia parece-nos apontar, na crítica de Paulo Emílio, um andamento original quando comparado a outras apropriações do vocabulário econômico do subdesenvolvimento pelo debate cultural. Paulo Emílio parecia menos disposto a caracterizar as formas artísticas produzidas na periferia do que explicitar as contradições econômicas e os dilemas políticos do campo cinematográfico. Como veremos, ao cotejar alguns de seus textos do período com outras análises sobre a cultura que também recorriam ao suporte teórico de inspiração cepalina, ganha relevo, em Paulo Emílio, não apenas a avaliação precisa das condições materiais, como também a perspectiva de superação do subdesenvolvimento, condição imperativa para a plena formação do campo cinematográfico.

Diagnósticos: cultura e economia

O artigo “Cinema: trajetória no subdesenvolvimento” foi publicado em outubro de 1973, no primeiro número da revista Argumento, um periódico de cultura que sobreviveu por quatro edições antes da asfixia cultural imposta pela censura e pelo clima geral de controle do pensamento crítico. Argumento tinha o lastro de Fernando Gasparian, à frente da editora Paz e Terra, e de Barbosa Lima Sobrinho, como diretor responsável4 4 Argumento – revista mensal de cultura contava com cerca de 150 páginas por edição. Os dois primeiros números, segundo informações da própria revista, tiveram uma tiragem de 25.500 exemplares, os dois números finais, 45.500. O projeto gráfico era de Elifas Andreato, com a colaboração de Luís Trimano. . A comissão de redação também era composta de gente notória e com pendor esquerdizante, como Anatol Rosenfeld, Antonio Candido, Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort e o próprio Paulo Emílio. O artigo não saía, portanto, desprotegido, sujeito à oscilação dos ventos inóspitos das atuais revistas acadêmicas, mas vinha inspirado pelo desejo de intervenção e por uma comunidade intelectual marcada por afinidades5 5 Esse artigo foi publicado, posteriormente, em livro também pela editora Paz e Terra (GOMES, 1980). .

Num editorial enxuto, sem assinatura, o programa político da revista transparecia nítido, sob o véu da cautela necessária em tempos bicudos. Não pretendemos preencher o “vazio cultural”, afirmavam, com “o arrivismo e a dependência”, mas com “outra forma, a que se definirá no percurso de nosso grupo”. A revista se propunha a acolher os intelectuais que, “arrancados de seu mundo”, estavam dispostos a “se enraizar” novamente, abandonando a perplexidade, sem “cair no desespero”. O editorial finalizava peremptório: “Contra fato há argumento”, parodiando o sentido original do dito popular que, então, se invertia: se a conjuntura impunha os acontecimentos, a reflexão intelectual deveria confrontá-los pelo exercício da crítica. A mudança, além de sutil, é notória, pois conferia ao periódico nascente o espírito do engajamento que tanto nutria os debates quanto incentivava a ação política. Por sinal, não foi fato irrisório que o diretor de Argumento, Barbosa Lima Sobrinho, seria candidato à vice-presidência na chapa de Ulysses Guimarães, nas eleições indiretas de 1974, pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

O primeiro número de Argumento contou com a colaboração de doze artigos, revelando uma disposição à abrangência temática (literatura, cinema, teatro, economia, política etc.) e à diversidade de formas textuais – embora predominem os artigos ensaísticos, o número trazia ainda uma entrevista com Gianfrancesco Guarnieri, uma longa fotorreportagem sobre os moradores das encostas das marginais em São Paulo e os desenhos do artista Flávio de Carvalho, falecido em junho daquele ano, e uma seção de resenhas.

No conjunto, o tema do subdesenvolvimento sobressai pela recorrência com que surge direta ou indiretamente em quatro dos dez ensaios. O primeiro, escrito por Antonio Candido, intitulava-se “Literatura e subdesenvolvimento”, o terceiro, de Celso Furtado, “O mito do desenvolvimento e o futuro do Terceiro Mundo”, depois vinha o ensaio de Paulo Emílio e, finalmente, uma análise de Aníbal Pinto sobre as relações entre os Estados Unidos e a América Latina no pós-guerra. Enquanto os artigos de Furtado e Aníbal Pinto carregavam as tintas na análise dos mecanismos da dominação imperialista, os ensaios de Candido e Paulo Emílio definiam as implicações do subdesenvolvimento para a cultura, em geral, e as artes, em particular (CANDIDO, 1973CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento. Revista mensal de cultura, Rio de Janeiro, n. 1, out. 1973, p. 5-24.; GOMES, 1973GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Argumento. Revista mensal de cultura, Rio de Janeiro, n. 1, out 1973, p. 55-67.). Sem forçar a nota, o texto de Bernardet, “Uma crise de importância?”, também enfrentava questões semelhantes, expressas no tortuoso e sempre adiado encontro do Cinema Novo com seu público, cujos embaraços não se resolviam apenas com procedimentos de linguagem mais ajustados à comunicação, mas também pelo enfrentamento do mercado audiovisual ocupado pelo produto estrangeiro6 6 Além dos artigos citados, o primeiro número de Argumento trazia uma análise de Thomas Skidmore sobre a condição no negro no Brasil e nos Estados Unidos, um artigo de Fernando Henrique Cardoso a respeito do golpe no Chile e um pequeno ensaio de Antonio Callado sobre a destruição do meio ambiente no Brasil. .

