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Transformação de padrões centro-africanos no samba urbano do Rio de Janeiro: 1933-1978

Transformation of central African patterns in the urban samba of Rio de Janeiro: 1933-1978

RESUMO

Este artigo pretende identificar, pelo viés da análise musical, transformações de padrões centro-africanos (linhas-guia em particular) no samba urbano do sudeste brasileiro, à luz do processo colonial e de sua projeção no século XX. Entendendo que as vias transatlânticas desenhadas pelo comércio escravista dão início a uma ligação entre territórios separados pelo oceano através de uma convivência forçada, desigual e desestabilizadora de grupos diferentes, formulamos a hipótese de que culturas diversas podem ter assimilado a seu modo as práticas musicais de outras, contribuindo para formar as estruturas complexas daquilo que hoje identificamos como o samba urbano brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE:
Samba urbano; música africana; linhas-guia; análise musical; escravismo

ABSTRACT

This paper intends to identify, through the bias of the musical analysis, transformations of central African patterns (time lines in particular) in the Brazilian southeast urban Samba, in the context of the colonial process and its projection in the twentieth century. Understanding that the transatlantic routes designed by the slave trade begin a connection between territories separated by the ocean through a forced, unequal and destabilizing coexistence of different groups, we hypothesize that diverse peoples may have assimilated in their own way the musical practices of others, contributing to form the complex structures of what we now identify as Brazilian urban Samba.

KEYWORDS:
Urban samba; African music; time lines; musical analysis; slavery

Samba vem lá de Angola Não vem da Bahia não Samba vem lá de Angola Não vem lá do Rio não (Geraldo Vespar/João Nogueira - “Lá de Angola”)

Um dos aspectos da cultura brasileira normalmente lembrados na música em particular é a influência que as diferentes práticas de povos africanos teriam exercido em sua base. Em nossa produção musicológica, entretanto, bem como em nossas instituições de ensino de música, é notável o predomínio de estudos e aulas que tratam da música europeia, reservando para a África apenas um espaço muito pequeno. Ainda que o número de africanos chegados ao Brasil entre 1550 e 1850 seja quase sete vezes maior do que o número de portugueses entrados no mesmo período (segundo estimativa de Luiz Felipe de Alencastro, 2018_____. África, números do tráfico atlântico. In: SCHWARCZ, Lilia M.; GOMES, Flávio (Org.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., a cada 100 pessoas desembarcadas no Brasil 86 eram africanas, totalizando cerca de 4,8 milhões, 46% do total de africanos deportados chegados vivos nas Américas), as aulas de nossos conservatórios, faculdades e escolas de música continuam a tratar, inversamente, em proporção muito maior, da influência, história e descrição da música europeia.

Ainda que se leve em conta o grande número de imigrantes europeus que chegaram ao Brasil na passagem do século XIX ao XX depois de cessado o tráfico internacional de escravizados e a própria escravidão, a multissecular presença africana se faz visível hoje: desde os últimos recenseamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, mais da metade dos brasileiros (cerca de 54%) se autodefine como afrodescendente. Talvez possamos identificar esse fato na crescente produção artística de grupos que buscam dialogar, incorporar e localizar traços da cultura africana em seus trabalhos. Visto que o tema interessa cada vez mais a diferentes áreas de atuação, é surpreendente que a musicologia e a análise musical tenham produzido tão pouco no campo que diz respeito à identificação das práticas africanas que podem ter exercido influência na música brasileira. Na raridade dessa produção, as referências e a utilização desse campo do conhecimento ocorrem geralmente em bases vacilantes e pouco seguras.

Olhando para essa produção pequena, pode-se identificar ainda outra assimetria: há um acúmulo de trabalhos que tratam do itinerário de influência entre o Golfo do Benim e a Bahia, enquanto o itinerário entre a África central banto e o sudeste brasileiro permanece menos estudado. A fim de reduzir essas diferenças, seria talvez interessante lembrar aqui mais uma vez alguns dados conhecidos: 1) o Brasil foi o país que recebeu o maior número de africanos deportados e que manteve durante mais tempo a escravidão; e 2) dentro desse fluxo, o tráfico de escravizados entre os portos da África central e do sudeste brasileiro foi o mais volumoso e mais duradouro.

Essa perspectiva ganha corpo se levarmos em conta ainda outra vez o trabalho de Luiz Felipe de Alencastro (2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.), no qual, estudando a história dos primeiros séculos da colonização portuguesa e do escravismo, descreve a formação do Brasil como um ,espaço aterritorial, um arquipélago lusófono composto dos enclaves da América portuguesa e das feitorias de Angola (ALENCASTRO, 2000ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 9). Seu estudo não pretende operar em uma descrição comparativa das colônias portuguesas (Brasil e Angola em particular), mas demonstrar como essas duas partes unidas pelo oceano se completam num só sistema de exploração colonial cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporâneo (ALENCASTRO, 2000, p. 9).

Se a conexão entre Angola e Rio de Janeiro marca profundamente o início do que hoje chamamos Brasil, por que nossa análise musical estuda tão pouco esse itinerário? A conveniência em estudá-lo para melhor compreensão da música brasileira é enfatizada se consultamos o projeto Slave voyages (VOYAGES, 2013), iniciado no Institute for African and African-American Research da Universidade de Harvard e hoje hospedado como uma database na Universidade de Emory, onde se pode gerar gráficos e obter dados precisos sobre o número de africanos escravizados desembarcados em todas as partes do mundo. Uma breve consulta a essa base de dados revela que da região portuária da África centro-ocidental para o sudeste brasileiro foram desembarcados nada menos que 2.235.080 africanos escravizados, com ênfase no século XIX.

Figura 1
Embarques e desembarques de africanos entre a África centro-ocidental e o sudeste brasileiro

Enquanto, entre os portos da região da África ocidental (baía do Benim, golfo do Biafra e costa do ouro) e da Bahia, a mesma database indica um fluxo bem menor: 903.456 escravizados desembarcados, a maior parte no século XVIII.

Figura 2
Embarques e desembarques de africanos entre a África ocidental e a Bahia

Há quase 40 anos, o especialista austríaco em música africana e sua diáspora, Gerhard Kubik, já concordava com Fernando Augusto de Albuquerque Mourão quando este afirmava que Himpressionados pelo panteão dos orixás, esses autores [que estudaram a influência da cultura sudanesa] sentiam que angolanos e moçambicanos no Brasil dificilmente teriam algo igualmente interessante a oferecer para os estudos acadêmicos” (KUBIK, 2013_____. Angola in the black cultural expressions of Brazil. New York: Diasporic Africa Press, 2013., p. 6-7)2 2 A tradução de todas as citações de textos em inglês foi feita por mim. , constatação partilhada também pelo etnomusicólogo Tiago de Oliveira Pinto: tradicionalmente, a maioria dos estudos afro-brasileiros tem dado maior peso a essas culturas [das regiões iorubá, fon e ewe do sudoeste da Nigéria e Benim], resultando que a influência banto, em geral, tem sido subestimada ou pouco reconhecida pelos acadêmicosT (OLIVEIRA PINTO, 1987OLIVEIRA PINTO, Tiago de. Review of Gerhard Kubik: Angolan traits in black music, games and dances of Brazil, a study of African cultural extensions overseas. African Music, v. 6, n. 4, 1987, p. 155-159., p. 155).

