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Assistência Social no ajuste fiscal: pandemia e gestão da força de trabalho

Social assistance in fiscal adjustment: pandemic and workforce management

Resumo:

O presente artigo objetiva discutir aspectos recentes da política de assistência social brasileira, considerando a incidência da radicalização do projeto neoliberal sobre seus serviços e as características de sua intervenção no contexto da pandemia da Covid-19. Elegemos como mote de análise central a relação entre a referida política e a gestão da força de trabalho mais precarizada e empobrecida, que no geral têm composto o público-alvo deste campo de proteção social. Tomando como base os fundamentos da crítica marxista da política social, a abordagem da assistência social procura desvelar as contradições inerentes a esta política de seguridade social, problematizando os principais elementos do endurecimento do ajuste fiscal no Brasil. Essas reflexões sedimentam as bases para a análise acerca da condição dessa política na gestão da força de trabalho mais empobrecida a partir das determinações da pandemia da Covid-19. A pesquisa, de natureza qualitativa, se assenta em revisão bibliográfica e análise de dados empíricos de fonte primária e secundária.

Palavras-chave:
Assistência Social; Trabalho; Proteção social; Pandemia

Abstract:

This article aims to discuss recent aspects of Brazilian social assistance policy, considering the incidence of the radicalization of the neoliberal project on its services and the characteristics of its intervention in the context of the Covid-19 pandemic. We chose as a central analysis theme the relationship between the aforementioned policy and the management of the most precarious and impoverished workforce, which in general have made up the target audience of this field of social protection. Based on the foundations of the Marxist critique of social policy, the approach to social assistance seeks to reveal the contradictions inherent in this social security policy, questioning the main elements of the tightening of fiscal adjustment in Brazil. These reflections solidify the bases for the analysis about the condition of this policy in the management of the most impoverished workforce from the determinations of the Covid-19 pandemic. The research, of a qualitative nature, is based on a literature review and analysis of empirical data from primary and secondary sources.

Keywords:
Social Assistance; Job; Social protection; Pandemic

Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar aspectos recentes da política de assistência social brasileira, considerando a incidência da radicalização do projeto neoliberal sobre seus serviços e as características de sua intervenção no contexto da pandemia da Covid-19. Elegemos como mote de análise central a relação entre a referida política e a gestão da força de trabalho mais precarizada e empobrecida, que no geral têm composto o público-alvo deste campo de proteção social.

O artigo está organizado em duas seções. Na primeira seção, abordamos as condições do ajuste fiscal com a aprovação da Emenda Constitucional do teto dos gastos públicos e a reforma trabalhista, demonstrando como tais processos incidem sobre as pioras nas condições de vida e na precarização do trabalho; na segunda seção, procuramos trazer sínteses para relacionar o processo recente de desestruturação da política de assistência social e as contradições que estão na base da sua funcionalidade na reprodução da força de trabalho mais precarizada, com elementos que permitem pensar as contradições desse processo e como elas se reverberam no contexto da pandemia da Covid-19.

Crise, ajuste fiscal e desfinanciamento

Entre a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, que institui o Novo Regime Fiscal da União — congelando os gastos públicos primários por 20 anos — e a eclosão da Pandemia da Covid-19, passaram-se pouco mais de três anos. No entanto, os processos, em termos de reordenamento do Estado, expropriação de direitos e desmonte das políticas sociais foram de uma intensidade tão absurda que significaram retrocessos proporcionais a décadas de destruição.

Mas, por que estamos relacionando tais processos com o Corona Vírus e suas consequências sanitárias e político-econômicas? A resposta envolve tematizar duas questões centrais: 1) o Estado precisa operar mecanismos de gestão da crise sanitária, o que envolve não apenas a mobilização e reorganização do Sistema Único de Saúde (SUS) em torno disso, mas também o acionamento de outras políticas protetivas, das quais trataremos da assistência social. Isto por que a necessidade do isolamento social e da paralização de algumas atividades produtivas não impactaram apenas a circulação de mercadorias, mas implicaram na impossibilidade de um enorme contingente de trabalhadores de poderem trabalhar e, portanto, auferir os rendimentos necessários à sua sobrevivência material e de sua família; e 2) como e em que condições o Estado vai encaminhar esses movimentos considerando: o desmonte recente das políticas sociais, via desfinanciamento, mas não apenas; as limitações jurídico-normativas em função da EC/95; o enorme contingente de trabalhadores sem renda, em condições de trabalho ultraprecarizado e a ameaça real de que muitos viessem a morrer não pelo vírus, mas pela fome, além do fato das condições de moradia e o frágil ou nulo acesso à itens de higiene necessários à contenção do vírus acentuarem a gravidade dos riscos para os segmentos mais pauperizados.

A alternativa central para lidar com a fração da classe trabalhadora, em condições de trabalho informal e ultraprecarizados e com aquela parcela já historicamente alcançada pelas políticas focalizadas de transferência de renda, se deu com o auxílio emergencial, indicando inúmeras contradições sobre as formas recentes de gestão da força de trabalho e imprescindibilidade de intervenção do Estado para garantir a reprodução material dos trabalhadores em um quadro de crise capitalista, aprofundada por uma crise sanitária sem precedentes.

