Resumo
A fome é uma das manifestações da insegurança alimentar e nutricional, expressão da questão social oriunda da desigualdade social desencadeada pelo modo de produção capitalista, detentora de uma lógica de valorização do capital que subordina o valor de uso ao valor de troca, estabelecendo um modo de vida sem sentido à medida que se trabalha para a geração de lucro e não para suas reais necessidades humanas. Partindo desse pressuposto, o presente artigo analisa como esse processo de valorização reflete na Segurança Alimentar e Nutricional, sob os aspectos de: produção e distribuição das commodities; custos da alimentação; condições socioeconômicas; e questões culturais. Os resultados demonstram que essa lógica de valorização afeta a produção, distribuição e consumo dos produtos alimentares, imprimindo consequências na disponibilidade dos produtos, na composição nutricional, na qualidade sanitária, nos padrões de consumo, na capacidade de compra, nas preferências alimentares e no uso sustentável dos recursos naturais.
Palavras-Chave:
Fome; Segurança alimentar e nutricional; Valor de uso; Valor de troca
Abstract
Hunger is one of the manifestations of food and nutritional insecurity, an expression of the social issue arising from social inequality triggered by the capitalist mode of production, possessing a logic of capital valorization that subordinates the use value to the exchange value, thus establishing a meaningless way of life, as one works for the generation of profit and not for their real human needs. Based on this assumption, this article analyzes how this valorization process affects Food and Nutrition Security, due to the aspects of: production and distribution of commodities; food costs; socioeconomic conditions; and cultural issues. The results show that this logic of valorization affects the production, distribution and consumption of food products, inflicting consequences on the availability of products, nutritional composition, sanitary quality, consumption patterns, purchasing capacity, food preferences and the sustainable use of natural resources.
Keywords:
Hunger; Food and nutrition reliability; Use value; Exchange Value
Introdução
“História da fome não é história que se conte — começou Zé Luiz — é só tristeza. Tristeza e vergonha. História feia. Mas se vocês querem, eu conto assim mesmo.” (CASTRO, 1967CASTRO, J. Homens e Caranguejos. São Paulo: Brasiliense, 1967., p. 73).
Sem detença, iniciamos este artigo esclarecendo que essa “história” é a manifestação mais crua e perversa da desigualdade social presente nas sociedades contemporâneas. Longe de ser uma condição natural da vida, a fome estrutural, é produto do conflito capital-trabalho inerente ao modo de produção capitalista.
A fome é uma das manifestações da insegurança alimentar e nutricional, cujo complexo fenômeno é uma flagrante violação ao direito humano à alimentação adequada. Conforme dados divulgados pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) em 2020, aproximadamente 928 milhões de pessoas estavam em situação de insegurança alimentar em níveis graves, isto é, cerca de 12% da população global que, em sua expressão mais grave, pode ter ficado um dia inteiro sem comer e 2,37 bilhões de pessoas sem acesso à alimentação adequada, o que corresponde a quase uma em cada três pessoas no mundo.
A relevância do assunto é facilmente justificada pelos números alarmantes e crescentes, mas se ratifica a necessidade de abordar esse tema a partir da lógica de seus elementos fundantes relacionados à valorização do capital. Primeiramente, porque a forma explícita dessa abordagem é incomum em relação à segurança alimentar e nutricional e, segundo, porque o desconhecimento do processo de valorização do capital e sua inflexão na segurança alimentar e nutricional provoca análises limitadas, motivo pelo qual se encontra trabalhos que apresentam como metodologia explicitada o materialismo histórico-dialético; contudo, exibem variáveis analíticas e/ou resultados cuja epistemologia foge da abordagem crítica e dialética.
A lógica de valorização do capital corresponde ao modo de produção capitalista que considera o valor de uso (referente às necessidades) subordinado ao valor de troca (referente à valorização do valor). Essa lógica se dá sob dois aspectos: a divisão social do trabalho e a propriedade privada. Essa divisão coloca o ser em interdependência com o outro; cada produtor produz para o outro e não para si, assim a produção é voltada para a troca e o valor dessa mercadoria é gerado pelo trabalho abstrato (substância do valor).
De acordo com Mészáros (2011)MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2011., o sistema de capital, na atualidade, não pode mais se desenvolver sem recorrer à taxa de utilização decrescente do valor de uso das mercadorias como mecanismo intrínseco, aprofundando a disjunção entre a produção voltada ao atendimento das necessidades humanas e aquela direcionada à autorreprodução do capital, intensificando, assim, as consequências destrutivas que colocam em risco o presente e o futuro da humanidade.
Por seu turno, Chesnais (2003)CHESNAIS, F. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Cemarx, 2003. explica que o modo de acumulação com predominância financeira expressa modificações não só no padrão de acumulação, mas também nas formas de valorização do capital, impactando as relações sociais de produção e reprodução da vida humana.
