Acessibilidade / Reportar erro

A história e a disputa de sentidos: sobre o autoritarismo brasileiro

History and the dispute of meanings: about the Brazilian authoritarianism

RESUMO

Sobre o autoritarismo brasileiro se propõe a apresentar de forma acessível e didática as raízes históricas do autoritarismo brasileiro. Trata-se de livro que surge ligado a um contexto político de crise e que se propõe a tarefa de disputar os sentidos da história diante dos perigos do revisionismo, da falsificação e da naturalização da violência política.

PALAVRAS-CHAVE
Autoritarismo; história do Brasil; pensamento social brasileiro

ABSTRACT

“About Brazilian authoritarianism” proposes to present in an accessible and didactic way the historical roots of Brazilian authoritarianism. This book is linked to a political context of crisis and proposes the task of disputing the meanings of history in the face of the dangers of revisionism, falsification and naturalization of political violence.

KEYWORDS
Authoritarianism; Brazilian history; Brazilian social thought

Para um historiador soaria redundante e até ingênua a afirmação de que a escrita da história não se resume a uma catalogação de eventos em ordem cronológica e nem a uma descrição de eventos passados. Soaria, não estivéssemos nós em tempos tão estranhos em que é preciso reafirmar o óbvio. E o que é o “óbvio”? Há de fato algo que seja óbvio? Essas perguntas – que nada têm de óbvias – talvez tragam a questão que anima o historiador: o que nos fez chegar até aqui? Mesmo diante das múltiplas possibilidades que as vidas de homens e mulheres assumiram no decorrer da história, o historiador é aquele que, em certa medida, acredita que há certos fios que tecem a trama do que pode ser a “humanidade”. São fios que só podem ser vistos com leitura, análise e com o manejo do método, o que é o mister do historiador.

Portanto, o “óbvio” poderia ser a afirmação da nossa humanidade, o que atrela a vida de cada um de nós à história da política, do direito, da economia e da cultura. A humanidade é o resultado de caminhos tortuosos, de contingências, de decisões planejadas e também inconsequentes; de conflitos, de conciliação, de lembranças e de esquecimentos. Há, portanto, uma luta pelos sentidos do “óbvio” humano, o que nos leva à conclusão de que também existe uma disputa acirrada sobre o sentido histórico dos processos de constituição da vida social. Essas disputas são políticas, na medida em que a disputa pelos sentidos da história irá construir os sustentáculos ideológicos do poder, do valor da vida humana, dos limites da liberdade e do significado da nação.

É a partir dessa ideia da história como disputa de sentidos que se pode compreender a nova empreitada da historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, que lança o livro Sobre o autoritarismo no Brasil, em que a autora perpassa alguns aspectos da história do Brasil, com ênfase na formação dos elementos constitutivos do autoritarismo brasileiro.

A autora, cuja produção intelectual abrange livros importantes como O espetáculo das raças (1993)SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993., As barbas do imperador (1998)_____. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. e Lima Barreto: triste visionário (2018)_____. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das. Letras, 2018., demonstra, com esse novo livro, uma tomada de posição mais aguda frente ao atual cenário político brasileiro. O título da obra, somado ao contexto da publicação, já seria suficiente para indicar a emergência política do texto. Mas não é só isso. A ilustração de capa (que traz a obra Memória2 2 Nessa obra, tecidos (recolhidos ao acaso ou oferecidos à artista) são transformados em escultura, remetendo à ideia de que, ao remexer fios e tecidos da memória, novas formas se apresentam no tempo atual, interpolando nossa própria contemporaneidade. , de Sonia Gomes), a gênese dos textos – que faz uso de dados do livro Brasil: uma biografia (SCHWARCZ; STARLING, 2014_____; STARLING, Heloisa Murgel. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.) e de artigos publicados no Nexo Jornal nos últimos cinco anos – , a organização da obra e o título dos capítulos revelam a franca preocupação de entrar na disputa sobre os sentidos da história em um momento em que a crise destampa o bueiro do autoritarismo no Brasil.