Comecemos do início do fim. Já no último governo Dilma, em face dos efeitos do exaurimento do padrão político-econômico dos governos Lula, a gestão petista não apenas assumiu um pacote de duros ajustes fiscais, sob a batuta de Joaquim Levy, como passou a implantar uma agenda de medidas chamada de “pacote de maldades”. Para garantir o superávit primário de 1,2% do PIB, em 2015, o Ministro Levy fechou o pacote de ajustes em R$111 bilhões, onerando, impactando seriamente em benefícios trabalhistas: 1) corte de gastos no montante de R$ 57,5 bilhões; 2) redução de despesas obrigatórias (seguro-desemprego, abono salarial, pensão por morte) no valor de R$ 18 bilhões; e 3) aumento da arrecadação, com elevação da Cide (Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico), do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras de Crédito, Câmbio e Seguros), do PIS/Cofins sobre importados (Programas de Integração Social e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social) e do IPI (Imposto Sobre Produtos Industrializados) de cosméticos, chegando à cifra de mais R$ 20,6 bilhões de reais em diminuição dos gastos do Estado. (PASSA PALAVRA, 2015PASSA PALAVRA. Austeridade à brasileira. 2015. Disponível em: http://passapalavra.info/2015/03/103142. Acesso em: 15 abr. 2022.
http://passapalavra.info/2015/03/103142...
).

Essas façanhas foram acompanhadas ou facilitadas com a ação do Congresso Nacional, mas demandava cada vez mais negociações acirradas do governo com os partidos da base governista, num contexto em que a manutenção das alianças das bases pragmáticas da pequena política do PT começava a erodir. Neste cenário, a presidenta aprova a lei de terceirização, a Medida Provisória (MP) do ajuste fiscal, a MP 664, que limita a pensão por morte, MP 665 que mudou as regras do seguro-desemprego e mudanças na legislação relativa ao trabalho escravo.

A chegada de Temer ao Planalto Central, conjugado com um Parlamento ávido por Emendas Parlamentares, expressivamente conservador e majoritariamente denunciados nos processos de investigação sobre corrupção, marca a ascensão de uma ofensiva ultraliberal de largas proporções. Sob a falácia do combate à corrupção, da necessidade de ajuste das contas públicas e do enfrentamento à crise econômica, o governo Temer — cuja reprovação popular é massificada — passa a implementar uma série de processos de expropriação de direitos e corrosão do sistema protetivo brasileiro. A Emenda Constitucional Nº 95, já citada aqui, e a Reforma Trabalhista certamente estão entre as mais regressivas e as que se relacionam diretamente com nosso assunto de interesse neste artigo.

A EC/95 institui o Novo Regime Fiscal da União para vigorar por 20 exercícios financeiros, definindo um limite individualizado para as despesas primárias por cada um dos poderes, o que implica um congelamento real das despesas até 2036, nos patamares de 2016. Um ajuste fiscal desse porte é indicativo de uma profunda radicalização neoliberal que vem centrando as bases da destruição das já frágeis estruturas do Estado social brasileiro. Trata-se, portanto, de uma das pilastras centrais da ofensiva ultraneoliberal que ganha contornos cada vez mais destrutivos para a política social brasileira.

De acordo com Behring (2019), oBEHRING, E. Ajuste fiscal permanente e contrarreformas no Brasil da redemocratização. In: SALVADOR, E.; BEHRING, E.; LIMA, R. L. (org.). Crise do capital e fundo público: implicações para o trabalho, os direitos e a política social. São Paulo: Cortez, 2019. Brasil vive sob um ajuste fiscal permanente que conduz a política fiscal brasileira desde os anos 1990. A adoção de medidas fiscais para garantir metas de superávit primário, como a Desvinculação de Receitas da União (DRU), que transfere recursos exclusivos da seguridade social para pagamento de serviços da Dívida Pública, constitui mecanismo central de transferência do fundo público para o capital financeiro. Em 2016, a DRU foi renovada até 2023, além de ter sido aumentada o montante que pode ser desvinculado, passando de 20 para 30%. A Lei de Reponsabilidade Fiscal também compõe a política de ajuste fiscal permanente, protegendo a dívida em detrimento de todo gasto público primário.

Em contextos de ápice da crise capitalista, intensifica-se a necessidade de apropriação de recursos do fundo público pelas diversas frações do capital, implicando em maior pressão sobre os Estados nacionais e, consequentemente, operando regressão de direitos sociais e trabalhistas, transferindo recursos públicos que deveriam ser investidos nas políticas sociais para outras áreas.

Diversos pesquisadores (BEHRING, 2018BEHRING, E. R. Fundo Público, exploração e expropriações no capitalismo em crise. In: BOSCHETTI, I. (org.). Expropriações e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018.; SALVADOR, 2020aSALVADOR, E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: CASTRO, J. A.; POCHMANN, M. (org.). Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020a.; BOSCHETTI; TEIXEIRA, 2019BOSCHETTI, I; TEIXEIRA, Sandra Oliveira. O draconiano ajuste fiscal do Brasil e a expropriação de direitos da seguridade social. In: SALVADOR, E; BEHRING, E.; LIMA, R. L. (org.). Crise do capital e fundo público: implicações para o trabalho, os direitos e a política social. São Paulo: Cortez, 2019.; SILVA, 2018SILVA, Mossicleia Mendes da. Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011-2016. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Serviço Social /Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.) têm demonstrado como a Dívida Pública tem abocanhado parte considerável do orçamento da União, algo em torno de 40%, estabelecendo um padrão extremamente conservador do ponto de vista da política fiscal e intensamente regressivo em termos de financiamento público. Ademais, aponta para uma estrutural necessidade do fundo público para reprodução ampliada do capital, com hegemonia das finanças. Neste sentido, quanto mais se aprofunda a crise do capital e sua dificuldade de valorização, tanto mais se aumenta a pressão das frações hegemônicas do capitalismo financeirizado sobre o fundo público. Daí que processos que visam limitar os gastos públicos e apertar o ajuste fiscal respondem às demandas de reprodução sociometabólica do capital em assegurar recursos para suas necessidades, ainda que ao custo de tronar exíguos os recursos para as políticas sociais que atendem demandas de reprodução da classe trabalhadora.