A publicação de Argumento impulsionava um velho debate, matizado por inúmeros artigos de Celso Furtado e pelos relatórios da Cepal que insistiam, desde o final de década de 1950, em identificar o modelo de desenvolvimento capitalista nos países pobres como uma estrutura de base histórica destinada a reproduzir e fortalecer relações de dependência e subalternidade diante dos países centrais e dos interesses das grandes corporações multinacionais. Essas análises eminentemente econômicas se desdobraram também em interpretações sobre a cultura, implicando um olhar profundamente atento às condições materiais de produção das artes. Assim, além dos artigos da revista de Barbosa Lima Sobrinho, outros ensaios ecoavam preocupações de natureza semelhante. Dois desses textos nos parecem profundamente emblemáticos das posições assumidas pelos intelectuais engajados nos impasses do subdesenvolvimento. O primeiro deles, o artigo-manifesto de Glauber, “Estética da fome”, publicado em 1965 e, desde então, retomado em inúmeros balanços sobre o Cinema Novo e seus desdobramentos. O segundo, o ensaio “Vanguarda e subdesenvolvimento”, escrito por Ferreira Gullar e publicado em 1969, apesar de menos celebrado, constituía um exercício notável de erudição e um esforço genuíno de interpretação do campo cultural7 7 “Estética da fome” foi publicado originalmente na Revista Civilização Brasileira, n. 1, v. 3, jul. 1965, p. 165-170. Para este artigo, utilizamos a versão publicada em livro (ROCHA, 2004). O ensaio de Ferreira Gullar foi publicado, em 1969, na forma de livro com o título Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte, reunindo dois ensaios: “Vanguarda e subdesenvolvimento” e “Problemas estéticos na sociedade de massa”, escrito em 1965 (GULLAR, 1984). .

Esses ensaios, ao lado dos artigos de Argumento, comungavam a mesma indagação de base, cuja matriz era a condição de país subdesenvolvido que afetava a todos e impunha aos intelectuais o corpo a corpo com o mundo real. O espírito militante, espécie de oxigênio mental da época, contagiava personagens tão distintos como Antonio Candido e Glauber Rocha, conduzindo a reflexão ao engajamento de tonalidade sartriana que se exprimia não apenas na forma dos ensaios, mas na disposição para a aventura política.

Em “Estética da fome”, texto inúmeras vezes citado e interpretado, Glauber caracteriza a condição colonial do país, no contexto latino-americano, a partir da experiência da fome, nossa marca mais evidente, nossa “trágica originalidade” que, sendo sentida, não seria compreendida nem pelo espectador estrangeiro – a quem o manifesto se dirigia no primeiro momento – nem pelo brasileiro das classes médias, que via na fome e nas legiões de famintos um traço decisivo da “vergonha nacional” (ROCHA, 2004b_____. (1965). Eztetyka da fome. In: _____. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004b, p. 63-67., p. 66). Para superar a fome, “minando suas próprias estruturas” (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004a., p. 520), seria preciso instalar uma cultura da violência, simultaneamente oposta à mendicância e à busca de “piedade colonialista”, e alheia aos “planejamentos de gabinete” e aos “remendos do tecnicólor” (ROCHA, 2004b_____. (1965). Eztetyka da fome. In: _____. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004b, p. 63-67., p. 66). Disso resultaria a defesa de um cinema sem melodrama, comprometido com a verdade e capaz de expressá-la por uma estética da violência que deveria ser, antes de tudo, revolucionária.

O tom incendiário do manifesto e a imbricação entre política e cinema, ato e metáfora expressavam os interesses de Glauber pela perspectiva da guerrilha e dos enfrentamentos diretos que fervilhavam, sob diversos matizes, no Terceiro Mundo. A proposição de uma cultura da violência não era estetizante, mas, ao contrário, flertava com a ação armada, ao sugerir que, sem luta, o colonizado permaneceria um escravo, pois, sentenciava Glauber, “foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino”, referência direta a Franz Fanon e à guerra de libertação da Argélia (ROCHA, 2004b_____. (1965). Eztetyka da fome. In: _____. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004b, p. 63-67., p. 66).

No entanto, a espinha dorsal do manifesto, lido num encontro cinematográfico internacional na Itália, não era, evidentemente, um programa da guerrilha, mas uma reflexão estética que parecia explicitar os princípios norteadores dos cineastas do Cinema Novo. O programa parecia, digamos, destinado a consumo doméstico, traçando um divisor de águas no cinema brasileiro e delineando as fronteiras éticas e estéticas para os novos realizadores:

Onde houver um cineasta disposto a enfrentar o comercialismo, a exploração, a pornografia, o tecnicismo, aí haverá um germe do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou de qualquer procedência, pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo, aí haverá um germe do cinema novo.

