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Serviço Social: Gênero, raça/etnia, gerações e sexualidade

O pensamento crítico contemporâneo tem afirmado a centralidade da articulação entre gênero, classe, raça, etnia, sexualidade, gerações e outras categorias sociais para se compreender as desigualdades, as opressões, as violências e as experiências sociais de modo geral, em resumo, para se compreender a dialética das opressões e das resistências. O ponto de partida são os limites de se buscar compreender as desigualdades contemporâneas a partir de um único marcador social ou matriz de diferença.

O feminismo (na academia e nos movimentos), o pensamento e a luta anti-racista e o movimento negro, os movimentos e teorias anti, pós e decoloniais, os movimentos e os estudos LGBT, entre outros, denunciaram o paradoxo da modernidade entre, de um lado, o culto do Homem universal, em suas versões de sujeito da razão, de sujeito político e de direito e de Eu psicológico, e de outro a produção de diferenças e hierarquias de todo tipo, que evidenciam acessos diferenciados e assimétricos, quando não ausência absoluta de acesso, à posição de humanidade, aos bens e à riqueza produzidos, ao reconhecimento enquanto sujeito de direitos ou enquanto sujeito político1 1 For Stuart Hall, this decentering of the universal subject is already present in Marx’s thought, by locating the subject in history and in concrete conditions, which would represent, for the Marxist interpreters of the mid-twentieth century, a critique of the abstract notion of human. .

O paradoxo apontado acima também fez e faz parte das estratégias de dominação, que enfatizam o ideário de universalidade e igualdade, mas ao mesmo tempo produzem e exploram as diferenças como dispositivo de poder e de exploração. Assim, nos arranjos políticos e sociais que deram origem à modernidade capitalista, mulheres foram afastadas da vida política e pública e despojadas de direitos, com a justificativa da diferença sexual biológica. Do mesmo modo, a escravidão e a opressão racial foram justificadas pelas teorias raciais e pelo discurso da supremacia branca e ocidental.

Ou seja, o mesmo discurso que cultuou a ideia de um sujeito universal, detentor de direitos (humanos), naturalizou e ontologizou as diferenças, apagando o fato de que são fundamentalmente diferenças construídas historicamente.

Por outro lado, o reconhecimento das múltiplas opressões e o modo como se cruzam e se articulam se tornou ao longo da história um instrumento importante de organização, de luta e de resistência.

A literatura específica sobre as articulações e os cruzamentos entre diferentes modos de opressão localiza um primeiro momento da crítica sobre os sentidos diferenciados da experiência social e da desigualdade nos movimentos sociais dos anos 1960-70, através do feminismo negro nos Estados Unidos, que denunciou o caráter branco, de classe média e heteronormativo do feminismo hegemônico naquele momento2 2 Noting that black feminism was already manifesting in the early days of the women’s struggle and the abolitionist struggle, with activist Sojourner Truth and her eloquent speech at the Woman’s Rights Convention met in Akron in 1851 (Ohio, USA): “Ain’t I a woman?”, which sought to highlight the oppression of the black woman (and poor, enslaved, working). ; no feminismo de esquerda em vários países, que buscou articular a luta das mulheres à luta de classes; no movimento das mulheres lésbicas, que questionou a hegemonia heterossexual no feminismo e reivindicou uma articulação entre o feminismo e o direito das mulheres e os direitos gays e lésbicos, entre outras manifestações. Tanto nos movimentos sociais quanto nos trabalhos e reflexões acadêmicas, pensar de modo articulado as diferentes opressões tornou-se central para a compreensão da desigualdade social e para a elaboração de estratégias de resistência e de emancipação, sobretudo através da tríade classe, raça e gênero3 3 Such as the work produced in 1984 by Angela Davis (2016), which brings a history of the connections between race, gender and class in the United States, extending the analysis of abolitionist, suffragist, and women ’s movements, to communist women, and to the black movement of the 1970s. The later chapters of the book provide an accurate analysis of racist and gender violence, the way birth control policies have affected black women. num primeiro momento, e mais contemporaneamente com a inclusão de outros marcadores de diferença, como sexualidade, etnia, gerações, deficiência, entre outros.

Em 1989 a jurista e acadêmica negra Kimberly Crenshaw (1989Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, (1989)1, 139-168.) formulou o conceito de interseccionalidade, com o objetivo de tirar das margens a relação entre raça e gênero e de pensar teoricamente e de modo articulado essas duas experiências: para uma mulher negra, a experiência de ser mulher não poderia ser vista de modo independente da experiência de ser negra, mas sim a partir das interações entre uma e outra. Desde sua formulação inicial, o conceito de interseccionalidade teve uma trajetória densa, estendendose para além de gênero e raça para outras categorias sociais. Ele tem sido utilizado, juntamente com outros conceitos, para compreender as múltiplas e cruzadas opressões, mas também para compreender diferentes experiências sociais de sujeitos localizados histórica, social, política e culturalmente. Ele se tornou um conceito disseminado em várias áreas do conhecimento e em várias teorias sociais, para se referir às abordagens que buscam discutir e compreender a articulação entre múltiplas opressões e desigualdades.

