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Avaliação da variabilidade da segurança de vigas em concreto armado submetidas ao momento fletor considerando os coeficientes parciais de segurança da NBR 6118:2014

Resumo

Este artigo apresenta um estudo sobre a segurança de vigas em concreto armado solicitadas por momento fletor dimensionadas com os coeficientes parciais de segurança da ABNT NBR 6118:2014. O principal objetivo foi avaliar a uniformidade na segurança das vigas para diferentes posições da linha neutra e razão de carregamentos, com o uso da Teoria da Confiabilidade. Um procedimento simplificado para a calibração dos coeficientes parciais de segurança foi proposto, levando-se em conta a natureza de cada variável aleatória e um valor alvo para o índice de confiabilidade. A partir desses resultados, um método alternativo para o dimensionamento à flexão das vigas foi também proposto, no qual a segurança é verificada através de uma probabilidade de falha e não mais por coeficientes parciais. Os resultados mostraram a falta de uniformidade na segurança das vigas quando dimensionados com o conjunto fixo de coeficientes parciais. Os processos de calibração e dimensionamento alternativos mostraram-se capazes de uniformizar a segurança e ainda obter a configuração estrutural que apresenta o nível de segurança requerido.

Palavras-chave:
estruturas de concreto armado; coeficientes parciais de segurança; confiabilidade; calibração

Abstract

This paper presents a study about safety of reinforced concrete beams subjected to bending moment and designed with the partial safety factors proposed by ABNT NBR 6118:2014. The main goal was to assess the uniformity in the safety of the beams considering different values for the neutral axis position and the load ratio, by using the Reliability Theory. A simplified procedure to calibrate the partial safety factors was proposed taking into account the nature of each random variable and a target reliability index. From the analysis of the results, an alternative method for the design of reinforced concrete beams was also proposed, in which safety is guaranteed by the using of a probability of failure instead a set of partial safety factors. The results showed the lack of uniformity in the safety of the beams design with de constant set of partial safety factors. The procedures of design and calibration of the new safety factors were capable of to give uniformity to the safety of the beams and to achieve the proper structural configuration with the required safety level.

Keywords:
reinforced concrete structures; partial safety factors; reliability; calibration

1. Introdução

O projeto de estruturas pode ser entendido como um processo iterativo que busca estabelecer dimensões e configurações aos elementos constituintes do sistema estrutural, de forma que um conjunto de limites seja respeitado para que a construção atenda aos requisitos estéticos, econômicos, de segurança, funcionalidade e durabilidade. Dentro desse contexto, os códigos normativos representam papel fundamental no processo, pois são os instrumentos que definem esse conjunto de limites aceitáveis que garantem os requistos de desempenho do sistema estrutural. No que diz respeito à segurança da estrutura, os códigos atuais baseiam-se no Método dos Estados Limites, que consiste em garantir para os diversos comportamentos (estados limites) que regem o sistema estrutural a seguinte condição: Rd ≥ Sd. Em outras palavras, a resistência de cálculo (Rd) deve ser sempre superior ou, no limite, igual à solicitação de cálculo (Sd). Em cada estado limite considerado, cada uma dessas parcelas depende de diversos parâmetros de projeto, tais como: dimensões das seções transversais, resistência dos materiais, quantidades de armaduras, posições dessas armaduras, esforços internos solicitantes entre outros.

No desenvolvimento de um projeto, após a concepção do sistema estrutural, a próxima etapa consiste em quantificar as cargas que atuam na estrutura, bem como especificar os materiais utilizados para a construção dos elementos estruturais, bem como suas propriedades mecânicas. No entanto, existem incertezas provenientes da própria natureza de cada parâmetro, bem como dos processos de obtenção dos materiais, formas de utilização da construção, técnicas construtivas, métodos de análise e variações nos carregamentos que, se não tratadas adequadamente, podem gerar riscos excessivos a ponto de até comprometer, numa situação extrema, a segurança e/ou o uso das construções. Para considerar a presença de incertezas, alguns códigos atuais de projeto adotam os chamados coeficientes parciais de segurança. Tais coeficientes incidem sobre carregamentos e seus efeitos majorando-os e sobre as resistências dos materiais minorando-as. Assim, após a aplicação dos coeficientes de segurança, determinam-se a resistência e solicitação de cálculo (motivo do índice "d" em R e S mostrados acima) para cada estado limite considerado no projeto. Na verdade, com esse procedimento, origina-se uma margem de segurança em função da magnitude desses coeficientes parciais de segurança adotados. De um modo geral, quanto maiores forem esses coeficientes, maior será a margem de segurança e, consequentemente, maior será o nível de segurança para o estado limite. Essa abordagem melhora a quantificação do desempenho das estruturas, pois considera de modo mais racional as incertezas inerentes aos parâmetros de projeto e requer a avaliação explícita das condições de segurança, tanto para situações em serviço quanto para estados extremos que configurem possíveis rupturas individuais e/ou do sistema como um todo (Ellingwood e Galambos [1][1] ELLINGWOOD, B.; GALAMBOS, T.V. Probability-based criteria for structural design. Structural Safety, v.1, 1982; p.15-26.).

Os coeficientes de segurança, durante muitos anos, foram determinados de acordo com a experiência e julgamento de profissionais construtores e até mesmo aprimorados, a partir de acidentes e desastres das construções, evidenciando o processo construtivo da tentativa e erro. Foi somente a partir do final do século XVIII que os primeiros cálculos estruturais foram reconhecidos, sendo creditados a Coulomb e Navier, enquanto que apenas no fim do século XX os avanços nos conceitos e métodos de análise estrutural, acompanhados da evolução e difusão dos computadores, permitiram o conhecimento mais aprofundado do comportamento das estruturas, possibilitanto melhorias significativas nos projetos de engenharia (Ellingwood [2][2] ELLINGWOOD, B. LRFD: implementing structural reliability in professional practice. Engineering Structures, v.22, 2000; p.106-115.). No entanto, as incertezas inerentes aos carregamentos, propriedades dos materiais, dimensões dos elementos estruturais entre outras permaneceram, de modo que, graças a essas incertezas, os riscos surgem nos projetos estruturais, dando origem a probabilidades de ocorrência de eventos desfavoráveis. As consequências, nesses casos, podem trazer sérios danos tanto em termos de perdas de vidas humanas quanto em termos econômicos para a sociedade. Para se evitarem esses tipos de acontecimentos, os códigos de projeto atuais adotam novamente os coeficientes de segurança, para que os comportamentos dos sistemas e, com isso, os riscos associados aos empreendimentos permaneçam dentro de limites aceitáveis para toda a sociedade.

