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Almoço como momento terapêutico: uma abordagem de educação em saúde com mulheres alcoolistas

Resumos

O alcoolismo é problema relevante em saúde pública. O uso de etílicos por mulheres tem crescido e a procura por tratamento aumentado. O estudo propõe ressignificação do alimento para essas mulheres como estratégia de redução de danos. O objetivo da pesquisa foi estudar e discutir a experiência do almoço como momento terapêutico, explicitando pressupostos teóricos, estratégias e resultados imediatos. Utilizou-se método clínico-qualitativo e análise do conteúdo. Os resultados, divididos em sete categorias, referem-se ao processo de intervenção educativa: ambiência como facilitadora; compartilhar o alimento - tornar-se companheiro; ampliação da percepção do alimento; alimentos e seus significados; sexualidade; recaídas; depressão x motivação. A educação em saúde realizada durante o almoço é uma possibilidade de intervenção terapêutica desde que o profissional de saúde perceba o alimento na sua multidimensionalidade, que contempla tanto aspectos nutricionais como aspectos simbólicos, relevantes para a criação de vínculos e motivação para o tratamento.

alimentação; nutrição; saúde pública; enfermagem; alcoolismo


The alcoholism is a relevant problem in public health. The use of alcohol among women has increased as well as the search for treatment. This research proposes the resignification of food to these women, as a harm reduction strategy. The research aimed to study and to discuss the experience of lunchtime as a therapeutic moment, presenting theoretic assumptions, strategies and immediate results. The clinical-qualitative methodology and the content analysis were used. The results, divided in seven categories, refer to the educational intervention process: environment as facilitator; sharing food - becoming a partner; broadening the perception of food; food and its meanings; sexuality; relapses; depression x motivation. The heath education performed during lunch is a possibility of therapeutic intervention, provided that the health professionals perceive the multidimensionality of food, considering the nutritional aspects as much as the symbolic ones, which are relevant for the creation of bonding and motivation for the treatment.

feeding; nutrition; public health; nursing; alcoholism


El alcoholismo es un problema de importancia para la salud pública. El consumo etílico por mujeres va en incremento, al mismo tiempo que la búsqueda por su tratamiento. El estudio propone el re-significado del alimento como una estrategia para la reducción de daños. El objetivo de la investigación fue estudiar y discutir la experiencia de utilizar el horario del almuerzo como una condición terapéutica, siendo explicitados los supuestos teóricos, estrategias y resultados inmediatos. Fue utilizada la metodología clínica-cualitativa y el análisis de contenido. Los resultados, divididos en siete categorías, muestran el proceso de intervención educativa: el ambiente como facilitador; compartir los alimentos - volverse un compañero; ampliar la percepción del alimento; alimentos y sus significados; sexualidad; recaídas; depresión vs motivación. La educación en salud realizada durante el almuerzo es considerada una posibilidad de intervención terapéutica, desde el momento que se perciba al alimento en toda su multi-dimensionalidad, pues se considera tanto los aspectos nutricionales como los simbólicos, los cuales son relevantes para la formación de vínculos y como motivación para el tratamiento.

alimentación; nutrición; salud pública; enfermería; alcoholismo


ARTIGO ORIGINAL

Almoço como momento terapêutico: uma abordagem de educação em saúde com mulheres alcoolistas

Silzeth SchlichtingI; Maria Cristina Faber BoogII; Claudinei José Gomes CamposIII

IEnfermeira do Caps ad II da Prefeitura Municipal de Campinas, Brasil, Mestre em Enfermagem, e-mail: sil_sch@ig.com.br

IINutricionista, Doutor em Saúde Pública, Docente do da Faculdade de Ciências Médicas

IIIEnfermeiro, Doutor em Ciências Médicas, Professor Colaborador, Membro do Laboratório de Pesquisa Clínico-Qualitativa. Universidade Estadual de Campinas, Brasil

RESUMO

O alcoolismo é problema relevante em saúde pública. O uso de etílicos por mulheres tem crescido e a procura por tratamento aumentado. O estudo propõe ressignificação do alimento para essas mulheres como estratégia de redução de danos. O objetivo da pesquisa foi estudar e discutir a experiência do almoço como momento terapêutico, explicitando pressupostos teóricos, estratégias e resultados imediatos. Utilizou-se método clínico-qualitativo e análise do conteúdo. Os resultados, divididos em sete categorias, referem-se ao processo de intervenção educativa: ambiência como facilitadora; compartilhar o alimento - tornar-se companheiro; ampliação da percepção do alimento; alimentos e seus significados; sexualidade; recaídas; depressão x motivação. A educação em saúde realizada durante o almoço é uma possibilidade de intervenção terapêutica desde que o profissional de saúde perceba o alimento na sua multidimensionalidade, que contempla tanto aspectos nutricionais como aspectos simbólicos, relevantes para a criação de vínculos e motivação para o tratamento.