Partindo desse pressuposto, o presente artigo objetiva apresentar uma análise de como esse processo de valorização do capital, na era do capitalismo financeiro, reflete na Segurança Alimentar e Nutricional, contribuindo dessa forma para avaliações menos ingênuas.
Os aspectos selecionados para a análise foram: produção e distribuição das commodities; custos da alimentação; condições socioeconômicas (mais precisamente trabalho e renda) e questões culturais. A partir desses objetos, algumas dimensões que contemplam o monitoramento e a avaliação da segurança alimentar e nutricional foram observadas; no entanto, é importante esclarecer que neste artigo não se pretende elucidar todas as dimensões que compõem o referido sistema de monitoramento e avaliação.
Para tanto, o método utilizado foi a análise documental (leis, jornais, discursos e relatórios de pesquisas e notas técnicas de órgãos nacionais e internacionais) em conjunção com a análise de dados secundários, cujo marco temporal se situa na atual conjuntura, marcada pela crise do capital pela pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), e pelas transformações no mundo do trabalho e na esfera produtiva, tendo como recorte espacial o Brasil, porém estabelecendo um diálogo com o contexto global. Explicita-se que, na seleção dos documentos e dos dados secundários, priorizou-se buscar as informações mais atualizadas; contudo, resgatando períodos anteriores quando se observou que as tendências da evolução histórica eram importantes para a análise.
Dessa forma, o trabalho se inicia com uma breve abordagem sobre a interpretação da fome no Brasil a partir dos marcos da Segurança Alimentar e Nutricional, para, em seguida, elucidar sobre a fome no sistema capitalista, avançando posteriormente para uma apreciação da particularidade capitalista de subordinação do valor de uso (que atendem as necessidades humanas) aos interesses do lucro e analisando finalmente, a partir do contexto atual brasileiro, os resultados dessa lógica e sua interação com a segurança alimentar e nutricional.
A fome como uma questão alimentar e nutricional
A Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil é associada ao direito de acesso à alimentação necessária à vida saudável e adequada. De acordo com a Lei Orgânica para a Segurança Alimentar e Nutricional, Lei nº 11.346/2006, a alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, algo inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal de 1988.
Ainda, na Lei que cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (ISAN), Lei nº 11.346/2006, art. 3º, a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) diz respeito:
à realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Presidência da República, 18 set. 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm. Acesso em: 05 fev. 2022.
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Logo após, a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN) —instituída pelo Decreto nº 7.272/2010 —, em seu art. 3º, inciso VIII, estabelece, dentre as diretrizes que deverão nortear a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o monitoramento da realização do direito humano à alimentação adequada (BRASIL, 2010BRASIL. Decreto nº 7.272, de 25 de agosto de 2010. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Presidência da República, 25 ago. 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7272.htm. Acesso em: 05 fev. 2022.
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).
Para o monitoramento, é instituído como base a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que mensura a percepção das famílias em relação ao acesso aos alimentos. Esse instrumento é capaz de “identificar os grupos populacionais mais vulneráveis à violação do direito humano à alimentação adequada” (BRASIL, 2010BRASIL. Decreto nº 7.272, de 25 de agosto de 2010. Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Brasília, DF: Presidência da República, 25 ago. 2010. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7272.htm. Acesso em: 05 fev. 2022.
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), assim como de apontar as desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero associadas.
Conforme a Política Nacional de Segurança Alimentar, o monitoramento deve contemplar as seguintes dimensões de análise: produção de alimentos; disponibilidade de alimentos; renda e condições de vida; acesso à alimentação adequada e saudável, incluindo água; saúde, nutrição e acesso a serviços relacionados; educação; e programas e ações relacionadas à segurança alimentar e nutricional.
O monitoramento contempla essas dimensões porque elas repercutem diretamente na condição de segurança alimentar e nutricional, porém, estão também intimamente conectadas com as relações estabelecidas pelo sistema capitalista, o que nos conecta ao segundo ponto a ser trabalhado neste artigo.
A fome e o modo de produção capitalista
O tema fome sempre esteve presente na história da humanidade. Encontra-se relatos que vão desde o aspecto religioso localizado na Bíblia Sagrada, em Genesis 12: 10-11, até o marco histórico, como o que ficou conhecido como a Grande Fome, que juntamente com a peste e a guerra, é denominada por muitos historiadores como parte da trilogia da crise feudal.
Muito embora a história revele que a razão que fez o sistema feudal ser assolado pela fome tivesse relação com a densidade populacional maior que a produção de alimentos — devido às técnicas agrícolas rudimentares, além de outras questões que contribuíram como situações climáticas que impactaram na colheita e consequentemente aumento do preço dos alimentos —, não se pode atribuir à sociedade capitalista as mesmas causas para esse fenômeno.