(ROCHA, 2004b_____. (1965). Eztetyka da fome. In: _____. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004b, p. 63-67., p. 67).

“Estética da fome” prescrevia, portanto, uma política de autores cinematográficos – inclusive, contrária à industrialização –, que se definiria pela incorporação de um princípio formal capaz de expressar a estrutura do subdesenvolvimento.

Ferreira Gullar, em “Vanguarda e subdesenvolvimento”, compartilhava diagnóstico semelhante ao do manifesto de Glauber e mantinha o mesmo convite à ação: “A necessidade de transformação é uma exigência radical para quem vive numa sociedade dominada pela miséria e quando se sabe que essa miséria é produto de estruturas arcaicas”. Tanto em economia, quanto em arte, seria preciso instaurar o novo e arrancar do imperialismo os frutos do desenvolvimento humano, como a ciência, a técnica e as inovações. A verdadeira vanguarda artística, nos países subdesenvolvidos, não se definiria pelo padrão europeu, mas surgiria do confronto direto com a realidade nacional (GULLAR, 1984, p. 23).

O epicentro do ensaio era a atualização do conceito de vanguarda para os países subdesenvolvidos, visto que as relações internacionais constituídas sob a batuta do imperialismo impunham uma dinâmica de trocas entre local e global marcada pela desigualdade e pelo desequilíbrio entre as nações ricas e as demais. Daí a nossa incompatibilidade genética perante as vanguardas europeias, cujas obras de arte expressariam formalmente o movimento histórico de formação da burguesia e sua crise ideológica. Contrário à importação de modelos europeus, Gullar apostava que uma arte de vanguarda deveria, acima de tudo, expressar a realidade específica do país, ainda que recorrendo a meios e técnicas capturados no vasto mundo das formas artísticas, inclusive as formas arcaicas e tradicionais. A arte capaz de compreender nossa condição nacional traria uma “dialética de superação do universal e do singular”, na medida em que seria capaz de encontrar na experiência concreta, o específico inserido na corrente histórica universal. Portanto, a pesquisa pela linguagem artística, a inovação técnica e estética, a busca, enfim, por novas formas de expressão responderiam às necessidades reais da arte, investidas do compromisso de interpretar o mundo real.

O artigo de Antonio Candido “Literatura e subdesenvolvimento”, de envergadura ímpar, trazia um balanço da literatura latino-americana no seu histórico confronto com as realidades nacionais. Da consciência ingênua do atraso, surgida pari passu com a instituição dos Estados independentes no primeiro quartel do século XIX, a literatura passaria, lá pelos anos 1930, à etapa da “consciência trágica” do subdesenvolvimento, sedimentada em obras que não respiravam mais os ares da moda literária europeia, mas derivavam da experiência nacional pregressa8 8 Antonio Candido informa em A educação pela noite (1989) que esse ensaio havia sido publicado originalmente em francês, na revista Cahiers d’Histoire Mondiale, Unesco, n. 4, 1970, e em espanhol, na obra coletiva América Latina en su literatura, México, Unesco/Siglo Veintiuno, 1972, coordenada por César Fernández Moreno. Publicada, pela primeira vez em português, em Argumento, foi incluída no livro A educação pela noite e outros ensaios (1989). Para este artigo, utilizamos a versão publicada em Argumento (CANDIDO, 1973). .

O longo processo, no entanto, seria travejado pelo subdesenvolvimento estrutural, que atuaria não apenas nas condições históricas (analfabetismo, cultura de massas, desagregação das culturas locais populares, difusão livre de ideologias dominantes), mas também nas obras, determinando os limites da criação literária. Portanto, o ensaio retomava o imperativo da dependência e do atraso que marcava, de modo indelével, as literaturas do continente. Daí o passo engajado na busca de superação das contradições do subdesenvolvimento pela renovação da forma literária.

Candido encontra nos desdobramentos da chamada literatura regionalista, cujo ponto de virada estaria em Graciliano Ramos, uma expressão estilística nova e mais ajustada às condições materiais que ele denomina de “super-regionalista”: uma expressão que corresponderia à “consciência dilacerada do subdesenvolvimento”. Segundo ele, o que vemos agora “é uma florada novelística marcada pelo refinamento técnico, graças ao qual as regiões se transfiguram e seus contornos humanos se subvertem, levando os traços antes pitorescos a se descarnarem e adquirirem universalidade” (CANDIDO, 1973CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento. Revista mensal de cultura, Rio de Janeiro, n. 1, out. 1973, p. 5-24., p. 24).