Em relação ao itinerário proposto pelo fotógrafo-antropólogo Pierre Verger em Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benim e a Bahia de Todos os Santos3 3 Desse espaço, ou itinerário, tratam trabalhos como os de Marcos Branda Lacerda: Drama e fetiche: vodum, bumba meu boi e samba no Benim, “Transformação dos processos rítmicos de offbeat timing e cross rhythm em dois gêneros musicais tradicionais do Brasil” e, em alguma medida, Música instrumental no Benim (LACERDA, 1998; 2005; 2014); de Tiago de Oliveira Pinto, Capoeira, samba e candomblé: Afro-brasilianische musik im Recôncavo, Bahia e “Healing process as musical drama: the Ebó ceremony in the Bahian candomblé of Brazil” (OLIVEIRA PINTO, 1991; 1997); e, de Gerard Béhague, “Patterns of Candomblé music performance: an Afro-Brazilian religious setting” (BÉHAGUE, 1984), entre outros. , o conjunto de trabalhos de análise musical é esclarecedor, e acumula dados históricos, sociais, linguísticos, organológicos e análises que nos permitem compreender melhor e identificar diferentes práticas brasileiras do candomblé, por exemplo, nos quais as influências iorubá, ewe e fon são marcantes. Em relação ao espaço Angola-Rio de Janeiro, penso que ainda não acumulamos estudos tão esclarecedores.

O itinerário África ocidental-Bahia e o standard pattern de 12 pulsos no Nordeste

No campo da análise musical, uma importante evidência normalmente aceita em relação à continuidade de práticas musicais da África Ocidental na música brasileira são os padrões rítmicos conhecido como linhas-guia (ou time lines). Na teoria da música africana, o termo linha-guia é descrito por Kwabena Nketia (que o utilizou pela primeira vez em 1963NKETIA, J. H. Kwabena. African music in Ghana. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1963.) como uma referência constante que guia as estruturas de frase e organização rítmica de uma música (NKETIA, 1963NKETIA, J. H. Kwabena. African music in Ghana. Evanston, IL: Northwestern University Press, 1963., p. 68). Kubik (1994_____. Theory of African music. v. 1. Wilhelmshaven: F. Noetzel, 1994., p. 45) descreve a linha-guia como “um elemento regulador presente em muitos tipos de música africana [...] o padrão da linha-guia representa o núcleo estrutural de uma peça musical, algo como uma expressão condensada e extremamente concentrada das possibilidades de movimento abertas aos participantes (músicos e dançarinos)”, e Agawu (2006_____. Structural analysis or cultural analysis? Competing perspectives on the “standard pattern” of West African rhythm. Journal of the American Musicological Society, v. 59, n. 1, p. 1-46, 2006., p. 3), levando em conta diversas definições, afirma que “há consenso geral que as time lines são materialmente reais, largamente usadas e marcadores cruciais da referência temporal na música africana”.

Há uma linha-guia particular, recorrente em toda a África ocidental subsaariana, que por sua frequência é referida por pesquisadores com o nome de standard pattern. Foi transcrita de modos distintos, entre outros: 1) ora na forma da notação tradicional europeia (AGAWU, 2006_____. Structural analysis or cultural analysis? Competing perspectives on the “standard pattern” of West African rhythm. Journal of the American Musicological Society, v. 59, n. 1, p. 1-46, 2006.); 2) ora na de representação por pulsos onde [x] é um pulso percutido e [.] é um pulso não percutido (TOUSSAINT, 2003TOUSSAINT, Godfried T. Classification and phylogenetic analysis of African ternary rhythm timelines. Proceedings of Bridges: Mathematical Connections in Art, Music and Science, Granada, Spain, 2003, p. 25-36.); 3) ora em sequência de durações numéricas (PRESSING, 1983PRESSING, Jeff. Cognitive isomorphisms between pitch and rhythm in World Musics: West Africa, the Balkans and western tonality. Studies in Music 17, 1983, p. 38-61.); 4) ora na chamada Time Unit Box Notation (TUBS), desenvolvida por Phillip Harland e aplicada para análise da música africana por James Koetting (1970KOETTING, James. Analysis and notation of West African drum ensemble music. Selected Reports, ano 1, n. 3, p. 115-146, 1970. ); e 5) ora na forma cíclica do relógio (TOUSSAINT, 2003), entre outras tantas formas de representação possíveis:

Figura 3
Diferentes formas de representação do standard pattern

Essa linha-guia, quando presente na música das Américas, é interpretada como provável continuidade de uma tradição africana. Gerhard Kubik atribui a ela uma função “diagnóstica”, chegando a afirmar que “onde o standard pattern de doze pulsos ocorre, principalmente em sua versão de sete toques e quando é tocado por um metal ou garrafa, temos uma pista quase certa de que estamos perante uma tradição da costa da África ocidental, iorubá, fon, ewe ou similar” (KUBIK, 2013_____. Angola in the black cultural expressions of Brazil. New York: Diasporic Africa Press, 2013., p. 18, 19).

O itinerário África centro-ocidental-Rio de Janeiro e o standard pattern de 16 pulsos no Sudeste

Se a presença dessa linha-guia no candomblé brasileiro em particular é entendida como uma continuidade da tradição africana, no caso do itinerário de influência África centro-ocidental-sudeste brasileiro e nos estudos sobre o samba urbano carioca é comum encontrarmos indicações como a de Renato de Almeida: “falar do samba é recordar, por força, o batuque angola-conguense, em que os negros ficavam em roda aberta, tocando tabaques e batendo palmas [...]” (LIRA, 1953LIRA, Mariza. Primeira exposição de folclore no Brasil: achegas para a história do folclore no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1953., p. 60), sendo menos comum localizar nesses trabalhos dados mais detalhados que apontem quais são as práticas musicais “angola-conguenses” identificáveis no Brasil e como elas se transformaram. Alguns trabalhos ligados à etnomusicologia apontam, na mesma trilha de interpretação do standard pattern na Bahia, outra linha-guia, que seria indicadora da continuidade de tradições africanas centro-ocidentais na música urbana do sudeste brasileiro, no samba em particular4 4 Em particular, os trabalhos de Kazadi Wa Mukuna, Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas (publicada pela primeira vez em 1978 e com reedição aumentada em 2000); o artigo de Gerhard Kubik, “Angolan traits in black music, games and dances of Brazil” (publicado em 1979 e republicado sob o nome Angola in the black cultural expressions of Brazil em 2013); o artigo de Tiago de Oliveira Pinto, “As cores do som: estruturas sonoras e concepção estética na música afro-brasileira” (2001); a tese Acoustic labour in the timing of everyday life (1992), de Samuel Araújo; o livro de Carlos Sandroni, Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), primeira edição de 2001; o método de Oscar Bolão, Batuque é um privilégio (2003). .