De acordo com Salvador (2020b)SALVADOR, E. Disputa do fundo público em tempos de pandemia no Brasil. Revista Texto e Contextos, v. 19, n. 2, p. 1-15, 2020b., no período de 2016 a 2019, as despesas com juros e encargos da dívida pública cresceram 8,5 vezes mais que o orçamento da seguridade social, por exemplo. O pagamento de juros e encargos da dívida, que foi de R$ 242,61, em 2016, aumentou para R$ 287,57 bilhões, em 2019, um crescimento real de 22,57%.

Para Carvalho (2016), a rigidez do regime fiscal imposto pela EC/95 não tem paralelo em nenhum outro país e não teria relação com a inflação, uma vez que o aumento desta se deu com a liberação de preços administrado pelo Estado, e não em função do gasto público. Para a assistência social, os efeitos têm sido deletérios. De acordo com estudo projetivo do IPEA, de 2016, elaborado por Paiva et al. (2016)PAIVA, A. B. et al. O novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil. Brasília: Instituto de Economia Aplicada (IPEA). 2016. (Nota Técnica 27), somente no primeiro ano de vigência a área perderia mais de 8% dos recursos e, em 2036, as perdas terão chegado a 54%.

Em termos de valores, nas próximas duas décadas, com a vigência do NRF, as perdas para o financiamento da política de assistência social totalizarão R$ 868 bilhões. Em termos de proporção do PIB, a adoção da nova regra produziria, em 20 anos, a regressão da participação dos gastos com as políticas assistenciais a patamares inferiores ao observado em 2006 (0,89%), passando de 1,26% em 2015 para 0,70% em 2036. (PAIVA et al., 2016, pPAIVA, A. B. et al. O novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil. Brasília: Instituto de Economia Aplicada (IPEA). 2016. (Nota Técnica 27). 4).

Veremos que as perdas para a assistência social se tornam cada vez mais intensas a partir de 2017 e como o governo Bolsonaro intensifica o processo de desmonte e desfinanciamento, o que vai engendrar um quadro institucional precário e insuficiente para dar conta das demandas ampliadas que explodem no contexto da pandemia. Antes, vejamos o outro movimento que acirrou o já precário mercado de trabalho brasileiro, criando um cenário de barbárie social em tempos de Covid-19.

Se por um lado, no âmbito da reprodução, o projeto neoliberal radicalizado avança ofensivamente sobre o fundo público, tensionando o Estado para adoção de medidas austeras para garantir transferência destes recursos para suas demandas de acumulação - seja se apropriando diretamente pela via da Dívida Pública, do financiamento, do crédito e/ou das desonerações fiscais, seja porque se abre campos de investimento no âmbito dos serviços sociais, por exemplo, os planos de saúde, o complexo médico-industrial privado ou os fundos de pensão e aposentadoria complementar. No geral, isto implica uma apropriação da riqueza socialmente produzida pelas frações capitalistas dominantes na forma de tributos, impostos e contribuições sociais que compõe o fundo público; ou no acesso à parte do trabalho necessário (ou seja, os salários dos trabalhadores) que pagam por serviços de saúde ou previdência, por exemplo.

Por outro, no âmbito imediato da produção, a gestão neoliberal dos processos e da força de trabalho incide sobre as condições e relações de trabalho para viabilizar meios de exploração o mais desregulamentada possível, consolidando novas rodadas de flexibilização trabalhista que acentua ainda mais a precarização e a informalidade do trabalho. Sob a falácia reticente de que: a legislação trabalhista onera demasiadamente o empresariado e inviabiliza em grande medida a sustentabilidade do emprego formal no Brasil; que uma reforma trabalhista geraria mais emprego; e que essa seria uma reforma importante para ganhar confiança do mercado, elemento crucial para retomada do crescimento econômico, se aprova a Reforma Trabalhista de 2017. Situa-se em um movimento mais abrangente de revisão de legislações trabalhistas no capitalismo, impulsionadas desde a crise estrutural do capital, que se desdobra desde os anos 1970.

Segundo Barbosa e Silva (2020)BARBOSA, R. C. N.; SILVA, M. M. Reforma trabalhista e tempo de trabalho: recomposição dos instrumentos legais do trabalho assalariado no Brasil. In: MELO, A. I. S.; CARDOSO, I. C.; FORTI, V. L (org.). Trabalho, reprodução social e Serviço Social: desafios e utopias. Uberlândia: Navegando, 2020., no âmbito da formação social brasileira — historicamente determinada pela heterogeneidade estrutural do mercado de trabalho e pela inconclusão do padrão jurídico de assalariamento —, a Lei nº 13.467/2017 opera uma profunda e radical transformação da legislação trabalhista brasileira, alterando 201 pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943.

O coração da reforma trabalhista brasileira é a exigência de competitividade capitalista por diminuição do tempo de trabalho pago e não trabalhado, assim como por flexibilização das formas de contrato e de jornadas de trabalho como abordaremos na próxima seção. As reformas trabalhistas no mundo, entre outras medidas, visam retirar a responsabilidade da empresa com os poros no trabalho, quer dizer o tempo para vestir, para deslocamento de casa, para os cuidados com familiares, para as pausas variadas, e mesmo o tempo que para o capital é tempo ocioso mesmo decorrendo do descenso de demanda produtiva na empresa. (BARBOSA; SILVA, 2020, pBARBOSA, R. C. N.; SILVA, M. M. Reforma trabalhista e tempo de trabalho: recomposição dos instrumentos legais do trabalho assalariado no Brasil. In: MELO, A. I. S.; CARDOSO, I. C.; FORTI, V. L (org.). Trabalho, reprodução social e Serviço Social: desafios e utopias. Uberlândia: Navegando, 2020.. 34).