Entre os representantes dessa nova literatura, Candido aponta Guimarães Rosa, Juan Rulfo e Vargas Llosa, cujas obras, no todo ou em parte, não estariam mais, como em Graciliano, marcadas pelo peso do social e pela condição de miséria que a literatura deveria incorporar como recurso de estilo. Neles, o regionalismo rompia com a peia naturalista, de tradição burguesa e viés empirista, e, transfigurado pela forma estética, atuava no estilo, configurando uma tradição do universal encarnada no específico. Do mesmo modo que em Clarice Lispector e Julio Cortázar, o universo urbano não era assimilado dos cânones da moderna literatura europeia, incorporação e metamorfose de recursos literários.

Crítico da cultura, Antonio Candido tomava ainda o problema das trocas literárias em tempos de imperialismo e, consequentemente, constrangidas pela dependência. Para ele, a superação do servilismo e da cópia passaria por uma integração transnacional, marcada por influências recíprocas entre autores e estilos. O andamento do ensaio fazia convergir, sem movimentos bruscos, o achado literário (o super-regionalismo) e o fato extraliterário das trocas culturais, abrindo uma vereda simultaneamente de recursos de estilo e atuação no campo político da literatura.

Vê-se, até aqui, que o emaranhado de posições dos ensaios de Glauber, Ferreira Gullar e Antonio Candido impede a síntese ligeira, mas permite ordenar alguns pontos de contato. O traço que conecta os três textos é uma espécie de campo semântico no qual orbitavam os conceitos de dependência, atraso e imperialismo, emprestados do vocabulário econômico, mas também circulam as noções de raquitismo, fome, debilidade, servilismo e cópia, mais propícias à adjetivação das experiências culturais. Todas essas categorias oriundas do pensamento social que, na esteira do desenvolvimento efetivo do país, trazia uma lufada de modernização fertilizada pela imbricação entre reflexão original e empenho dos intelectuais com a mudança social, na qual a presença de Celso Furtado expressava seu mais alto rendimento.

Os ensaios também se assemelham graças ao mesmo movimento analítico centrado nos embates e influências entre as realidades subdesenvolvidas – do país e de seu entorno latino-americano – e as realidades dos países ricos. Ora marcada pelo tom impositivo de Glauber diante da incapacidade do colonizador frente à fome do colonizado, ora redefinindo nas cores locais o conceito europeu de vanguarda, como propõe Ferreira Gullar, ora ressignificando as possibilidades de trocas literárias mais equânimes, como sugere Antonio Candido, de acordo com todos eles, a matriz civilizacional é ponto de partida para o entendimento de nossas especificidades.

Os artigos comungam ainda a vontade de superação e o desejo de engajamento que se refletem não apenas no tom dos ensaios – sempre propositivos, indicando caminhos, apontando adversários e clamando pela consciência coletiva – como também na circulação mais ampla possível, à procura de um impacto maior que fosse capaz de intervir no andamento da história. Ainda que invariavelmente restritos aos gatos pingados que exerciam o direito à ação cultural e tinham o privilégio de serem plenamente alfabetizados, os ensaios foram publicados em revistas que alimentavam efetivamente os debates entre as camadas médias intelectualizadas, como era o caso da Revista Civilização Brasileira e Argumento.

Esse esforço de superação, no entanto, atingia apenas superficialmente a esfera extra-artística, incidindo de maneira mais decisiva sobre as configurações estéticas. Em Glauber, pela noção de estética da fome, em Ferreira Gullar, pela apropriação do conceito de vanguarda, e, em Antonio Candido, pela valorização da literatura “super-regionalista”. Os três ensaios, portanto, convergiam para o desvendamento de formas artísticas capazes de expressar, com mais propriedade, as condições adversas do subdesenvolvimento. O que contribuía indubitavelmente para o agenciamento de repertórios técnicos e estilos (pictóricos, cinematográficos e literários) à disposição dos artistas envolvidos na luta pela emancipação política, sendo que os impasses do subdesenvolvimento se somavam aos constrangimentos provocados pela ditadura militar.

O passo adiante que traduziria o desejo de engajamento em estratégia de ação cultural e política pública seria dado apenas em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, cujas preocupações com a dimensão material do cinema implicavam um balanço mais sombrio numa atmosfera de esgotamento do Cinema Novo e de domínio estrangeiro sobre o mercado de exibição nacional.

