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Notas sobre a história da igreja Matriz de Santo Antônio, no distrito de Glaura, em Ouro Preto

Some notes about the history of the Mother Church of Santo Antônio, in the district of Glaura, in Ouro Preto

RESUMO

A igreja Matriz de Santo Antônio, localizada no distrito de Glaura, em Ouro Preto, foi reconstruída por volta de 1750 em substituição à antiga capela, erguida na década de 1720, que se encontrava em ruína. A história desse templo abrange notas importantes e necessárias para a compreensão do processo de produção da arte e da arquitetura setecentista em Minas Gerais. Este artigo objetiva relacionar informações sobre a história da referida igreja, obtidas a partir do exame de documentação primária, temática escassamente investigada na atualidade.

PALAVRAS-CHAVE
Minas Gerais; Igreja Matriz de Santo Antônio; Glaura.

ABSTRACT

The Mother Church of Santo Antônio, in the district of Glaura, in Ouro Preto, was rebuilt around 1750, to replace the old chapel built in the 1720s, which was in ruins. The history of this temple includes important information, helping to understand details about the production process of the 18th-century art and architecture in Minas Gerais. This article aims to relate information about the history of the church, obtained from the review of documentation because it is a subject that has not been thoroughly investigated.

KEYWORDS
Minas Gerais; Mother Church of Santo Antônio; Glaura.

O crescimento populacional e o desenvolvimento urbano do distrito ouro-pretano de Glaura2 2 A denominação Glaura, que substituiu o antigo nome, Santo Antônio do Campo de Casa Grande, data de 1943 e foi registrada por meio do decreto da Câmara Municipal de Ouro Preto. estão relacionados à exploração aurífera em Minas Gerais nos anos iniciais do século XVIII. Conforme Vasconcellos (1904), a constituição de Glaura se deve sobretudo à fome, que assolava as regiões vizinhas e impulsionou o deslocamento das pessoas para outros espaços do território entre os anos de 1700-1701, ampliou a atividade agrícola e amenizou a crise existente. Tudo isso favoreceu o mapeamento de novos pontos de exploração mineral e, consequentemente, a construção arquitetônica local, cujo remanescente mais significativo é a igreja de Santo Antônio. Essa obra evidencia alguns processos fundamentais para a compreensão e a produção arquitetônica e artística em Minas Gerais, especialmente no final dos Seiscentos e início do século XVIII.

A introdução das primeiras capelas mineiras, nesse contexto, estava diretamente associada ao surgimento de povoamentos, posto que a religião católica era um auxílio basilar para as pessoas que viviam na então colônia. Assim, consoante Vasconcelos (1957, p. 98), cada um desses templos convertia-se em “núcleo da povoação nascente e ponto de referência do lugar”. Essa assertiva é coincidente com as demonstrações de Boschi (2007BOSCHI, Caio César. Irmandades, religiosidade e sociabilidade. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). As minas setecentistas. v. 2. Belo Horizonte: Autêntica/Companhia do Tempo, 2007, p. 59-75., p. 61), para quem as edificações sacras são como “cenários para ofícios religiosos como também centro de vida social e local” e, ainda nas palavras do autor, as “urbes foram nascendo sob impulso da vida religiosa”.

Essas informações permitem compreender o contexto elementar em que estava inserida a elevação da igreja Matriz de Santo Antônio, construída para substituir a primeira capela erguida na década de 1720, que estava em estado de ruína nos anos de 1750 (LEMOS, 2016LEMOS, Paulo (Org.). Ouro Preto: igrejas e capelas. 1. ed. Ouro Preto: Livraria e Editora Ouro Preto, 2016.). Costumeiramente, as capelas eram levantadas pelas primeiras pessoas que se encontravam na região. Com o prosperar da atividade econômica e o aumento da população local, edificações maiores foram projetadas, tornando-se igrejas matrizes, geridas pelas irmandades, confrarias e ordens terceiras, que se responsabilizavam por administrar a vida religiosa. Esses grupos transpareciam, em sua organização e constituição, as camadas étnico-raciais e sociais locais, bem como o poder econômico de seus integrantes. Em Glaura, o papel das irmandades, nesse processo, é evidenciado por diferentes composições: as Irmandades de Santo Antônio, em 1722; o Santíssimo Sacramento e Almas, em 1724; e a Nossa Senhora do Rosário, em 1726. Todavia, o processo de construção do templo, a produção de sua ornamentação interna e as modificações sofridas no decurso dos séculos XVIII e XIX são de difícil compreensão, pois a documentação remanescente é escassa e fragmentada, o que impossibilita distinguir meticulosamente todos os pormenores referentes a sua história, passíveis de esclarecer trechos fundamentais sobre a narrativa da arte e da arquitetura nas Minas Gerais dos Setecentos.

Ademais, são escassos os estudos que relacionam o panorama histórico da Matriz de Santo Antônio na atualidade. Entre os raros textos que contemplam o assunto, lista-se a breve descrição realizada por Mourão (1986)MOURÃO, Paulo Kruger Corrêa. As igrejas setecentistas de Minas. 2. ed. ver. aum. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. no livro As igrejas setecentistas de Minas, em que constam as datas de elevação da igreja e os nomes de oficiais envolvidos nesses afazeres; a tese de Bohrer (2015)BOHRER, Alex Fernandes. A talha do estilo nacional português em Minas Gerais: contexto sociocultural e produção artística. 2015. 2 v. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015., A talha do estilo nacional português em Minas Gerais: contexto sociocultural e produção artística, que apresentou os retábulos produzidos para o templo por volta das três primeiras décadas do século XVIII; a tese de Bastos (2009)BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822), que resgatou as informações e os desenhos elaborados para subsidiar parte da construção da igreja e de um retábulo; e, posteriormente, o livro Ouro Preto: igrejas e capelas, organizado por Lemos (2016)LEMOS, Paulo (Org.). Ouro Preto: igrejas e capelas. 1. ed. Ouro Preto: Livraria e Editora Ouro Preto, 2016., que abrange uma pequena cronologia sobre a Matriz. Apesar das contribuições advindas dessas pesquisas, são profundas as ausências em relação à história da edificação, à data de sua elevação, às várias etapas de construção pelas quais passou ao longo dos anos e à identidade dos oficiais que se envolveram nesses serviços.

Considerando essas lacunas, este texto objetiva apresentar e examinar dados ainda pouco conhecidos para delinear uma pequena fração do percurso histórico que assinalou a elevação da igreja Matriz de Glaura. Essas informações estão depositadas, principalmente, no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana; no Arquivo da Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de Belo Horizonte; no Arquivo Central do Iphan, Seção Rio de Janeiro; e no repositório eletrônico do Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa. Nesses centros estão armazenadas algumas descrições dos problemas ocorridos no decorrer do processo de edificação da igreja, os protocolos para a contratação de serviços de alvenaria e de ornamentação, os nomes dos oficiais envolvidos nesses trabalhos, os riscos e os demais apontamentos imprescindíveis para direcionar as tarefas, incluindo-se, nesse rol, um amplo conteúdo que ilustra a atividade das irmandades locais.