Para Thomas Malthus, tendo em vista a impossibilidade produtiva, a escassez de comida levaria a fome1 1 Problematizando o período da revolução industrial, no século XVIII, Malthus acreditava que no futuro a humanidade não conseguiria produzir alimentos suficientes para sustentar todas as pessoas do mundo, em razão da oferta de comida ser inferior ao crescimento da população. . Diferente do autor, neste artigo se defende que a fome estrutural (para além das questões climáticas e das consequências oriundas de territórios em guerra que influenciam na produção entendida aqui como fome conjuntural) decorre da pobreza e da desigualdade social2 2 Refere-se à pobreza e à desigualdade social por compreender que elas estão intimamente vinculadas, visto a produção polarizada de riqueza e pobreza no sistema capitalista. Vale ressaltar, ainda, que a caracterização da pobreza e da desigualdade são problemáticas pluridimensionais que não se esgotam aos seus aspectos socioeconômicos, ainda que para entendê-las se faz necessário partir do seu fundamento socioeconômico (PAULO NETTO, 2007). , e essas derivam do modelo de desenvolvimento econômico e social vigente. Dessa forma, vale reforçar que no sistema capitalista, ao contrário do que ocorria nas formações sociais precedentes, a pobreza não provém da penúria generalizada, mas de uma contínua produção de riquezas (PAULO NETTO, 2007).
A título de exemplificação, a estimativa da produção da safra brasileira em setembro de 2020 foi de 257,8 milhões de toneladas (CONAB, 2020COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO (CONAB). Acompanhamento de safra brasileira: grãos: Décimo segundo levantamento: safra 2019/20. Brasília, DF: Companhia Nacional de Abastecimento, v. 7, n. 12, 2020. Disponível em: https://www.conab.gov.br/info-agro/safras/graos/monitoramento-agricola. Acesso em: 08 fev. 2022.
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), enquanto, paradoxalmente, a fome no país durante esse mesmo período atingiu 19 milhões pessoas, isto é, cerca de 9% da população mundial e mais da metade dos brasileiros conviviam com algum grau de insegurança alimentar3
3
Insegurança Alimentar utilizada por essa pesquisa é medida por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que classifica a insegurança alimentar em leve (preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro, qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade), moderada (redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos dos adultos) ou grave (redução quantitativa de alimentos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre crianças; fome – quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro).
. Para janeiro desse ano, a estimativa da safra é de aproximadamente 284,4 milhões de toneladas (CONAB, 2021), um aumento de 26,6 milhões que provavelmente não repercute na diminuição da fome. Infelizmente não temos dados atualizados de Segurança Alimentar no Brasil para realizar a comparação, mas conforme as análises da Pesquisa de Orçamento Familiares (POF) 2017-2018, houve um aumento da insegurança alimentar referente ao acesso aos alimentos e, em comparação às pesquisas anteriores, vale ressaltar que foi um agravamento indicado anteriormente à pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2).
Contribuindo com essa análise, segundo avaliação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2020, o índice de Palma4
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O Índice Palma é a razão entre as rendas dos 10% mais ricos sobre a dos 40% mais pobres.
no Brasil foi de 3,71; isto quer dizer que os 10% mais ricos possuíam uma massa de rendimento 3,71 vezes maior do que os 40% mais pobres. Importante considerar que neste ano foi implementado o programa emergencial (em virtude da pandemia da Covid-19), cuja focalização foi mais intensa nos décimos da base da distribuição que o indicador utiliza, e se não houvesse os benefícios de programas sociais, esse índice chegaria a 5,39, um aumento de 18,1% no índice entre os anos de 2012 e 2020. Isto é um aumento considerável da desigualdade monetária (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2021INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. p. 206. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html?=&t=o-que-e. Acesso em: 05 fev. 2022.
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).
Completando a análise da desigualdade para além dos extratos monetários, em última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), de novembro de 2021, a população ocupada de cor ou raça branca ganhava, em média, 73,3% mais do que a de cor ou raça preta ou parda e os homens, 28,1% mais que as mulheres.
Enfim, os dados confirmam a contínua produção de riqueza, distante da penúria generalizada que ora pudesse ter sido utilizada como justificativa, e mais do que isso, apontam para uma preocupante desigualdade, que visivelmente tem sido relegada a ações de cunho pontual e não estruturante.
A lógica de valorização do capital e seus reflexos na Segurança Alimentar e Nutricional do Brasil
De acordo com Marx, toda mercadoria possui valor de uso e de troca. O valor de uso é a utilidade de uma coisa, e se realiza com sua utilização ou consumo. Na sociedade capitalista os “valores de uso são, ao mesmo tempo, os veículos materiais do valor de troca” (MARX, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. e-book., p. 830). O valor de troca, por sua vez, é definido pela quantidade de um produto que é possível conseguir em troca de uma certa quantidade de outro produto. Dessa forma, o valor de troca depende da quantidade de trabalho que é medida pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações do tempo.