Ao operar um intenso processo de regressão no âmbito da proteção trabalhista e promover a expropriação de direitos historicamente conquistados pela classe trabalhadora, a reforma trabalhista brasileira consolida condições jurídico-normativas para transformar a precarização irrestrita no padrão de reprodução da forma de assalariamento no Brasil.

A terceirização, a informalidade e a flexibilização, já partes constitutivas da narrativa e prática generalizada de contratação e gestão da força de trabalho no capitalismo da chamada Revolução 4.0, aumentam o hiato existente entre um segmento de trabalhadores alcançados por alguma proteção previdenciária-trabalhista e outro segmento completamente desprotegido. Embora, de um modo geral, a reforma trabalhista tenha implicado em perdas em termos de direitos e rendimentos para todo conjunto da classe trabalhadora.

O trabalho intermitente, o contrato de zero hora, o chamado trabalhado just in time, o trabalho por plataformas digitais ou uberização do trabalho compõem o rol das novas estratégias de intensificação da exploração da classe trabalhadora e da diminuição cada vez mais irrestrita da responsabilidade do capital e do estado com os custos da reprodução da força de trabalho.

O resultado de tais processos já podia ser observado antes da Pandemia da Covid-19. Trabalhadores e trabalhadoras cada vez mais vulneráveis e disponíveis ao trabalho, seja lá qual for ele. Este é dos efeitos da expropriação de direitos: ao retirar do sujeito proteções coletivas e individuais, que possibilitam uma margem maior de negociação, barganha e proteção. O direito trabalhista impõe limites à exploração capitalista da força de trabalho e, na medida em que estes direitos são suprimidos, o trabalhador fica completamente suscetível à arbitrariedade do empregador.

O desemprego estrutural, o trabalho informal, as perdas salariais, o desalento e o empobrecimento desenham o cenário do mercado de trabalho no Brasil no pós-reforma trabalhista. Em 2019, a PNAD Contínua demonstrava que no Brasil havia 12,6 milhões de desempregados e cerca de 38 milhões de pessoas trabalhando sem registro. Entre os informais, 24,5 milhões de pessoas se situavam no chamado trabalho por conta própria e a informalização atingiu 41,1% da população ocupada.

Os Microempreendedores Individuais (MEIs) totalizavam, em 2019, 8.428.241, de acordo com Estudo do SEBRAE (2019). Essa figura jurídica que personaliza e dá forma à ideia do “empreendedorismo”, através de um termo difuso e polissêmico que é acionado pela narrativa neoliberal como alternativa para o desemprego, sob a falaciosa ideia de que é possível ao trabalhador comum ter seu próprio negócio, ser patrão de si mesmo; se libertar das amarras do trabalho com jornada e regras estabelecidas. Embora envolva certo nível de formalização, indicamos esse dado porque ele é expressão importante dos arranjos produtivos incentivados e adotados no Brasil em detrimento da garantia do emprego formal e com direitos. Aparecendo como uma espécie de panaceia para incidir sobre o desemprego de longa duração, trata-se de uma estratégia central para inserção produtiva de um segmento importante da classe trabalhadora, mas que é extremamente volátil e se mostrou profundamente inconsistente e insegura do ponto de vista da garantia de rendimentos e proteção trabalhista para aqueles que vivem desse tipo de atividade, sobretudo quando se instalou a crise sanitária e a necessidade de paralisação de várias atividades produtivas e em função do isolamento social.

Assistência Social: retrocessos, pandemia e auxílio emergencial

Conforme indicamos, a política de assistência social — assim como as demais políticas sociais brasileiras, começaram a sofrer os reveses da EC/95 e da escalada ultraconservadora neoliberal muito rapidamente. Já em 2017, conforme demonstra estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a perda orçamentária para o SUAS foi de 458 milhões. O maior corte foi no âmbito da Proteção Social Básica, com uma queda de 15%, cerca de R$ 227 milhões. Na Proteção Social Especial de Média Complexidade, a queda foi de 23% cerca de R$ 113 milhões; para os serviços de Alta Complexidade a perda foi de 25%, um valor em torno de R$ 69 milhões. No tocante à consolidação da gestão, expressos no repasse do IGD-SUAS, o estudo demonstra o corte de 35%, ou seja, quase R$ 50 milhões.

O processo de desmonte da estrutura do SUAS vem assumindo uma direção intensiva e drástica no governo Bolsonaro, que se dá por pelo menos dos vias centrais: 1) o desfinanciamento (que implica perda contínua de recursos da União para cofinanciamento dos serviços socioassistenciais do SUAS nos municípios) e vai implicando precarização e desmonte de equipamentos como CRASs, CREASs, Centro de Referência de Assistência Social para população em situação de rua (Centros POP); Centros Dia, instituições de abrigamento (como Albergues, Repúblicas e Casas Lar, Casas de Passagem); 2) o ataque às instâncias de controle social e uma ofensiva político-ideológica contra a institucionalidade pública da assistência social e seu reconhecimento como direito social. Disso são elucidativas a desestruturação dos conselhos de direitos, a não convocatória e garantia de condições de realização da Conferência Nacional de Assistência Social, em 2019, a implementação do Programa Pátria Voluntária, sob presidência de Michele Bolsonaro (esposa do presidente), que apesar de não está diretamente ligada à assistência social, concorre com uma lógica do voluntariado como forma de intervenção sobre as expressões da questão social e com o chamado “primeiro-damismo” no campo de intervenção da assistência social; a reorganização ministerial que operou mudanças importantes, transformando o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário no Ministério da Cidadania, que passa a comportar outros campos como o esporte , por exemplo; e mais recentemente, a extinção do Programa Bolsa Família com a criação do Auxílio Brasil; o esvaziamento de instância de pactuação fundamentais para fortalecimento do SUAS, como a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e o Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Inclusive, uma das mais consistentes críticas à idealização e implementação do Auxílio Brasil passa justamente pela ausência de debates e pactuações em instâncias como essas, entre outras.