A CAPELA DE SANTO ANTÔNIO E OS ANTIGOS RETÁBULOS

Registros documentais ratificam a existência de uma capela dedicada a Santo Antônio, por volta de 1720, ano em que, provavelmente, a primeira edificação religiosa foi erguida em Glaura. Essa informação subsidia-se na existência dos livros de Compromisso, Fábrica e Contas depositados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Neles foi listado o despontar das agremiações abrigadas nesse templo a partir de 1722, como: a Irmandade de Santo Antônio (AEAM, 1722-1725AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade de Santo Antônio, Casa Branca, Glaura, 1722-1725, prateleira J34. - Figura 1); a Irmandade do Santíssimo Sacramento (AEAM, 1724-1784AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade do Santíssimo Sacramento, Contas, Casa Branca, Glaura, 1724-1784, prateleira J36.); a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (AEAM, 1726-1822AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Casa Branca, Glaura, 1726-1822, prateleira J37.); e a Irmandade das Almas (IPHAN, 1724). Em Minas Gerais, esses grupos incumbiram-se de organizar e gerir a vida religiosa, responsabilizando-se, também, pelos custos de produção da arte e da arquitetura sacra, posto que a Coroa nem sempre disponibilizava recursos para a consolidação desses empreendimentos. Além disso, a composição desses núcleos refletia a estrutura social setecentista mineira, pois a entrada, como irmão, era condicionada à cor da pele e à disponibilidade de recursos econômicos. Considera-se, nesses casos, que a Irmandade do Rosário recebia negros (BOSCHI, 2007BOSCHI, Caio César. Irmandades, religiosidade e sociabilidade. In: RESENDE, Maria Efigênia Lage de; VILLALTA, Luiz Carlos (Org.). As minas setecentistas. v. 2. Belo Horizonte: Autêntica/Companhia do Tempo, 2007, p. 59-75.), e a Irmandade do Santíssimo Sacramento acolhia brancos abastados.

A documentação primária referente à primeira capela de Santo Antônio abrange dados relevantes sobre a atividade das irmandades ali estabelecidas. Perante essa abundância de registros, é urgente que sejam minuciosamente investigadas as informações arroladas nesses livros, pois uma tarefa de tamanha envergadura não pôde ser efetuada no decorrer dos levantamentos realizados para a produção desta pesquisa. Nesses livros, há descrições completas de itens adquiridos nas cidades de Lisboa e do Rio de Janeiro, por volta dos anos de 1720-1750. Entre os elementos identificados, citam-se: a aquisição de crucifixos e de castiçais de prata na cidade do Rio de Janeiro em 1724 (AEAM, 1724-1784AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade do Santíssimo Sacramento, Contas, Casa Branca, Glaura, 1724-1784, prateleira J36.); um missal e um pedestal de prata adquiridos em Lisboa em 1725 (AEAM, 1724-1784AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade do Santíssimo Sacramento, Contas, Casa Branca, Glaura, 1724-1784, prateleira J36.); e o pagamento a um pintor de nome Bernardo, em 1746, pela pintura de um painel (AEAM, 1733-1813AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, Casa Branca, Glaura, 1733-1813, prateleira J38.), sem mencionar outros detalhes desse último serviço, que nem tampouco foi localizado.

Figura 1
Livro de Compromisso Confraria Ermandade do Senhor Santo Antônio da Freguezia do Campo da Casa Branca Comarca da Villa Rica de N. SR. Do Pillar do Ouro Preto - Anno de 1728. Fonte: Arquivo Central do IPHAN, 1946IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Arquivo Central. Seção Rio de Janeiro. Arquivo Noronha Santos. Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura, Ouro Preto, Minas Gerais, pasta I-MG-0395-01, 1946., fl. 3

Posteriormente às datas acima elencadas, identificou-se que, em 1724, já havia o retábulo-mor na capela de Glaura. Tal afirmação justifica-se porque, no dia 8 de novembro de 1724, foram pagos serviços de acréscimo da talha para a capela-mor (AEAM, 1722-1725AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade de Santo Antônio, Casa Branca, Glaura, 1722-1725, prateleira J34.), executados por Valerio de Souza Romeiro. O entalhador recebeu da Irmandade de Santo Antônio quantias referentes aos afazeres contratados nos dias 13, 18 e 22 de junho. Os acabamentos para o conjunto ocorreram a partir do dia 22 de abril de 1725, quando Antônio da Costa Barrigua firmou o termo de douramento dessas peças.

É singular a identificação do labor de Valerio de Souza Romeiro e de Antônio da Costa Barrigua, pois não são conhecidas outras obras que eles fizeram em Minas Gerais, embora possam ter se envolvido na fatura de trabalhos similares entre as três primeiras décadas do século XVIII. Isso exige que a atuação desses homens seja examinada de modo a favorecer o mapeamento das oficinas dedicadas a ornar o interior das igrejas mineiras no período, pois são completamente ignorados os oficiais que se dedicaram a produzir e dourar retábulos entre 1700-1730, aproximadamente, quando os projetos retabulares expressavam formas nomeadas de estilo nacional português3 3 A expressão “estilo nacional português” foi conferida por Robert Smith (1962) ao analisar os retábulos produzidos em Portugal a partir das duas últimas décadas do século XVII e a primeira década do século XVIII, aproximadamente. O pesquisador empregou a denominação posto que a configuração retabular local não apresentava relações com a produção coetânea europeia, constituindo-se um repertório tipicamente português, nas palavras de Smith. Caracteriza os retábulos desse ciclo a presença de colunas torsas com aves, cachos de uva, folhas de videira, folhagem acântica e de remate com arquivoltas concêntricas e aduelas. . Em Minas Gerais, todos os retábulos desse ciclo foram analisados por Alex Bohrer, que identificou, apenas, a operação de um entalhador, de nome Manuel de Matos, designado para lavrar o retábulo de Nossa Senhora do Rosário da igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazaré (Cachoeira do Campo), encomendado em 1726 (BOHRER, 2015BOHRER, Alex Fernandes. A talha do estilo nacional português em Minas Gerais: contexto sociocultural e produção artística. 2015. 2 v. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.). Salvo essa indicação, as obras desse período ainda são de autoria anônima, sem qualquer identificação de datas de produção, bem como de registros das intervenções realizadas que alteraram os ornatos, as estruturas e a policromia de muitos exemplares ao longo dos anos.