Diante disso, surgem perguntas do tipo: a) se mesmo com o uso de coeficientes de segurança ainda existem riscos, quão seguras são as estruturas projetadas atualmente? b) ou ainda, qual a "distância" em termos de segurança entre uma situação de serviço e uma possível situação de falha para um determinado estado limite? Além disso, diante dos avanços na tecnologia de materiais, métodos de análise numérica e também cada vez menos recursos disponíveis para a construção de edifícios, surge a necessidade de melhorar a previsão do comportamento dos sistemas estruturais, bem como de avaliar de forma mais consistente a segurança dessas estruturas. Assim, a definição de coeficientes parciais de segurança com base na experiência e julgamento de profissionais não mais se justifica, o que introduz a necessidade de calibrar tais coeficientes de forma mais racional.

Durante as últimas décadas, os códigos de projeto baseados no método dos estados limites têm calibrado os coeficientes parciais de segurança a partir de abordagens probabilísticas. Existem diversos critérios para se realizar o processo de calibração desses coeficientes, de modo que resultem em um conjunto de valores que atendam todas as estruturas pertencentes a uma dada classe, definida no escopo do código [3 - 5]. A Teoria da Confiabilidade vem sendo utilizada para tal tarefa, uma vez que a natureza estocástica dos riscos, cargas acidentais, propriedades dos materiais, dimensões dos elementos e outras grandezas evidenciam a necessidade do tratamento probabilístico para a calibração dos coeficientes [2 e 6]. A grande vantagem dessa abordagem é que o método dos estados limites, com coeficientes de segurança calibrados com base em procedimentos probabilísticos, transformou a integral clássica que define o problema da confiabilidade estrutural [7][7] FREUDENTHAL, A.M. The safety of structures. Transactions of ASCE, v.112, 1947, p.125-180. numa forma prática e direta para o uso em projetos, mesmo para profissionais que não são familiarizados com os conceitos da teoria da confiabilidade.

No entanto, os códigos de projeto adotam um conjunto fixo de coeficientes parciais de segurança que é aplicado a todas as estruturas presentes no domínio de aplicação do código. Isso faz com que os diferentes tipos de elementos estruturais dimensionados com tais coeficientes não apresentem níveis de segurança uniformes para os diversos estados limites. Essa abordagem tende a gerar sistemas estruturais com confiabilidade maior do que valores mínimos requeridos, superdimensionando as estruturas. Por outro lado, é possível que a adoção de coeficientes de segurança constantes gera estruturas com confiabilidade global menor do que os valores mínimos recomendados, o que representa situações claramente contra a segurança [8 - 9]. Neste contexto, Mohamed et al. [9][9] MOHAMED, A.; SOARES, R.; VENTURINI, W.S. Partial safety factors for homogeneous reliability of nonlinear reinforced concrete columns. Structural Safety, v.23, 2001, p. 137-156. evidenciaram a falta de uniformidade na segurança de pilares em concreto armado projetados com os coeficientes parciais propostos pelo Eurocode 2, considerando variações em parâmetros importantes como índice de esbeltez, resistência do concreto, excentricidade da carga axial e taxa de armadura longitudinal. Após a constatação da falta de uniformidade, propuseram uma metodologia para calibração dos coeficientes com base em um nível de confiabilidade uniforme. Castillo et al. [10][10] CASTILLO, E.; CONEJO, A.J.; MÍNGUEZ, R.; CASTILLO, C. An alternative approach for addressing the failure probability-safety factor method with sensitivity analysis. Reliability Engineering and System Safety, v.82, 2003, p.207-216. apresentaram uma metodologia de projeto otimizado com base em confiabilidade na qual as restrições de confiabilidade foram incorporadas à formulação do problema de otimização. Com isso, os coeficientes parciais de segurança aplicados às variáveis aleatórias utilizadas foram calibrados para que a estrutura dimensionada apresentasse confiabilidade uniforme e mínimo custo. O processo foi realizado considerando a ocorrência simultânea de mais de um modo de falha no projeto de uma viga de ponte rolante. Os autores observaram que nesses casos, o projeto otimizado torna ativa uma ou mais restrições de confiabilidade, calibrando os coefientes parciais para essas restrições, porém deixa que as demais restrições fiquem inativas superando o valor requerido para a segurança nessas restrições. É importante salientar que a mesma confiabilidade alvo pode produzir diversas soluções que correspondem a diferentes combinações de coeficientes parciais, uma vez o processo de calibração pode ser realizado de várias maneiras. Um critério que oriente a escolha do melhor conjunto de coeficientes talvez possa ser adotado como aquele que gere o mínimo custo da estrutura (Gayton et al. [11][11] GAYTON, N.; MOHAMED, A.; SORENSEN, J.D.; PENDOLA, M.; LEMAIRE, M. Calibration methods for reliability-based design codes. Structural Safety, v.26, 2004, p.91-121.).

Stucchi e Santos [12][12] STUCCHI, F.R.; SANTOS, S.H.C. Reliability based comparison between ACI 318-05 and NBR 6118. IBRACON Structural Journal, v.3, n.2, June, 2007, p.230-239. fizeram um estudo sobre a filosofia de projeto adotada nas normas brasileira ABNT NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) e norte americana ACI 318-05 [14][14] ACI COMMITTEE 318, Building code requirements for structural concrete (ACI 318-05) and commentary (318R-05), American Concrete Institute, Farmington Hills, Michigan, 2005, 430 p., comparando a confiabilidade obtida de vigas e lajes projetadas com ambos os códigos. Embora a maneira de consideração dos coeficientes de segurança seja diferente em ambos os códigos, o nível de segurança obtido com cada um deles pode ser comparado a partir de análises de confiabilidade. Os autores também concluíram que ambos os códigos de projeto não proporcionam uniformidade da segurança em termos do índice de confiabilidade. Porém, o ACI apresentou melhor uniformidade do que a norma brasileira, pois considera diversos critérios de combinações de ações para o dimensionamento dos elementos estruturais, enquanto que a norma brasileira utiliza somente uma combinação para cargas permanentes e variáveis.