Descritores: alimentação; nutrição; saúde pública; enfermagem; alcoolismo

INTRODUÇÃO

O consumo de substâncias que possuem a capacidade de alterar estados de consciência e modificar o comportamento parece ser um fenômeno universal na humanidade. Praticamente em todas as culturas, nas mais diferentes épocas, observa-se o uso de determinadas substâncias que auxiliam no relacionamento social, marcam festividades ou favorecem rituais de cunho místico/religioso. A sociedade é afetada por suas conseqüências há muito tempo, entretanto, seu reconhecimento como um problema de saúde é recente e organismos nacionais e internacionais, governos, universidades e empresas estão atentos aos aspectos políticos, ecomômicos e sociais da questão(1-11).

Com a finalidade de prestar assistência específica aos pacientes com diagnóstico de dependência, definido como sendo transtorno mental e de comportamento, decorrentes do uso de substâncias psicoativas(12), foi criado, na cidade de Campinas, em outubro de 1995, pela Secretaria Municipal de Saúde, o CRIAD - Centro de Referência e Informação em Alcoolismo e Drogadição.

A dependência ao álcool traz como conseqüência a seu usuário a depauperação física e clínica que influi no sucesso do tratamento, uma vez que o usuário de álcool acaba por deixar de se alimentar e, com isso, o estado nutricional dos dependentes, quando procuram o CRIAD, inspira cuidado, sendo que um número expressivo de pacientes apresenta pelagra, um tipo de carência nutricional por falta de niacina, geralmente combinada à desnutrição energético-protéica, que ocorre com freqüência devido à ingestão abusiva de bebidas alcoólicas. O alcoolismo influi na quantidade, qualidade e freqüência da alimentação e produz alteração no metabolismo de nutrientes.

Quando esse olhar é direcionado para a mulher e se constata a dependência, evidencou-se peculiaridades ligadas à diferença entre o universo feminino e masculino de extrema importância para o sucesso do tratamento. Socialmente falando, à mulher cabe, geralmente, o lugar de cuidadora da família, sendo o alimento, transformado por ela em refeição, um instrumento desse cuidado. O ato da alimentação constitui uma oportunidade de trocas e fortalecimento de relações importantes para o ser humano, pois "a subjetividade veiculada através das práticas alimentares inclui a identidade cultural, a condição social, a religião, a memória familiar e a época"(13). Além disso, há diferenças orgânicas entre homens e mulheres que explicam maior prevalência de danos hepáticos em mulheres(14).

Percebendo que o alcoolismo, como conseqüência social, ocasiona interrupção nas relações familiares e induz redução nas práticas cotidianas do usuário, entre elas aquelas relativas à alimentação(15), pensou-se que o almoço poderia ser aproveitado como espaço terapêutico, através do "comer junto" com as mulheres alcoolistas, que possibilitaria resgatar emoções e afetos que contribuiriam para o restabelecimento de vínculos e do autocuidado familiar. O almoço em conjunto possibilitaria também abordar a educação nutricional, entendida como "uma busca compartilhada, entre educadores e educandos, de novas formas e de novos sentidos para o ato de comer, que se processa em determinado tempo e local, através da interação e do diálogo, por meio da qual se almeja qualidade e plenitude do viver"(16).

Pensando em novos modelos de abordagem no tratamento em dependência química, há o conceito de Redução de Danos: "uma alternativa de saúde pública para os modelos moral/criminal e de doença do uso e da dependência de drogas"(17). Esta proposta tem como enfoque a minimização dos prejuízos, o resgate dos direitos de cidadania, a melhora do autocuidado e qualidade de vida, reinserindo o usuário de drogas na sociedade e dando-lhe condição para que seja agente modificador de sua realidade. Nesse sentido, é possível que o alimento contribua na redução de danos por ser instrumento estratégico na melhora das questões clínicas, além de ser facilitador no relacionamento social, marcar festividades e favorecer rituais, assim como a bebida alcoólica, sem, porém, causar efeitos adversos.