Em 1757 o retábulo-mor erguido na década de 1720 por Valerio de Souza Romeiro foi danificado por um raio que atingiu a Matriz, consoante a documentação verificada por Bastos (2009)BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. no Arquivo Nacional Torre do Tombo. Embora não seja mais existente o retábulo-mor de 1725, ausência justificada pelo incidente com a descarga elétrica, é provável que alguns elementos estruturais e ornamentais tenham sido reaproveitados na configuração que compõe a capela-mor da Matriz de Glaura: duas colunas torsas com aves fênix, folhas de parreira e cachos de uvas; uma arquivolta concêntrica; seis mísulas; o frontal da mesa do altar; e os elementos do trono. Há outras seções de colunas torsas dispersas no interior da igreja, que permitiram a Bohrer (2015)BOHRER, Alex Fernandes. A talha do estilo nacional português em Minas Gerais: contexto sociocultural e produção artística. 2015. 2 v. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015. aventar a possibilidade desse retábulo-mor ter sido constituído por seis pares de colunas.

Por sua vez, os outros retábulos na nave da Matriz de Santo Antônio, dedicados a São Miguel, Santana e Nossa Senhora do Rosário, são, seguramente, remanescentes da antiga capela, confeccionados a contar dos anos de 1720. A composição formal dessas obras evidencia que elas foram lavradas, nesse período, debaixo da influência da talha rotulada de estilo nacional português. Desse ciclo da arte são as colunas torsas recobertas por cachos de uvas, aves, folhas de parreira, arquivoltas concêntricas finalizando o coroamento e os ausentes amplos camarins com tronos escalonados e degraus, constantes nos retábulos posteriores ao ano de 1730, como denotam os espécimes da matriz ouro-pretana de Nossa Senhora do Pilar. É uma hipótese a ser averiguada a de que eles foram executados por Valério de Souza Romeiro e oficina e dourados por Antônio da Costa Barrigua, já que exerciam contratos na região. Dessa maneira, é razoável ponderar que esses oficiais tenham realizado esses trabalhos, pois a oferta de mão de obra artística era escassa naquele contexto. No entanto, essas são apenas sugestões, uma vez que a documentação não sinaliza direções para a compreensão do assunto.

Além disso, o modo como essas peças estão distribuídas no interior da igreja sugere a adaptação de itens não lavrados para ocupar o local onde hoje se encontram, destoando dos tradicionais sistemas de composição ornamental corrente em Minas Gerais no século XVIII. Naquele período, os retábulos e a talha eram ajustados ao ambiente para comporem a cenografia sacra, devidamente distribuída e encaixada ao espaço religioso, tal qual ocorreu nas capelas-mores da igreja Matriz de Nossa Senhora de Nazaré (Cachoeira do Campo), igreja de Nossa Senhora do Ó (Sabará) e igreja de Santo Antônio (Pompéu - Sabará), cujas ornamentações internas são coetâneas aos retábulos do templo de Glaura. Certamente, os oficiais ativos no período, como atestam os exemplos listados, não fariam peças que não fossem conformadas e integradas ao espaço arquitetônico que ocupariam.

A NOVA EDIFICAÇÃO

Alguns canteiros de obras religiosas em Minas Gerais, durante o século XVIII, foram afetados por ocorrências diversas que, às vezes, ocasionavam a interrupção dos trabalhos por alguns períodos. Entre as causas mais comuns para essas suspensões estavam as dificuldades técnicas e tecnológicas encontradas no momento da execução das tarefas, bem como a ausência de mão de obra qualificada, em razão do desequilíbrio entre as elevadas demandas arquitetônicas e a exiguidade de oficiais especializados para cumprir os encargos. Além disso, os contratempos de ordem financeira geravam grandes atrasos para a conclusão da construção das igrejas. Isso ocorria porque os subsídios monetários para esses empreendimentos provinham de múltiplas fontes: patrocinados pela Coroa, como a igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso em (Caeté) (APM, 1744-1765APM - Arquivo Público Mineiro. Livro de arrematações de contratos e ofícios públicos a cargo da Provedoria da Real Fazenda em Vila Rica (1744-1765). Casa dos Contos. Códice 1075.); doados por fiéis, como esclarece a história do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos (Congonhas), materializado à custa de Feliciano Mendes, em cumprimento de graça alcançada (OLIVEIRA, 2006OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Aleijadinho e o Santuário de Congonhas. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Monumenta, 2006.); percepção de valores arrecadados pelas irmandades religiosas, à semelhança do ocorrido na igreja de Santa Efigênia (Ouro Preto), que teve como mecenas principal a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (CECO, 1723-1798CECO - Centro de Estudos do Ciclo do Ouro. Livro de receitas e despesas da Irmandade do Rosário dos Pretos de Ouro Preto, 1723-1798. v. 132.).

Em relação à Matriz de Glaura, é inseguro enumerar todos os acasos que acometeram a sua elevação, nos anos de 1750, posto que não existe mais qualquer fração dessa documentação histórica e encontram-se dispersos os registros remanescentes em vários centros de armazenamento, o que dificulta a reunião de todo o material. Assim, apresentar-se-ão informações que proporcionam destacar os fatos expressivos que notabilizaram a construção do templo. Restariam para avaliação, por exemplo, os documentos que podem estar no distrito ouro-pretano de Cachoeira do Campo, pois, no século XIX, a Matriz de Glaura foi integrada à Freguesia de Nossa Senhora de Nazaré de Cachoeira do Campo (LEMOS, 2016LEMOS, Paulo (Org.). Ouro Preto: igrejas e capelas. 1. ed. Ouro Preto: Livraria e Editora Ouro Preto, 2016.).

Sabe-se que o atual edifício da Matriz de Glaura não foi erguido no mesmo local onde se encontrava a primeira capela, que, consoante a documentação conferida por Bastos (2009)BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., foi arruinada por um raio no ano de 1757. Os registros ilustram que, a partir desse acontecimento, iniciou-se, por etapas, o processo de construção da Matriz de Santo Antônio (Figura 2). A primeira dessas fases contemplou a edificação do corpo da igreja, custeada com recursos da Irmandade do Santíssimo Sacramento (AEAM, 1724-1784AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade do Santíssimo Sacramento, Contas, Casa Branca, Glaura, 1724-1784, prateleira J36.). No dia 11 de maio de 1757, os pedreiros Francisco da Costa e Clemente João ajustaram serviços de alvenaria (AEAM, 1724-1784AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade do Santíssimo Sacramento, Contas, Casa Branca, Glaura, 1724-1784, prateleira J36.). Contudo, é crível que tais trabalhos tenham se iniciado apenas a partir do dia 25 de setembro de 1757, data em que o carpinteiro Manoel Gonçalves Ribeiro, morador de Casa Branca (MARTINS, 1974MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1974.), arrematou o assentamento de pedra para o corpo da igreja, o arco e as torres, não tendo sido indicada a capela-mor, construída posteriormente, como será detalhado.

