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Sofrimento moral no cotidiano da enfermagem: traços ocultos de poder e resistência

Resumos

OBJETIVO: conhecer as estratégias de resistência adotadas por trabalhadores de enfermagem, diante de situações de enfrentamento do sofrimento moral, numa perspectiva ética. MÉTODO: realizou-se pesquisa qualitativa, mediante entrevistas semiestruturadas, com quinze trabalhadores de enfermagem de um hospital universitário do extremo Sul do Brasil, através de análise textual discursiva e referencial teórico foucaultiano. RESULTADOS: foram construídas duas categorias: negação de si e do outro - em que se percebe que os trabalhadores de enfermagem podem executar ações que se pautam predominantemente por imobilismo e conformismo, evitando enfrentamentos de quem representa o poder, nas situações que lhes provocam sofrimento moral; possibilidade de cuidado de si e do outro - em que os trabalhadores de enfermagem, diante de situações que lhes provocam sofrimento moral, exercem poder e resistência. CONCLUSÃO: percebe-se que alguns profissionais parecem utilizar estratégias de enfrentamento éticas, de modo a assegurar e preservar valores profissionais. No entanto, muitas vezes, a opção de alguns profissionais de enfermagem pode recair no imobilismo e na ausência de construção de estratégias de resistência. Essa situação pode representar o seu reduzido exercício de poder e insuficiente resistência, ante os problemas éticos, contribuindo, assim, para intensificar sua invisibilidade na área da saúde.

Esgotamento Profissional; Poder; Ética; Enfermagem


OBJECTIVE: To know the strategies of resistance adopted by nursing staff, facing situations of moral distress, from an ethical perspective. METHOD: The authors conducted qualitative research through semi-structured interviews, with fifteen nursing staff members of a university hospital in the extreme south of Brazil, using textual discourse analysis and the theoretical reference of Foucault. RESULTS: Two categories were constructed: denial of oneself and the other - in which one perceives that the nursing staff can perform actions that are governed predominantly by immobility and conformism, avoiding confrontations with whoever represents power in situations that provoke moral distress in them; possibility to care for oneself and for the other - in which nursing workers in situations that provoke moral distress for them exercise power and endurance. CONCLUSION: it was perceived that some professionals seem to use ethical coping strategies, in order to ensure and preserve their professional values. However, often the choice of some nursing professionals may be to relapse into immobility and the absence of building strategies of endurance. This situation may represent their reduced exercise of power and insufficient resistance in the face of ethical problems, contributing to the intensification of their invisibility in the area of health.

Burnout, Professional; Power; Ethics; Nursing


OBJETIVO: conocer las estrategias de resistencia adoptadas por los trabajadores de enfermería, frente a las situaciones de sufrimiento moral, bajo una perspectiva ética. MÉTODO: se realizó una investigación cualitativa, por medio de entrevistas semiestructuradas con quince trabajadores de enfermería de un hospital universitario en el extremo sur de Brasil, a través del análisis textual-discursivo y de los referenciales teóricos de Foucault. RESULTADOS: se construyeron dos categorías: negación de sí mismo y del otro - donde se observa que los trabajadores de enfermería pueden realizar acciones motivadas predominantemente por la inmovilidad y el conformismo, evitando enfrentamientos de quien representa el poder en las situaciones que les causan sufrimiento moral; posibilidad de cuidado de sí mismo y del otro - en que los trabajadores de enfermería, frente a situaciones que les causan sufrimiento moral, ejercen el poder y la resistencia. CONCLUSIÓN: se percibe que algunos profesionales parecen utilizar estrategias de afrontamiento éticas, con el fin de garantizar y preservar los valores profesionales. Sin embargo, a menudo, la decisión de algunos profesionales de enfermería puede recaer en la inmovilidad y en la ausencia de construcción de estrategias de resistencia. Situación esta que puede representar a su reducido ejercicio del poder y a una resistencia suficiente frente a los problemas éticos, contribuyendo a intensificar su invisibilidad en el área de la salud.

Agotamiento Profesional; Poder; Ética; Enfermería


ARTIGO ORIGINAL

IPhD, Professor, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil

IIDoutoranda, Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

OBJETIVO: conhecer as estratégias de resistência adotadas por trabalhadores de enfermagem, diante de situações de enfrentamento do sofrimento moral, numa perspectiva ética.