Não é por acaso que a introdução contém a afirmação de que, “de uma forma ou de outra, a narrativa histórica produz sempre batalhas pelo monopólio da verdade” (p. 20). E por isso alerta para o fato de que tais “momentos [de crise] costumam desaguar em disputas pela melhor versão do passado, que vira um tipo de jogo de cartas marcadas, condicionado pelas questões do presente” (p. 21). Por isso que, prossegue a autora, nessa “hora, a história se transforma numa sorte de justificativa, enredo e canto de torcida organizada” (p. 21).

Mas que não se compreenda o que disse a autora como um elogio da neutralidade. O que se faz no livro é reafirmar que a escrita da história é feita de disputas e que não há história “desinteressada”, de tal sorte que é papel do historiador, seja qual for a sua posição no mundo, anunciar essas tensões, dialogar com as diversas possibilidades, não se render ao senso comum e às formas de “naturalização”, seja de processos sociais, seja de versões “oficiais” da história. Ao desfiar intelectualmente o autoritarismo, o livro manda um recado contra ele.

A disputa de sentido é feita com o oferecimento de subsídios para uma compreensão do país que nos apresente o “óbvio”, que só quem se dedica à escrita da história pode nos revelar: que a sociedade brasileira resulta de um processo político e culturalmente autoritário. Dizer isso é, hoje em dia, uma tarefa fundamental em tempos de desinformação utilizada como arma política e de revisionismos que pretendem transformar senhores de escravo em “empreendedores”, e escravos, em “colaboradores”; que responsabiliza minorias pela violência que sofrem e que afirma sem pudor que o “nazismo é de esquerda”.

É claro que não seria necessário, a priori, escrever um livro de história ou de sociologia para refutar tais absurdos. Não seria, não estivéssemos afogados no mundo da pós-verdade, das fake news, da mentira autorizada, do anti-intelectualismo. Estamos sob o jugo da Dumheit (palavra que pode ser traduzida do alemão por “burrice” ou “tolice”), tal como nos alertou Adorno ao se referir ao modo como a recusa do conhecimento abre espaço para regimes totalitários ou autoritários, como o foi o nazismo.

A falsificação da história em nome de projetos antidemocráticos não é feita apenas em redes sociais. Pode ser vista em livros que, a pretexto da “simplicidade”, retorcem a história para propagar mentiras que, não por acaso, reforçam discursos contra trabalhadores, contra minorias raciais e sexuais, contra as religiões de matriz africana, e a favor da violência como forma de imposição da ordem social. Tais livros, que mais parecem compilados de tweets, são verdadeiros best-sellers e ganham cada vez mais espaços na mídia e até em discursos proferidos por autoridades da República.

Sobre a forma, é importante destacar que o texto é escrito de maneira bastante acessível, e sua pretensão é declaradamente didática. Não é um livro de teses ou do qual se possam esperar grandes debates acadêmicos. É um livro voltado para um público que não está habituado com as várias nuances da história do pensamento social brasileiro, e, exatamente por não mirar tão somente a comunidade acadêmica, o texto parte de posições específicas acerca de autores e conceitos que na academia são extremamente controversos, como é exemplo o próprio conceito de “autoritarismo”. A própria autora afirma o caráter de sobrevoo do livro ao dizer que o “objetivo deste pequeno livro é reconhecer algumas das raízes do autoritarismo no Brasil, que têm aflorado no tempo presente, mas que, não obstante, encontram-se emaranhadas nesta nossa história de pouco mais de cinco séculos” (p. 26). Por isso, pode-se dizer que a relevância do livro está principalmente em reinserir no contexto político atual um debate sobre um dos temas centrais do pensamento social brasileiro, que é o autoritarismo, ao mesmo tempo que traz à tona a relação desse conceito com as chamadas “políticas de identidade”.