Uma vez detectada a deficiência dos códigos de projeto em proporcionar segurança uniforme para as estruturas inseridas em suas categorias, uma alternativa atual é a tentativa de propor métodos de calibração dos coeficientes parciais, com o objetivo de gerar níveis mais uniforme de segurança. Beck e Souza Jr [15][15] BECK, A.T.; SOUZA JR, A.C. A first attempt towards reliability-based calibration of Brazilian structural design codes. J. of the Braz. Soc. Of Mech. Sci. & Eng. v.XXXII, n.2, April-June, 2010, p.119-127. propuseram uma forma de calibração para os coeficientes parciais de segurança das normas brasileira ABNT NBR 8800 [16][16] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of steel and steel-concrete composite structures: procedures (NBR 8800), Rio de Janeiro, 2008. (in Portuguese) e americana ANSI/AISC [17][17] ANSI/AISC 360. Specification for structural steel buildings. American Institute of Steel Construction, Chicago, Illinois, 2005., a partir da solução de um problema de otimização escrito em termos dos índices de confiabilidade obtidos para os elementos estruturais comparados com valores requeridos. Foram testadas várias razões de carregamento entre cargas variáveis e permanentes, bem como entre cargas vento e permanentes. Os resultados mostraram que o novo conjunto de coeficientes parciais resultou em maior uniformidade na confiabilidade dos elementos projetados com ambos os códigos.

Diante desse contexto, o objetivo deste artigo é avaliar a uniformidade (ou falta dela) da segurança de vigas em concreto armado projetadas segundo os critérios da NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) considerando os coeficientes parciais de segurança propostos e a variação da posição relativa da linha neutra e a razão de cargas atuantes. Em seguida, um processo de calibração dos coeficientes parciais de segurança foi proposto, com o objetivo de uniformizar a segurança das vigas para o estado limite último de perda de capacidade resistente ao momento fletor e, com isso, uma alternativa de dimensionamento das vigas com uso da confiabilidade foi realizada e comparada com o procedimento atual.

2. Resistência à flexão de vigas em concreto armado

A resistência de vigas em concreto armado de seção transversal retangular ao momento fletor provém das equações clássicas de equilíbrio (SN = 0 e ΣM = 0) e das prescrições recomendadas pela NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese). A Figura 1 mostra a configuração utilizada para a obtenção da resistência ao momento fletor em vigas retangulares com armadura simples para valores de fck ≤ 50 MPa.

Figura 1
Distribuição de tensões e deformações em vigas de C.A.com seção transversal retangular e armadura simples no estádio III

O momento fletor interno resistente referente ao concreto comprimido (MRcc) e à armadura tracionada (MRst), bem como o momento fletor resistente da seção transversal (MR) são dados respectivamente por:

Substituindo a posição da linha neutra (x) pelo valor relativo adimensional (bx = x/d) nas Equações (2) e (3) tem-se:

No estado limite último, o momento resistente deve ser igual ou superior ao momento solicitante de cálculo (Md), o que permite determinar a área de armadura tracionada necessária para a viga conforme:

A equação de equilíbrio em termos de forças horizontais ((ΣN = 0  Rcc - Rst = 0) é dada por:

Onde: bw é a largura da seção transversal; fcd é a resistência de cálculo do concreto à compressão, dada pelo fck (valor característico da resistência à compressão do concreto) minorado pelo coeficente parcial de segurança gc = 1,4; ssd é a tensão normal na armadura tracionada, que depende da posição da linha neutra. Nos casos dos domínios de deformação 2 e 3, situações mais usuais onde se encontram as vigas dimensionadas ao momento fletor, o aço já se encontra em escoamento. Assim, ssd é dada pelo fyk (valor característico da tensão de escoamento do aço) dividido pelo coeficiente parcial de segurança gs = 1,15 resultando na tensão de escoamento de cálculo do aço fyd.

A Equação 5, que consiste no resultado do equilíbrio de momentos na seção transversal (ΣM = 0), somente pode ser aplicada a partir do conhecimento prévio da altura útil da seção transversal (d) e da posição relativa da linha neutra (bx). Portanto, o dimensionamento é finalizado adotando-se uma dessas grandezas e, em seguida, aplicando-se o equilíbrio de forças na horizontal (Equação 8) para determinar a outra incógnita. Ambos os casos são bastante utilizados, ou seja, a altura das vigas pode ser adotada previamente em função do pré-dimensionamento ou de imposições arquitetônicas do projeto, bem como a posição da linha neutra pode ser fixada em função de critérios normativos (ductilidade, por exemplo) e de compatibilidade de deformações. Vale ressaltar que nessa descrição não foi considerada armadura de compressão.

Dessa forma, o que se verifica é que há uma grande variedade de soluções possíveis para a seção transversal das vigas, à medida que se adotam valores diferentes para a posição da linha neutra, mesmo mantendo-se os coeficientes parciais de segurança e a altura fixos.

3. Teoria da confiabilidade e métodos de análise

De modo geral, o objetivo das análises de confiabilidade estrutural está relacionado à determinação de probabilidades de ocorrência de cenários de interesse relacionados com o problema em estudo. Mais especificamente, em função das diversas incertezas inerentes aos parâmetros de projeto de sistemas estruturais, bem como aos processos de análise estrutural e até mesmo dos métodos construtivos, sempre haverá uma probabilidade de violação de um ou mais estados limites que definem o comportamento do sistema. Assim, a probabilidade de falha pode ser definida como uma medida de violação de um estado limite. Dentro desse contexto, os estados limites são representados por funções matemáticas descritas a partir de parâmetros determinísticos e aleatórios, definindo uma fronteira entre as regiões de segurança e de falha no domínio de possibilidades do problema. Matematicamente podem ser expressos por:

Onde: X é o conjunto de variáveis ou parâmetros aleatórios; U é o conjunto de parâmetros determinísticos. Quando G = 0 tem-se a definição do evento que provoca o estado limite.