MÉTODO: realizou-se pesquisa qualitativa, mediante entrevistas semiestruturadas, com quinze trabalhadores de enfermagem de um hospital universitário do extremo Sul do Brasil, através de análise textual discursiva e referencial teórico foucaultiano.

RESULTADOS: foram construídas duas categorias: negação de si e do outro - em que se percebe que os trabalhadores de enfermagem podem executar ações que se pautam predominantemente por imobilismo e conformismo, evitando enfrentamentos de quem representa o poder, nas situações que lhes provocam sofrimento moral; possibilidade de cuidado de si e do outro - em que os trabalhadores de enfermagem, diante de situações que lhes provocam sofrimento moral, exercem poder e resistência.

CONCLUSÃO: percebe-se que alguns profissionais parecem utilizar estratégias de enfrentamento éticas, de modo a assegurar e preservar valores profissionais. No entanto, muitas vezes, a opção de alguns profissionais de enfermagem pode recair no imobilismo e na ausência de construção de estratégias de resistência. Essa situação pode representar o seu reduzido exercício de poder e insuficiente resistência, ante os problemas éticos, contribuindo, assim, para intensificar sua invisibilidade na área da saúde.

Descritores: Esgotamento Profissional; Poder; Ética; Enfermagem.

Introdução

No cotidiano profissional, diversas situações parecem repercutir em sofrimento e angústia para os trabalhadores de enfermagem. Destacam-se as relações de poder com pacientes, chefias e as diversas equipes da área da saúde, envolvendo questões morais e valores relacionados a fragilidades identificadas no atendimento, insuficiência de trabalhadores de enfermagem, precariedade de recursos materiais e a própria organização do trabalho, predominantemente burocratizada, fria e tecnicista(1).

O profissional de enfermagem pode vivenciar intenso desconforto, nem sempre compreendido de maneira clara e precisa, que pode ser identificado como sofrimento moral (SM), sentimento decorrente da incoerência entre suas ações e suas convicções pessoais e profissionais(2-3). Assim, quando os trabalhadores de enfermagem e os demais trabalhadores de saúde enfrentam limitações em suas capacidades para a prática ética, sentindo-se forçados a comprometer seus valores e normas pessoais, eles podem experimentar o SM(4).

No cotidiano profissional, enfrentamentos diversos são exigidos aos trabalhadores de enfermagem, desde a defesa dos pacientes, dos interesses das instituições de saúde, até dos seus próprios desejos e necessidades pessoais, muitas vezes esquecidos ou banalizados, relacionados ao exercício da autonomia, do cuidado de si e do outro, envolvendo relações de poder e, simultaneamente, de resistência, comumente sequer percebidas. Essas relações apresentam o imediatismo como característica marcante e, da mesma forma que permitem e se sustentam nas diferenças, segregam tudo aquilo que tornam o indivíduo um indivíduo, separando-o de suas relações com os outros, fragmentando-o do cotidiano e ligando-o a si mesmo, reforçando sua própria identidade, nem sempre positivamente(5).

A identidade com a enfermagem e com seus valores e a recorrência dessas situações levam à necessidade de se repensar as práticas dos profissionais de enfermagem sob um prisma das relações de poder, revendo relações e ações em uma perspectiva ético-estética. É preciso problematizar, estranhar-se com fatos diários, com relações instituídas, intrigar-se com o que se considera natural, uma vez que o perigo se encontra nas situações mais evidentes e banais, demonstrando a necessidade de rever racionalidades impostas pela sociedade(5) e também pela própria construção, como sujeitos e trabalhadores de enfermagem.

O entendimento de poder como relações de forças com a imanente possibilidade de resistência permite um novo olhar sobre os diversos campos relacionais da enfermagem, revelando que lutas, saberes, práticas e estratégias de enfrentamento têm possibilitado a defesa de valores morais e profissionais, influenciando a construção moral dos sujeitos trabalhadores de enfermagem, principalmente nas situações decorrentes da vivência do SM(6).

Esta pesquisa justifica-se da necessidade de explorar o SM em profissionais de enfermagem, considerando especificidades do seu cotidiano e a compreensão do indivíduo, a partir de suas relações de poder e resistência. Pensando em ações e reações no contexto da enfermagem, a seguinte questão norteou esta pesquisa: quais estratégias de resistência os trabalhadores de enfermagem vêm adotando diante de situações de SM, para exercerem eticamente a profissão?

