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Como podemos fazer as pazes? Uma contribuição desde a filosofia para a transformação pacífica de conflitos

How can we make peace? A contribution from philosophy to peaceful conflict transformation

RESENHA

Como podemos fazer as pazes? Uma contribuição desde a filosofia para a transformação pacífica de conflitos

How can we make peace? A contribution from philosophy to peaceful conflict transformation

Martha Jalali Rabbani

Doutora em Humanidades. Professora do Programa de Estudos para a Paz e Resolução de Conflitos, Department of Humanities and Western Civilization, Kansas University – Kansas, EUA

RESENHA: Podemos fazer as pazes. Reflexões éticas a partir do 11 de setembro e do 11 de março

RESEÑA: Podemos hacer las paces. Reflexiones éticas tras el 11-S y el 11-M

BOOK REVIEW: Time to make peace. Ethical reflections on Sept. 11 and March 11.

GUZMÁN, Vicent Martínez. Podemos hacer las paces. Reflexiones éticas tras el 11-S y el 11-M. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2005. 164 p.

GUZMÁN, Vicent Martínez. Time to make peace. Ethical reflections on Sept. 11 and March 11. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2005. 164 p.

Dando continuidade ao seu trabalho pioneiro de investigação sobre a filosofia para a paz, o professor titular de Filosofia, Vicent Martínez Guzmán, assume em seu mais recente livro os desafios que os eventos de 11 de setembro e 11 de março apresentam ao processo da paz internacional, para argumentar que a paz como justiça, apesar desses desafios, longe de ser um ideal é realisticamente possível.

Como diretor da Cátedra da UNESCO de Filosofia para a Paz da Universidade Jaume I, Espanha, e fundador do Mestrado Internacional de Estudos para a Paz e o Desenvolvimento, um programa que recebe anualmente estudantes e professores de diversos países e culturas do mundo, o professor Martínez Guzmán está à frente de um projeto prático e teórico que vem, há mais de uma década, dando testemunho da riqueza da diversidade humana e da possibilidade de uma convivência justa. Essa diversidade o autor reconhece e cultiva com a ternura, o cuidado e o amor próprios dos filósofos comprometidos com a transformação do sofrimento humano por meios pacíficos.

A partir da filosofia, aprendemos que fazer as pazes, seja a nível local, regional ou internacional, é possível porque os seres humanos estão solidariamente unidos ou solidamente ligados. Compreendemos que o cultivo de relações pacíficas está de acordo com a condição de interdependência dos seres humanos e com seu interesse por conhecer a sua própria identidade. Argumentar e trabalhar pela paz não é um sonho idealista. É a recuperação daquela realidade que nos faz humanos e que se, por um lado, pode promover a guerra e uma resolução violenta dos conflitos pode, por outro, promover políticas para paz e justiça.

Uma perspectiva filosófica sobre a paz recupera primeiramente o amor ao saber sobre os outros, as outras e a natureza, como um amor ao saber como fazer as pazes com todos. O conhecimento daquela realidade da condição humana que predispõe todo ser humano para relações pacíficas é o tema em questão nesse livro. A filosofia nos fala da busca do ser humano por sua identidade e da condição fundamental que torna esse auto-conhecimento possível. Essa condição é o reconhecimento recíproco que oferecemos uns aos outros através da comunicação. O auto-conhecimento, então, depende necessariamente de relações de interdependência que se expressam no cotidiano da existência humana através do reconhecimento e da comunicação.

Os seres humanos estão predispostos para a paz porque o desenvolvimento de sua identidade, ou a realização de suas capacidades e competências, dá-se em uma relação de reciprocidade. Uma relação onde os participantes se reconhecem como comunicativamente competentes, ou capazes de dar e pedir razões para o que fazem uns aos outros. A necessidade humana desse reconhecimento significa que os envolvidos em toda e qualquer relação só podem exercer suas competências e seus poderes quando reconhecidos como responsáveis por suas ações. Em outras palavras, o desenvolvimento do ser humano é função do reconhecimento inicial de sua competência comunicativa, de sua capacidade de pedir e prestar contas por suas ações. Na medida em que podem se interpelar mutuamente, pedir razões para o que fazem e dizem ou deixam de fazer e dizer e responder às demandas um do outro, estão respeitando a sua sólida ligação. Uma convivência que respeite essa característica básica das relações humanas é uma convivência justa e pacífica e é de interesse de todos os participantes promovê-la. O desrespeito a essa solidariedade originária restringe o desenvolvimento das capacidades de todos os participantes. Tal desrespeito, prática infelizmente comum nas relações humanas, torna todos os envolvidos vítimas da violência, sejam esses violados ou violadores.