A proposta do trabalho foi o resgate da alimentação e de sua significação para a melhora da qualidade de vida. Como instrumento facilitador no processo ensino-aprendizagem, possibilitou a oportunidade para a educação em saúde fora do padrão convencional. Para o educador, é importante perceber os espaços de que se pode lançar mão com o intuito de se ter um aprendizado que revolucione prazerosamente o pensar do educando, pois quando isso acontece, ocorre o estímulo para se aprender cada vez mais, ou seja, ocorre a reflexão e a construção de novos comportamentos, enfim, o processo da educação propriamente dita(18).

OBJETIVO

O objetivo da pesquisa foi estudar e discutir a experiência do almoço como momento terapêutico, explicitando os pressupostos teóricos, estratégias e resultados imediatos.

RECURSOS METODOLÓGICOS

A estratégia empregada para a intervenção educativa foi o almoço em conjunto e a discussão em grupo, sem um tema previamente proposto. O tema surgia pela livre demanda das participantes, de modo informal e espontâneo, possibilitando a verbalização de necessidades ainda não identificadas. Como observadora participante, a pesquisadora fazia intervenções e questionamentos com o intuito de levá-las a refletir sobre o que era falado, acrescentando informações no sentido de clarear os conhecimentos e sanar dúvidas.

Utilizou-se a investigação clínico-qualitativa, definida como método científico de investigação, que busca dar interpretações a sentidos e a significações trazidos pelos indivíduos em estudo, sobre múltiplos fenômenos pertinentes ao campo do binômio saúde-doença, utilizando-se de diferentes referenciais teóricos para a discussão no espírito da interdisciplinaridade(19).

A amostra escolhida - aqui denominada grupo de estudo - era constituída de oito pacientes do sexo feminino, dependentes de álcool, em tratamento no CRIAD, local esse escolhido devido ao fato de a pesquisadora trabalhar nele há muitos anos. A coleta foi no período de outubro a dezembro de 2003, o grupo era fechado, ou seja, a partir do início do primeiro dia de encontro do almoço, não poderiam entrar novas participantes.

Ficou estabelecido que haveria 12 encontros em grupo ao longo de seis semanas, na instituição, com duração de 2 horas, coordenados pela pesquisadora. Com o intuito de se manter preservadas as identidades das participantes, foram atribuídos a elas nomes de flores.

Para coletar os dados foi utilizado um gravador, posicionado no meio da mesa de almoço. Contou-se com dois observadores, sendo um deles a própria pesquisadora/coordenadora do grupo.

As participantes da pesquisa e seus familiares foram esclarecidos quanto à natureza do estudo e seus procedimentos e assinaram o termo de consentimento pós-informação. Foram realizadas algumas análises preliminares do material coletado para categorizar os dados em torno da análise do conteúdo verbalizado e gestual, durante e após o almoço. A construção das categorias obedeceu a dois critérios. Algumas delas foram selecionadas a priori, em decorrência de tópicos relevantes na literatura. Outras emergiram da coleta de dados, tendo sido, portanto, selecionadas a posteriori(19). A análise do conteúdo verbalizado e gestual, durante e após o almoço conformou-se em sete categorias: a ambiência como facilitadora, compartilhar o alimento - tornar-se companheiro, ampliação da percepção do alimento, alimentos e seus significados, sexualidade, recaídas, depressão x motivação.

RESULTADOS E DISCUSSÃO DA EDUCAÇÃO EM SAÚDE

O programa educativo ocorreu em doze encontros, conforme planejado, e a educação em saúde foi desenvolvida à medida que as colaboradoras traziam questões para discussão. Esses temas eram assuntos do cotidiano e as intervenções educativas aconteciam durante a atividade, de modo a resgatar o saber que cada indivíduo adquiriu ao longo de sua vida e a reconstruir um saber comum e atualizado do grupo. Os temas mais recorrentes e mobilizadores, ao longo dos 12 encontros, foram agrupados em categorias para análise. Os dados demográficos do grupo de estudo estão dispostos na Tabela 1.