Objetivou-se conhecer as estratégias de resistência adotadas pelos trabalhadores de enfermagem, diante de situações de enfrentamento do SM, numa perspectiva ética. A relevância da pesquisa consiste no entendimento de que o reconhecimento das estratégias de resistência éticas utilizadas pode contribuir significativamente para a enfermagem, servindo como catalisador(5) para o enfrentamento de toda situação conflitante que pode conduzir o trabalhador ao SM e os usuários a situações moralmente inadequadas.

Método

Pesquisa qualitativa, desenvolvida em uma unidade de clínica médica com 49 leitos, de um hospital universitário, localizado no Sul do Brasil. Essa unidade é atendida por uma equipe de enfermagem constituída por nove enfermeiros, quinze técnicos de enfermagem e dezoito auxiliares de enfermagem, distribuídos em quatro turnos. A partir da apresentação da proposta e do convite aos trabalhadores de enfermagem, foram selecionados intencionalmente, através de amostragem não probabilística por conveniência, do tipo "bola-de-neve", cinco enfermeiros, seis técnicos de enfermagem e quatro auxiliares de enfermagem, todos identificados com a letra E, de enfermagem, seguida de numeração sequencial. Nesse tipo de amostragem, um sujeito é selecionado para a realização da primeira entrevista, indicando, ao final da mesma, outro sujeito com as características necessárias ao objetivo do estudo. Buscou-se entrevistar trabalhadores de enfermagem que, na perspectiva de seus colegas entrevistados, realizavam resistência ética diante de situações de SM. Esta pesquisa não objetivou estabelecer diferenciações entre as categorias profissionais, buscando somente estratégias de resistência desenvolvidas pelo coletivo(5).

A coleta de dados ocorreu por meio de um guia de entrevista semiestruturado que continha as seguintes questões norteadoras: que estratégias costumas utilizar diante de situações de SM no teu cotidiano? Enfrentas resistência frente tuas ações? A coleta durou até o momento em que os sujeitos indicados pelos entrevistados pela técnica "bola-de -eve" foram esgotados no ambiente selecionado para este estudo.

As entrevistas foram gravadas, com duração média de 30 minutos, ocorrendo nos meses de fevereiro a junho de 2011. Após sua transcrição, realizou-se a Análise Textual Discursiva (ATD)(7), forma de análise que transita entre a análise de conteúdo e análise de discurso. O processo iniciou-se com a unitarização dos dados, mediante a fragmentação das entrevistas em unidades de significado, o que possibilitou gerar outros conjuntos de unidades, oriundas das interlocuções empírica e teórica, além das interpretações realizadas. Nesse movimento de interpretação de significados, foram atribuídas vozes aos dados para melhor compreender o texto.

Posteriormente à unitarização, passou-se à articulação dos significados entre suas similitudes, em um processo denominado categorização. Durante essa etapa, reuniram-se as unidades de significado por semelhança e aproximação, em categorias intermediárias, gerando, a seguir, duas categorias de análise(7). Os preceitos éticos foram obedecidos em sua totalidade, utilizando-se o termo de consentimento esclarecido e realizando as coletas somente após aprovação do Comitê de Ética (Parecer nº70/2010 do Comitê de Ética local).

Resultados

A partir da análise dos dados, foram construídas duas categorias apresentadas a seguir: negação de si e do outro e possibilidade de cuidado de si e do outro. A Figura 1 apresenta o modelo estrutural de construção das categorias presentes nos resultados.


Negação de si e do outro

Nessa categoria, estão presentes estratégias de individualismo e aceitação frente a situações que desencadeiam a vivência do SM, numa aparente negação de si e dos próprios valores, evitando seu envolvimento na resolução de problemas, limitando-se a um contato mínimo com os pacientes, priorizando número reduzido de atendimentos a poucos pacientes ou pautando suas ações mediante o entendimento de que a enfermagem é a profissão da doação e do sacrifício pessoal.