A Portaria nº 2362 do Ministério da Cidadania (publicada em 20 de dezembro de 2019) foi uma das ações de maior feito destruidor sobre o SUAS e praticamente inviabiliza a manutenção de serviços em muitos municípios, principalmente os de porte 1, haja vista a profunda dependência do cofinanciamento federal. Visa promover a equalização dos repasses realizados pelo FNAS aos Fundos de Assistência Social municipais, estadual e distrital, priorizando o repasse de recursos limitados ao exercício financeiro vigente, conforme a disponibilidade financeira, além de possibilitar o não pagamento de dívidas relativas a exercícios orçamentários anteriores (2017-2019). Além de impor um ritmo de execução financeira inalcançável pelos municípios, aprofunda as já gravíssimas condições de redução de recursos imposta pela EC/95, indicando uma pressão austera para maior profundidade do teto dos gastos públicos.

No primeiro ano do Governo Bolsonaro, a marca da instabilidade, indefinição e atrasos nos repasses de recursos — que deveriam ter transferência automática Fundo a Fundo em datas específicas — sedimentou as condições de precarização e fragilização do SUAS.

Ainda que no fim de 2019 os recursos federais tenham ultrapassado o montante de R$ 2,47 bilhões, até novembro deste ano, apenas cerca de metade (53%) destes haviam sido repassados aos estados e municípios, que operaram com recursos federais baixíssimos - no valor de R$ 1,30 bilhão - mesmo em comparação a 2018. (IPEA, 2021, pINSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA - IPEA. Políticas Sociais: acompanhamento e análise nº 28, 2021: Assistência Social. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/210826_boletim_bps_28_assistencia_social.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
. 76).

Em 2020, quando o Estado brasileiro reconhece a situação de emergência da saúde pública no país por conta da Pandemia do novo coronavírus, a assistência social tinha um déficit orçamentário de mais de R$ 2 bilhões relativos a exercícios anteriores e um déficit no orçamento de 2020, da ordem de R$ 1,5 bilhão, conforme demonstra a Frente Parlamentar em defesa do SUAS (FRENTE NACIONAL SUAS, 2022FRENTE NACIONAL SUAS. 2022. Disponível em: https://www.frentenacionalsuas.org/. Acesso em: 15 abr. 2022.
https://www.frentenacionalsuas.org/...
).

No âmbito dos programas de transferência de renda, o Programa Bolsa Família —principal programa de transferência monetária do país,1 1 No âmbito da assistência social, o Benefício de Prestação Continuada é o que aporta maior volume orçamentário entre os benefícios socioassistenciais, que transfere valores monetários diretamente aos beneficiários. Mas por suas características centrais: está destinado a pessoas com deficiência e idosos pobres não cobertos pela previdência social, além de ser indexado ao salário mínimo, entendemos que ele tem uma abrangência em termos de critérios de acesso muito mais rígida que o Programa Bolsa Família. também vinha sendo minguado. De acordo com Neri (2020)NERI, M. FGV Social comenta os cortes no Bolsa Família e o aumento da extrema pobreza no Brasil. Disponível em: https://cps.fgv.br/destaques/fgv-social-comenta-os-cortes-no-bolsa-familia-e-o-aumento-da-extrema-pobreza-no-brasil. Acesso em: 28 mar. 2020.
https://cps.fgv.br/destaques/fgv-social-...
, em termos líquidos, cerca de 1,1 milhões de famílias foram desligadas do programa entre maio de 2019 e janeiro de 2020. A fila de espera cresceu robustamente em 2019. Conforme estudo do IPEA (2021)INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA - IPEA. Políticas Sociais: acompanhamento e análise nº 28, 2021: Assistência Social. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/210826_boletim_bps_28_assistencia_social.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.
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, em maio de 2019 a fila estava zerado, mas a partir de junho houve uma mudança de rota com crescimento médio de 201,6 mil famílias por mês e em dezembro estava em torno de 1,4 milhão de famílias. Em março de 2020 (já no contexto da pandemia), houve uma redução de mais de 200 mil famílias atendidas e a fila de espera chegou ao maior patamar: 1,65 milhão (IPEA, 2021INSTITUTO DE PESQUISA ECONOMICA APLICADA - IPEA. Políticas Sociais: acompanhamento e análise nº 28, 2021: Assistência Social. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_sociais/210826_boletim_bps_28_assistencia_social.pdf. Acesso em: 10 dez. 2021.
https://www.ipea.gov.br/portal/images/st...
).

Estas considerações demonstram uma tendência de regressão no campo da assistência social, que a despeito das contradições apontadas do processo de centralidade auferido no ciclo petista, vinha de um período de ascenso em termos orçamentários, de equipamentos e alcance de beneficiários. Sendo este o direito de maior alcance para a fração mais empobrecida da classe trabalhadora e a política protetiva mais especificamente direcionada pelo Estado para os trabalhadores mais precarizados, a retração orçamentária, o desmonte institucional e a diminuição de indivíduos e famílias recebendo benefícios socioassistenciais configuram um padrão ainda mais rebaixado e conservador de intervenção estatal na reprodução da força de trabalho. Corrobora a assertiva de que o duro ajuste fiscal que assola o Brasil desde 2016 é mantido e aprofundado sob um governo ultraneoliberal, que faz jus às demandas expropriatórias, regressivas e contrarreformistas do capitalismo contemporâneo.