Na partilha de um terreno comum de preocupações e engajamentos no campo cinematográfico, houve, no entanto, diferenças expressivas entre Glauber e Paulo Emílio. Ainda que em seus textos dos anos 1960 Glauber reconheça o papel formador de Paulo Emílio, ele também pontua divergências – por exemplo, quando, em 1962, relembra os anos decisivos, de 1957-1958, de constituição e afirmação do primeiro núcleo do Cinema Novo, o jovem cineasta relata que o grupo via como “alienado” o crítico, já maduro, que então combinava as funções de coordenador da Cinemateca Brasileira com as colaborações para o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, especialmente atento ao cinema moderno europeu (ROCHA, 2004aROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004a., p. 50). Isso num período já posterior ao forte engajamento do setor em discussões sobre a viabilidade da atividade cinematográfica no país, a partir da crise suscitada pela falência da Vera Cruz, em fins dos anos 1950. Paulo Emílio escreve sobre essas questões pela primeira vez em 1960, e só amadureceu sua posição no ensaio de 1973. Portanto, ele chega de vez a essa discussão estratégica numa situação bem diversa do fervor revolucionário, estético e político, dos anos de “Estética da fome”. E, coerentemente, faz sua reflexão pautada muito mais pela busca da continuidade, capaz de superar o diagnóstico dos sucessivos surtos e ciclos cinematográficos, do que pelo afã de ruptura, como em Glauber. Há, ainda outra diferença de peso: Trajetória foi escrito no momento no qual Paulo Emílio mergulhava em seu radicalismo nacionalista como crítico, e preparava seu livro sobre Humberto Mauro. Essa imersão nacional era, no entanto, distinta das prerrogativas de Glauber, preocupado em incorporar na sua obra os traços da vida popular, mediados por uma forma moderna – ainda que, em ambos, Humberto Mauro figurasse como matriz fundamental. O cinema nacional e popular que Paulo Emílio abraça como crítico, e que busca sistematizar em seu texto ensaístico e político, é o cinema de bilheteria. Os filmes da Boca do Lixo, por exemplo, eram objeto de profundo interesse em seus textos do período. Por outro lado, na revisão encetada em Trajetória, o Cinema Novo aparece como mais um ciclo, de grande qualidade estética, mas incapaz de encontrar seu público. Em outras palavras, para Paulo Emílio, o cinema brasileiro que vale é aquele que chega às multidões; para Glauber, o que importava afirmar era a visão autoral-revolucionária frente à história.

Paulo Emílio: os percursos do subdesenvolvimento

A proposição inicial do ensaio de 1973 desmonta os pendores mais entusiasmados com os rumos do cinema nativo. Paulo Emílio afirma, sem meios-tons, que o subdesenvolvimento não seria uma etapa, mas um estado da nossa cinematografia. Nessas condições, assevera que o “cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma conjuntura particularmente favorável suscita uma expansão na fabricação de filmes” (GOMES, 2016a_____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016a., p. 55).

Ao final do artigo, esse balanço controverso sobre o cinema colocaria o leitor em compasso de espera, visto que o crítico não indicava uma vereda da salvação. Paulo Emílio reconhece que uma parte do público de jovens universitários, órfãos do Cinema Novo, deslocou seus interesses para o filme estrangeiro, “uma compensação falaciosa, uma diversão que o impede de assumir a frustração, primeiro passo para ultrapassá-la”. Essa parcela se reconduziria ao seu ponto de origem, ao lado do “ocupante”, e se transformaria numa “aristocracia do nada, uma entidade em suma mais subdesenvolvida do que o cinema brasileiro que desertou”. Não se poderia nutrir, portanto, nenhuma expectativa da crítica e do setor intelectualizado do público (virtualmente, seus leitores diletos), ambos alienados pela mesma cinefilia estéril; também não seria plausível, concluía, esperar pela vitalidade da produção cinematográfica que sobreviveu ao torvelinho do golpe militar e ao Ato Institucional n. 5 (AI-5). Em tom melancólico e ligeiramente profético, confessava: “Não há nada a fazer a não ser constatar”. Tanto o público especializado quanto o cinema “dependem da reanimação sem milagre da vida brasileira e se reencontrarão no processo cultural que daí nascerá” (GOMES, 2016c_____. A agonia da ficção. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016c, p. 62-67., p. 66-67).

Quais argumentos, no entanto, conduzem Paulo Emílio a traçar esse quadro de estagnação e de miragem difusa numa “reanimação” do cinema brasileiro? Em que medida o ensaio não desenhava um pano de fundo mais estimulante que suas conclusões poderiam sugerir, num ambiente de repressão política e estertor da produção cinemanovista?

Grosso modo, o ensaio lançava mão de duas ordens distintas de análise: a primeira apresentava uma interpretação da condição histórica do país; a segunda fazia o balanço das experiências cinematográficas que interessavam à formação do cinema brasileiro.

Segundo Paulo Emílio, a colonização portuguesa do território americano forjou uma sociedade enraizada na cultura europeia, ainda que distinta dela. No entanto, distinta também de outros países subdesenvolvidos, como a Índia e as nações árabes, onde as culturas originais não foram destruídas ou suplantadas, mas subsumidas à ordem colonial. Portanto, aqui, ocupantes (colonizadores) e ocupados (colonizados) se misturam no “emaranhado social brasileiro”, ainda que uma análise rigorosa fosse capaz de identificar, se o quisesse, os papéis sociais de ambos. Resulta dessa arquitetura social complexa que o entendimento sobre a “cultura brasileira” passaria por sua relação, sempre problemática, com as influências externas. Daí a célebre constatação de Paulo Emílio, que vale a pena reproduzir:

Não somos europeus, nem americanos do Norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmo se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro. O filme brasileiro participa do mecanismo e o altera através de nossa incompetência criativa em copiar.