Nos trabalhos de Kubik (2013_____. Angola in the black cultural expressions of Brazil. New York: Diasporic Africa Press, 2013. [1978]), Mukuna (2000MUKUNA, Kazadi W. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2000. [1979]), Araújo (1992ARAÚJO JR., Samuel Mello. Acoustic labor in the timing of everyday life: a critical contribution to the history of samba in Rio de Janeiro. Diss. University of Illinois at Urbana-Champaign, 1992.), Sandroni (2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.) e Oliveira Pinto (2001______. As cores do som. Estrutura sonora e concepções estéticas na música afro-brasileira. África. Revista do Centro de Estudos Africanos, 2001.), um importante indício de influência é a presença de uma linha-guia característica de povos da região centro-africana, identificável como uma constante estrutural do samba urbano e considerada uma versão de 16 pulsos do standard pattern, que Gerhard Kubik (2013, p. 15) transcreve indicando também as sílabas mnemônicas ligadas ao padrão:


Esse padrão “contém” o standard pattern de 12 pulsos, com a adição de duas articulações em quatro pulsos:


Em notação tradicional o padrão em 16 seria:


Kubik (2013_____. Angola in the black cultural expressions of Brazil. New York: Diasporic Africa Press, 2013., p. 15) afirma que “esse padrão tem uma distribuição regional característica na África negra. Ele é quase exclusivamente concentrado na África banto, principalmente em Angola e áreas adjacentes do Congo e Zâmbia. Na costa oeste da África ele não é importante. É associado ao movimento de dança chamado kachacha , popular entre os povos luvale, chokwe e luchazi, podendo ser ouvido em gravações de campo feitas por Hugh Tracey (1957). Em relação a sua presença no Brasil, Kubik (2013, p. 15) afirma que é esse padrão que marca o samba urbano do carnaval do Rio e das praias de Salvador. Ou seja, em um resumo um pouco grosseiro do caso brasileiro, enquanto o standard pattern de doze pulsos, característico da costa oeste africana (iorubá, fon, ewe), se encontraria mais presente na região da Bahia, o padrão de 16 pulsos característico da África centro-ocidental (grupos banto) se encontraria mais difundido no Sudeste, no Rio de Janeiro em particular, embora os dois padrões possam ser encontrados nas duas regiões Para Kubik (2013, p. 15), esse padrão de 16 pulsos é o “padrão característico que permeia essa música [o samba urbano brasileiro] como o traço mais persistente [...] é um elemento focal no qual todos os outros instrumentistas, o cantor e os dançarinos encontram um pivô para sua orientação.

Esse autor recorda a impressão do músico africano Donald Kachamba, que o acompanhava em sua pesquisa no Brasil, afirmando que, para ele, a herança cultural iorubana dos candomblés [em Salvador] que vimos era óbvia. Mas no dia seguinte, quando vimos o samba urbano, ele comentou: ‘agora a Nigéria acabou; nós estamos em Angola’” (KUBIK, 2013_____. Angola in the black cultural expressions of Brazil. New York: Diasporic Africa Press, 2013., p. 17). O autor arremata o raciocínio dizendo que “notadamente, o standard pattern de dezesseis pulsos está ausente nos candomblés iorubanos, assim como é ausente na música iorubá africana, e o padrão de doze pulsos é ausente no samba” (KUBIK, 2013, p. 17). Em resenha sobre o trabalho de Kubik, a etnomusicóloga brasileira Kilza Setti concorda que a linha-guia de 16 pulsos “é o padrão que no Brasil marca o samba carioca” (SETTI, 1981SETTI, Kilza. Reviewed work: Angolan traits in black music, dances and games of Brazil - A study of African cultural extensions overseas. Revista de Antropologia, v. 24, 1981, p. 201-204., p. 203), e Tiago de Oliveira Pinto reforça que “seja o samba das escolas de samba, ou o samba tradicional de roda da Bahia - a sua herança banto se mostra de várias maneiras, sendo uma importante delas, conforme vimos, a linha rítmica” (OLIVEIRA PINTO, 2001______. As cores do som. Estrutura sonora e concepções estéticas na música afro-brasileira. África. Revista do Centro de Estudos Africanos, 2001., p. 96).

Em seu livro, Kazadi wa Mukuna (2000MUKUNA, Kazadi W. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2000., p. 28) também transcreve a linha-guia kachacha :


Note-se que essa linha-guia é diferente daquela transcrita por Kubik, e para Mukuna essa seria a forma “original” kachacha, afirmando que o padrão do samba carioca é uma inversão deste. Logo, há uma discordância entre Mukuna e Kubik em relação ao padrão kachacha, mas uma concordância em relação ao padrão do samba:


Tiago de Oliveira Pinto (2001______. As cores do som. Estrutura sonora e concepções estéticas na música afro-brasileira. África. Revista do Centro de Estudos Africanos, 2001., p. 95) transcreve o mesmo padrão kachacha de Mukuna, utilizando a notação de pulsos |x . x . xx . x . x . x . xx .|, que considera mais apropriada. Descreve-o, entretanto, não como uma inversão mas como o próprio padrão característico do samba, que chama de “linha rítmica do samba”. É possível perceber então que, entre Oliveira Pinto, Mukuna e Kubik, há um nível de discordância entre versões invertidas ou originais, ou ainda um nível de equivalência entre os padrões kachacha e os do samba carioca.

Samuel Araújo, em Acoustic labour in the timing of everyday life (ARAÚJO, 1992ARAÚJO JR., Samuel Mello. Acoustic labor in the timing of everyday life: a critical contribution to the history of samba in Rio de Janeiro. Diss. University of Illinois at Urbana-Champaign, 1992.), transcreve um padrão que chama de “ciclo do tamborim”, que atribui ao samba urbano:

Figura 4
“Ciclo do tamborim” segundo Araújo (1992ARAÚJO JR., Samuel Mello. Acoustic labor in the timing of everyday life: a critical contribution to the history of samba in Rio de Janeiro. Diss. University of Illinois at Urbana-Champaign, 1992.)

Nessa representação, o padrão é o mesmo que aquele transcrito por Oliveira Pinto e Mukuna, adaptado ao compasso de 2 por 4. Dessa forma, cada pulso do conjunto de 16 equivale a uma semicolcheia. Em sua estrutura interna de durações, é igual à “linha rítmica do samba” de Oliveira Pinto:


Gerhard Kubik aponta ainda, em uma transcrição de David Rycroft (1962RYCROFT, David. The guitar improvisation of Mwenda Jean Bosco (Part II). African Music Society Journal, v. 3, n. 1, 1962, p. 86-102., p. 100), o que considera ser, ainda, o mesmo padrão, tocado em uma garrafa vazia, como acompanhamento de peças do violonista congolense Jean Bosco:


Diferentes posições do standard pattern de 16 pulsos no samba carioca

Ora, esses autores parecem estar descrevendo o mesmo padrão e ao mesmo tempo padrões diferentes!