Não chegamos até o autoritarismo presente de uma hora para outra. Não foi só contingência, mas também não foi tão somente um “projeto”. É preciso entender como se forjou a alma de um país tão desigual, em que o número de pessoas LGBT mortas a cada ano é assombroso e que assistiu atônito a uma vereadora, mulher negra e lésbica, ser assassinada nas ruas do centro da cidade brasileira mais famosa no mundo.

Assim, o reconhecimento de que nosso “autoritarismo” presente tem raízes em nosso autoritarismo “passado” não pode ser visto sem mediações. “Não existe uma continuidade mecânica entre nosso passado e o presente, mas a raiz autoritária de nossa política corre o perigo de prolongar-se, a despeito dos novos estilos de governabilidade”, alerta a autora. A proposta do livro é justamente compreender essas “mediações” cujo balanço nos leva a concluir pela existência de um autoritarismo especificamente brasileiro, construído à nossa imagem e semelhança.

Mas como se apresentariam, segundo o livro, essas mediações históricas capazes de explicitar nossas raízes autoritárias? A resposta se desdobra em cada um dos oito capítulos do livro em que os elementos formadores do autoritarismo brasileiro são apresentados, a saber: escravidão e racismo; mandonismo; patrimonialismo; corrupção; desigualdade social; violência; sexismo; intolerância. É uma divisão que visa a atender os objetivos didáticos do livro, pois se nota que todos esses elementos estão entrelaçados e se revelam no que a autora chama de “déficit republicano” (p. 236). Esse déficit republicano, consequência do autoritarismo, como frisa a autora algumas vezes, estaria até mesmo impedindo saídas para impasses nacionais que não se limitassem a depositar todas as fichas em lideranças carismáticas capazes de nos redimir. É como se o autoritarismo, que nunca fora expurgado da “alma” nacional, se apresentasse até mesmo como solução para os problemas que o próprio autoritarismo potencializa.

Merece especial atenção o destaque dado à questão racial ao longo do livro. Embora a escravidão seja tratada como uma espécie de “ponto de ignição” do autoritarismo nacional, é interessante notar como de forma acertada e coerente o livro não estabelece uma continuidade mecânica entre a escravidão e o racismo. É inegável que o racismo tem relação com a escravidão, mas a autora reforça que a sociedade brasileira reproduz o racismo com as novas estruturas sociais criadas após a abolição. Ou seja, a desigualdade racial que marca o autoritarismo não é apenas “herança” da escravidão; o racismo tornou-se independente da escravidão e se atualizou, ganhou novas formas de se reproduzir para além da escravidão. É essa “plasticidade” do racismo que permite ao autoritarismo brasileiro adaptar-se aos mais variados contextos sócio-históricos.

São as identidades de raça, gênero e sexualidade que abrem espaço para a naturalização da violência cotidiana que bloqueia o advento de uma cultura democrática e da consolidação de estruturas republicanas, uma vez que se constituem em “marcadores de diferença”. Assim, um dos méritos do livro é o de não se render a uma crítica vazia ao “identitarismo”, reconhecendo as identidades como parte do processo de formação nacional. Lilia Schwarcz nota que as identidade são produzidas no caldo da violência estruturalmente organizada pelo Estado e é este o cerne do autoritarismo enquanto ideologia fundante das mazelas nacionais.

  • 2
    Nessa obra, tecidos (recolhidos ao acaso ou oferecidos à artista) são transformados em escultura, remetendo à ideia de que, ao remexer fios e tecidos da memória, novas formas se apresentam no tempo atual, interpolando nossa própria contemporaneidade.
  • ALMEIDA, Silvio Luiz de. A história e a disputa de sentidos: sobre o autoritarismo brasileiro. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 74, p 324-328, dez. 2019.

REFERÊNCIAS

  • SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
  • _____. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • _____. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das. Letras, 2018.
  • _____; STARLING, Heloisa Murgel. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    02 Out 2019
  • Aceito
    02 Dez 2019
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br