(GOMES, 2016a_____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016a., p. 58).

Não existiria, portanto, cultura original, autêntica, nem um passado glorioso a ser resgatado ou redimido. Tudo dependeria do corpo a corpo com as tradições importadas, que seriam a única matriz, logo, a matéria-prima exclusiva com a qual construiríamos a nossa cultura. A dialética seria rarefeita porque os termos estariam dissolvidos na experiência problemática da colonização: não haveria oposição drástica entre tese e antítese, logo a síntese não se realizaria como superação radical. Não se realizaria como “vir-a-ser”, mas num entrecaminho, correndo sempre o risco de desaparecer ou ser apenas cópia.

No entanto, o filme brasileiro não seria tão somente um sintoma desse mecanismo, mas atuaria também, colaborando para transformá-lo graças à nossa incapacidade para a cópia, isto é, nossa precariedade criativa, que, ao copiar, transforma, altera, modifica os termos originais. As semelhanças com a perspectiva antropofágica de Oswald de Andrade são notórias, ainda que possivelmente desinteressadas, pois, em Paulo Emílio, não se trata de retomar o programa de “digestão” dos modelos culturais que fariam surgir uma cultura original e superior. Aqui, a constatação é uma condenação, um traço de precariedade e, portanto, de subdesenvolvimento.

O exame das experiências cinematográficas retomava os pontos fortes, extraindo, em sínteses de largo alcance, as lições históricas de cada lance. Da Belle Époque, advento e ocaso da produção nacional, permaneceria o gosto amargo do progressivo controle do mercado pelo produto estrangeiro; a chanchada, a mais longa e intensa experiência de produção com perfil popular, no entanto, trazia, pelas ambivalências e ingenuidade da cópia, a “marca do mais cruel subdesenvolvimento” (GOMES, 2016a_____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016a., p. 48); a Vera Cruz e sua rápida derrocada ensinariam as elites nacionais a encarar a dominação do mercado pelo cinema norte-americano. Finalmente, o Cinema Novo, expressão cultural mais elaborada, vislumbrou, antes de ser interrompido pelo golpe, possibilidades de incorporação da massa de excluídos do sistema econômico (graças ao seu envolvimento solidário com os pobres). No entanto, não havia alcançado a identificação almejada com a sociedade brasileira, pois, ainda que tenha incorporado o povo aos filmes, não lhe garantiu lugar na plateia. O acirramento da ditadura militar, em 1968, rompeu qualquer possibilidade de comunicação entre o Cinema Novo e seu público.

Assim, a formação do cinema brasileiro permanecia virtualmente possível, desde que essas experiências históricas pudessem se adensar e convergir para um ponto de fuga num futuro distante, mas plausível, no qual o campo cinematográfico atingiria relativa estabilidade de produção e exibição de filmes. O Cinema Novo, cujos filmes teriam condições de completar a tarefa de formação desse sistema cinematográfico, no esquema montado por Paulo Emílio, expressou o momento de maior maturação e, simultaneamente, de malogro, sob impacto das circunstâncias políticas. A avaliação do crítico desaguava necessariamente nos impasses do subdesenvolvimento, com suas imposições econômicas e limitações estruturais que excluíam, para começo de conversa, os 70% de pobres e miseráveis abandonados “ao deus-dará em reservas e quilombos de novo tipo” (GOMES, 2016c_____. A agonia da ficção. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016c, p. 62-67., p. 62).

Nesse percurso, porém, Paulo Emílio não faz o mapeamento das expressões esteticamente sintonizadas com o subdesenvolvimento, seja como sintoma ou possibilidade de superação. Em contraste com os ensaios de Candido, Gullar e Glauber, ressalta, na leitura do seu artigo, a pouca relevância dada à análise formal, enquanto se destaca, de um lado, o dilema da precária relação com o público, cuja pobreza material e expropriação cultural descartavam qualquer sentido de integração nacional, e de outro, os embaraços para continuidade da produção de filmes – os dois fatores, somados, impediam que se completasse a tríade entre obra, crítica e público, tal qual formulada por Antonio Candido em Formação da literatura brasileira, em 1957.

Portanto, as soluções formais e os embates estéticos diziam pouco ou quase nada sobre o imperativo da integração da massa de marginalizados – ensaiada desde os anos 1950, mas proscrita pelo golpe de 1964. Paulo Emílio solicitava, assim, política pública de enorme envergadura associada ao entendimento das dinâmicas específicas de cada setor da economia e da vida cultural.

No caso do cinema, apontava numa única direção que articulasse diversidade de filmes (gêneros, diretores, orçamentos, estilos...), controle regulatório do mercado e sistema industrial. Tudo a girar em torno de uma força política (o Estado?) capaz de romper as amarras do subdesenvolvimento e impor, com energia impetuosa, um novo patamar para o campo cinematográfico.