Essa “confusão” se dá porque, em minha opinião, não temos dado a importância devida a um tipo de sensibilidade rítmica importante na música brasileira e africana em geral: padrões que têm a mesma estrutura interna, a mesma relação de durações entre longas e curtas, a mesma “classe combinatorial” de intervalos - mas ao ocuparem diferentes posições métricas se transformam em ritmos diferentes, o que faz com que cada padrão seja percebido de forma diversa. Dito de outro modo, o ponto de referência para todos os participantes do evento (músicos, dançarinos, ouvintes) - a sensibilidade métrica, em suma - pode ser diferente para uma mesma linha-guia. Ou ainda, segundo J. Pressing (1983PRESSING, Jeff. Cognitive isomorphisms between pitch and rhythm in World Musics: West Africa, the Balkans and western tonality. Studies in Music 17, 1983, p. 38-61., p. 52), “multistabilidade perceptiva parece de fato ser uma característica dos conjuntos percussivos da África Ocidental”. Isso parece potencialmente confuso para a análise, pois, como afirma D. Temperley (2000TEMPERLEY David, Meter and grouping in African music: A view from music theory. Ethnomusicology, v. 44, n. 1, Winter 2000; Humanities Module., p. 67), “uma estrutura métrica é melhor vista como algo que existe na mente do ouvinte, e não necessariamente está presente na música de modo direto”. Aquilo “que existe” na mente de um grupo de pessoas como referência compartilhada pode variar de uma cultura para outra5 5 Na formulação de Kubik (apud OLIVEIRA PINTO, 1987, p. 156), “o ponto de ataque do performer ao tocar uma linha-guia varia de cultura para cultura [...] e não influencia sua estrutura interna”. . Disso resulta que grupos diferentes interpretem o mesmo conjunto rítmico com diferentes percepções, fenômeno já conhecido e descrito na música africana por estudiosos como A. M. Jones (1959JONES, A. M. Studies in African music. London: Oxford University Press, 1959. 2 v., v. 1, p. 213 e segs.) e W. Anku, entre outros. Anku (1992ANKU, Willie. Structural set analysis. Vol. 1, Adowa. Legon, Ghana: Soundstage Production, 1992.) descreve esse fenômeno segundo o que chama de “normas étnicas de percepção”, exemplificando como o standard pattern de 12 pulsos é ouvido e interpretado de modos diferentes por grupos Anlo Ewe do sudeste de Ghana e Iorubá da Nigéria:

Figura 5
Diferentes “normas étnicas” de percepção do standard pattern segundo Anku (1992ANKU, Willie. Structural set analysis. Vol. 1, Adowa. Legon, Ghana: Soundstage Production, 1992.)

Penso que Anku não se refira a uma “essencialização” de grupos étnicos - como se cada grupo ouvisse do mesmo jeito por toda a eternidade - mas a práticas musicais diferentes, que ao tempo de sua observação marcavam diferenças de performance entre esses grupos. Agawu (2006_____. Structural analysis or cultural analysis? Competing perspectives on the “standard pattern” of West African rhythm. Journal of the American Musicological Society, v. 59, n. 1, p. 1-46, 2006., p. 15) acrescenta ainda que, para a música africana, “a perspectiva de percepções diferentes da posição de um ritmo regulador sugere uma equivalência rotacional coletiva”, e Oliveira Pinto se refere à questão no Brasil, afirmando:

Fica evidente que a configuração do padrão rítmico, a sua gestalt básica permanece idêntica no Brasil e em Angola. Mesmo assim, existe uma diferença fundamental: semelhante às linguagens faladas, onde, mesmo não se mudando as palavras, os conteúdos podem ser alterados por influência de um novo habitat, também aqui se manteve a estrutura básica de um padrão, atribuindo-se-lhe apenas novo significado na sua recolocação em relação com a marcação (beat e offbeat). (OLIVEIRA PINTO, 2001______. As cores do som. Estrutura sonora e concepções estéticas na música afro-brasileira. África. Revista do Centro de Estudos Africanos, 2001., p. 97).

Uma breve comparação entre a equivalência interna e as diferentes interpretações métricas pode lançar alguma luz sobre o caso:

Figura 6
Comparação entre equivalência e interpretação métrica

Em cada caso, a barra colocada a cada repetição do padrão indica um agrupamento, que teoricamente terá importância na estrutura do evento como um todo: pode atrair um ponto de inflexão, estruturar uma frase melódica, marcar o fechamento de um ciclo, marcar o “pé no chão” da dança, em suma, a referência métrica partilhada na performance.Algumas dessas diferentes versões do padrão africano de 16 pulsos estão recolhidas no livro de Carlos Sandroni sobre as transformações do samba no Rio de Janeiro, junto a variações ouvidas por ele em gravações de Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola e no LP Rosas de Ouro (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.). A esse conjunto de ritmos o autor dá o nome de .paradigma do Estácio, que ele opõe a outro agrupamento que chama de pparadigma do Tresillo. O segundo, afirma, seria ligado ao maxixe e a um estilo de samba mais antigo, ligado ao grupo que se encontrava na casa de Tia Ciata, enquanto o primeiro é ligado à modernização do estilo promovida pelo grupo de sambistas do Estácio6 6 A oposição lembra um pouco controvérsias tradicionais da história da música europeia, como aquela entre prima e seconda prática, que marca o início do período barroco. . Todos os padrões que fazem parte de seus paradigmas. podem também operar com variações, em um parentesco com a ideia de paradigma linguístico, onde, em um dado conjunto e em certa posição na estrutura, os termos têm equivalência, podendo ser substituíveis entre si.

Para sustentar a equivalência entre esses termos ou padrões rítmicos, o autor chama a seu auxílio os teóricos da aditividade na música africana (entre outros, cito aqueles que são a base principal de Sandroni: A. M. Jones, K. Nketia e S. Arom). Não caberia aqui expor o complexo funcionamento da teoria da aditividade como pensada por esses autores, mas apenas indicar que Sandroni utiliza em seus paradigmasn a ideia de que a rítmica do samba brasileiro seria aditiva,pois atinge uma dada duração através da soma de unidades menores, que se agrupam formando novas unidades, que podem não possuir um divisor comum, (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 24), enquanto a rítmica ocidental seria divisiva, obedecendo assim a uma lógica básica supostamente diferente7 7 Essa oposição entre “africano” e “ocidental” é bem menos marcada segundo concepções de autores como, por exemplo, Temperley, Agawu e Toussaint. . Com isso, procura explicar a constância daquela equivalência interna. do padrão no samba, deixando de lado aquelas (em minha opinião) valiosas normas métricas de percepção. Não deixa de impressionar um pouco que Sandroni que pratica uma etnomusicologia rica e multidimensional, fundada na antropologia, na história e na ciência política construa em seu livro um capítulo técnico separado, de premissas musicais, onde privilegia uma abordagem formalista e quantitativa, estabelecendo os elementos musicais através de números para, então, explorar operações de adição, divisão e multiplicação a fim de identificar os termos que vão formar seu paradigma. Para minha percepção, dentro da abstração matematizante, cria-se espaço para abrigar, intercambiar e tornar equivalentes linhas-guia que, a princípio, são diferentes, suprimindo-se a interpretação e percepção dos participantes do evento.

Em contraste à concepção aditiva da música africana, Kubik garante que, ao conversar com músicos africanos em suas línguas tradicionais, em Angola e noroeste da Zâmbia não se encontra nenhum traço de um conceito como aditividade (KUBIK, 2013_____. Angola in the black cultural expressions of Brazil. New York: Diasporic Africa Press, 2013., p. 12), ideia corroborada por K. Agawu, para quem os teóricos da aditividade não levaram em conta o pensamento, a língua e a prática dos próprios africanos. Segundo o autor, enquanto a análise estrutural (baseada na metalinguagem europeia) aprova uma concepção aditiva do standard pattern , a análise cultural (originária do pensamento dos músicos africanos) a nega (AGAWU, 2006_____. Structural analysis or cultural analysis? Competing perspectives on the “standard pattern” of West African rhythm. Journal of the American Musicological Society, v. 59, n. 1, p. 1-46, 2006., p. 11). Ou seja, os africanos raramente pensam sua música em termos numéricos, o que leva Agawu a afirmar que os teóricos da aditividade não levaram suficientemente em conta o ambiente cultural no qual a música estudada se desenvolveu, uma falha para certa tradição etnomusicológica. Aquilo que a teoria ocidental, com a suposta precisão e segurança dos números, chama de .aditividade, o pensamento africano em geral descreveria em formulações mais holísticas, afetivas e expressivas. Agawu sustenta ainda que aembora Jones, Nketia, Brandel e muitos outros tenham insistido que a aditividade rítmica é, como Nketia coloca, a grande característica da música africanae, esse ponto de vista é, com toda probabilidade, um erro colossal, acrescentando ainda a impactante ideia de que, nesse contexto, o conceito de aditividade é apoiado mais amplamente na economia capitalista e política e, no caso específico de aplicações à música africana, por uma história imperial, (AGAWU, 2006, p. 12-13).