“Como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de qualidade diferente; como valores de troca, só podem diferir na quantidade, não contendo, portanto, nenhum átomo de valor de uso”. (MARX, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. e-book., p. 842).
Assim, na relação de permuta das mercadorias, o valor de troca se revela independente do seu valor de uso, instaurando a autovalorização, isto é, mediante a divisão social do trabalho e a propriedade privada, o trabalho na sociedade capitalista aparece como trabalho assalariado, trabalho que pertence ao outro, cujo produto é para satisfazer a necessidade do outro e não a sua. Dessa forma, ocorre a subsunção do processo de trabalho ao capital, subjugando-o ao processo de valorização.
A subsunção corresponde a um movimento dialético no qual a força de trabalho é incluída e transformada em capital. Essa subsunção é formal em sociedades capitalistas em que prevalece a extração da mais-valia absoluta. Com o desenvolvimento do capitalismo, mais especificamente no modelo de produção toyotista, essa subsunção é real, estabelece-se um modo de vida que é sem sentido à medida que se trabalha para a geração de lucro e não para as suas necessidades. Para tanto, imputa aos seres humanos uma forma de pensar e agir favorável à sustentação dessa ideologia. Da mesma forma, determina um sistema de relações entre sociedade/Estado/Capital que reforça o controle social no cotidiano da vida dos indivíduos.
Sendo assim, a partir da década de 19705 5 No Brasil, a inserção ao capital mundializado se dá de forma tardia. com a acumulação flexível, o capitalismo começa a apresentar uma nova configuração, há uma mundialização com dominância financeira trazendo transformações não só no padrão de acumulação (agora rentista), mas também nas suas formas de valorização, impactando o mercado de trabalho e as relações sociais6 6 Para saber mais sobre as transformações das relações de trabalho na era da mundialização do capital, ler Antunes (2004). (CHESNAIS, 2003CHESNAIS, F. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Cemarx, 2003.).
Adotando a ideologia neoliberal, o mercado aparece como autorregulável, cabendo ao Estado, então, se redefinir para que em concorrência com outros Estados, possa oferecer as melhores condições para produção e acumulação capitalista. Mediante a esse ajuste, observa-se o desfinanciamento das políticas sociais — não somente por redução dos custos, mas com o intuito de imputar o acesso aos serviços sociais via mercado, o desemprego em massa, a informalidade e a superexploração.
Dessa forma, em busca da fundamentação capitalista de maximização dos lucros, verifica-se o acirramento dos interesses egoístas, a decadência da natureza e das formas de sobrevivência, isto é, implica tanto sobre as condições de reprodução da força de trabalho (superexploração) e o próprio acesso ao trabalho (desemprego, informalidade), quanto às formas de sociabilidade, de manifestação e de resistência. Confere-se, também, uma cidadania agora pautada pela capacidade de consumo (IAMAMOTO, 2008IAMAMOTO, M. Mundialização do capital, “questão social” e Serviço Social no Brasil. Revista em Pauta, Rio de Janeiro, n. 21, p. 117-139, 2008.). Nesse cenário é reforçado o posicionamento do mercado liberal acima do sujeito e de suas necessidades.
A partir desse panorama, seguem as reflexões sobre o processo de valorização do capital e a segurança alimentar e nutricional no Brasil. A análise realizada é referente à realidade atual, dessa forma, é importante ressaltar que, ainda que estruturadas por essa lógica de valorização do capital, as expressões atuais de insegurança alimentar e nutricional representam especificidades que variam conforme determinada conjuntura histórica e de acordo com as forças sociais presentes.
No Brasil, a financeirização da economia se dá mediante a elevação das taxas de juros, privilegiando as finanças, o setor de serviços e as commodities. A expansão das commodities agrícolas é justificada devido ao seu alto valor de mercado, pois são úteis para a dieta alimentar; algumas servem, também, como matéria-prima para outros mercados, além de poderem ser consideradas como ativo financeiro.