Percebe-se a aceitação e conformismo com práticas do cotidiano profissional, mesmo que reconhecidas como inadequadas, associadas possivelmente à crença em sua imutabilidade e ao que é esperado e reconhecido como próprio da profissão: Eu vejo diariamente que muitos profissionais sofrem e até muitos profissionais que estão acomodados, eles continuam sofrendo; só que às vezes as pessoas estão tão submersas nesse sofrimento e nesse não fazer, nessa estagnação, que elas não conseguem visualizar que precisam sair disso; que não se envolver também traz sofrimento, e muito (E1).

É possível perceber distanciamento e adoção de conduta evasiva dos trabalhadores de enfermagem ante os pacientes, evitando seu envolvimento na busca da qualificação da assistência oferecida, limitando-se a ações fragmentadas, emergenciais, pontuais, reconhecidas como as possíveis. Uma aparente desistência na defesa e preservação dos valores profissionais pode ser evidenciada nas manifestações dos trabalhadores em relação aos pacientes, ou mesmo quanto à sua identidade profissional: Eu desisti! Eu não quero mais, deixa para lá. Eu não vou brigar mais, eu não vou discutir mais e principalmente eu não vou me expor mais (E6).

Devido à alta demanda de serviços e ao número reduzido de pessoal de enfermagem, situação ressaltada como fonte de SM, também foi percebida a decisão de trabalhadores de priorizarem pacientes que, em suas concepções, parecem necessitar de cuidados de enfermagem, em maior quantidade, mais urgentes e complexos, o que parece assegurar, a esses profissionais, alguma gratificação pessoal e conforto: Para conseguir aliviar e voltar no próximo plantão eu só enxergava aqueles pacientes que realmente precisavam. Para esses pacientes eu me dedicava mais e desenvolvia mais o meu conhecimento e então me sentia um pouco melhor (E5).

Diante da dificuldade de realizar enfrentamentos numa tentativa de modificar e qualificar os ambientes organizacionais, quando as condições de trabalho se mostram ainda mais precárias, com a falta de recursos materiais, ações pautadas pelo individualismo parecem ser as estratégias mais comumente desenvolvidas: Tu chegas pra trabalhar e falta material; aí muita gente, infelizmente isso é da nossa cultura da enfermagem, muita gente tem o material, mas guarda nas suas coisas, guarda nos seus armários, dizendo "Ah! Não pode, se eu não guardar vai faltar pra mim" (E8).

Foi possível constatar, ainda, que alguns trabalhadores parecem visualizar a enfermagem como profissão associada à doação e à mortificação pessoal, diante da alta demanda de trabalho, favorecendo a aceitação de uma aparente missão de sacrifício e sofrimento, associados a quem exerce a enfermagem. Dessa forma, uma naturalização de sacrifício imputada à profissão enfermagem pode servir como forma de resistência possível, ofuscando a percepção do SM: Quando entras na área da enfermagem tens que saber que vais ter que te doar (E10). Sempre tentei superar de algumas formas, como deixar de ter horário de descanso para realizar todas atividades (E5). Isso é enfermagem, é para quem gosta e não é para qualquer um (E6).

Possibilidade de cuidado de si e do outro

Nessa categoria, encontram-se estratégias éticas ante o SM e à necessidade de adequar emergencialmente os contextos de trabalho, a fim de assegurar melhores condições de cuidado aos pacientes e à própria equipe profissional. Reuniões, mudanças de protocolos e de rotinas, a busca por qualificação profissional e capacitações são estratégias comumente referidas, partindo usualmente de decisões tomadas pelo grupo que reconhece suas fragilidades: Conscientização, qualificação, capacitação, valorização, tudo isso motiva o grupo. Cada dia que acontecem capacitações, eu vejo que a equipe vem diferente no outro dia (E12).

Problemas relacionados à organização do trabalho, principalmente no que se relaciona à falta de recursos materiais para a sua execução, costumam ser enfrentados através do uso da criatividade do profissional de enfermagem, valor destacado pelos entrevistados como inerente à profissão, podendo, também, ser entendida como estratégia de resistência e de enfrentamento do SM, diante das dificuldades vivenciadas: Se eu não tenho um pacote de gaze, a primeira reação que eu tenho é de raiva. "Poxa, eu não tenho um pacote de gaze!", aí depois tu paras para pensar e vira indignação, "ah! se não tem gaze o problema não é meu, o paciente é que vai ter que ficar sem curativo!". Mentira! Eu não vou conseguir deixar o paciente sem curativo, eu vou sair daqui, eu vou buscar em outra unidade, eu vou lá ser criativo e tentar fazer o curativo daquele paciente (E9).