Assim, cada realização do conjunto aleatório de parâmetros do sistema que viola a função de estado limite é considerada como um ponto no domínio de falha do problema. Adotando R como uma variável aleatória de resistência e S uma variável aleatória que define a solicitação em um elemento estrutural, sendo ambas dependentes de X e U, uma das formas de escrever a Equação (9) pode ser dada por G = R - S. A probabilidade de falha (Pf) pode ser então definida como a probabilidade de G < 0, sendo escrita por:

Onde: fRS é a função densidade de probabilidades conjunta das variáveis R e S; r e s são os valores assumidos para R e S a partir de cada realização dos parâmetros X e U.

No entanto, a avaliação direta da probabilidade de falha através da Equação (10) em termos práticos de projeto é muito complicada, uma vez que não se conhecem informações acerca da função conjunta de densidade de probabilidades das variáveis aleatórias. Para resolver essa questão, diversos métodos alternativos foram desenvolvidos para a determinação da probabilidade de falha, dentre os quais podem ser citados o FORM, SORM, Método de Superfícies de Respostas, Método de Simulação de Monte Carlo entre outros.

Santos et al. [22] classificam os métodos alternativos para solução do problema como sendo: totalmente probabilísticos, pois consideram a distribuição conjunta com todas as variáveis aleatórias (simulação de Monte Carlo); totalmente probabilísticos com aproximações, onde a probabilidade de falha é calculada a partir da associação ao índice de confiabilidade (β) dada por Pf ≈ Φ(-β), sendo Φ(.) a função de distribuição acumulada inversa no espaço normal padrão (FORM, SORM). Mais detalhes sobre os métodos podem ser obtidos em Nowak e Collins [4][4] NOWAK, A.S.; COLLINS, K.R. Reliability of structures. Michigan: McGraw-Hill, 2000, 338 p..

4. Formulação do problema antes da calibração

O problema inicial antes da proposta de calibração dos coeficientes parciais de segurança foi formulado a partir da possibilidade de se obter diversas soluções diferentes para uma mesma viga, em função da posição da linha neutra na seção transversal. Além disso, com o objetivo de se verificar a influência das ações variáveis sobre a segurança das vigas, foram consideradas diversas razões de carga (R), definidas pelo quociente entre os momentos fletores nominais provenientes das ações variáveis (Mnq) e das ações permanentes (Mng). Foram considerados os seguintes valores para a posição relativa da linha neutra: 0,167; 0,200; 0,231; 0,259; 0,280; 0,304; 0,333; 0,412; 0,466; 0,500; 0,538; 0,608 e 0,628. Da mesma forma, a razão de cargas assumiu os seguintes valores: 0,1; 0,3; 0,5; 0,7; 0,9; 1,1; 1,3 e 1,5. Os valores de resistência do concreto e do aço foram mantidos constantes no estudo com fck = 20 MPa e fyk = 500 MPa, respectivamente.

Na primeira etapa, as vigas em concreto armado foram dimensionadas à flexão considerando-se largura fixa da seção transversal de 14 cm e altura útil fixa de 45 cm (altura total de 50 cm). Os coeficientes parciais minoradores da segurança dos materiais foram mantidos os mesmos recomendados pela NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese), ou seja, gc = 1,4 e gs = 1,15. Em função desses parâmetros e para cada valor da posição relativa da linha neutra, a área de armadura de tração foi dimensionada a partir da Equação (8). Com os valores de armadura tracionada, o momento fletor resistente da seção transversal foi obtido para cada posição da linha neutra pela Equação (6).

Em seguida, foram realizadas as análises de confiabilidade para as diversas seções transversais dimensionadas na etapa anterior. Nesta etapa, os momentos fletores solicitantes foram definidos a partir do momento resistente da viga, conforme:

Onde: MR é o momento fletor resistente da seção transversal que, na condição de dimensionamento deve ser igual ao momento fletor total solicitante de cálculo; Mng e Mnq são respectivemente os momentos fletores nominais solicitantes referentes às cargas permanente e variável; gg e gq são respectivamente os coeficientes parciais de segurança majoradores dos momentos fletores permanente e variável, ambos adotados como 1,4.

Uma vez que a razão de cargas é dada por R = Mnq / Mng e foi variada de 0,1 a 1,5 conforme já descrito, os valores de solicitação foram obtidos conforme:

As variáveis aletórias consideradas no estudo foram: resistência à compressão do concreto (fc), resistência à tração do aço (fy), momento fletor permanente (Mg) e momento fletor variável (Mq). A Tabela 1 ilustra as estatísticas associadas às variáveis com o objetivo de levar em conta suas incertezas.

Tabela 1
Variáveis aleatórias consideradas no problema

A equação de estado limite representativa da segurança de vigas em concreto armado é dada por:

onde:

As análises de confiabilidade foram realizadas considerando o FORM com acoplamento direto, no qual as derivadas de G são avaliadas implicitamente por diferenças finitas. A convergência no processo de busca foi escrita em termos da probabilidade de falha e do ponto de projeto com tolerância de 10-4.

5. Resultados antes da calibração

A Tabela 2 ilustra as médias das variáveis aleatórias, considerando cada uma das razões de carregamento, bem como os índices de confiabilidade (β) obtidos na análise. Todos esses resultados referem-se a apenas um único valor da posição relativa da linha neutra. Esse processo foi repetido para todos os demais valores de bx, o que conduziu a 104 análises no total.

Tabela 2
Resultados em termos do índice de confiabilidade para βx = 0,167

A Figura 2 traz os resultados das análises das vigas em termos da variabilidade do índice de confiabilidade considerando as diversas posições da linha neutra para todas as razões de carregamento. A linha horizontal representa o valor alvo de β = 3,8 recomendado pelo Eurocode 2 [20][20] EUROCODE 2. Design of concrete structures. Part 1: general rules and rules for buildings. Brussels: CEN, 1989. para estados limites últimos. As linhas verticais contêm os resultados para todos os valores de R para a mesma posição da linha neutra, sendo que os pontos no extremo superior referem-se a R = 0,1 enquanto que os pontos no extremo inferior representam R = 1,5.