O contexto pandêmico expõe as mazelas e a tragédia social que este projeto vem impondo à sociedade brasileira, que onera mais drasticamente os mais pobres. A mobilização de recursos orçamentários na função orçamentária da assistência social para viabilizar o auxílio emergencial demonstra a imprescindibilidade deste campo na gestão da força de trabalho precarizada no Brasil.

Ao ser elencada no rol dos serviços essenciais do contexto calamidade pública, em função da Pandemia da Covid-19, a política de assistência social é inserida no rol das atividades públicas que devem obrigatoriamente ser mantidas, tendo um papel fundamental na garantia de atendimento às demandas de proteção social, exponenciadas em função da crise sanitária e das suas consequências. Esta política que vinha assumindo papel central na gestão da força de trabalho mais empobrecida, tanto através dos serviços socioassistenciais e, centralmente, com os programas de transferência de renda, precisa responder às demandas que já vinham sendo intensificadas no período imediatamente anterior à pandemia, como responder emergencialmente ao seu insulflamento quando instalada a crise sanitária.

O agravamento recente da crise capitalista e os processos desencadeados em função dela na direção da destruição de direitos, da precariedade laboral e do aumento da pobreza vão ganhar contornos disruptivos em contexto pandêmico. O hiato protetivo existente no padrão da política social brasileira, que relega milhões de trabalhadores ao campo da desproteção social, é radicalizado face à crise sanitária.

Na esteira das transformações recentes, a assistência social têm sido cada vez mais requisitada para atender uma fração da classe trabalhadora, que embora apta para o trabalho, não pode acessar a cobertura previdenciária por estarem inseridos em trabalhos informais e cada vez mais precarizados. As transformações no âmbito da gestão da força de trabalho — que têm criado cada vez mais mecanismos de inserção laborativa que permite a intensificação da exploração, sem a criação de vínculos empregatícios e, portanto, de responsabilidades trabalhistas protetivas para os trabalhadores — acarretam, como demonstramos, um contingente exponencial de uma superpopulação relativa que não é incorporada ao mercado de trabalho formal, mas que se insere de modo precarizado e instável no circuito protetivo.

O Estado reitera sua indispensável função na reprodução da força de trabalho através da política de assistência social, abarcando novas determinações conforme as necessidades de reprodução social, abalizadas pela luta de classes. Estas determinações novas, que tangem as relações entre política de assistência social e trabalho — desenvolvidas nos governos petistas — não indicam um caminho para se refutar a ética liberal capitalista, segundo a qual os indivíduos que podem trabalhar, devem fazê-lo. Mas, em um contexto onde a universalização de relações de trabalho formais é cada vez mais incompatível com o atual padrão de reprodução do capital, a condição da política de assistência social é a de dar conta dos inaptos para o trabalho e atuar, ainda que mínima, residual e temporariamente, sobre aquela massa de indivíduos aptos para o trabalho, mas primando sempre pela conciliação de benefícios sociais com o comportamento “proativo” dos sujeitos para inserção em atividades laborais, sejam lá quais forem as condições e relações que elas imponham (SILVA, 2018SILVA, Mossicleia Mendes da. Desenvolvimento capitalista e assistência social no Brasil: a encruzilhada da modernização com o Plano Brasil sem Miséria, 2011-2016. Tese de Doutorado. Programa de Pós-graduação em Serviço Social /Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2018.).

Esta intricada vinculação entre política de assistência social e ações voltadas para o trabalho se torna um eixo catalizador de esvaziamento do debate sobre a precarização do trabalho e a proteção social pública em face dos riscos oriundos da mercantilização da força de trabalho, transmutando direitos trabalhistas, de cunho coletivo, público e político em medidas de geração de renda e qualificação da força de trabalho.

Os serviços, programas e projetos socioassistenciais são fundamentais nesse processo de ativação para o trabalho2 2 É preciso destacar que o SUAS não se limita à esta função. Os equipamentos de proteção social especial, por exemplo, que envolvem trabalho com mulheres em situação de violência, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, pessoas em situação de rua, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e/ou sexual, bem como aqueles de alta complexidade que volve oferecimento de proteção social integral: moradia, alimentação, higiene, proteção jurídica e suporte psicológico são fundamentais no âmbito da proteção social brasileira para garantia dos direitos humanos e sociais em uma perspectiva protetiva integral. — sobretudo para o campo do chamado empreendedorismo — e na gestão imediata de necessidades básicas do público-alvo, como: alimentação, enxoval para recém-nascidos, aluguel social, auxílio funeral. Assentam as bases de trabalho da política de assistência social para enfrentar mazelas da pobreza, desigualdade social, do desemprego e do trabalho desprotegido. Nos documentos oficiais essas condições estruturais, resultantes da organização da sociedade em classes em função da economia de mercado, ou seja, contradições do próprio capitalismo, aparecem sob a ampla e fluida definição de “vulnerabilidade e risco social”.

Por outro lado, os programas de transferência de renda, principalmente o Programa Bolsa Família, assume a mediação central desses processos. É evidente que os programas assistenciais de alívio à pobreza são fundamentais para a reprodução material de uma população excedente às necessidades de valorização do capital, e que, portanto, não tem como prover sua própria subsistência e de sua família vendendo sua força de trabalho no âmbito das relações salariais formais. Entretanto, na medida em que tais programas se expandem ao mesmo tempo em que as políticas sociais universais se retraem — seja pela sua precarização e sucateamento, seja pela privatização de determinados serviços — eles não podem garantir isoladamente uma melhoria efetiva nas condições de vida das camadas trabalhadoras.