A perspectiva cultural que Kubik e Agawu confrontam com as teorias formalistas é enriquecedora, e chamar à análise os hábitos de sensibilidade e percepção que estão na base da prática musical pode reposicionar e balizar os resultados obtidos com a análise formal. Os modos de dançar em uma cultura em particular podem ajudar a análise musical a não perder o fenômeno, impedindo que a autonomização das possibilidades do formalismo musicológico se desligue da realidade do meio cultural, das opiniões e dos modos de pensar o mundo de onde a performance acontece.

As interpretações do standard pattern de 16 pulsos segundo os sambistas

No caso do samba urbano brasileiro, penso que a experiência de adicionar a percepção, sensibilidade, opinião e interpretação métrica dos músicos pode trazer novas perspectivas aos trabalhos de análise musical. Talvez isso possa ajudar a evitar a armadilha de “essencializar” padrões rítmicos africanos como imutáveis e estáticos, ainda que estejamos buscando identificar pistas da multissecular presença africana na música brasileira. O modelo de análise que descreve linhas-guia africanas (associadas a tradições milenares e pré-coloniais) e identifica sua continuidade diaspórica no candomblé e no samba urbano brasileiro (pós-colonial e contemporâneo) precisa evitar a armadilha da estabilidade excessiva, que condena um processo cultural dinâmico a um injusto congelamento idealizado.

Em minha própria experiência como músico, há alguns anos peço, informalmente, durante uma roda de samba ou choro na qual estou tocando, para algum colega tocar, sem variações, o que ele pensa ser o “padrão básico” da música. A resposta que ouvi com mais frequência (no Rio de Janeiro e em São Paulo) é diversa de todos aqueles padrões transcritos tanto no conjunto paradigmático de Sandroni quanto pelos estudiosos de música africana o que é notável! Os participantes que consultei se referiram com maior frequência ao padrão que podemos ouvir na gravação de Agora é cinza (Bide e Marçal) feita em 1933 por Mário Reis e conjunto Diabos do Céu8 8 Disco Victor 33728. 78 RPM. , bem como na gravação da mesma música feita pelo filho de Marçal, Mestre Marçal, no disco Mestre Marçal interpreta Bide e Marçal (MARÇAL, 1978MARÇAL. Marçal interpreta Bide e Marçal. LP EMI-Odeon 062 421147. 1978.):

Figura 7
Padrão tocado pela família Marçal

Ou, ainda, na representação por pulsos:


Tendo a mesma estrutura interna de todas as outras versões do standard pattern de 16 pulsos (adaptados para a duração de semicolcheia), esse padrão tem ainda outra referência métrica em relação àqueles descritos pelos musicólogos. Sandroni transcreve em seu livro um padrão que ouve percutido em uma garrafa na gravação de “Duas horas da manhã” (N. Cavaquinho / A. Monteiro) por Paulinho da Viola, que é muito próximo do padrão tocado nas duas versões de “Agora é cinza”, mas que ainda não correspondente à estrutura interna básica descrita na bibliografia. Salvo engano, esse padrão - que se repete em diversas gravações e estrutura diversos sambas urbanos cariocas - vai ser transcrito somente no método de Oscar Bolão (BOLÃO, 2003BOLÃO, Oscar. Batuque é um privilégio. São Paulo: Irmãos Vitale, 2003., p. 36), em um dos três tamborins de uma levada criada e executada pelos percussionistas Luna, Eliseu e Marçal:

Figura 8
Levada de Luna, Eliseu e Marçal transcrita por Bolão

Na transcrição de Bolão, as notas escritas acima da linha são articuladas com a baqueta (acentuadas), e as escritas abaixo da linha são articuladas com o dedo médio da mão que segura o tamborim. A diferença do padrão tocado pelo tamborim 1 para aquele apontado por Araújo e Oliveira Pinto (como característico do samba carioca) é também uma diferença de percepção métrica: levando em conta o fluxo harmônico, os desenhos melódicos, a totalidade do grupo instrumental e os ciclos mais longos da forma de cada peça, posicionamos o padrão em relação ao conjunto, para definirmos em que lugar da estrutura ele se inicia. A diferença métrica fica, então:


E invertido em relação ao de Kubik/Mukuna:


Sandroni nota esse tipo de inversão métrica em uma nota de rodapé de seu livro ao comparar dois padrões diferentes: “o primeiro compasso de lá é o segundo de cá e vice-versa”. Acaba, porém, novamente por igualá-los, afirmando que “se trata de uma fórmula rítmica repetitiva, circular (como tantas outras encontradas nas músicas africanas e afro-brasileiras), caso em que dificilmente se pode distinguir o ‘fim’ do ‘começo’” (SANDRONI, 2001SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 36). Dentro das rodas de samba e choro, entretanto, é possível notar que as diferentes posições métricas estão replicadas na estrutura das diferentes peças, estruturando e definindo repertórios diferentes, que são reconhecidos pelos músicos. Se alguém estiver com uma percepção métrica do padrão diferente da dos participantes da roda em geral, certamente vai receber um olhar feio, um cutucão ou ser tachado de “gringo”.

O padrão tocado em “Agora é cinza” e no tamborim 1 transcrito por Bolão é o mesmo que estrutura um vasto repertório de sambas, estando presente desde pelo menos as primeiras gravações do Estácio (e provavelmente antes) até hoje. Não sendo um ritmo exclusivo “do tamborim”, é um padrão estruturante da organização rítmica dos sambas como um todo. Na faixa “Tristeza pé no chão” (Armando Fernandes “Mamão”), gravada em disco de Clara Nunes lançado em 1973CLARA NUNES. Clara Nunes. LP Odeon SMOFB 3767, 1973., o padrão estrutura diversos planos da performance. Mukuna (2000MUKUNA, Kazadi W. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2000., p. 107) transcreve um trecho desse samba em seu livro relacionando o padrão centro-africano com a melodia, relação que falha, pois a transcrição está equivocada. Penso que se transcrevemos mais instrumentos da textura teremos melhores meios de compreender o nível profundo de estruturação que o padrão exerce na peça:

Figura 9
Transcrição de “Tristeza pé no chão” (de Armando Fernandes “Mamão”, gravação de Clara Nunes)

Figura 10
Continuação da transcrição de “Tristeza pé no chão”