A ambiência como facilitadora

No primeiro encontro, as colaboradoras da pesquisa demonstraram satisfação advinda da diferença do almoçar no padrão anterior (com utensílios descartáveis), do padrão do programa educativo com a sala arrumada para o almoço, oferta de pratos, talheres de inox, suco para acompanhar a refeição e salada coletiva da qual todos podiam se servir à vontade, o que sugeria um tom acolhedor e familiar para essa prática diária que, muitas vezes, parece repetitiva, mecânica e vazia de significados. Percebeu-se a valorização do ambiente pelas participantes através de suas falas.

A mesa estava muito bonita, o enfeite tão bonito, dá mais fome ter a mesa arrumada. (Violeta, 1º dia)

Parabéns, uma salada montada fica outra coisa dá até vontade de comer.(Begônia, 2º dia)

O preparo do ambiente do almoço numa família está historicamente relacionado ao papel feminino da esposa-mãe, a quem se atribui a função de cuidadora do lar e de seus membros(20). Alguns autores vão mais além em sua justificativa acerca do papel da mulher: "Alimentar é nutrir, é cuidar, é reproduzir. As mulheres, por disposição fisiológica também são aquelas que alimentam as pessoas durante seus primeiros meses de vida e, em parte por essa razão, é que acabam cuidando dos membros do grupo doméstico durante o resto de seu ciclo de vida"(21). Ao preparar o local e organizar o ritual alimentar do grupo, a pesquisadora desempenhou o papel de cuidadora. Autores que se detiveram sobre aspectos do cuidar e conceitos de integralidade e equidade, ressaltam como é importante que o profissional esteja atento e disponível à formação do vínculo necessário para personalizar o cuidado prestado, como estratégia para o desenvolvimento da autonomia do cliente e do encontro de subjetividades. A autonomia implicaria "a possibilidade de reconstrução, pelos sujeitos, dos sentidos de sua vida"(22).

Compartilhar o alimento - tornar-se companheiro

O setting do almoço trouxe à tona necessidades sentidas pelas mulheres que manifestaram emoções de forma quase pueril.

Hoje é prato, hoje é prato, Silzeth. Hoje ta chique! (Orquídea, 1º dia)

A comida é a mesma, mas eu gostei de nós!·(Margarida, 1º dia)

Na fala anterior, Margarida expressa a sua percepção da evolução do grupo. Elas se sentiram valorizadas pelo fato da substituição de utensílios descartáveis pelos de uso permanente. Poder-se-ia pensar que, no resgate do uso de utensílios permanentes, ocorre, simbolicamente, o resgate de valores como segurança, dignidade e cidadania. Também pode-se inferir que há a possibilidade de haver a introjeção, por parte do sujeito, do significado de provisoriedade que o objeto descartável inspira, nessa mesma linha de pensamento, acredita-se que o inverso também seja verdadeiro. Esse resgate do "permanente" transmite a sensação de respeito próprio que certamente contribui para a melhoria da auto-estima.

Ao se pensar na dependência de substância psicoativa dessas mulheres e, mais, na procura de entendimento das causas que levam ao consumo de uma droga psicotrópica, um fator importante a ser considerado é o tipo de efeitos farmacológicos produzidos e a rapidez com que melhoram as dores psíquicas. O beber junto cria laços, promove ligações, faz com que as pessoas se sintam próximas e, portanto, menos temíveis(23). Essa descrição lembra em muito a relação com o comer junto, pois se sentar junto significa deixar de lado as diferenças, e o lugar da refeição é onde o relacionamento é alimentado e o afeto emerge(24). Não se pode ter postura acolhedora, reflexiva e inovadora sem perceber que o fato de compartilhar o alimento mostrando a humanidade do profissional, criando vínculo e fortalecendo-os é muito importante principalmente para essa patologia. Ao se compreender a relação (alimento/álcool/afeto), a atitude posterior é intervir educativamente e com repetição, propiciando a essas mulheres experienciar novas maneiras de se relacionar e também de reproduzir a experiência em seu ambiente doméstico.

Ampliação da percepção do alimento

Objetivando que elas pudessem experimentar, além do relacionamento, também um modo diferente de ver, de sentir o alimento, os pratos eram enfeitados e novos sabores eram introduzidos para que elas experimentassem.

Estas verduras do enfeite são para comer? (Dália, 1º dia)

Tem alface roxa, é um sabor diferente (Rosa, 1º dia).