O que acompanhamos no contexto da pandemia da Covid-19 foi expressão da confluência perversa do padrão de proteção social brasileiro, sob o projeto ultraneoliberal: explosão da tragédia social do trabalho desprotegido associada com o desmonte e fragilização da política de assistência social, que vem assumindo o lugar protetivo para este segmento. Ainda que a assistência social tenha tangentes limites sob a centralidade dos programas focalizados de transferência de renda, o aumento do empobrecimento e a inviabilidade de trabalhar em função da pandemia demonstraram a irracionalidade que opera formas protetivas limitadas e restritivas.

De outro lado, a intensa precarização das relações e condições de trabalho faz emergir um universo de trabalhadores e trabalhadoras (mais de 100 milhões de pessoas ou quase 50% da população) que se viram, da noite para o dia, sem trabalho, sem nenhum tipo de remuneração, sem benefícios assistenciais e sem condições de seguir buscando nas ruas algum tipo de atividade precarizada (as atividades informais) que lhes assegurasse uma forma de rendimento e de sobrevivência. (BEHRING; BOSCHETTI, 2021, pBEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Assistência Social na pandemia da Covid-19: proteção para quem? Revista Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 140, p. 66-83, jan./abr. 2021. 76).

No caos da crise sanitária, acentuada pela crise capitalista que é assimilada como crise econômica, o Estado brasileiro precisou adotar medidas de garantias de recursos para enfrentamento da situação de calamidade pública. Em função das amarras fiscais impostas pela EC/95, foi preciso criar as condições jurídico-normativas que permitissem usar recursos públicos para além do estabelecido no teto dos gastos. Aprova-se, então, a Emenda Constitucional nº 106/2020, que institui o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para enfrentamento de calamidade pública nacional decorrente de pandemia, e permite a incrível façanha de derrubar as regras fiscais autoimpostas. A crise sanitária expos a irracionalidade da EC/95 e a impossibilidade de o Estado garantir acesso a bens essenciais, sob a gaiola de ferro da austeridade fiscal de amplo espectro, impetrada pelo teto dos gastos públicos.

Ainda assim, o governo Bolsonaro demonstrou pouca efetividade operacional e vontade política para garantir a execução orçamentária dos recursos liberados mediante esta EC. Salvador (2020a)SALVADOR, E. Fundo público e conflito distributivo em tempos de ajuste fiscal no Brasil. In: CASTRO, J. A.; POCHMANN, M. (org.). Brasil: Estado social contra a barbárie. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2020a. demonstra o conflito distributivo em tempos de pandemia no Brasil, reforçando a caracterização do programa ultraneoliberal em tela, em que a proteção social é forjada sob padrões minimalista e pouco efetivos. Por exemplo, para uso de parte dos recursos autorizados no âmbito do Programa Bolsa Família, foi editada a Medida Provisória 929 que permitia o governo ampliar os recursos para o programa com autorização de gastos de até R$ 3,04 bilhões, cujo objetivo seria garantir a segurança alimentar das famílias em condições de pobreza e extrema pobreza de modo mais rápida e eficiente. Contudo, conforme demonstrado pelo autor, o nível de execução dos recursos foi de apenas R$ 369,29 milhões, ou seja, 12,16% do autorizado (e a MP 929 expirou o prazo em 22/07/2020, sem aprovação pelo Congresso Nacional.

Mas é sob essas condições excepcionais que se aporta um crédito extraordinário de R$2,5 bilhões e meio para os serviços socioassistenciais do SUAS e permitiu o pagamento do auxílio emergencial, numa intervenção de contingência para viabilizar possibilidades mínimas de sobrevivência de um amplo contingente populacional, numa versão aligeirada de proteção social imediatista. É fundamental explicitar que, sob nenhum aspecto, essa afirmação indica uma posição de nossa parte contrária ao auxílio emergencial ou ao aporte financeiro da União par o SUAS. Trata-se, antes, de uma crítica radical à modalidade de política social transitória e que não sedimenta condições estruturais de proteção social ampla.

O abismo social da precariedade laboral e da desproteção social se mostrou extremamente profundo, do que é elucidativo o fato de 107 milhões de pessoas terem solicitado o auxílio emergencial. 59 milhões foram aprovados e 42,2 foram considerados inelegíveis. Entre o Grupo 1 (MEIs, CIs e informais) os cadastros recebidos contabilizavam 46,0 milhões, dos quais foram processados 44,96 milhões (97,7%). 20,52 milhões foram considerados elegíveis (45,6% dos processados) e 10, 77 milhões inelegíveis (24% dos processados). Inconclusos totalizaram 13,67 milhões (30,4% dos processados). Por outro lado, entre os beneficiários do PBF, foram processados 100% dos cadastros (19,9 milhões), sendo elegíveis 19,2 milhões (95, 5 do total) e 0,7 milhões inelegíveis (3,5% do total). Ao final do processo de requisição, havia mais de 150 milhões de cadastros, dos quais foram considerados elegíveis 66,9 milhões. (SILVA, 2020SILVA, Mossicleia Mendes da. Pandemia, crise e expropriações: auxílio emergencial e contradições da focalização. In: Revistas Vértices. v.22, n.Especial, p. 727-747, 2020.).