Como decidir qual padrão é o referencial aqui? Qual interpretação métrica? Ainda que o cavaco inicie a peça tocando o padrão na versão indicada por Kubik e Mukuna, a análise dos ciclos maiores da organização musical (mudanças harmônicas, entradas de instrumentos, estruturas de frase etc.) define como referência a posição descrita por Bolão e para a qual estou procurando chamar a atenção. A transcrição pode ajudar ainda na análise da forma como cada instrumento se relaciona com esse padrão estruturante: fica mais claro, assim, que nesse caso o cavaco é que mais se aproxima de sua literalidade (adicionando algumas variações instrumentais características), tendo-o iniciado do meio, ou ainda “na cabeça”, na parte onbeat do padrão. A melodia cantada, por sua vez, está delineada pelo padrão em diversos desenhos rítmicos: note-se que a frase começa no apoio offbeat dado à segunda semicolcheia do início do compasso, ponto que vai ser acentuado e apoiado por outros instrumentos. Após uma série de semicolcheias, a palavra “tamborim” do final da frase se adéqua à rítmica do padrão, o mesmo que acontece com “lágrimas”, na frase seguinte. O tamborim faz sua entrada no mesmo ponto de apoio, a segunda semicolcheia acentuada. A partir desse apoio rítmico, articula uma imitação do início da melodia cantada, em semicolcheias, e retorna ao padrão com uma pequena variação, ligando uma colcheia e uma semicolcheia, gerando uma versão em 8 articulações. A cuíca entra no mesmo apoio da segunda semicolcheia acentuada, e segue uma imitação do tamborim, que por sua vez imitara o início da melodia. Tende, na sequência, a ficar mais afastado do padrão que o tamborim, sendo também delineada por ele em pontos. O surdo se mantém mais próximo do beat de referência, contribuindo para que os participantes sustentem a mesma interpretação métrica. A entrada dos metais também se dá em pontos articulados do padrão, indício de que o arranjador também é sensível a sua influência.

A posição métrica descrita por Kubik/Mukuna é também estruturante de outra parte importante do repertório do samba brasileiro: em “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso), pode-se ouvir o padrão organizando o naipe de sopros da famosa orquestração de Radamés Gnatalli9 9 Segundo Valdinha Barbosa (1985), Gnatalli passa a utilizar mais as rítmicas afro-brasileiras em seus arranjos por sugestão do baterista Luciano Perrone, que também participou dessa gravação. , gravada em 1939 por Francisco Alves, e a melodia do samba “Pra que discutir com madame” (Janet de Almeida) é estruturada nesta posição:

Figura 11
Estrutura rítmico-melódica de “Pra que discutir com madame”

O choro “Um a zero” (Pixinguinha/Benedito Lacerda) também está estruturado sobre essa posição, e ouvimos Pixinguinha tocar no saxofone melodias em cujo ritmo localizamos a linha-guia em sua forma de 7 articulações |x . x . x . . x . x . x . . x . |:

Figura 12
Excerto do contracanto da parte B de “Um a zero”

O percussionista e profundo conhecedor do samba e do choro Rafael Toledo me dizia, em uma conversa, que considerava esse um choro-sambado por causa dessa posição da linha-guia. Penso, assim, que linhas-guia que têm a mesma estrutura interna, mas posições métricas diferentes, dão origem a diferenciações entre estilos, podendo contribuir para nuclear e organizar repertórios diferentes. A mesma linha-guia centro-africana, em suas diferentes posições, pode ter contribuído para aquela diferenciação já tradicional entre o repertório da “velha-guarda” (o samba “maxixado” da turma de Donga, Pixinguinha e João da Baiana) e dos “modernizadores” (o samba “marchado” de Ismael Silva, Baiaco, Brancura e dos bambas do Estácio). Talvez possamos lembrar ainda que o samba da “velha guarda” de Pixinguinha, Donga e João da Baiana está ligado ao grupo que ficou conhecido como “pequena África” no Rio de Janeiro, com suas tias Ciatas e Percilianas, surgido do deslocamento interno de libertos da Bahia (entre “minas” e “angolas”) para o Rio de Janeiro. A hipótese aqui é a de que, como no caso descrito por Anku, a localidade influencia a percepção métrica, e o grupo ligado à pequena África cultivou uma percepção do padrão centro-africano diferente daquela do núcleo formado no Estácio, gerando práticas musicais diferenciadas por traços “locais”, dentre os quais a interpretação métrica é apenas mais um.

Rotações e interpretação métrica

Algum iniciado nas teorias sobre música africana pode dizer: “Mas isso são apenas rotações do padrão original!”.

Sem discordar propriamente, diria que as possibilidades geradas pela rotação (como a aditividade) também fazem parte do conjunto de ferramentas analíticas matemático-geométricas que formam um certo olhar sobre a música africana (e brasileira). Nesse caso, as linhas-guia (e a cultura africana e afro-brasileira em geral) são pensadas através de modelos circulares, normalmente em oposição (velada ou declarada) a modelos lineares e teleológicos das narrativas ocidentais modernas. Nesse contexto, a pecha de “circular” ecoa certa tradição ocidental de pensamento que confinou as culturas africanas a um “estado de natureza”, repetitivo e a-histórico10 10 Como ensinava Hegel em suas lições sobre filosofia da história: “Ela [África] não tem história propriamente dita. Aqui deixamos a África para não mais mencioná-la a seguir. Pois não pertence ao mundo histórico, não mostra movimento ou desenvolvimento [...] o que compreendemos, em suma, sob o nome de África é um mundo a-histórico, não desenvolvido, inteiramente prisioneiro do espírito natural, e cujo lugar se encontra ainda no limiar da História Universal” (HEGEL apud Arantes, 2000, p. 189). .

Adaptando a representação da linha-guia transcrita por Araújo/Pinto à maneira circular de G. Toussaint, teríamos:

Figura 13
Linha-guia à maneira circular

Considerando cada número como um pulso tendencialmente isócrono, temos a possibilidade de partir de dezesseis pontos diferentes, gerando dezesseis ritmos diferentes. Assim, se o ponteiro iniciar sua volta no número 16, temos o padrão do samba como pensado por Araújo e Oliveira Pinto. Se girarmos o círculo para iniciar o ponteiro no número 7, temos o padrão do samba como pensado por Kubik e Mukuna; se iniciamos do número 13, temos o padrão transcrito por Rycroft; e se começamos do número 15, temos o padrão tocado pelos Marçal em “Agora é cinza” e transcrito por Bolão:

Figura 14
Linhas-guia à maneira circular

Cada posição é uma referência estrutural diferente, respondendo à formação de diferentes acompanhamentos e melodias.

Depondo a forma circular tendenciosamente a-histórica, represento a mesma problemática através das pulsações articuladas e não articuladas, privilegiando assim a ideia de deslocamento do padrão equivalente sobre as diferentes estruturas métricas:

Figura 15
Equivalência interna x diferença métrica

De outra perspectiva, ao emparelhar os referenciais métricos, temos os diferentes ritmos:

Figura 16
Ritmos diferentes metros iguais

Do ponto de vista analítico, o que estou fazendo é adicionar interpretação métrica a diversos “padrões de samba” presentes na bibliografia, que os diferencia na prática. Essa estratégia deixa de lado a concepção aditiva em favor de outra na qual a sequência de 16 pulsos é organizada por um referencial métrico abstrato, também tendencialmente isócrono, que divide a duração de 16 pulsos em 4 beats (que em linguagem cotidiana chamamos “tempos”), referencial mentalizado e partilhado pelos participantes do evento:

Figura 17
Linhas-guia e suas possíveis interpretações métricas

O entendimento suportado pelo metro é referido por diferentes pesquisadores e leva a aproximar o pensamento africano do pensamento ocidental moderno. Como afirma D. Temperley (2000TEMPERLEY David, Meter and grouping in African music: A view from music theory. Ethnomusicology, v. 44, n. 1, Winter 2000; Humanities Module., p. 66), “em um nível fundamental, a rítmica africana como descrita por etnomusicólogos é similar à rítmica ocidental, e pode ser acomodada no mesmo modelo básico”. A esse ritmo regulador K. Agawu liga a ideia de “suporte ecológico”: é o que está na dança, nas palmas, nos movimentos de cabeça, no estalar de dedos, no bater do pé. Esse suporte revela o meio ambiente do qual o ritmo faz parte e as diferentes sensibilidades de diferentes povos para um mesmo padrão.