Figura 2
Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura. Fotografia do autor

Embora esse ato em prol da construção da igreja seja conhecido, a Irmandade do Santíssimo Sacramento ajustou a arrematação da obra apenas no dia 4 de maio de 1758, angariada por Francisco de Lima, seguramente uma menção ao mestre-canteiro e pedreiro português Francisco de Lima Cerqueira, cuja biografia foi examinada por Dangelo (2006)DANGELO, André Guilherme Dornelles. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos, mestres de obras e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. e Urias (2017). Nessa circunstância, a presença de Cerqueira exige algumas ponderações. A primeira delas, e a mais relevante, é que ele não executou o trabalho. Porém, não foi identificado o motivo da sua desistência.

A segunda questão tem como elemento central um fato curioso. Em 1754, Francisco de Lima já se encontrava em Minas Gerais, como explanaram as pesquisas de Dangelo (2006)DANGELO, André Guilherme Dornelles. A cultura arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: arquitetos, mestres de obras e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas. Tese (Doutorado). Programa de Pós-graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006.. Contudo, não são conhecidos trabalhos por ele efetuados anteriores ao ano de 1761, quando seu nome figurou no Registro Geral, atuando como pedreiro, sem indicação exata da atividade desempenhada (MARTINS, 1974MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1974.). Somente em 1763 Francisco de Lima foi indicado como envolvido na construção do chafariz das Cabeças, em Ouro Preto (MARTINS, 1974MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1974.). Nesse sentido, sua participação na arrematação da obra de Glaura, em 1758, e a não efetivação das tarefas têm muito a informar sobre suas primeiras atividades em Minas Gerais, ainda envoltas em incertezas.

Além dessas questões, o contrato assinado por Francisco de Lima ilustra pormenores referentes à delimitação dos projetos de construção religiosa em Minas Gerais, no século XVIII, frequentes em arrematações análogas. Cabe destacar que as direções para instruir os trabalhos da Matriz de Glaura, nomeadas de apontamentos, englobavam extensa e minuciosa descrição textual para auxiliar a interpretação dos riscos entregues aos oficiais que realizariam os serviços. A leitura dessas orientações oportuniza compreender algumas competências técnicas dos homens que se dedicavam a desenhar plantas arquitetônicas. Exemplo disso é a habilidade em compreender a linguagem erudita, presumível aos profissionais desse campo de atuação, geralmente, que resulta da prática do canteiro de obras, onde eles foram um dia aprendizes, auxiliares ou mesmo mestres. A historiografia da arquitetura sacra setecentista mineira demonstrou suficientemente que os profissionais responsáveis pela elaboração desses projetos poderiam ser mestres pedreiros, mestres carpinteiros, como o afamado Manuel Francisco Lisboa. Também poderiam realizar outros afazeres, como o entalhador José Coelho de Noronha, que recebeu, em 1763, valores pelo risco da igreja Matriz de São João Batista, em Barão de Cocais (PEDROSA, 2012).

Desse modo, as descrições constantes no documento de arrematação da Matriz de Santo Antônio reafirmam que não se tratava de planos concebidos por pessoas desprovidas do saber técnico, prático, e do entendimento das terminologias do vocabulário arquitetônico clássico, muitas vezes usufruídos por aqueles que se dedicavam ao ofício de riscar. Tal percepção se torna evidente quando foi recomendado aplicar a ordem dórica para a construção do arco cruzeiro da Matriz.

É sabido que foi comum a escolha de ordens clássicas para a concepção desses e de outros elementos existentes nas igrejas erguidas no território da América portuguesa. No entanto, é necessário frisar, conforme demonstrou Bueno, que foi habitual o uso do léxico clássico entre os homens que se dedicavam à produção arquitetônica religiosa, como consta no trecho transcrito abaixo, porém, era rara a aplicação da “sintaxe clássica mais erudita” nos projetos (BUENO, 2012BUENO, B. P. S. Sistema de produção da arquitetura na cidade colonial brasileira: mestres de ofício, “riscos” e “traças”. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 20, n. 1, 2012, p. 321-361., p. 351). Isso é verificado na conformação da Matriz de Glaura, que repercutiu esquemas comuns, identificáveis no traçado das matrizes mineiras setecentistas, cuja expressiva fração apresenta planta de formato retangular, duas torres sineiras compondo o frontispício em linha reta, a nave e, na sequência, a capela-mor, a sacristia e o consistório. Esses três últimos espaços, no caso em exame, resultaram de desenho posterior, mas não propuseram organização dos volumes diferente daquilo que se encontrava nas principais igrejas da Capitania, produzidas entre os anos de 1720-1760.

[...] 3ª Será obrigado a fazer o frontispício da mesma Igreja e executado na forma do risco da mão direita exceptuando as folhas do remate e do pedestal da Cruz, que este será feito de molduras e bem-feitas na Ordem Jônica; como também a Cruz [...]. 4 ª Será mais obrigado o arrematante a fazer os cunhais da mesma obra de cantaria [?] a cimalha, com seus pedestais de 6 palmos de alto e com sua base como mostra o risco; como também será obrigado a fazer a cimalha dos ditos cunhais de cantaria e executados na forma do risco. [...] 6ª Será obrigado a fazer duas Torres como mostra o risco da parte da mão esquerda com cunhais feitos de cantaria [...] e essas Torres serão feitas fora do perfil da Igreja para poderem ser executadas conforme mostra o risco [...]. 9ª Será obrigado a fazer dois púlpitos com sua moldura bem-feita, e taça [?], e a cachoteria será de caramujos, como também duas portas para entrada dos ditos, de cantaria, com verga de volta [...]. 10ª Será obrigado a fazer o arco-cruzeiro de cantaria e bem lavrada na Ordem Dórica, com seu soco e pedestal [...]. 11ª Será obrigado a fazer as portas do corpo da Igreja da largura de 5 palmos e altura que acima se declara; também será obrigado a fazer a cimalha real de lajes para se fingir em cal tudo que não for frontispício, Torres e corpos de cunhais, que estes serão de cantaria, como também nichos e porta principal [...]. (AEAM, 1724-1784AEAM - Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Irmandade do Santíssimo Sacramento, Contas, Casa Branca, Glaura, 1724-1784, prateleira J36., fl. 101v.)4 4 Nas citações foram mantidas a grafia e a pontuação dos textos originais. .