Aprendemos com o autor que, a partir de uma filosofia para a paz, a violência é a ruptura da solidariedade originária. A violência, a princípio, não existe nas relações humanas. Ela passa a existir quando a característica básica da solidariedade e reciprocidade entra em desequilíbrio. A violência começa com a falta de reconhecimento da competência dos interlocutores para se comunicarem. Em uma relação de violência não é permitido a todos uma igual interpelação. Alguns têm mais direitos ou oportunidade de pedir contas enquanto outros devem prestar contas, sem ser ouvidos ou sem a possibilidade de pedir razões. Tanto os que não têm suas demandas ouvidas como os que ignoram e não respondem às demandas do outro, são, não obstante, vítimas da violência. Ambos estão privados do exercício de sua competência comunicativa, que afinal ocorre em diálogo, e, portanto, da possibilidade de se responsabilizarem, ou assumirem compromisso pelas próprias escolhas.

Atos terroristas como os de 11 de setembro e 11 de março e a guerra contra o terrorismo global são exemplos dessa violência que rompe com a solidariedade comunicativa. São atos irresponsáveis, resultado da falta de reconhecimento dos envolvidos da capacidade de comunicação e da possibilidade de se alcançar um consenso dialogado. Esses atos são violentos não apenas porque privam as pessoas de suas necessidades mais fundamentais mas também porque sua raiz está na "falsedad y la insinceridad de quien habla que no asume la responsabilidad de lo que hace y dice, que no responde por lo que hace y dice" (p. 73). Na falsidade daqueles que atribuem a responsabilidade de seus atos à vontade de Allah ou a uma segurança nacional ameaçada.

Frente a uma solidariedade, entendida como característica básica das relações humanas, e a uma violência, definida como ruptura dessa solidariedade, a pergunta que se segue é quais seriam as possíveis causas da violência. Partindo da filosofia, o autor propõe que os investigadores adotem, como categorias de análise para conduzir suas pesquisas sobre a paz e conflitos violentos, a vulnerabilidade e a fragilidade humanas. O amor pelo conhecimento da alteridade, que está na origem do pensar filosófico, vem acompanhado também pelo medo da alteridade. Esse medo, que está presente no momento do primeiro encontro com o desconhecido, pode levar, de um lado, a uma reação violenta ou pode favorecer, por outro, o reconhecimento da nossa vulnerabilidade e fragilidade. O medo violento tem se manifestado historicamente na construção de estruturas de dominação e no fortalecimento dos mecanismos de segurança nacional para fazer frente ao "enemigo":

El sistema de seguridad que se crea y las institucionesque la refuerzan fomentan el sistema de la querra como uma ampliación de esa reacción de dominación que produze el miedo a la diferencia y que, curiosamente, se reviste de coraje, valor o valentia (p. 35).

O medo da alteridade que assume a fragilidade humana permite, por sua vez, enfrentar o medo à diversidade por meios pacíficos. A nossa fragilidade, que reconhecemos também graças ao medo que sentimos, fala-nos de nossa interdependência, da ilusão de se pensar auto-suficientemente. O desconhecido nos fala de nossa incompletude, levanta dúvidas sobre a própria identidade, sobre a forma como aprendemos, cada um em nossa cultura, a conhecer-nos e a afirmar-nos. A descoberta de nossa incompletude ou de nossa fragilidade fala, em outras palavras, da necessidade de reconhecimento mútuo que temos para a construção de nossa identidade.