As especificidades do cinema – uma arte imersa no reino da mercadoria ou, se preferir, no império da indústria cultural – lançavam Paulo Emílio na órbita da economia política. Não se tratava, portanto, de uma apropriação metafórica, nem de uma análise circunscrita aos desdobramentos culturais do subdesenvolvimento, mas uma incursão profunda, a despeito da forma ensaística, nos imperativos de ordem material.

Esses imperativos não eram novidade desse ensaio, mas presença constante na crítica engajada de Paulo Emílio desde pelo menos 1957, quando o crítico se confessou chocado ao constatar que o mecanismo cambial em voga no Brasil permitia que as companhias cinematográficas estrangeiras transferissem 70% dos lucros obtidos na exibição de suas produções em solo pátrio. O efeito natural nesse privilégio não era segredo para ninguém: as rendas auferidas nas bilheterias brasileiras financiavam a produção estrangeira, demonstrando um caso exemplar de legislação que perpetuava nossa economia subdesenvolvida. Ele defendia, em oposição, a necessidade imperiosa de políticas de proteção ao cinema brasileiro, caso se pretendesse constituir uma verdadeira indústria cinematográfica (GOMES, 2016b_____. O ópio do povo. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016b, p. 37-41., p. 37)9 9 Artigo originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 1º de junho de 1957. Em “A agonia da ficção”, escrito em 1960, Paulo Emílio retomava o tema da subvenção brasileira à produção cinematográfica estrangeira (GOMES, 2016c). .

Em artigo de 1961, “O dono do mercado”, lamentava o empirismo cego no qual críticos e produtores de cinema atuavam sem planejamento – a despeito dos valorosos esforços das comissões de cinema que pipocavam em diferentes níveis da federação. No entanto, afirmava que, mesmo no cipoal de opiniões desencontradas, não havia dúvidas sobre a hegemonia do produtor estrangeiro no mercado cinematográfico brasileiro, pois a legislação vigente desde 1932 favorecia sistematicamente a importação de filmes em detrimento da indústria nacional, definindo as mesmas taxas alfandegárias para películas virgens e filmes já produzidos. Assim, concluía: “É muito mais fácil e barato importar filmes prontos do que película virgem, matéria-prima indispensável para se fabricarem fitas no Brasil” (GOMES, 2016d_____. O dono do mercado. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016d, p. 73-78., p. 77)10 10 Originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 28 de janeiro de 1961. .

Paulo Emílio retoma o tema em “A vez do Brasil”, aprofundando os mecanismos de dominação estrangeira que dependiam de uma tessitura complexa entre inflação, tabelamento dos preços dos ingressos, política cambial e investimentos no setor. No alvo da crítica, a insensatez da legislação desencontrada e contraditória que oferecia com uma mão e tirava com a outra, impedindo o florescimento do cinema brasileiro em consonância com as aspirações culturais que, segundo o crítico, ganhavam corpo transformando o nosso cinema num fenômeno socialmente relevante (GOMES, 2016e_____. A vez do Brasil. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016e, p. 79-83.)11 11 Publicado em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 11 de fevereiro de 1961. .

Por ocasião do sucesso de O pagador de promessas (1962)O PAGADOR de promessas. Direção de Anselmo Duarte. Produção de Oswaldo Massaini. Intérpretes: Leonardo Villar, Glória Menezes. São Paulo: Cinedistri – Companhia Produtora e Distribuidora de Filmes Nacionais, 1962. (98 min.), 35 mm, son. em Cannes, onde abocanhara, para surpresa geral, a Palma de Ouro, Paulo Emílio se entusiasma com as potencialidades que o prêmio provocaria na crítica e no público nativos, capazes, então, de enxergar a “alta qualidade dramática” e a “nacionalidade brasileira” na mesma fita, como então se dizia. Segundo ele, há uns vinte anos amadurecia um novo sentimento da nacionalidade, mais maduro e consistente:

O Brasil pôs de lado a montanha de justificações consoladoras, encarou francamente a sua própria imagem, reconheceu-se como país subdesenvolvido e tratou de buscar as emancipações e o enriquecimento. A vontade de possuir um cinema nacional, manifestada frequentemente de forma inepta ou ilógica mas sempre com admirável teimosia, insere-se nesse processo de tomada de consciência e luta.

(GOMES, 2016f_____. Pagador é promessa e desafio. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016f, p. 101-109., p. 102)12 12 Publicado pela primeira vez em Visão, 22 de junho de 1962. .