No ano de 2020, o governo federal executou o valor de R$ 230,78 bilhões com pagamento do auxílio emergencial (SENADO NOTÍCIAS, 2020SENADO NOTÍCIAS. Governo Federal já gastou R$509 bilhões no enfrentamento à pandemia. 2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/12/22/governo-federal-ja-gastou-r-509-bilhoes-no-enfrentamento-a-pandemia#:~:text=O%20destaque%20nas%20despesas%20s%C3%A3o,do%20pago%20at%C3%A9%20a%20data. Acesso em: 20 abr. 2022.
https://www12.senado.leg.br/noticias/mat...
). Em 2021, o montante executado pela Caixa Econômica Federal — responsável pelo repasse dos benefícios — dentro da unidade orçamentária da assistência social foi de R$ 65,2 bilhões. Os números expressam a dinâmica de operacionalização do auxílio emergencial que teve o benefício diminuído ao longo dos dois anos da pandemia, ainda que os níveis de emprego e renda não tenham melhorado e a pobreza e a insegurança alimentar tenham aumentado. Sinaliza o caráter esporádico de ampliação do investimento em programas de proteção social ao trabalhador informal e aos segmentos mais empobrecidos.

As extinções do Auxílio Emergencial e do Programa Bolsa Família, a PEC dos Precatórios e o processo de pente-fino somado aos consecutivos cortes de mais de 158 mil beneficiários, bloqueios de 654 mil bolsas e contingenciamento de recursos em nome do controle de gastos estruturaram os subsídios para o novo programa do governo Bolsonaro, o Auxílio Brasil, que surgia com prazo de validade (final de 2022), expressando de maneira evidente o caráter eleitoreiro da proposta, conforme defendido por Boschetti (2022). O que somente se alterou por que o Congresso garantiu que o benefício extraordinário, que completa o valor de R$ 400 tenha um caráter mais permanente, com previsão orçamentária pelo menos até 2026. Mais uma estratégia ia para gestão da força de trabalho mais empobrecida que surge com um viés ultraconservador e ainda mais limitado que o Programa Bolsa Família em termos de institucionalidade e do pacto federativo.

Considerações Finais

Procuramos evidenciar como a radicalização do ajuste fiscal desde 2016 vem impondo sérias restrições à manutenção da proteção social e os vieses desse processo ao tempo que eclode a pandemia da Covid-19, quando se aprofunda o desemprego e a perda de rendimentos da fração da classe trabalhadora inserida em relações informais e precarizadas de trabalho. Constatamos que tem se aprofundado o hiato protetivo entre assistência social e a força de trabalho precarizada, que se expressou no adensamento da crise socioeconômica acentuadas em função da crise sanitária.

Precisamos destacar, nessas linhas finais, que a política de assistência social deveria compor um sistema integrado e amplo de proteção social, associada à política de previdência social e à saúde, o que foi inviabilizado desde a primeira rodada neoliberal dos anos 1990. Ainda assim, dado os limites e contradições de toda política social na sociedade capitalista, nem um sistema protetivo pode pôr fim à exploração e a desigualdade social, mas — a depender de sua configuração, abrangência e forma de financiamento — ela pode minimizar os efeitos mais corrosivos da sociedade mercadorizada e/ou criar condições de acesso à bens, serviços e coberturas socioprotetivas, promovendo uma maior socialização dos custos da reprodução material da classe trabalhadora com o capital e o Estado.

Se sob os governos petistas a centralidade da assistência social se deu em um contexto de privatização, precarização e subfinanciamento da saúde e incisões sobre vários direitos previdenciários, com a reforma de 2003, no período subsequente uma nova onda neoliberalizante sob governos ultraconservadores, inclusive de extrema-direita, as vias para reorganização da proteção social foram amplamente destruídas.

Em conjunção com a destruição dos direitos trabalhistas, a insidiosa corrosão do financiamento público para as políticas sociais criou o solo histórico para que a pandemia da Covid-19 se tornasse cenário de barbárie, não apenas pelo potencial letal do vírus, mas pelas condições socioeconômicas também potencialmente trágicas. A irracionalidade da desproteção do trabalho com inexistência de um sistema de proteção social são feições alarmantes de uma economia capitalista periférica em crise, que se manifestou sob os reveses de uma crise pandêmica.

Agradecimentos

Agradecemos à FAPERJ, pelo apoio financeiro à pesquisa.

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    No âmbito da assistência social, o Benefício de Prestação Continuada é o que aporta maior volume orçamentário entre os benefícios socioassistenciais, que transfere valores monetários diretamente aos beneficiários. Mas por suas características centrais: está destinado a pessoas com deficiência e idosos pobres não cobertos pela previdência social, além de ser indexado ao salário mínimo, entendemos que ele tem uma abrangência em termos de critérios de acesso muito mais rígida que o Programa Bolsa Família.
  • 2
    É preciso destacar que o SUAS não se limita à esta função. Os equipamentos de proteção social especial, por exemplo, que envolvem trabalho com mulheres em situação de violência, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, pessoas em situação de rua, crianças e adolescentes vítimas de violência doméstica e/ou sexual, bem como aqueles de alta complexidade que volve oferecimento de proteção social integral: moradia, alimentação, higiene, proteção jurídica e suporte psicológico são fundamentais no âmbito da proteção social brasileira para garantia dos direitos humanos e sociais em uma perspectiva protetiva integral.
  • Agência financiadoraEste artigo é resultado parcial da Pesquisa: “Ajuste fiscal permanente e política de assistência social: da modernização conservadora ao desmonte institucional do Sistema Único de Assistência Social (SUAS)”, que recebe Auxílio Financeiro da FAPERJ - PROGRAMA ARC - 2019 - Auxílio ao Pesquisador Recém-contratado (No DO PROCESSO E-26/01 0.002529/201 I). Período de execução: 12/04/2021 a 12/04/2023
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoA autora consente a publicação do artigo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
  • Revisado
    03 Dez 2022
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