Em busca das mais lucrativas, ou seja, aquelas que servem de matéria-prima e insumo para outras mercadorias como produção de biocombustíveis7 7 Os biocombustíveis são fontes energéticas provenientes da transformação de matéria orgânica vegetal ou animal, para tanto, culturas como milho, soja, trigo e cana-de-açúcar são usadas como matéria-prima. e produção de ração para o consumo animal8 8 Apesar do gado servir de alimento, ele não é acessível a todo segmento da população, em razão do seu custo, além disso há algumas vertentes que criticam a quantidade de grãos que é dispensado para o consumo animal, uma vez que para produzir 1kg de carne bovina é necessário, em média, a utilização de 6kg a 20kg de cereais. , nota-se cada vez mais a agricultura familiar (que produzem os alimentos que serão destinados à alimentação) perder espaço para os grandes latifúndios e para a monocultura. Tal realidade também pode ser observada através da maior concessão de crédito para a produção de commodities, que servem de matéria-prima ou insumo em detrimento de produtos direcionados à cesta-básica: do total das contratações do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), no ano de 2020 e 2021, 20,7% foram para o milho e soja (usados como matéria prima dos biocombustíveis) e 18,6% para produtos como arroz, feijão, verduras, trigo, café e frutas.
Assim, em busca de produtos de maior valoração, são tomadas medidas que determinam a produção e a distribuição, afetando o tipo, a disponibilidade de produtos nutritivos, a cobertura da comercialização e até mesmo o preço. No caso se produz e se distribui para o que é mais lucrativo e não para as reais necessidades e demanda da humanidade.
Além disso, o latifúndio e a monocultura vêm contribuir para o desmatamento e para o aumento da concentração de terra e renda. Conforme a Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), no período de agosto de 2018 a julho de 2021, o desmatamento na Amazônia aumentou 56,6% em relação ao mesmo período em anos anteriores, só em Unidades de Conservação o aumento foi de 63,7%. De acordo com o Instituto, o desmatamento da Amazônia foi favorecido por medidas como:
o enfraquecimento da governança ambiental, decorrente dos cortes orçamentários nas instituições responsáveis pela fiscalização; as substituições de diretores e de chefes de operação exitosas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis); as alterações no processo de autuação e de flexibilização das penalidades aos infratores ambientais; a desmobilização das instâncias de governança e de participação social nas políticas públicas; e a desarticulação institucional nas operações de comando e controle decorrentes do empoderamento do Exército Brasileiro para realizar a fiscalização. (ABESSA et al., 2019; RAJÃO et al., 2021; LOPES et al., 2021; KLEINSCHMIT et al., 2021 apud IPAM, 2021, p. 1-2).
Ainda sobre o desmatamento, o estudo do Ipam alertou, também, sobre o desmatamento das terras indígenas, com uma alta de 153% em média, atitudes alicerçadas por discursos de preconceito e discriminação que “validam” o não direito e incentivam a violência:
Ruralistas e integrantes do governo, especialmente o próprio presidente Bolsonaro, disseminam abertamente discursos discriminatórios contra essas populações, classificando-as como inferiores, “que nem para procriar servem mais”, ou porque “sufocam o agronegócio”. Sendo assim, é preciso “dar armas e fuzis para os fazendeiros”. (FURTADO, 2021, p. 43 apud PEREIRA; ORIGUÉLA; COCA, 2021PEREIRA, L. I; ORIGUÉLA, C. F; COCA, E. L. F. A política agrária no governo Bolsonaro: as contradições entre a expansão do agronegócio, o avanço da fome e o antiambientalismo. Revista NERA, v. 24, n. 58, p. 8-27, 2021., p. 18).
Como relata Pereira, Origuéla e Coca (2021PEREIRA, L. I; ORIGUÉLA, C. F; COCA, E. L. F. A política agrária no governo Bolsonaro: as contradições entre a expansão do agronegócio, o avanço da fome e o antiambientalismo. Revista NERA, v. 24, n. 58, p. 8-27, 2021., p. 12): “Sempre desmatando e matando aquilo que impede e questiona o seu crescimento desenfreado”. Mais uma vez, em prol de mercadorias cujo valor de troca no mercado é mais proeminente se destrói o ambiente, comprometendo o uso sustentável dos recursos naturais da sociedade.
Sobre a concentração de terras, o último censo Agropecuário, realizado em 2017, apontava que 1% dos proprietários de terra controlavam 50% da área rural do País. Ora, o latifúndio é historicamente desigual no País, mas vem sendo alimentado pelo agronegócio, aprofundando a desigualdade social e, com essas últimas atitudes, a violência e o não direito.
Mais recentemente, para ser mais precisa, em janeiro de 2022, em discurso realizado no evento sobre agronegócio no Banco do Brasil, o presidente declarou ter colocado fim ao envio de recursos públicos que iam para organizações não governamentais (ONGs) que, segundo ele, financiavam o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nesse mesmo evento ele ainda enalteceu o Congresso Nacional, que liberou o “porte estendido” de arma de fogo para o homem do campo. “Levou mais tranquilidade”, defendeu.