A atmosfera reinante propiciava as condições subjetivas para dissipar o “obscuro sentimento de inferioridade e temor” com o recorrente fracasso da indústria cinematográfica no país. No entanto, alertava Paulo Emílio que, na conjuntura atual, prevaleciam as mesmas condições que, historicamente, impediram o florescimento da nossa cinematografia: a escandalosa transferência de lucros dos produtores estrangeiros pelo câmbio oficial, denunciada em artigos anteriores; a inoperância dos serviços de fiscalização, que incide diretamente sobre a sonegação do borderô das salas de cinema; a desatualização das taxas e impostos, tornadas puramente simbólicas e, portanto, incapazes de fornecer os recursos públicos que poderiam ser investidos no setor; a liberação dos preços dos ingressos, congelados em tempos de alta inflação; e, finalmente, as distorções entre as tarifas alfandegárias do filme virgem e a “fita estrangeira”, encarecendo os custos de produção nacional e, na prática, amortizando os custos do produtor estrangeiro.

Com base nos estudos do Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica, o Geicine, criado por decreto presidencial em 1961, Paulo Emílio evidencia que o custo médio de produção de um filme raramente seria compensado pelas rendas médias auferidas nas bilheterias, situação que impediria qualquer esperança de implantação de uma base industrial no país, a não ser que o poder público tomasse certas medidas de proteção e incentivo à produção nacional.

Em síntese, as preocupações de Paulo Emílio com o desenvolvimento do cinema brasileiro o impulsionaram a tratar dos temas políticos e dos problemas econômicos da nossa cinematografia, modulando sua crítica conforme os enfrentamentos a que se propunha. Se, de um lado, o exercício acurado da análise cultural possibilitou a intelectuais de peso, como Antonio Candido, Glauber Rocha e Ferreira Gullar, interpretarem as artes travejados pela metáfora do subdesenvolvimento, por outro, parece-nos que a crítica de Paulo Emílio atraía os filmes e o cinema para o campo da análise econômica, costurando os fios de uma interpretação com perspectiva totalizante .

  • 3
    Artigo publicado, posteriormente, em: Gomes, 2016a_____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016a., p. 47-54.
  • 4
    Argumento – revista mensal de cultura contava com cerca de 150 páginas por edição. Os dois primeiros números, segundo informações da própria revista, tiveram uma tiragem de 25.500 exemplares, os dois números finais, 45.500. O projeto gráfico era de Elifas Andreato, com a colaboração de Luís Trimano.
  • 5
    Esse artigo foi publicado, posteriormente, em livro também pela editora Paz e Terra (GOMES, 1980GOMES, Paulo Emílio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.).
  • 6
    Além dos artigos citados, o primeiro número de Argumento trazia uma análise de Thomas Skidmore sobre a condição no negro no Brasil e nos Estados Unidos, um artigo de Fernando Henrique Cardoso a respeito do golpe no Chile e um pequeno ensaio de Antonio Callado sobre a destruição do meio ambiente no Brasil.
  • 7
    “Estética da fome” foi publicado originalmente na Revista Civilização Brasileira, n. 1, v. 3, jul. 1965, p. 165-170. Para este artigo, utilizamos a versão publicada em livro (ROCHA, 2004ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004a.). O ensaio de Ferreira Gullar foi publicado, em 1969, na forma de livro com o título Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte, reunindo dois ensaios: “Vanguarda e subdesenvolvimento” e “Problemas estéticos na sociedade de massa”, escrito em 1965 (GULLAR, 1984GULLAR, Ferreira. (1969). Vanguarda e subdesenvolvimento: ensaios sobre arte. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.).
  • 8
    Antonio Candido informa em A educação pela noite (1989)_____. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. que esse ensaio havia sido publicado originalmente em francês, na revista Cahiers d’Histoire Mondiale, Unesco, n. 4, 1970, e em espanhol, na obra coletiva América Latina en su literatura, México, Unesco/Siglo Veintiuno, 1972, coordenada por César Fernández Moreno. Publicada, pela primeira vez em português, em Argumento, foi incluída no livro A educação pela noite e outros ensaios (1989). Para este artigo, utilizamos a versão publicada em Argumento (CANDIDO, 1973CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. Argumento. Revista mensal de cultura, Rio de Janeiro, n. 1, out. 1973, p. 5-24.).
  • 9
    Artigo originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 1º de junho de 1957. Em “A agonia da ficção”, escrito em 1960, Paulo Emílio retomava o tema da subvenção brasileira à produção cinematográfica estrangeira (GOMES, 2016c_____. A agonia da ficção. In: _____. Uma situação colonial?. Organização e posfácio Carlos Augusto Calil. Prefácio Ismail Xavier. São Paulo: Companhia das Letras, 2016c, p. 62-67.).
  • 10
    Originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 28 de janeiro de 1961.
  • 11
    Publicado em O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, 11 de fevereiro de 1961.
  • 12
    Publicado pela primeira vez em Visão, 22 de junho de 1962.
  • CARDOSO, Mauricio; SARAIVA, Leandro Rocha. A crítica engajada de Paulo Emílio: cinema, subdesenvolvimento e seus impasses. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 75, p. 129-143, abr. 2020.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2019
  • Aceito
    12 Mar 2020
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