Figura 2
Variabilidade da segurança das vigas projetadas antes do processo de calibração: índice de confiabilidade como função de b e R

Considerando todas as possibilidades para a posição da linha neutra na mesma seção transversal e as diversas razões de carga, o índice de confiabilidade resultou entre bmin = 3,21 e bmax = 6,72 refletindo em probabilidades de falha Pf,min = 8,89×10-12 e Pf,max = 6,64×10-4. Esta grande diferença mostra a falta de uniformidade na segurança das vigas projetadas com o conjunto fixo de coeficientes de segurança. Além disso, verificou-se que em alguns casos, o índice de confiabilidade resultou menor do que o valor limite recomendado pelo Eurocode 2, o que representa claramente uma situação de projeto contra a segurança. As situações de projeto com valores de R mais elevados, isto é, no caso em que a solicitação variável aumenta em relação à solicitação permanente resultaram em menores índices de confiabilidade, quando comparadas com vigas projetadas para baixas razões de carga. Isto é coerente, pois as incertezas presentes na quantificação das ações variáveis são significativamente maiores do que as incertezas observadas nas ações permanentes, o que resulta em menor segurança estrutural. Da mesma forma, como a altura das vigas foi mantida sempre constante, valores maiores de bx também resultaram em maiores momentos fletores resistentes, sugerindo aumento da segurança à flexão, uma vez que a quantidade de armadura longitudinal nesses casos também aumentou. Portanto, para situações onde a altura das vigas é limitada por questões arquitetônicas e mantida fixa, valores mais elevados na posição da linha neutra produzem maiores momentos fletores resistentes. No entanto, vale ressaltar que em situações como essa, a ruína do elemento pode ocorrer através de ruptura brusca por esmagamento do concreto nas fibras comprimidas. Essa condição sempre deve ser evitada em projeto de vigas em concreto armado, pois altera o comportamento das vigas de dúctil para frágil, resultando numa situação perigosa na prática. Por essa razão, a NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) limita a posição relativa da linha neutra em função da classe de resistência à compressão do concreto, com o objetivo de evitar dimensionamentos que resultem na condição de ruptura frágil, com uso excessivo de armadura longitudinal.

Os valores médios obtidos para o índice de confiabilidade para cada posição da linha neutra resultaram, de modo geral, entre 4,0 e 5,0. Isto significa que, na média, o projeto de vigas em concreto armado considerando os coeficientes parciais de segurança da NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) encontra-se aceitável e ainda não tão distante do valor alvo de β = 3,8.

Na Figura 3 foi representada a evolução do índice de confiabilidade para alguns valores da posição relativa da linha neutra em função da razão de carregamentos. O que se observa é que à medida que o efeito da carga variável aumenta sobre o comportamento estrutural, o nível de segurança das vigas diminui. Neste caso, como a altura da seção transversal foi mantida fixa, valores de bx mais elevados resultaram em maior segurança ao momento fletor. Considerando bx = 0,500 verifica-se que apenas para valores de R ≥ 1,1 é que se obtém β < 3,8. Para razões de carga entre 0,3 e 0,7 que correspondem à boa parte das situações usuais na prática em estruturas de concreto armado, o índice de confiabilidade resultou entre os valores 4,0 e 5,0 conforme já observado. Isto permite concluir que para vigas dimensionadas no domínio 3 de deformações, a segurança contra o momento fletor é verificada.

Figura 3
Variação do índice de confiabilidade em função da razão de cargas e da posição relativa da linha neutra

Entretanto, vale ressaltar que em função da falta de uniformidade observada, o uso do conjunto fixo de coeficientes parciais pode conduzir a estruturas dimensionadas contra a segurança. Por outro lado, é possível também que as vigas projetadas apresentem excessivos níveis de segurança, como nos casos onde a parcela das ações variáveis é muito pequena em relação à componente permanente. Nesses casos, clareamente observa-se que as estruturas resultam superdimensionadas e ao mesmo tempo antieconômicas.

Outro resultado que merece ser discutido é a sensibilidade das variáveis aleatórias e sua evolução ao longo da análise paramétrica realizada. A Figura 4 ilustra as sensibilidades médias das variáveis obtidas considerando todas as razões de carregamento para algumas posições relativas da linha neutra. Como nenhuma restrição de ductilidade foi imposta nesta análise, observou-se que a importância da resistência do concreto aumenta à medida que a posição da linha neutra também aumenta. Por outro lado, a resistência do aço sofre o processo inverso. Assim, conforme a posição da linha neutra aumenta, a parcela resistente de concreto ao momento fletor também aumenta, ao passo que a parcela da armadura diminiu, conforme pode ser observado na Equação (15). Com relação aos momentos fletores solicitantes, a parcela do momento variável é muito mais influente do que a parcela do momento fletor permanente. Esse comportamento se torna mais evidente, à medida que a razão de cargas R aumenta.

Figura 4
Variação na sensibilidade das variáveis aleatórias com relação à probabilidade de falha das vigas à flexão antes da calibração

6. Formulação do problema para calibração

Com o objetivo de obter níveis de segurança mais uniformes no projeto de vigas em concreto armado submetidas ao momento fletor, foi realizado um procedimento de calibração dos coeficientes parciais das variáveis aleatórias com base na sugestão de Mohamed et al. [9][9] MOHAMED, A.; SOARES, R.; VENTURINI, W.S. Partial safety factors for homogeneous reliability of nonlinear reinforced concrete columns. Structural Safety, v.23, 2001, p. 137-156.. De forma geral, os coeficientes parciais de segurança, sejam eles minoradores de resistência (gR) ou majoradores (gf) de efeitos de cargas, podem ser escritos conforme:

Onde: Xk e Xd são, respectivamente, os valores característicos e de cálculo dos parâmetros de projeto considerados.

No caso dos valores característicos, estes são obtidos a partir de quantis que garantam que a superação de tais valores seja muito pouco provável (em geral, admite-se para esse quantil o valor de 5%). Já para os valores de cálculo, estes são definidos pela análise de confiablidade, no qual a coordenada do ponto de projeto referente à variável analisada (X*) é dada no espaço normal padrão por:

Onde: aX corresponde ao cosseno diretor da variável aleatória X; β é o índice de confiabilidade obtido na iteração.