Soma-se a esses últimos acontecimentos9 9 Citamos apenas alguns acontecimentos que se tornam relevantes para a análise, pois não é escopo deste trabalho fazer uma avaliação das políticas praticadas pelo atual governo. a diminuição de multas ambientais, a não demarcação de terras indígenas e o afrouxamento das regulamentações legais, tais como as ocorridas com o uso de agrotóxicos. Importante destacar também o desmonte do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) cujo objetivo era fomentar a agricultura familiar e combater a insegurança alimentar de pessoas em situação de vulnerabilidade.
Enfim, favorecidas pela atual conjuntura brasileira, delimitadas pela força de dominação desta burguesia, pelas contradições e exigências das diferentes frações da burguesia e pela força dos movimentos das classes subordinadas — de obter concessões o e/ou construir alternativas concretas ao poder existente e, é claro, arraigadas pela lógica de valoração do capital, destacamos medidas que incentivam a monocultura, o monopólio dos mercados agrícolas, a liberação do uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, o avanço no desmatamento, práticas ilegais, emissão de gases do efeito estufa e a criminalização de movimentos sociais que faz aumentar os conflitos, a violência e a despossessão de terra.
Resumindo, a busca por produções agropecuárias mais lucrativas tem favorecido o financiamento para os produtores de commodities que servem de matéria-prima ou insumo para outras mercadorias em detrimento da agricultura familiar, reduzindo o acesso a alimentos que compõem a cesta básica; incentivando o latifúndio, consequentemente a concentração de riqueza e desigualdade social afetando, assim, a capacidade de compra de uma significativa parcela da população; adotando políticas que oneram a natureza, os direitos de igualdade e a vida, além de tentar minar qualquer tentativa de resistência, impactando a qualidade sanitária dos produtos a serem consumidos. Por fim, em busca do lucro se perpetua a barbárie, o não direito a uma vida digna, solapando as condições de existência, tanto por dificultar o acesso aos bens vitais, quanto por degradar a natureza, essencial para a vida humana.
Não se pode negar que tais esforços foram exitosos (para os ideólogos capitalistas), em 2020, houve um aumento de 6% na exportação de produtos agropecuários, sendo o único setor da economia a apresentar lucro no País em meio à pandemia da Covid-19. Porém, ainda num cenário de diminuição de empregos, redução de renda, aumento da pobreza, aumento da desigualdade, isto é, de deterioração das condições sociais e econômicas da maioria da população brasileira, assiste-se medidas que contribuíram para a insegurança alimentar e nutricional, como acabamos de demonstrar.
As medidas de combate à pobreza e à fome, tais como o financiamento de benefício emergencial que ora pudesse ter sido favorecido com o crescimento do agronegócio (o velho discurso de combate a fome via aumento da produtividade), não são capazes (e nem intentam) de prover mudanças estruturais; ao contrário, a fome que é impactada pelo processo de valorização do capital, e se torna cada vez mais proeminente e estrutural.
Soma-se a esse quadro a exploração do trabalho — ainda atendendo aos interesses do mercado em detrimento do ser humano. Chama a atenção o discurso do presidente Jair Bolsonaro sobre as regras de proteção da saúde e da segurança de trabalhadores, falando da possibilidade de, com base na lei, uma família dona de propriedade rural vir a perder a fazenda se estiver oferecendo aos trabalhadores espessura do colchão, recinto com ventilação inadequada, roupa de cama rasgada, copo desbeiçado, entre outras 200 especificações [...] esse cidadão vai perder a fazenda. Vai ele, seus netos e bisnetos para a rua, se não for para a cadeia. Quem tem coragem de investir num país como esse? Ninguém [...] O trabalhador, o empregador, tem que ter essa garantia. [Tal situação] leva o terror para o produtor10 10 Falas extraídas do G1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/30/bolsonaro-critica-emenda-que-manda-expropriar-propriedade-que-praticar-trabalho-escravo.ghtml .
Verificam-se discursos de preconceito e discriminação que “validam e justificam” o não direito, o não merecimento ao trabalho e à proteção social, dentre tantos outros direitos sociais, isto é, a consolidação de transformações societárias inerentes ao processo de subsunção do trabalho ao capital, que reforça o posicionamento do mercado liberal acima do sujeito e de suas necessidades. Toda a relação se inverte: a produção se torna consequência das transações financeiras e a exploração da força de trabalho pelo capitalista se encobre reificada na forma de capital que se autovaloriza. Todas as relações sociais implicadas (a divisão social do trabalho, a propriedade privada, a acumulação primitiva, o processo de extração de mais-valia) são subsumidas à aparência de natural do capital, mistificando, consequentemente, os determinantes da fome.
Outro ponto importante a ser refletido é o de como a subordinação de necessidades da reprodução humana à geração do lucro implica não somente na produção e distribuição como vimos, mas, ainda, no consumo dos produtos alimentares.