Em relação ao frontispício da Matriz de Glaura, tal como ele se apresenta hoje, nota-se pequena distinção se comparado aos exemplares coetâneos, pois nele foram acrescidos itens ornamentais em cantaria, acentuando a ornamentação externa, usualmente modesta no contexto em estudo. Na parte central do frontispício está o nicho com a imagem do Padroeiro, repercutindo as recomendações de Carlo Borromeu para instalação: na porção superior à entrada do templo, pintura ou escultura da Virgem Maria com o Menino Jesus nos braços; na direita, o santo da igreja; na esquerda, o santo pelo qual o povo tem maior veneração. Se essas obras não pudessem ser realizadas, recomendou somente a instalação do santo da igreja (BORROMEO, 1985BORROMEO, Carlos. Instrucciones de la fábrica y del ajuar eclesiásticos. Introducción, traducción y notas de Bulmaro Reyes Coria. México: Unam - Imprenta Universitaria, 1985.), tendo sido essa última opção a escolhida. Fica evidente que os apontamentos constantes na documentação expressam referências do léxico empregado pelos que se dedicavam à construção religiosa. Eles recorriam à nomenclatura extraída da arquitetura clássica, mas essa referência não exerceu grande ascendência na composição das plantas, da organização espacial, da ornamentação interna, dos dimensionamentos, dentre outros fatores que poderiam ser identificados. Essa base construtiva tinha como eixo norteador a repercussão do corrente modo de fazer na arquitetura religiosa portuguesa do período.

Infelizmente não foi identificado o nome do oficial que riscou e elaborou o texto que sedimentou o contrato para a arrematação da Matriz de Santo Antônio. Tampouco foram encontrados vestígios que contribuiriam para conhecer o perfil técnico desse profissional. Apesar disso, poder-se-ia explorar, em estudos posteriores, a hipótese de ter sido o próprio Francisco de Lima (Cerqueira) o autor desse projeto, considerando-se seu subsequente comprometimento com o primeiro ato de arrematação da construção da igreja. Esse enunciado é apenas um pressuposto, pois no contexto em análise gizar plantas e executar projetos poderia ser empreendimento realizado por oficiais diferentes. As dificuldades para o aprofundamento dessas questões, no que tange à construção religiosa na então colônia, ocorrem porque são raramente distinguidos os nomes dos homens que riscavam. Assim, costuma ser atribuída erroneamente a autoria do projeto aos arrematantes da obra, que, por sua vez, resultava do trabalho de um grupo de pessoas reunidas em uma oficina.

A leitura da documentação esclarece que, depois da circunstância envolvendo Francisco de Lima (Cerqueira), somente no dia 11 de julho de 1758 a construção da primeira parte da Matriz de Glaura, composta de frontispício e nave, foi arrematada pelo mestre canteiro Antônio Moreira Gomes e pelo mestre pedreiro Tiago Moreira. Tal produção foi custeada pelos fiéis congregados na Matriz (BASTOS, 2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.). Sabe-se que Tiago Moreira exerceu protagonismo no panorama da construção religiosa em Minas Gerais, pois elaborou um risco para a igreja de Nossa Senhora do Carmo (Sabará), entre 1762-1763 (MARTINS, 1974MARTINS, Judith. Dicionário de artistas e artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Publicações da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1974.), e operou na execução de serviços para esse templo . Com a vida e a obra ainda por estudar, Tiago Moreira foi, certamente, o responsável pela efetivação da obra de Glaura, conforme indicam os diversos recibos de pagamentos em seu nome.

Em virtude da escassez de notas históricas, é fundamental avançar as investigações sobre a operação desses dois artífices nesses serviços, dados que podem colaborar para ampliar os esclarecimentos referentes à produção arquitetônica religiosa mineira no século XVIII a partir do labor de mestres que se dedicavam à execução das tarefas. Os resultados dessas pesquisas facultarão distinguir os serviços que realizaram, o quadro organizacional da oficina em que laboravam, a autonomia que tinham ou não para interferir nos projetos, entre outras particularidades ainda omissas.

Consoante Mourão (1986)MOURÃO, Paulo Kruger Corrêa. As igrejas setecentistas de Minas. 2. ed. ver. aum. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986., o entalhador lisboeta José Coelho de Noronha também participou dos atos referentes à primeira etapa de construção da Matriz de Glaura, pois arrematou a obra com Tiago Moreira e Antônio Moreira Gomes. No entanto, apesar dos esforços despendidos, não foi localizada a documentação em que consta o nome de Coelho de Noronha, e o autor citado nem sequer indica o registro que subsidiou sua conclusão. É relevante identificar a comprovação da cooperação de Noronha nesse serviço, posto ser pouco conhecido o seu envolvimento em tarefas relacionadas à prática da arquitetura. As únicas ressalvas são um recibo de pagamento por risco, elaborado para a igreja Matriz de São João Batista (Barão de Cocais), e algumas sugestões de ações nessa área, subentendidas a partir de sua atividade como entalhador, quando ele demonstrava habilidades relacionadas ao fazer arquitetônico, geralmente materializadas em intervenções ocorridas durante a confecção da talha dourada e policromada (PEDROSA, 2012).

No intervalo em que foi novamente apregoada a construção da Matriz de Glaura, no ano de 1758, Noronha finalizava a ornamentação da capela-mor da Matriz de Nossa Senhora do Pilar (São João del-Rei), iniciada em 1755 (PEDROSA, 2012). No dia 28 de maio de 1758 (APM, 1744-1765APM - Arquivo Público Mineiro. Livro de arrematações de contratos e ofícios públicos a cargo da Provedoria da Real Fazenda em Vila Rica (1744-1765). Casa dos Contos. Códice 1075.), ele ajustou a fatura do retábulo-mor da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Caeté). São desconhecidos outros indícios do labor de José Coelho de Noronha nesse período e, caso seja verídica a sua participação no empreendimento de Glaura, deve-se conjecturar se ele operou na execução das tarefas, o que é pouco provável. Ainda, é preciso avaliar se ele apenas colaborou nos atos de formalização da arrematação, pois foi o mestre pedreiro Tiago Moreira quem recebeu os pagamentos, sem qualquer menção ao nome do dito entalhador. Nesse espectro, para fazer quaisquer assertivas, é necessário encontrar o documento que subsidiou o supracitado texto de Mourão.

Os registros referentes aos procedimentos da segunda etapa construtiva da Matriz de Glaura, compreendendo a capela-mor, a sacristia e o retábulo-mor, são datados do ano de 1758, quando o padre dr. Manoel Pires Vergueiro solicitou à Fazenda Real recursos para tal empreendimento (BASTOS, 2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.). Esse pedido tinha como pressuposto, conforme pontuam as pesquisas de Menezes (2007)MENEZES, Ivo Porto de. Os frontispícios na arquitetura religiosa em Minas Gerais. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, PUC Minas, v. 14, n. 15, 2007, p. 164-182., que as capelas-mores das igrejas matrizes pertenciam à Ordem de Cristo, tendo o rei como grão-mestre e sendo, assim, de responsabilidade da Coroa custear a elevação desses espaços. Na documentação examinada por Bastos (2009)BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. consta que o desenho para a sacristia, a capela-mor e o retábulo-mor foi elaborado, em 1761, por Rodrigo Franco, arquiteto das Ordens Militares. As direções textuais incluídas nos riscos da capela-mor e sacristia, disponíveis no sítio eletrônico do Arquivo Nacional Torre do Tombo (Figuras 3 e 4), demonstram que o corpo da igreja se encontrava pronto em 1761 (BASTOS, 2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.).