Conforme Mohamed et al. [9][9] MOHAMED, A.; SOARES, R.; VENTURINI, W.S. Partial safety factors for homogeneous reliability of nonlinear reinforced concrete columns. Structural Safety, v.23, 2001, p. 137-156., o valor característico de uma variável, independente do tipo de distribuição de probabilidades, pode ser escrito em função da média (mX) e do desvio-padrão (sX) na forma: Xk =µ X ± δ σX , onde δ expressa a probabilidade (nível de confiança) de que o valor Xk seja ultrapassado. No caso da resistência à compressão do concreto, admitindo distribuição normal de probabilidades e o quantil de 5% para a definição do valor característico, δ assume o valor de 1,645. Para as demais distribuições de probabilidades, Xk pode ser dado de forma geral por:

Onde: k é de 95%. Por outro lado, para uma variável de solicitação com o mesmo nível de confiança, em apenas 5% das vezes o valor considerado pode superar Xk. é a inversa da distribuição acumulada de probabilidades da variável aleatória; X é o valor avaliado da variável aleatória; p corresponde ao nível de confiança que define a probabilidade requerida para que a variável viole o valor característico. No caso de uma variável de resistência e nível de confiança de 5%, a probabilidade de que o valor considerado para a resistência supere X

Portanto, as Equações (16) e (17) podem ser reescritas, respectivamente, conforme:

Onde: Φ é a função acumulada de probabilidades normal padrão.

A hipótese adotada para a calibração dos coeficientes parciais consiste em escolher um valor alvo para o índice de confiabilidade e admitir que os cossenos diretores das variáveis aleatórias sejam mantidos constantes. Com isso, a origem do sistema normal padrão é transladada de modo que a distância da origem até o ponto de projeto seja igual ao índice de confiabilidade alvo (Figura 5).

Figura 5
Hipótese adotada para a calibração dos coeficientes parciais: cossenos diretores permanecem constantes

Para o processo de calibração, o índice de confiabilidade alvo escolhido foi o de 3,8 recomendado pelo Eurocode 2 [20][20] EUROCODE 2. Design of concrete structures. Part 1: general rules and rules for buildings. Brussels: CEN, 1989. para estados limites últimos. Os cossenos diretores das variáveis aleatórias utilizados foram obtidos pela análise de confiabilidade, via FORM, realizada na etapa anterior, isto é, durante a fase de avaliação da segurança das vigas antes da calibração.

Com o objetivo de se verificar todas as possibilidades no processo de calibração, os coeficientes parciais foram obtidos considerando-se todos os valores da posição relativa da linha neutra para cada razão de carregamentos. Assim, foram realizadas 104 calibrações dos coeficientes parciais contemplando todos os casos idealizados para o projeto das vigas.

7. Resultados após calibração

A Tabela 3 traz os resultados obtidos com o processo de calibração, em termos dos novos coeficientes parciais de segurança, das coordenadas do ponto de projeto no espaço físico e dos índices de confiabilidade para o caso de bx = 0,167 em todas as razões de carregamento.

Tabela 3
Resultados do processo de calibração para βx = 0,167

A Figura 6 ilustra os índices de confiabilidade das vigas projetadas com os novos valores dos coeficientes parciais de segurança, considerando todas as combinações entre a razão de cargas e a posição relativa da linha neutra. Conforme pode ser observado, o projeto das vigas com o uso dos coeficientes parciais calibrados resultou em uniformidade da segurança quanto ao momento fletor, atingindo o valor alvo de 3,8 especificado para o ELU.

Figura 6
Variabilidade da segurança das vigas projetadas após o processo de calibração: índice de confiabilidade como função de b e R

A Figura 7 mostra os coeficientes parciais de segurança para cada razão de carregamentos, obtidos fazendo-se a média aritmética entre os valores calibrados para as várias posições relativas da linha neutra. Os coeficientes parciais para as resistências do concreto e do aço resultaram ligeiramente inferiores à unidade, o que significa que os valores característicos foram mais pessimistas que os valores de projeto. O coeficiente parcial para a ação permanente variou entre 1,09 (R = 1,5) e 1,35 (R = 0,1), enquanto que para a ação variável, a variação foi de 1,18 (R = 0,1) a 2,64 (R = 1,5). À medida que R aumenta e, com isso, a importância da ação variável aumenta, consequentemente, o valor do seu coeficiente parcial também aumenta. Os valores elevados acima de 2,00 refletem a maior incerteza inerente a essa variável quando comparada com as demais.

Figura 7
Variabilidade dos coeficientes parciais de segurança após o processo de calibração em função de R

Com relação aos fatores de sensibilidade das variáveis aleatórias, o mesmo comportamento geral foi observado quando comparado aos resultados antes da calibração, conforme pode ser visto na Figura 8. A influência das variáveis de resistência do concreto e do aço é significativamente sensível à posição relativa da linha neutra, alternando sua importância à medida que bx aumenta. Já os parâmetros que dependem das ações permanente e variável, que no caso são dados pelos momentos fletores, são mais sensíveis à variação da razão de carregamentos do que à posição da linha neutra.

Figura 8
Variação na sensibilidade das variáveis aleatórias com relação à probabilidade de falha das vigas à flexão após a calibração

Os resultados mostraram que em virtude da calibração dos coeficientes parciais de segurança das resistências e das ações atuantes foi possível obter uniformidade na segurança das vigas em concreto armado solicitadas por momentos fletores. Dessa forma, ao invés de se utilizar um único conjunto de coeficientes parciais para todos os tipos de estruturas ou possibilidades de dimensionamento, um conjunto desses coeficientes é calibrado considerando as particularidades de cada projeto, para que o nível de segurança desejado seja de fato alcançado. A principal desvantagem desse tipo de abordagem consiste em não apresentar um conjunto fixo de coeficientes parciais de segurança, o que em princípio pode causar estranheza entre os projetistas. Além disso, a calibração desses coeficientes exige o conhecimento, mesmo que mínimo, acerca de conceitos estatísticos e da teoria da confiabilidade. Tais conceitos não são de trato fácil e amplo domínio entre os profissionais que atuam na prática da engenharia estrutural atual. No entanto, a abordagem traz uma grande vantagem: a partir do processo de calibração dos coeficientes parciais é possível especificar e obter o nível de segurança do sistema estrutural conforme a necessidade particular de cada projeto. Com isso, mesmo que parâmetros importantes como a razão de cargas e a posição da linha neutra sejam alterados no projeto, a segurança obtida para o sistema permanece a mesma.