Pensando em criar um estímulo para a prática do experienciar, durante o almoço as participantes tiveram oportunidade de perceber novos sabores com a introdução de alimentos novos em sua dieta alimentar. Esse acesso a sabores, até então desconhecidos, permitiu a ampliação da percepção do alimento pelas mulheres, uma vez que tiveram experiências novas em conjunto: a degustação do alimento novo, facilitado pelo espaço de socialização existente no almoço. São esses momentos de prazer e compartilhamento entre os iguais que modificam e recriam o gosto alimentar(25).

Alimentos e seus significados

Em vários momentos dos almoços, a pimenta foi degustada, oferecida, compartilhada, refletida e, sobretudo, objeto de controvérsias.

Na Índia em todos os pratos tem pimenta. Bahia, Pará, o acarajé. No quintal do meu irmão ele tem pimenta de toda a qualidade (Rosa, 6º dia)

Em relação aos significados dos alimentos o que chamou muito a atenção foi a forma variada com que se pode interpretar a simbologia da pimenta trazida pelas colaboradoras. As diferenças na tolerância individual ficam evidentes pela sobreposição da influência cultural e familiar sobre a herança genética: a pessoa traz consigo as diferenças de sensibilidade gustativa, ou seja, as predisposições ou competências para perceber diferentes sabores(25). Compreender a influência do fator familiar e cultural sobre o genético torna mais claro o fato de a pimenta ser alimento reconhecido e apreciado por essa população. Nas falas, a pimenta foi utilizada para expressar três diferentes intenções: a primeira, sendo que a pesquisadora compartilhava o seu uso estaria mais próxima delas, numa relação horizontal; a segunda que, compartilhando o seu uso, a pesquisadora pudesse desenvolver mais a sua empatia com o grupo; a terceira, na qual as mulheres procurariam testar a capacidade suportiva da pesquisadora para ouvir relatos fortes, na linguagem comum, "apimentados". Essas explicações vão além do fato de que alcoolistas têm as papilas gustativas atrofiadas e, por isso, preferência por substâncias fortes.

Sexualidade

Entender e trabalhar a relação álcool/sexualidade e desmistificá-la é importante ao se lidar com essa clientela, visando a reinserção dessas mulheres à vida sexual ativa. A reorientação da vida sexual é uma das diretrizes do projeto terapêutico, devendo contemplar a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, o que tem sido tema desafiador para os profissionais de saúde com tal clientela. Quando essa atividade foi iniciada, esperava-se que a questão da sexualidade aparecesse de alguma forma, explícita ou velada. No almoço, o tema fluiu tão bem que, ao mesmo tempo em que falavam, procuravam se ajudar relembrando orientações recebidas de outros profissionais, que elas já haviam colocado em prática e com resultado satisfatório. Percebeu-se, ao longo da atividade, que a maioria das colaboradoras buscava, nesse momento, um espaço para refletir, explicitando dúvidas, dificuldades, inseguranças e preconceitos, como mostrado a seguir.

Eu contei para o doutor que eu não sentia prazer. Ele me falou que não existe mulher fria, existe mulher mal amada. Eu não fiz tratamento não. Conheci um homem e ele me tocou e foi lindo, maravilhoso (Margarida, 4º dia)

A comida também tem seu apelo sensual, uma vez que apresenta complexidade de texturas, cores, odores e temperaturas(26). A sexualidade permeia as relações humanas, sendo que o momento do almoço se constituiu num espaço - pela criação de intimidade, de cumplicidade inerente que o "comer junto" traz - para refletir e expressar dúvidas, dificuldades, inseguranças e preconceitos. A ação afrodisíaca, referida por vários consumidores à bebida alcoólica, permeia a valorização dada por esses ao álcool. Entretanto, dados levantados por pesquisadores indicam que este alimento (o álcool) parece prejudicar o desempenho sexual(23). Vários autores apontam a ambivalência que o álcool ocasiona: "O álcool apresenta uma particularidade essencial como alimento: apesar de suas virtudes imaginárias tem efeitos fisiológicos, comportamentais e psicológicos temporais que são muito reais e quase imediatos. A estes efeitos aponta-se a ambivalência de suas funções sociais, uma vez que os efeitos são também ambivalentes"(25).