Figura 3
Planta da capela-mor e da sacristia da Igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Fonte: ANTT (1761a)ANTT - Arquivo Nacional Torre do Tombo. Planta da Capela-mor e Sacristia da Igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Código PT/TT/MR/1/15, 1761a. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4242904. Acesso em: 1º mar. 2022.
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Figura 4
Vista exterior do lado da capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Fonte: ANTT (1761c)ANTT - Arquivo Nacional Torre do Tombo. Vista exterior do lado da capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Código PT/TT/MR/1/14, 1761c. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4242903. Acesso em: 1º mar. 2022.
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Figura 5
Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura. Fonte: Arquivo Público Mineiro (APM, 1972APM - Arquivo Público Mineiro. Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura, Ouro Preto. 1972. Fundo Demerval José Pimenta, 6-2-002 (018). Disponível em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/fotografico_docs/photo.php?lid=34163. Acesso em: 2 mar. 2022.
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)

Figura 6
Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura. Fotografia do autor

Ao comparar os desenhos acima mencionados com os atuais cômodos da capela-mor e da sacristia da Matriz de Glaura, compreende-se que esses espaços são resultantes de período diferente daquele que assinalou a construção do corpo e do frontispício (Figuras 5 e 6). Do mesmo modo, constata-se que não foram seguidos os riscos propostos por Rodrigo Franco, nem mesmo justificado o porquê da não execução do projeto. Conjectura-se que isso pode ter ocorrido por vários motivos: não foi enviado o recurso prometido pela Fazenda Real; os desenhos não chegaram a Glaura, pois não há registros desses nos arquivos locais. Há ainda a hipótese levantada por Menezes (2007MENEZES, Ivo Porto de. Os frontispícios na arquitetura religiosa em Minas Gerais. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, PUC Minas, v. 14, n. 15, 2007, p. 164-182., p. 165-166):

Verdade é que, mandado o pretendido projeto para a aprovação da corte, de maneira geral, enviava o Arquiteto das Ordens novo traçado, de acordo com o que pensava ser mais interessante. Mas a rebeldia do povo da colônia se fazia sentir quando não obedeciam ao enviado, senão construindo “à sua fantasia”, como ocorreu com a matriz da Senhora da Boa Viagem de Curral del Rei.

No projeto proposto por Rodrigo Franco, observa-se que foi especificado o uso de pedra e de cunhais de cantaria para a cimalha (ANTT, 1721c) a fim de assegurar a continuidade e a harmonização entre as partes construídas, o corpo e o frontispício, e as novas áreas da capela-mor e da sacristia. No entanto, esses dois últimos espaços foram construídos com paredes de barro e beiral de madeira, destoando por completo da outra fração da igreja. Ademais, não foram feitas as pilastras externas de cantaria para emoldurar a edificação, as janelas da sacristia foram projetadas pelo dito arquiteto com vergas em arco de círculo, mas executadas em verga retilínea. Ainda, são ausentes os fogaréus constantes nos riscos e há outros itens que destoam do desenho elaborado por Rodrigo Franco.

Por último, no que se refere aos serviços contratados para a Matriz, apurou-se que as janelas das ilhargas da capela-mor, os vãos que conectam a sacristia à nave e os nichos de alvenaria são realizações da primeira metade do século XX (IPHAN, 1997IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Arquivo do escritório do Iphan. Belo Horizonte. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja Matriz de Santo Antônio, Ouro Preto, Glaura, Minas Gerais, 1997.). A porta principal, em madeira, também é do século XX, e seu relevo escultórico foi realizado em Belo Horizonte (IPHAN, 1997IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Arquivo do escritório do Iphan. Belo Horizonte. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja Matriz de Santo Antônio, Ouro Preto, Glaura, Minas Gerais, 1997.). A cobertura piramidal das torres é de alvenaria e, possivelmente, confeccionada em momento posterior ao que demarcou a construção do frontispício.

O NOVO RETÁBULO-MOR

Entre os atos fundamentais que pontuaram a história da Matriz de Santo Antônio, requerem atenção alguns procedimentos ocorridos perante a necessidade de construir outro retábulo-mor para a igreja, destinado a substituir o primeiro modelo, confeccionado em 1725 e destruído por raio no ano de 1757 (Figuras 7 e 8). O novo risco da peça foi projetado em Minas Gerais e posteriormente enviado a Lisboa para aprovação, onde foi revisado pelo arquiteto da Mesa da Consciência e Ordens Rodrigo Franco. Esses desenhos, depositados no Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT, 1761bANTT - Arquivo Nacional Torre do Tombo. Retábulo para a Capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Código PT/TT/MR/1/17, 1761b. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4242906. Acesso em: 1º mar. 2022.
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), abrangem interessantes notas que justificam e explicam as modificações empreendidas no desenho concebido no Brasil. Entre elas, destaca-se o apontamento de Rodrigo Franco, citado por Bastos (2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., p. 95): “no Retabullo só o risquey com os preceytos das medidas e de baixo das regras da Archytectura Solida ficando assim Libre da Montiplicidade de Ornatos Aérios q’ trazia o que de lá vinha riscado”.

A primeira informação que se pode extrair da transcrição acima é a confirmação do fluxo de conteúdo artístico entre Portugal e Brasil, bem como a conhecida, porém pouco estudada, concepção de projetos de arte sacra na Colônia. Os desdobramentos possíveis da análise dessas ocorrências, incluindo-se outras de conteúdo similar, poderiam abrir caminho para reconhecer se houve, a partir do Brasil, o envio de objetos de arte e de desenhos para subsidiar obras artísticas e arquitetônicas religiosas em Portugal, ao longo do século XVIII. Sobressaem na literatura as investigações que privilegiaram a análise dos efeitos da predominância da arte portuguesa sobre a América portuguesa nesse intervalo temporal, mas são pouco conhecidos percursos no sentido contrário, como o fez Oliveira (2016)OLIVEIRA, Eduardo Pires de. Minho e Minas Gerais no século XVIII. Braga: Edição do Autor, 2016., que identificou registros desse intercâmbio. O autor demonstrou que o projeto para a capela do Santo Ofício, da freguesia de Caldelas, foi confeccionado no Brasil, nos anos de 1730. A partir desse exemplo, Oliveira (2016OLIVEIRA, Eduardo Pires de. Minho e Minas Gerais no século XVIII. Braga: Edição do Autor, 2016., p. 43) inferiu que muitas lacunas encobrem essas temáticas, já que “o estudo das múltiplas relações artísticas entre Portugal e o Brasil está quase todo por fazer. No domínio histórico há já um bom conjunto de trabalhos. A verdade é que são quase todos na direção de Este-Oeste, isto é de Portugal para o Brasil. E muito poucos no sentido contrário”.