Outro aspecto importante e que deve ser discutido está relacionado com a possibilidade de se obter um conjunto qualquer de coeficientes parciais de segurança para que a confiabilidade alvo seja atingida. Ao variar cada um dos valores dos coeficientes para mais ou menos, basta ajustar os demais que o índice de confiabilidade não se altera, mostrando as diversas possibilidades para adoção dos coeficientes parciais de segurança. Assim, para que o melhor conjunto seja adotado, é necessário o uso de outro critério em conjunto com o processo de calibração, como por exemplo, o mínimo custo referente à solução dimensionada para que a solução ótima seja atingida. O critério de mínimo custo no processo de calibração não foi considerado neste trabalho.

8. Proposta de método simplificado para dimensionamento

A partir dos resultados obtidos com o processo de calibração dos coeficientes parciais de segurança, foi proposto um método alternativo simplificado para dimensionamento à flexão de vigas em concreto armado, cujas etapas estão descritas a seguir:

  1. Escolha do nível de segurança desejado, fixando-se um valor para o índice de confiabilidade alvo;

  2. Escolha da posição relativa da linha neutra na seção transversal para o estado limite último;

  3. Após a quantificação das cargas atuantes sobre a viga, cálculo da razão de cargas R;

  4. Cálculo dos cossenos diretores (αi) para cada variável aleatória no processo, que no caso são: fc, fy, Mg e Mq;

  5. Cálculo dos coeficientes parciais de segurança das variáveis a partir das Equações 21 e 22;

  6. Dimensionamento da seção transversal da viga, obtendo-se a altura útil e a área de armadura de tração.

A maior dificuldade nesse processo consiste em determinar os cossenos diretores das variáveis de projeto. A maneira mais direta é realizar uma análise de confiabilidade via FORM, por exemplo, para a obtenção dessas sensibilidades, a partir das estatísticas das variáveis aleatórias. Porém, o uso dessa alternativa ficaria bastante restrito ao domínio de ferramentas computacionais robustas para a avaliação da confiabilidade estrutural, inviabilizando a aplicação do método alternativo de dimensionamento. Com o objetivo de contornar esse problema, foi proposta uma maneira aproximada de se obter os cossenos diretores sem a necessidade de realizar análises de confiabilidade. Como a posição relativa da linha neutra e a razão de cargas são grandezas importantes para a segurança estrutural das vigas, foram adotados polinômios completos do 2º e 4º graus para a aproximação de cada cosseno diretor. Nogueira e Pinto [18][18] NOGUEIRA, C.G.; PINTO, M.D.T. Análise de confiabilidade de vigas em concreto armado segundo a ABNT NBR 6118: avaliação da segurança e calibração dos coeficientes parciais de segurança. In: 56º Congresso Brasileiro do Concreto, Natal, 2014, Anais, Rio Grande do Norte, 2014. apresentaram resultados desse procedimento considerando polinômios do 2º grau e concluíram que o nível de segurança final obtido oscilava em torno do valor o índice de confiabilidade alvo. Os autores concluíram que polinômios do 2º grau não eram suficientemente capazes de representar com precisão os resultados dos cossenos diretores obtidos nas análises de confiabilidade. Além disso, o estudo considerou valores de R entre 0,1 e 5,0 com variação não constante, o que aumentou a dispersão dos resultados, prejudicando a qualidade da calibração.

De forma geral, os polinômios completos de 4º considerados podem ser escritos conforme:

Onde: mi são os coeficientes do polinômio aproximador dos cossenos diretores a serem determinados.

O método dos mínimos quadrados foi utilizado para a determinação dos coeficientes dos polinômios, a partir da minimização da função erro dada por:

Onde: α(βx, R)i corresponde ao valor do cosseno diretor da variável considerada para o ponto i; [19][19] NOGUEIRA, C.G. Desenvolvimento de modelos mecânicos, de confiabilidade e de otimização para aplicação em estruturas de concreto armado. Tese de Doutorado, Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, 2010.. é o valor do mesmo cosseno diretor, porém obtido com a análise de confiabilidade original via FORM; np é o número de pontos do plano de experimentos considerado para o processo de regressão. O algoritmo de solução da Equação (24) encontra-se descrito em detalhes em Nogueira

O plano de experimentos utilizado para a solução desse problema foi definido a partir de todas as combinações consideradas entre bx e R no processo de calibração dos coeficientes parciais de segurança, conforme ilustrado na Figura 9.

Figura 9
Plano de experimentos para obtenção dos coeficientes dos polinômios que definem os cossenos diretores das variáveis aleatórias

Assim, cada ponto do plano corresponde ao par ordenado bx, R que gerou uma viga dimensionada e, consequentemente, um conjunto de valores para os cossenos diretores das variáveis aleatórias após a análise de confiabilidade. As Equações (25), (26), (27) e (28) trazem os polinômios finais para os cossenos diretores da resistência à compressão do concreto, resistência do aço, momento fletor permanente e momento fletor variável.

As Figuras 10 a 13 ilustram a precisão do polinômio de 4º para obtenção dos cossenos diretores, comparado às soluções dadas por Nogueira e Pinto [18][18] NOGUEIRA, C.G.; PINTO, M.D.T. Análise de confiabilidade de vigas em concreto armado segundo a ABNT NBR 6118: avaliação da segurança e calibração dos coeficientes parciais de segurança. In: 56º Congresso Brasileiro do Concreto, Natal, 2014, Anais, Rio Grande do Norte, 2014. com polinômio de 2º e pelo FORM. Com isso, durante o dimensionamento das vigas pelo método proposto, basta calcular os valores dos cossenos diretores pelas Equações (25) a (28) sem a necessidade de realizar análises de confiabilidade auxiliares.

Figura 10
Comportamento do cosseno diretor da variável resistência do concreto

Figura 11
Comportamento do cosseno diretor da variável resistência do aço

Figura 12
Comportamento do cosseno diretor da variável momento fletor permanente

Figura 13
Comportamento do cosseno diretor da variável momento fletor variável

9. Exemplo de cálculo

Para fins de demonstração do método simplificado proposto neste trabalho, uma viga em concreto armado foi dimensionada ao momento fletor, variando-se a utilização da estrutura e consequentemente a razão de carregamentos. A Figura 14 mostra as características do pavimento fictício considerado, bem como a viga V2 escolhida para o dimensionamento.