Entre as críticas ao conceito de interseccionalidade, que serviram de fundamento para novas formulações teóricas e conceituais, estão: a de que esta é bastante focada nos sujeitos e nas identidades, e não nas relações; nas dificuldades do conceito em pensar as dissimetrias entre os vários marcadores de diferença; e, especificamente da parte de algumas teóricas e ativistas marxistas, por retirar o caráter totalizador do conceito de classe social. No entanto, muitas vezes essa crítica foi feita no sentido não de criar um novo conceito, mas de complementar e tornar mais complexo o paradigma interseccional.

Outros conceitos, como os de consubstancialidade (KERGOAT, 2015) e de agenciamento (PUAR, 2013Puar, J. (2013). “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”: interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, (8)2, 343-370. ) foram formulados ou utilizados não apenas para compreender as múltiplas formas de dominação e opressão a que um mesmo sujeito ou coletividade estão expostos, mas principalmente para compreender como gênero, raça, classe e outras categorias sociais são fundamentalmente relações, mais do que atributos de sujeitos ou coletividades.

De todo modo, o conceito de interseccionalidade manteve sua eficácia para teorizar a diferença e descrever a complexidade das articulações entre diferenças sociais, além de demonstrar uma grande plasticidade semântica para, em sua trajetória e em seus usos nos vários campos de pesquisa e de luta social, incorporar críticas e novos sentidos. A abordagem interseccional, ou das articulações e cruzamentos entre diferentes opressões e diferentes modos de resistência, ganhou um voo próprio no campo da teoria social, sendo utilizada por várias áreas do conhecimento e por várias correntes teóricas.

Os artigos reunidos neste número da Katálysis são um exemplo desses estudos e dessas abordagens, tematizando questões fundamentais para uma compreensão das múltiplas e articuladas desigualdades e marginalizações envolvendo gênero, classe, raça, etnia, sexualidade e gerações.

No Brasil, a abordagem interseccional ou das múltiplas opressões, tem se mostrado abrangente, prolífica e criativa na compreensão das desigualdades sociais, em várias áreas do conhecimento. Compreender, por exemplo, como gênero, raça e classe se articulam, se mostrou fundamental para a elaboração de políticas sociais voltadas para aquelas, por exemplo, que estão no nível mais alto de exploração: as mulheres negras e pobres. São essas mesmas que hoje, com o novo contexto político de perda de direitos e declínio da democracia, veem aprofundada sua situação de vulnerabilidade e de pobreza extrema. Nesse exemplo, se as intersecções e articulações entre gênero, raça e classe são indissociáveis para uma compreensão da desigualdade, são também indispensáveis para a resistência e a luta emancipatória.

Sônia Weidner Maluf

References

  • Crenshaw, K. (1989). Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum, (1989)1, 139-168.
  • Davis, A. (2016). Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo.
  • Kergoat, D. (2010). Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos Cebrap, 86, 93-103.
  • Puar, J. (2013). “Prefiro ser um ciborgue a ser uma deusa”: interseccionalidade, agenciamento e política afetiva. Meritum, (8)2, 343-370.
  • Scott, J. W. (2002). A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem. Florianópolis: Mulheres.

Notas

  • 1
    Para Stuart Hall, esse descentramento do sujeito universal já está presente no pensamento de Marx, por localizar o sujeito na história e nas suas condições concretas, o que representaria, para os intérpretes marxistas de meados do século XX uma crítica à noção abstrata de homem.
  • 2
    Ressalvando que um feminismo negro já se manifestava nos primórdios da luta das mulheres e da luta abolicionista, tendo como uma das expressões mais conhecida a ativista negra Sojourner Truth e seu eloquente discurso na Convenção pelos Direitos das Mulheres de Akron, em 1851 (no Ohio, EUA): “Ain´t I a woman?” (“E eu não sou uma mulher?”), que buscava evidenciar a opressão da mulher negra (e pobre, escravizada, trabalhadora).
  • 3
    Como o trabalho de Angela Davis do ano de 1984 (2016), que traz uma história das articulações entre raça, gênero e classe nos Estados Unidos, estendendo sua análise dos movimentos abolicionistas, sufragistas e de mulheres, às mulheres comunistas e ao movimento negro dos anos 1970. Os últimos capítulos trazem uma análise apurada sobre a violência racista e de gênero, o modo como as políticas de controle de natalidade atingiram as mulheres negras.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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