A leitura nos lembra que os senhores da guerra, aqueles líderes políticos que tomam as decisões de resolver os conflitos por meio da guerra, que ignoram e não se responsabilizam pelas injustiças que suas ações geram, são idealistas ideólogos. Buscam legitimar apenas um aspecto da realidade, apresentando-a como se fosse toda a realidade. Querem convencer àqueles que representam que frente à ameaça do outro, a estratégia mais realista é proteger-se ou aumentar os níveis de segurança. A filosofia para fazer as pazes propõe uma política de confiança em lugar de uma política de segurança. Sua proposta é que não se enfrente o medo da alteridade protegendo-se contra o outro, mas com uma abertura e admiração pela diversidade pelo que o outro representa. O valor dessa diversidade se faz transparente na medida em que há uma confiança mútua na capacidade comunicativa das partes. O reconhecimento dessa capacidade comum é o primeiro passo para uma resolução pacífica e justa dos conflitos, ou seja, uma resolução que possibilite igualmente a todas as partes a realização da diversidade de suas capacidades.

É importante destacar que uma política de confiança, que parte do reconhecimento da fragilidade, longe de promover a paz no singular, promove as pazes no plural. São pazes multiculturais, abertas às experiências, conhecimentos, tradições e formas diversificadas de convivência pacífica de todos os interlocutores. As tradicionais estruturas de dominação, que legitimam e impõem a superioridade de uma raça, gênero, cultura, religião ou forma de conhecimento, são substituídas por relações de diálogo que requerem e fomentam a participação universal. Enfrentar o medo da alteridade com uma política de confiança é promover o diálogo entre culturas:

[ ] la sabiduría que amamos en nuestra filosofía para hacer las paces es crítica con los saberes que se imponen como el único saber y someten los saberes de los otros y las otras, los `saberes de las mujeres' y los `saberes del Sur', para desaprenderlos y reconstruir las competencias humanas para los saberes de la pluralidad y de la diversidad (p. 39).

O livro recupera, finalmente, o valor de uma educação filosófica para a paz. A capacidade de todo e cada ser humano de transformar pacificamente seus conflitos e construir coletivamente instituições e políticas para a paz são características básicas da condição humana. Apesar destas características, os seres humanos também podem e escolhem tratar-se com violência. A violência, entretanto, é uma ação intencional da qual se pode demandar responsabilidade, pois é perpetrada por seres que têm a capacidade de assumir responsabilidade pelos seus atos. Apesar de nossas ações violentas: "somos otras muchas cosas y siempre podemos pedirnos cuentas por cómo nos hacemos lo que nos hacemos" (p.91).

Fazer as pazes depende de que nos eduquemos para reconstruir o que nos fazemos uns aos outros, reconstruir as competências que temos para fazer as pazes. Analisando a educação formal, o autor apresenta a sala de aula como uma comunidade de comunicação. Uma educação para a paz no contexto da sala de aula deve partir do reconhecimento da competência comunicativa de professores e alunos, a competência mais fundamental que todos possuímos para fazer as pazes. A partir desse reconhecimento inicial podemos, então, reconstruir – por meio da reflexão prática sobre a experiência cotidiana - as razões que nos damos e pedimos para o que nos fazemos e dizemos. Recuperando os sentimentos de amor, cuidado, ternura e a competência imaginativa, professores e alunos podem imaginar outras razões e ações para responder às demandas daqueles que não aceitam e interpelam suas ações. E, reconhecendo mutuamente a sua competência ou responsabilidade moral, professores e alunos podem pedir-se contas para que atuem de acordo com sua decisão de como deveriam agir para fazer as pazes.

Recorrendo à memória de que "[ ] no se resolvieron los conflictos desde el punto de vista de la confrontación que intenta solucionarlos por la fuerza" (p.122), o autor nos deixa razões sólidas para argumentar que "nosostros los pacifistas, (é que) somos los realistas y los prácticos" e que "hacer las paces es cosa de todos los seres humanos" (p. 66).

Martha Jalali Rabbani

m_jalali@hotmail.com

Department of Humanities and Western Civilization

Kansas University

7607 N. Caldwell Ave

Kansas City, MO 64152

USA

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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