É importante sublinhar que não há indícios de que o risco para o retábulo-mor da Matriz de Glaura, que chegou a Lisboa, exerceu algum interesse como fonte de referência formal e estética para os homens que lá se dedicavam a elaborar a arte e a arquitetura. A impraticabilidade de assertivas nesse sentido é também reforçada pelo fato de que o desenho foi modificado, porquanto sua constituição plástica destoava dos aspectos formais que, naquele momento, subsidiavam os projetos para os retábulos coevos portugueses. Assim, a apresentação dessa questão objetiva reforçar o conhecimento, por meio do exemplo do retábulo-mor da igreja de Glaura, de que esses desenhos circularam entre os dois continentes.

Figura 7
Retábulo-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura. Fotografia do autor

Figura 8
Interior da Igreja Matriz de Santo Antônio, Glaura. Fotografia do autor

A segunda observação relevante, identificada no trecho transcrito, adverte que o projeto foi refeito em prol de se ficar “Libre da Montiplicidade de Ornatos Aérios q’ trazia o que de lá vinha riscado” (RODRIGO FRANCO apud BASTOS, 2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., p. 95). Infelizmente, não foi localizado o desenho gizado em Minas Gerais que serviria para explicitar a composição formal da peça, nem tampouco se sabe quem foi o autor que a projetou, uma vez que são pouco conhecidos os nomes dos homens que desenvolviam itens equivalentes, como demonstrou a pesquisa de Pedrosa (2020¬). Todavia, pressupõe-se que a “Montiplicidade de Ornatos Aérios”, citada por Bastos (2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., p. 95), referia-se à presença de elementos constantes nos modelos retabulares mineiros produzidos por volta de 1757-1760, época provável da confecção do risco enviado a Lisboa. Nesse período, os retábulos locais eram constituídos, geralmente, com colunas de tipologia salomônica, quartelões, esculturas de anjos e meninos no coroamento, e com trono escalonado na região do banco, como ilustram os retábulos-mores das igrejas matrizes de Nossa Senhora do Pilar (São João del-Rei, 1755-1758) e de Nossa Senhora do Bom Sucesso (Caeté, 1758-1763), ambos produzidos por José Coelho de Noronha e oficina.

Figura 9
Retábulo para a capela-mor da igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Fonte: ANTT (1761b)ANTT - Arquivo Nacional Torre do Tombo. Retábulo para a Capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antônio de Casa Branca do Bispado de Mariana. Código PT/TT/MR/1/17, 1761b. Disponível em: http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4242906. Acesso em: 1º mar. 2022.
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O risco retabular ajustado por Rodrigo Franco (Figura 9) para a igreja Matriz de Santo Antônio apresentou composição que se distanciava dessas configurações: foram reduzidos os ornamentos aplicados; a planta era reta, contrastando com muitos retábulos mineiros de planta côncava; a base estava ornada com pequenas molduras; o banco não apresentava mísulas, atlantes ou cabecinhas de anjos; o sacrário não estava acoplado ao conjunto e apoiado sobre a mesa do altar, constituído por pares de colunas retas e cúpula simulando pequena construção arquitetônica; o frontal da mesa do altar estava desprovido de ornamentos; o corpo apresentava colunas de fuste reto; os nichos laterais tinham frontão triangular; o entablamento era com cornija bipartida e friso liso; o camarim apresentava espaço para abrigar pintura com ausência do tradicional trono escalonado em degraus, comum nos retábulos luso-brasileiros a partir de c. 1680; o coroamento tinha frontão curvo, figuras aladas laterais, cabecinhas de anjos e iconografia da Santíssima Trindade envolvida em raios.

Assim, a conformação proposta para o retábulo-mor de Glaura expressa afinidades com certas características dos retábulos portugueses faturados depois do terremoto que assolou Lisboa, em 1755, tal qual o retábulo-mor da igreja de São Pedro de Alcântara (Lisboa), lavrado por volta de 1758 (FERREIRA, 2008FERREIRA, Silvia. A talha: esplendores de um passado ainda presente - séculos XVI-XIX. Lisboa: Editora Nova Terra, 2008.).

O elevado custo que a obra de talha obrigava e a celeridade que se desejava para o processo implicaram a opção por soluções menos onerosas e mais rápidas. É assim que se procede um pouco por toda a cidade à reconstrução de altares, que embora incorporando ainda elementos do estilo que os procedeu - como é o caso da colocação de figuras alegóricas ou grandes anjos nos remates, ou da adopção de elementos decorativos que pontuavam nos retábulos anteriores, como é o caso das grinaldas, das formas concheadas estilizadas e elegantes ou das composições vegetalistas em pequenos apontamentos, a talha fala já uma outra linguagem e patenteia outra forma de conceber o espaço do altar. (FERREIRA, 2008FERREIRA, Silvia. A talha: esplendores de um passado ainda presente - séculos XVI-XIX. Lisboa: Editora Nova Terra, 2008., p. 94).

Acrescenta-se a essa via de entendimento a explicação do autor que gizou o desenho, indicando que ele tomou como referência a tratadística de arquitetura, “os preceytos das medidas e de baixo das regras da Archytectura Solida” (RODRIGO FRANCO apud BASTOS, 2009BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., p. 95), o que atesta as escolhas plásticas e estruturais representadas no risco e ratifica o emprego dos tratados de arte e arquitetura como referência para embasar desenhos para os retábulos coetâneos. Ademais, é viável distinguir uma possível ascendência artística italiana na conformação do retábulo-mor riscado para a igreja de Glaura, tendo em vista que essas referências foram enfatizadas na arte e na arquitetura portuguesa desde o início do século XVIII (LAMEIRA, 2003LAMEIRA, Francisco. O contributo da arquitetura italiana para a génese e evolução do retábulo barroco português (1619-1751). In: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de; PEREIRA, Sonia Gomes (Org.). Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: CBPA/PUC-Rio/UERJ/UFRJ, 2004, p. 221-240.), como exemplificam os altares da suntuosa Basílica do Real Edifício de Mafra. A respeito dessas influências, para o caso que por ora se examina, desperta a atenção a Capela de São João Batista, confeccionada na Itália e instalada na igreja lisboeta de São Roque, que pode ter servido como modelo para referenciar a proposta de Rodrigo Franco (Figura 10). A encomenda dessa obra ocorreu em 1742, e a sua instalação, na igreja de São Roque, data de 1751. Trata-se de projeto de Luigi Vanvitelli (1700-1773) com a participação de Nicola Salvi (1697-1751) e de outros oficiais que colaboraram na execução (RODRIGUES, 1989).