Encontros entre diferentes interpretações métricas: contatos interculturais

Expandindo a ideia de rotação, G. Kubik descreve um processo singular de “mal-entendido” entre percepções culturais diferentes, em particular as interpretações métricas:

Observadores de culturas musicais em que os acentos melódicos são habitualmente coincidentes com o metro [...] percebem a música africana invertendo o seu esquema métrico, ouvindo algo como uma imagem negativa ou reflexa da estrutura real. Os beats que são reconhecidos pelos africanos como coincidindo com um ritmo regulatório, muitas vezes externalizados na forma de passos de dança, podem ser mal interpretados [misapprehended] pelo ouvinte estrangeiro como síncopas ou “partes fracas do compasso”, e articulações deslocadas, que muitas vezes atraem acentos melódicos fortes, são então percebidos como o Beat. [...] A estrutura métrica é então invertida, virada de cabeça para baixo. Podemos chamar esse fenômeno perceptivo de inversão métrica. É tão comum em situações de contato intercultural [...]. (KUBIK, 1985_____. The emics of African musical rhythm. In: AVORGBEDOR, Daniel; YANKAH, Kwesi (Ed.). Cross Rhythms 2. Bloomington: Trickster Press, 1985, p. 26-66. , p. 38).

Segue descrevendo a impressão de um africano na Europa:

Eno-Belinga comentou um caso curioso em Paris, quando franceses dançavam música moderna do Zaire e Camarões. Disse o quão surpreso ficou [...] quando notou, em festas com música africana, que os franceses dançavam nos “temps faibles” (partes fracas do compasso), acreditando que ali era o tempo. (KUBIK, 1985_____. The emics of African musical rhythm. In: AVORGBEDOR, Daniel; YANKAH, Kwesi (Ed.). Cross Rhythms 2. Bloomington: Trickster Press, 1985, p. 26-66. , p. 38).

Essa concepção é, nesse contexto, em certa medida semelhante àquela que o musicólogo Cristopher Small vai formular em outro contexto: “Como é que membros de uma cultura podem chegar a entender [understand] e gostar, e talvez criativamente ‘mal-entender’ [misundestand], a prática musical de outras?” (SMALL, 1998SMALL, Christopher. Musicking: the meanings of performance and listening. Middletown, Ct: Wesleyan University Press, 1998. , p. 12).

Mukuna indica em seu trabalho esse tipo de inversão perceptiva no caso da música centro-africana e do samba brasileiro, que chama de “ordem inversa”:

Figura 18
“Ordem inversa” de Mukuna (2000MUKUNA, Kazadi W. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2000., p. 147)

Para ele, a linha-guia kachacha passa a ser percebida de modo inverso no contexto brasileiro. Oliveira Pinto e Araújo, por sua vez, revertem o padrão do samba novamente ao kachacha “original”, invertendo, no caso do samba, tanto o padrão apresentado por Mukuna quanto por Kubik. Oliveira Pinto (1987, p. 156) afirma que “tendo em mente que os 16 pulsos do padrão angolano são a soma de dois períodos assimétricos (9 + 7), pode-se notar o que acontece no nosso exemplo do Brasil: em vez de 9 + 7, sua simples inversão em 7 + 9”. Bolão, apoiado nas gravações de Marçal, Luna e Eliseu, transcreve ainda outra inversão, na qual o padrão recai exatamente nos pulsos não articulados de uma das versões de 7 toques transcritas por Mukuna e Kubik:


Nesse caso, um é o complemento exato do outro; onde, em um, os pulsos são articulações, no outro, são não articulações. Dito de outra forma, um é o inverso ou “negativo” do outro, em um exemplo do fenômeno descrito por Kubik.

O que marca, então, a presença dessa linha-guia centro-africana no sudeste do Brasil? As diferentes percepções métricas de um mesmo padrão já levantaram a possibilidade de uma “Ur timeline”, ou uma possível origem comum para todos os padrões (AGAWU, 2006_____. Structural analysis or cultural analysis? Competing perspectives on the “standard pattern” of West African rhythm. Journal of the American Musicological Society, v. 59, n. 1, p. 1-46, 2006., p. 15; TOUSSAINT, 2003TOUSSAINT, Godfried T. Classification and phylogenetic analysis of African ternary rhythm timelines. Proceedings of Bridges: Mathematical Connections in Art, Music and Science, Granada, Spain, 2003, p. 25-36., p. 11), e pode ser atraente, para nós, associar essa “Ur timeline- atribuída à tradição africana multimilenar e milenar e pré-colonial - à sua continuidade/resistência no samba urbano brasileiro, pós-colonial e moderno. É preciso, entretanto, reconhecer diferenças importantes: em uma roda de samba coexistem diferentes interpretações métricas da “mesma” linha-guia, que organizam diferentes repertórios, o que pode indicar uma variedade de “percepções étnicas”. Dão origem a diferentes padrões, nem sempre externalizados literalmente, mas passíveis de estar em posições métricas diferentes, que guiam e atraem desenhos rítmico-melódicos, pontos de apoio de construções harmônicas e modos de acompanhamento, gerando um núcleo estrutural e referencial móvel. Distancia-se desse modo daquilo que Agawu afirma sobre a performance das linhas-guia africanas: “Em uma dança como agbadza, o padrão pode ser ouvido [sem variações] até sete mil vezes no decorrer de uma única performance de quatro horas” (AGAWU, 2006, p. 7). De fato, nas diversas gravações de música africana que pude localizar o padrão kachacha, ele é tocado ininterruptamente, sem variações. Já em sambas de poucos minutos, a variação das linhas-guia é uma das belezas da performance de, entre outros, Luna, Eliseu e Marçal - se não chegar a ser mesmo uma exigência. Ainda, se olharmos para seu conjunto, esse trio de tamborins contribui para minimizar a oposição colocada entre os paradigmas “do Estácio” e “do Tresillo”, já que tamborim 1 e 2 tocam simultaneamente o padrão centro-africano (característico do Estácio) e o cinquillo (dado como variação do tresillo). Ou seja, nesse caso não organizam repertórios diferentes, mas o mesmo. Para completar, o tamborim 3 realiza a “síncope brasileira”, aquela que Mário de Andrade (1987ANDRADE, Mário de. As melodias do boi e outras peças. São Paulo: Martins, 1987., p. 382) já chamou de a “característica mais positiva da rítmica brasileira” e que Mukuna (2000MUKUNA, Kazadi W. Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem, 2000., p. 18) também identificou uma origem centro-africana. A polifonia rítmica, ou polirritmia, se dá nas diferentes durações dos padrões que se repetem: tamborim 1, 16 pulsos (ou 4 tempos); tamborim 2: 8 pulsos (ou 2 tempos); e tamborim 3: 4 pulsos (ou 1 tempo):