Recaídas

O vínculo e a interação grupal são importantes de serem ressaltados neste estudo, porque indicam que as participantes se sentiram seguras para falar sobre questões tabus para o dependente químico, que são o desejo de beber mesmo estando abstinentes, o sonhar com e sentir o cheiro da bebida, o acordar parecendo embriagadas, como descrito nos depoimentos a seguir.

Eu sonhei com bebida, é lombriga mesmo. Acordo com o cheiro de bebida, com tontura. Em mim também dá vontade de quebrar tudo (Rosa,9º dia)

Rosa está abstinente há três anos e, apesar do longo período sem beber, os efeitos do álcool ainda não foram esquecidos. Esses depoimentos reforçam a necessidade da questão da recaída ser trabalhada e conversada no grupo de tratamento. Não pode ser banalizada, mas precisa ser colocada de forma que elas compartilhem o acontecimento e consigam manter a abstinência. A temática da recaída também apareceu durante o almoço, permitindo que as mulheres partilhassem suas ansiedades e emoções. Depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas, pois o grau de intimidade e de relacionamento permite que o imaginário venha à tona e as máscaras caíam, e o que para nós é proibido apareça(26). O grupo de tratamento, onde o dependente participa, funciona também como acolhedor e modificador dos sentimentos que emergem pelo fato da recaída e colabora, através da ajuda, da reflexão e motivação, para o retorno ao tratamento. A introdução da educação como estratégia na fase de controle do desejo de beber é norteadora para o usuário conseguir identificar sintomas que possam levá-lo ao uso/abuso do álcool.

Depressão x motivação

Muitas vezes, a depressão é conseqüente ao uso da bebida alcoólica, droga depressora do sistema nervoso central. Além disso, estudos recentes evidenciaram que muitas pessoas passam a usar o álcool como medicação para inibir uma depressão já existente, pois nas primeiras horas o álcool age como estimulante. O espaço do almoço propiciou a essas mulheres compartilharem seus sentimentos e se sentirem mutuamente amparadas.

Silzeth, eu estou ruim. Ah, sei lá, dá vontade de largar tudo e sumir. Mas não tem para onde ir. A gente trabalha e fica sem nada. Estou com raiva de mim mesma (Margarida, 3º dia)

A família do dependente é muito importante para o sucesso do tratamento, mas isso não quer dizer que seja essencial. É importante que os membros da família sejam orientados para não perpetuarem crises no ambiente doméstico e também na identificação de fatores que possam levar ao uso da substância (como a síndrome de abstinência, entre outros). Envolver a família no processo de tratamento do seu familiar, não anula o sofrimento, mas os motivos desse começam a ser removidos e também se modifica o olhar de enfoque do problema. A família (os filhos e os pais) da dependente, quando participam do tratamento, contribuem para um excelente prognóstico como na prevenção do aparecimento de novos casos de dependência na família(27). O cuidado com a alimentação é uma forma da família colaborar no tratamento.

Eu sou assim, às vezes estou sem fome, mas minha filha faz comida boa e eu como... (Rosa, 5º dia)

CONCLUSÃO

O alimento, muito mais do que um instrumento para preencher uma necessidade fisiológica, deve ser percebido como uma possibilidade - através do comer junto - de transformar o corpo doente em corpo sadio, não apenas do ponto de vista físico, mas também do psicológico. As emoções são mobilizadas e reorganizadas em torno da mesa, criando e fortalecendo vínculos entre os pacientes, com o terapeuta e com o serviço, facilitando a adesão e motivando para o tratamento. O alimento pode ser considerado uma estratégia de redução de danos, uma vez que, ao se alimentar, o dependente químico minimiza os danos físicos da substância no organismo. A intervenção de educação em nutrição passa pelos componentes subjetivos da alimentação e pelos relacionamentos que se dão em torno dela.

Considera-se interessante assinalar que a cumplicidade estabelecida, perceptível durante o almoço, tem no alimento o seu facilitador. A comida é diferencial por apresentar propriedade terapêutica relevante para o tratamento, o que indica a necessidade de atentar-se para os aspectos relativos à ambiência, e também aos organolépticos e estéticos dos alimentos, além dos nutricionais. O prazer de saborear o alimento em conjunto possibilitou que emergissem sentimentos e pensamentos, favorecendo o processo educativo.

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Recebido em: 7.12.2005

Aprovado em: 11.12.2006

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007

Histórico

  • Aceito
    11 Dez 2006
  • Recebido
    07 Dez 2005
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