De acordo com a FAO, em 2019 os custos de uma dieta saudável, em nível global, foram em média 60% maior do que uma dieta que apenas atende aos requisitos de nutrientes essenciais e quase cinco vezes mais do que uma dieta que atende às necessidades energéticas mínimas da dieta por meio de um alimento rico em amido. Para complexificar mais o acesso a esses alimentos saudáveis, entre os anos 2017 e 2019 houve um aumento médio de 7,9% no custo da dieta saudável no mundo.
No Brasil, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)11 11 É referente às famílias residentes nas áreas urbanas das regiões de abrangência do SNIPC, com rendimentos de 1 (um) a 40 (quarenta) salários mínimos, qualquer que seja a fonte de rendimentos. apontou uma variação acumulada ao ano em alimentação e bebidas, de 4,04 em dezembro de 2018, 6,37 correspondente ao mesmo período de 2019 e 14,09% em dezembro de 2020. Importante ressaltar que foi o grupo de consumo12 12 O Grupo é composto por: alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transporte, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação. que registrou a maior variação nos anos 2019 e 2020, sendo, neste último ano, 42% a mais de variação comparado com segundo maior grupo.
Ainda assim, a taxa de crescimento do rendimento domiciliar per capita entre 2012 e 2020 foi de apenas 2,6% levando em conta a inflação e reduzindo, ainda, entre os anos 2019-2020 em 4,3% (PNAD CONTÍNUA, 2021PNAD CONTÍNUA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Rio de Janeiro: IBGE, nov. 2021. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=publicacoes. Acesso em: 05 fev. 2022.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
).
Em suma, pautados por uma lógica de valoração, observamos os custos da alimentação desconectado de qualquer necessidade humana, trazendo consequências à própria capacidade de compra de alimentos e, mais ainda, de acesso a alimentos e a nutrientes necessários a uma alimentação saudável. O consumo se torna um fenômeno exclusivamente econômico e não um fato intimamente ligado à saúde pública.
Para finalizar, como Harvey (2005)HARVEY, D. Condição pós-moderna. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 2005. defendeu, a atual sociedade capitalista — caracterizada pela compressão espaço-tempo inerente ao modelo de desenvolvimento do capitalismo financeiro — é marcada por mudanças no estatuto da produção cultural, no próprio modo de vida com a generalização de novas práticas, experiências e formas de vida.
Tais mudanças podem ser observadas a partir das características alimentares da sociedade, conforme as POFs realizadas entre 2002-2003, 2008-2009 e 2017-1018; os alimentos in natura ou minimamente processados e ingredientes culinários processados vêm perdendo espaço para alimentos processados e, sobretudo, para alimentos ultraprocessados (PESQUISA DE ORÇAMENTOS FAMILIARES, 2020).
Ou seja, de acordo com Mészáros (2011)MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2011., em uma sociedade na qual o processo de valorização do capital imputa aos seres humanos uma forma de pensar e agir favorável à sustentação dessa ideologia, que reforça o controle social no cotidiano de vida dos indivíduos, obtendo assim o consentimento dos dominados, verifica-se a adoção de novas práticas alimentares que simplificam o trabalho e economizam o tempo em detrimento da qualidade, evidenciando a relação com a obesidade e a fome oculta13 13 A fome oculta é a carência de um ou mais micronutrientes essenciais para o organismo. , o que não deixa de ser uma verdadeira irracionalidade societal, como abordou Antunes (2004)ANTUNES, R. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, 2004. p. 335-351..
Considerações finais
Concluindo, as análises apontam como o processo de valorização do capital afeta a produção, distribuição e consumo dos produtos alimentares. Através dos elementos analisados14 14 Lembramos que não objetivamos analisar o assunto em sua completude, dessa forma nem todos os elementos que compõem a questão da segurança alimentar e nutricional foram abordados. , observou-se como essa lógica imputa consequências na disponibilidade dos produtos, na composição nutricional, na qualidade sanitária, nos padrões de consumo, na capacidade de compra, nas preferências alimentares e no uso sustentável dos recursos naturais da sociedade.
Com efeito, pode-se observar que a “fome tem sido alimentada” com atitudes de uma ideologia capitalista que denotam um verdadeiro “financiamento” da fome, onde as necessidades humanas são subsumidas pelas necessidades de mercado, naturalizando as consequências desse modo de produção, ou ora tratando essas questões políticas, como se fossem questões de incapacidades administrativas, novamente obscurecendo seus reais determinantes.
Conclui-se que as medidas adotadas são estruturadas a partir desse processo de valorização, ainda que sejam mais prejudiciais ou não, dependendo da correlação de forças existente e de fatores conjunturais, prepondera-se a ideologia de valorização, na qual o valor de mercado está acima das necessidades humanas, como pôde ser observado recentemente — quando forte pressão popular pressionou o governo para que fossem tomadas medidas que atendessem os impactos gerados pela pandemia da Covid-19. Como analisado, apesar da implementação do auxílio emergencial, ainda assim prevaleceu a dicotomia entre geração de riquezas e vidas humanas.