O retábulo da referida capela expressa feições do barroco tardio italiano, permanentes na produção de Vanvitelli, sobressaindo, entre esses aspectos, a disposição dos elementos arquitetônicos em consonância ao modo como eram organizados os altares italianos do período, principalmente as colunas coríntias que promovem a sustentação e organização espacial do conjunto, e a redução de itens escultóricos, divergindo da densidade plástica habitual na talha dourada portuguesa desde as últimas décadas do século XVII.

Figura 10
Capela de São João Batista, Igreja de São Roque, Lisboa. Fotografia do autor

Muitos itens formais e estruturais constantes no desenho de Rodrigo Franco podem ser observados no retábulo da Capela de São João Batista. Entre esses, lista-se a eliminação do trono escalonado, substituído por espaço para expor pintura, e, principalmente, a idêntica solução composicional e escultórica para a região do coroamento, com duas figuras aladas laterais, cabeças de anjos em nuvens, iconografia da Santíssima Trindade em meio a representações simbolizando luzes, incluindo-se os relevos que preenchem o arco que arremata a região. Verificam-se nichos laterais, incomuns nos altares italianos produzidos nos séculos XVII e XVIII, cuja permanência no risco para Glaura tem como provável justificativa cumprir exigência de ordem funcional, ou seja, eles serviam para sustentar as imagens devocionais, como se verifica em outras peças portuguesas setecentistas.

Desse modo, é legível que o desenho de Rodrigo Franco para o retábulo-mor da Matriz de Glaura aproximava-se do vocabulário ornamental italiano setecentista, distanciando-se dos modelos retabulares mineiros produzidos até a década de 1760. Essas obras recorriam ao uso de estruturas organizadas por colunas torsas ou de tipologia salomônica, quartelões e elementos ornamentais em grande quantidade, tais como formas fitomórficas, zoomórficas, antropomórficas e arquitetônicas. Ainda, elas incluíam sacrários integrados ao banco, monumentais tronos escalonados em degraus e apoteóticos coroamentos com dossel e figuras esvoaçantes. Como exemplo, temos os retábulos-mores das igrejas matrizes de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté (1758-1763), e Santa Luzia, na cidade homônima (c. 1760-1765). Não há registros que sinalizam se esse risco foi apresentado aos responsáveis pela ornamentação interna da igreja Matriz de Glaura e, caso tenha sido, qual avaliação fizeram do projeto que, naquele momento, seria novidade para o glossário da talha local. Não há respostas que permitam esclarecer os motivos que condicionaram a não execução da peça, restam apenas certezas de que a introdução dessa obra em Minas Gerais, nos anos de 1760, poderia ter servido como fonte de atualização do repertório formal e estético para os oficiais que se dedicavam a riscar e executar retábulos para as igrejas mineiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os trechos que trazem frações da memória da igreja Matriz de Santo Antônio, apresentados neste texto, evidenciam viabilidades de expansão das investigações sobre a história da arquitetura e da arte sacra setecentista brasileira a partir da análise de documentação primária, testemunha de obras não executadas no território da então colônia. Tais estudos permitem ampliar compressões sobre o modo como se organizavam as comunidades locais para materializarem as demandas alusivas à produção de templos, por intervenção da atividade das irmandades religiosas que lideravam esses pleitos, expostos em centenas de livros depositados, sobretudo, nos arquivos paroquiais locais.

Os registros coevos instauram perspectivas para resgatar informações sobre o processo burocrático imposto pela administração real na América portuguesa, que emitia normas e procedimentos de controle, determinando a aprovação de projetos na metrópole, estabelecendo entraves e morosidades aos pedidos requeridos. Tais posturas motivavam ações tencionadas a driblar essas e outras obstruções, como o caso averiguado em Minas Gerais. Esse último aspecto poderia ocorrer porque os processos tramitados entre os dois continentes eram lentos, em contraposição às urgentes necessidades espirituais de uma população que usufruía do espaço da igreja para professar sua fé, salvar as almas perante as incertezas entre a vida e a morte e que tinha os templos como lócus de sociabilidade quando as opções de entretenimento eram essencialmente os eventos do calendário religioso. Todavia, essas questões necessitam ser averiguadas perante o minucioso estudo de documentação, pois seu entendimento abrange componentes complexos que tangem os liames da organização administrativa colonial.

Adiciona-se às questões elencadas que o favorecimento por parte da historiografia da arte mineira, do estudo dos templos inseridos nos principais centros urbanos despontados no início da ocupação do território, como Mariana e Ouro Preto, evoca o esquecimento de zonas menores, sobretudo as que se encontram em distritos, onde sobrevivem dezenas de edificações religiosas aguardando estudos. O resultado dessas investigações poderá impor novo olhar sobre a compreensão do patrimônio religioso local a partir do ponto de vista de sua história, da disponibilidade e do aprimoramento dos meios técnicos e tecnológicos que permitiram sua produção, dos materiais disponíveis empregados para materializar a arte. Ainda, pode lançar luz aos oficiais e aos núcleos de trabalho que efetuaram serviços para esses espaços, que continuam pouco conhecidos ou mesmo anônimos. No caso da Matriz de Santo Antônio, essa assertiva pode ser confirmada por meio da análise dos detalhes expressos nos riscos remanescentes, das representações raramente encontradas em arquivos e do levantamento de nomes desconhecidos, como o de Valério de Souza, à frente da execução de retábulo para a referida igreja. Até a década de 1730, poucos são os oficiais entalhadores ativos na região que tiveram sua identidade revelada.

Além de Valério de Souza, cuja identidade permitirá desenvolver investigações sobre as oficinas de talha ativas em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XVIII, desperta a atenção o aparecimento, na documentação, do nome de Francisco de Lima (Cerqueira), posto ser completamente desconhecida a sua operação no período, embora o seu protagonismo na construção religiosa tenha sido devidamente apurado pela historiografia. Assim, este artigo instaura alternativas para o estudo da arte e da arquitetura brasileira a partir de interrogações que poderão ser analisadas por outros pesquisadores em busca de respostas que este texto não conseguiu solucionar.

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    A denominação Glaura, que substituiu o antigo nome, Santo Antônio do Campo de Casa Grande, data de 1943 e foi registrada por meio do decreto da Câmara Municipal de Ouro Preto.
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    A expressão “estilo nacional português” foi conferida por Robert Smith (1962) ao analisar os retábulos produzidos em Portugal a partir das duas últimas décadas do século XVII e a primeira década do século XVIII, aproximadamente. O pesquisador empregou a denominação posto que a configuração retabular local não apresentava relações com a produção coetânea europeia, constituindo-se um repertório tipicamente português, nas palavras de Smith. Caracteriza os retábulos desse ciclo a presença de colunas torsas com aves, cachos de uva, folhas de videira, folhagem acântica e de remate com arquivoltas concêntricas e aduelas.
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    Nas citações foram mantidas a grafia e a pontuação dos textos originais.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Abr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2022
  • Aceito
    12 Set 2022
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