Figura 14
Pavimento considerado na análise: dimensões em centímetros

As cargas permanentes foram calculadas considerando-se: laje maciça em concreto armado com espessura de 10 cm; regularização sobre a laje em argamassa de cimento e areia com espessura de 2 cm; piso cerâmico sobre a regularização com peso específico de 18 kN/m3 e espessura de 6 mm; forro de revestimento na parte inferior da laje em argamassa de cimento e areia com espessura de 1 cm. Todos os valores dos pesos específicos dos materiais foram obtidos da ABNT NBR 6120 [21][21] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Loads for building structures design (NBR 6120), Rio de Janeiro, 1980. (in Portuguese).. A carga total permanente na laje foi de 3,24 kN/m2, o que gerou carga permanente (g) uniformente distribuída transmitida para a viga V2 de 16,2 kN/m. Com relação à sobrecarga de utilização (q) considerada sobre toda a laje, foram adotados os valores recomendados pela NBR 6120 [21][21] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Loads for building structures design (NBR 6120), Rio de Janeiro, 1980. (in Portuguese). de acordo com a funcionalidade da edificação. Assim, a seguinte legenda foi adotada: A - terraços ou forros sem acesso de pessoas; B - dormitórios, sala, copa, cozinha e banheira; C - despensa, área de serviço e lavanderia; D - sala de leitura em bibliotecas; E - garagens para veículos de passeios; F - arquibancadas; G - salão de dança e ginásio de esportes. Essas nomenclaturas estão colocadas na coluna "Tipo" na Tabela 4.

Tabela 4
Dimensionamento das vigas considerando os coeficientes parciais calibrados e os convencionais

Para efeito de comparação, as vigas foram dimensionadas considerando os coeficientes parciais de segurança convencionais da NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) e em seguida, considerando os coeficientes parcias calibrados de acordo com o processo proposto. A largura da viga foi mantida constante no valor de 14 cm e as resistências características do concreto e do aço fora adotadas, respectivamente, nos valores de 20 MPa e 500 MPa. Os coeficientes de segurança foram calibrados para índice de confiabilidade alvo de 3,8. Em todos os casos, a posição relativa da linha neutra no ELU foi adotada e mantida constante em 0,45 para que a restrição da ductilidade imposta pela NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) fosse sempre respeitada. A Tabela 4 reúne os resultados obtidos nesta análise. Conforme pode ser observado, as maiores diferenças entre ambos os métodos de cálculo encontram-se para valores baixos da razão de carregamentos. Isso mostra que em situações em que as cargas variáveis são significativamente menores que as cargas permanentes, os coeficientes parciais utilizados pela NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) conduzem a dimensionamentos excessivamente seguros. Esse comportamento se altera à medida que R aumenta, onde o nível de segurança das vigas à flexão tende a diminuir, violando o limite de 3,8 proposto pelo Eurocode 2 [20][20] EUROCODE 2. Design of concrete structures. Part 1: general rules and rules for buildings. Brussels: CEN, 1989.. Assim, a falta de uniformidade na segurança das vigas fica evidenciada. Por outro lado, ao se calibrar os coeficientes parciais de acordo com a necessidade do projeto, é possível obter uniformidade na segurança estrutural, conforme valores dos índices de confiabilidade obtidos na análise. O bmédio obtido com o modelo proposto foi de 3,80 enquanto que para o modelo da NBR 6118 [13][13] BRAZILIAN ASSOCIATION OF TECHNICAL STANDARDS (ABNT). Design of concrete structures - procedures (NBR 6118), Rio de Janeiro, 2014, 238 p. (in Portuguese) foi de 4,50, o que demonstra mais uma vez que o processo de calibração proposto permite, além de atingir o nível de segurança alvo especificado em projeto, garantir uniformidade da segurança estrutural.

10. Conclusões

Neste artigo foi apresentado um estudo sobre a segurança de vigas em concreto armado dimensionadas ao momento fletor, considerando o conjunto de coeficientes parciais para as resistências dos materais (aço e concreto) e para as solicitações (momentos fletores permanentes e variáveis) através da teoria da confiabilidade. Após a realização das análises, as seguintes conclusões foram apontadas:

  • Verificou-se, de fato, a falta de uniformidade na segurança das vigas ao momento fletor quando estas são dimensionadas sempre com os mesmos valores de coeficientes parciais de segurança para situações diferentes de posição da linha neutra e razão de carregamentos. O uso dos mesmos valores de coeficientes parciais não leva em conta a influência da posição da linha neutra, bem como da proporção entre os efeitos produzidos pelas cargas permanentes e variáveis sobre o comportamento das vigas. Dessa forma, para baixos valores de R, o nível de segurança obtido é muito alto, enquanto que para altos valores de R, esse nível diminui, resultando até em situações contra a segurança;

  • O processo proposto de calibração dos coeficientes com base nos resutlados de análises de confiabilidade mostrou-se estável e capaz de garantir o índice de confiabilidade alvo para as vigas dimensionadas com os novos coeficientes parciais. Os polinômios de 4º para o cálculo dos cossenos diretores das variáveis de projeto foram adequados, pois permitiram que o método de dimensionamento fosse aplicado sem a necessidade de novas análises de confiabilidade, atingindo bons resultados. Com isso, garantiu-se uniformidade na segurança das vigas ao momento fletor;

  • Portanto, ao invés de se usar um conjunto fixo de coeficientes parciais de segurança, o método propõe a adoção do nível de segurança requerido no projeto através do índice de confiabilidade ou probabilidade de falha para o estado limite considerado e, a partir dessa informação, calibrar os coeficientes parciais para que esse nível de segurança seja atingido;

  • É importante destacar que conforme observado, existem diversas combinações possíveis dos coeficientes parciais que resultam em mesmos valores do índice de confiabilidade. Assim, é necessário quantificar os custos de construção das vigas dimensionadas com os novos coeficientes de segurança, compará-los com os custos obtidos com o processo padrão e avaliar qual o conjunto ótimo de coeficientes que, além de garantir a segurança requerida, também reflita o menor custo para a estrutura. Essa análise de custos não foi realizada neste trabalho e encontra-se atualmente em desenvolvimento.

11. Agradecimentos

Os autores agradecem à UNESP - Faculdade de Engenharia de Bauru pelo desenvolvimento da pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2016
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