Figura 19
Análise do trio de tamborins transcrito por Bolão

Tendo durações diferentes, cada ostinato guarda maior independência e identidade em relação ao outro, ao mesmo tempo que a combinação entre timbres do mesmo instrumento e afinações diferentes para cada tamborim resulta em uma impressionante relação de identidade/diferença em polifonia rítmica: três diferentes padrões característicos (standard pattern, cinquillo, síncopa característica) estão combinados em um único naipe11 11 O grande sambista e percussionista Alfredo Castro me disse em conversa informal que o responsável pelos arranjos dos tamborins era Luna. . A razão métrica entre eles é, então, de 1:2, uma diferença estrutural marcante em relação às estruturas polirrítmicas em cross-rhythm das tradições africanas Ewe, Fon e Iorubá, construídas sobre o standard pattern de 12 pulsos (portanto divisível por 2, 3 e 4). Nelas se estabelecem razões de 3:2 e 4:3, estruturando um repertório diferente e nesse caso afastado do que estamos tratando aqui.

Diferentes percepções métricas no Brasil

Voltando aos trechos de Kubik e Small, não será ocioso lembrar que os contatos interculturais descritos e suas diferentes percepções métricas estão no contexto da moderna mundialização da cultura, que torna possível que um austríaco descreva a cena do encontro entre seu amigo camaronês e jovens franceses em uma festa em Paris. Em nosso caso, esse movimento de mundialização e expansão do capital comercial é o que, grosso modo, levou ao “descobrimento” das Américas e à criação daquilo que hoje chamamos Brasil, baseado na montagem de um sistema atlântico escravista.

Em busca de evitar as tendências a-históricas da análise musical, talvez possamos acrescentar, grosso modo, que as diferentes percepções métricas e o contato intercultural entre pessoas de diferentes grupos africanos violentamente retirados de seus diferentes contextos, grupos de europeus e quem mais estivesse envolvido na situação colonial brasileira podem, potencialmente, ter produzido “misapprehended” e “misunderstoodpatterns. O sistema escravista também fez com que Áfricas diferentes se encontrassem e se comunicassem em território brasileiro, conectando tradições e percepções milenares que os deportados carregavam consigo.

Em relação à transposição das linhas-guia de 16 pulsos no Brasil, então, talvez possamos inferir, a partir das diferentes posições métricas que hoje configuram o samba, a possibilidade de que o padrão tenha passado por diferentes inversões e deslocamentos no contexto do multissecular tráfico transatlântico, gerando uma diversidade de reversões e novas interpretações que acabaram por marcar a morfologia do samba brasileiro em diversas dimensões. Nesse contexto, o criativo “mal-entendido” e a rica diversidade de variações geradas entre interpretações métricas diversas, que formam a estrutura rítmica do samba, podem ser uma rica característica musical derivada do horrendo ambiente cultural da escravidão.

Colocando em jogo essa bibliografia pequena, fico com a impressão de que a musicologia brasileira como um todo não tem acompanhado suficientemente a produção historiográfica e nem as ações afirmativas relativas à população afrodescendente, que buscam corrigir a diferença de sua participação social na tentativa de superar a extrema desigualdade que marca nossa história e frequentemente nos faz duvidar da qualidade democrática de nossa sociedade. Nossa musicologia tem produzido pouco em relação àquilo que poderia se esperar dela para contribuir com a efetiva aplicação de leis como a de no 11.64512 12 BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei no 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 20 maio 2018. , de 2008, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena. Como os professores (incluídos os não músicos) poderão falar sobre a presença e transformação de traços africanos na música brasileira se os musicólogos não produzirem conteúdo? Penso ainda que os estudos arrolados nesse meu pequeno artigo fazem honrosa exceção a essa situação.

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    » http://www.slavevoyages.org
  • 2
    A tradução de todas as citações de textos em inglês foi feita por mim.
  • 3
    Desse espaço, ou itinerário, tratam trabalhos como os de Marcos Branda Lacerda: Drama e fetiche: vodum, bumba meu boi e samba no Benim, “Transformação dos processos rítmicos de offbeat timing e cross rhythm em dois gêneros musicais tradicionais do Brasil” e, em alguma medida, Música instrumental no Benim (LACERDA, 1998; 2005; 2014); de Tiago de Oliveira Pinto, Capoeira, samba e candomblé: Afro-brasilianische musik im Recôncavo, Bahia e “Healing process as musical drama: the Ebó ceremony in the Bahian candomblé of Brazil” (OLIVEIRA PINTO, 1991; 1997); e, de Gerard Béhague, “Patterns of Candomblé music performance: an Afro-Brazilian religious setting” (BÉHAGUE, 1984), entre outros.
  • 4
    Em particular, os trabalhos de Kazadi Wa Mukuna, Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas (publicada pela primeira vez em 1978 e com reedição aumentada em 2000); o artigo de Gerhard Kubik, “Angolan traits in black music, games and dances of Brazil” (publicado em 1979 e republicado sob o nome Angola in the black cultural expressions of Brazil em 2013); o artigo de Tiago de Oliveira Pinto, “As cores do som: estruturas sonoras e concepção estética na música afro-brasileira” (2001); a tese Acoustic labour in the timing of everyday life (1992), de Samuel Araújo; o livro de Carlos Sandroni, Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), primeira edição de 2001; o método de Oscar Bolão, Batuque é um privilégio (2003).
  • 5
    Na formulação de Kubik (apud OLIVEIRA PINTO, 1987, p. 156), “o ponto de ataque do performer ao tocar uma linha-guia varia de cultura para cultura [...] e não influencia sua estrutura interna”.
  • 6
    A oposição lembra um pouco controvérsias tradicionais da história da música europeia, como aquela entre prima e seconda prática, que marca o início do período barroco.
  • 7
    Essa oposição entre “africano” e “ocidental” é bem menos marcada segundo concepções de autores como, por exemplo, Temperley, Agawu e Toussaint.
  • 8
    Disco Victor 33728. 78 RPM.
  • 9
    Segundo Valdinha Barbosa (1985), Gnatalli passa a utilizar mais as rítmicas afro-brasileiras em seus arranjos por sugestão do baterista Luciano Perrone, que também participou dessa gravação.
  • 10
    Como ensinava Hegel em suas lições sobre filosofia da história: “Ela [África] não tem história propriamente dita. Aqui deixamos a África para não mais mencioná-la a seguir. Pois não pertence ao mundo histórico, não mostra movimento ou desenvolvimento [...] o que compreendemos, em suma, sob o nome de África é um mundo a-histórico, não desenvolvido, inteiramente prisioneiro do espírito natural, e cujo lugar se encontra ainda no limiar da História Universal” (HEGEL apud Arantes, 2000, p. 189).
  • 11
    O grande sambista e percussionista Alfredo Castro me disse em conversa informal que o responsável pelos arranjos dos tamborins era Luna.
  • 12
    BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei no 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm>. Acesso em: 20 maio 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    06 Nov 2017
  • Aceito
    01 Jun 2018
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