Os quadros de insegurança alimentar e nutricional permanecerão enquanto prevalecer as bases estruturantes da sociedade capitalista. No entanto, gostaríamos de finalizar dizendo que vamos sim, Sr. Zé Luiz, falar da fome porque reconhecemos que a produção e a reprodução da vida social, isto é, as condições materiais que permitem a vida social, são movidas pelas contradições, de forma que a organização coletiva dos trabalhadores e o fortalecimento dos movimentos sociais podem reforçar as ações não hegemônicas e, com isso, influenciar de forma positiva os indicadores da insegurança alimentar e nutricional, ainda que não a supere, pelo menos não enquanto perdurar esta sociedade capitalista. E, também, são esses sujeitos que podem se apresentar como uma força contra-hegemônica ao capitalismo. Como sabemos, os sujeitos são produto da história, mas também fazem essa história, ainda que sob circunstâncias herdadas.
Agradecimentos
Aos professores do programa de Pós-graduação em Política Social da UFF, em especial à Professora Dra. Luciene Burlandy por sua experiência e assistência em todos os aspectos desse estudo, além do incentivo e à Professora Dra. Mônica Senna, minha orientadora de Doutorado, por sua inestimada orientação técnica. Ao meu marido Rafael Barbosa na revisão do texto e ao meu amigo Elias Agostinho pela assistência na edição do idioma. À equipe editorial da revista Katálysis pela revisão das normas.
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Problematizando o período da revolução industrial, no século XVIII, Malthus acreditava que no futuro a humanidade não conseguiria produzir alimentos suficientes para sustentar todas as pessoas do mundo, em razão da oferta de comida ser inferior ao crescimento da população.
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Refere-se à pobreza e à desigualdade social por compreender que elas estão intimamente vinculadas, visto a produção polarizada de riqueza e pobreza no sistema capitalista. Vale ressaltar, ainda, que a caracterização da pobreza e da desigualdade são problemáticas pluridimensionais que não se esgotam aos seus aspectos socioeconômicos, ainda que para entendê-las se faz necessário partir do seu fundamento socioeconômico (PAULO NETTO, 2007).
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Insegurança Alimentar utilizada por essa pesquisa é medida por meio da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que classifica a insegurança alimentar em leve (preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro, qualidade inadequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade), moderada (redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos dos adultos) ou grave (redução quantitativa de alimentos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre crianças; fome – quando alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro).
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O Índice Palma é a razão entre as rendas dos 10% mais ricos sobre a dos 40% mais pobres.
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No Brasil, a inserção ao capital mundializado se dá de forma tardia.
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Para saber mais sobre as transformações das relações de trabalho na era da mundialização do capital, ler Antunes (2004)ANTUNES, R. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n. 87, 2004. p. 335-351..
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Os biocombustíveis são fontes energéticas provenientes da transformação de matéria orgânica vegetal ou animal, para tanto, culturas como milho, soja, trigo e cana-de-açúcar são usadas como matéria-prima.
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Apesar do gado servir de alimento, ele não é acessível a todo segmento da população, em razão do seu custo, além disso há algumas vertentes que criticam a quantidade de grãos que é dispensado para o consumo animal, uma vez que para produzir 1kg de carne bovina é necessário, em média, a utilização de 6kg a 20kg de cereais.
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Citamos apenas alguns acontecimentos que se tornam relevantes para a análise, pois não é escopo deste trabalho fazer uma avaliação das políticas praticadas pelo atual governo.
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Falas extraídas do G1. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/30/bolsonaro-critica-emenda-que-manda-expropriar-propriedade-que-praticar-trabalho-escravo.ghtml
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É referente às famílias residentes nas áreas urbanas das regiões de abrangência do SNIPC, com rendimentos de 1 (um) a 40 (quarenta) salários mínimos, qualquer que seja a fonte de rendimentos.
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O Grupo é composto por: alimentação e bebidas, habitação, artigos de residência, vestuário, transporte, saúde e cuidados pessoais, despesas pessoais, educação e comunicação.
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A fome oculta é a carência de um ou mais micronutrientes essenciais para o organismo.
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Lembramos que não objetivamos analisar o assunto em sua completude, dessa forma nem todos os elementos que compõem a questão da segurança alimentar e nutricional foram abordados.
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Agência financiadoraNão se aplica.
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Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.Consentimento para publicaçãoConsentimento da autora.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Ago 2022 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2022
Histórico
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Recebido
04 Mar 2022 -
Aceito
20 Maio 2022 -
Revisado
21 Jun 2022