Demonstrar iniciativa e criatividade parece refletir positivamente no grupo, fortalecendo o espírito de equipe e encorajando o senso de advocacia do paciente por parte dos trabalhadores de enfermagem, retroalimentando mecanismos de criatividade, de investimento na organização do trabalho e, principalmente, de denúncia de situações moralmente incorretas. Ainda, diante da percepção da transgressão de valores morais, de fragilização do cuidado dispensado aos pacientes, e de dificuldades de enfrentamento dos sujeitos envolvidos nessas situações, alguns trabalhadores, a partir de um processo reflexivo e como uma prática de cuidado de si, optam por se afastar desses ambientes de trabalho: Tu vês algumas coisas que acontecem e queres sair da unidade. É impossível ver as coisas acontecendo assim... (E7).

Discussão

O estudo demonstra que, no cotidiano profissional, frente ao SM, os trabalhadores de enfermagem podem executar ações que se pautam predominantemente por imobilismo e conformismo, evitando enfrentamentos diretos de quem representa o poder nas situações vivenciadas; podem exercer poder, mediante ações e reações emergenciais e, também, construir ações e reações coletivas. Nesse sentido, percebe-se uma tentativa de os profissionais de enfermagem desenvolverem nova economia nas relações de poder, na utilização da resistência como verdadeiro catalisador químico frente a toda relação de poder(5).

Possivelmente sem compreenderem suficientemente as relações de poder em que estão imersos e os exercícios de poder que implementam, seja agindo e reagindo seja se omitindo, profissionais de enfermagem manifestam desconforto quando reconhecem não executar as ações que acreditam serem as mais corretas, vivenciando os efeitos do SM, mesmo podendo não identificá-los como tal. Tais situações demonstram a necessidade de um olhar crítico e questionador à profissão enfermagem e ao seu entorno, com a máxima atenção a tudo o que parece natural, pequeno, banal, desinteressante ou obscuro, como as práticas diárias e até mesmo os pequenos gestos que passam despercebidos nas tramas cotidianas(8).

Parece interessante destacar que nenhum profissional entrevistado mencionou a palavra poder quando questionado sobre as situações que enfrentava em seu cotidiano de trabalho, possivelmente por não identificar as relações de poder nas quais estão imersos. No entanto, a pouca visibilidade da enfermagem foi repetidamente mencionada.

Reforçando uma postura histórica de docilidade, doação e sacrifício. A primeira categoria de análise demonstra que alguns profissionais adotam estratégias de individualismo e permanecem sustentando e reforçando a concepção de que o trabalho em enfermagem relaciona-se ao exercício de práticas pautadas pela abnegação e negação de si, participando de jogos de poder que reforçam a falta de visibilidade da profissão. Dessa maneira, a aceitação e um aparente imobilismo frente ao existente podem ser entendidos como estratégia de enfrentamento do SM, pela decisão de profissionais de enfermagem de, silenciosamente e numa aparente omissão, executarem o que lhes parece provocar menor sofrimento. Para esses profissionais, parece menos penoso acatar ordens, obedecer ao instituído e seguir o que determina a organização, sem expressar uma forma de resistência ética e transformadora(8), ao invés de executar o que poderia lhes parecer o mais correto(9).

Ao dissociar a subjetividade do indivíduo, transformando-a de maneira silenciosa e disciplinar(10-11), impondo-lhe nova forma de ser e estabelecer suas relações profissionais, alguns profissionais relatam relacionar-se com os pacientes de maneira fragmentada e distante. Ao optarem por afastar-se dos pacientes e não realizar o enfrentamento de situações geradoras de SM, os profissionais de enfermagem aparentemente optam não por se evadirem da profissão, mas de seus valores e, por fim, dos próprios ideais da enfermagem(12).

Ainda, derivando dessas situações, pode-se perceber traços de renúncia e mortificação do eu em contextos da prática de enfermagem, situações que podem induzir ao não uso da liberdade pessoal e a estados em que poucas possibilidades de mudança podem ser percebidas(13), com possível comprometimento das ações de cuidado.

As formas de resistência percebidas como a renúncia, a aceitação das situações cotidianas e a mortificação dos interesses profissionais levam à compreensão de que ao se refletir sobre problemas vivenciados pelos trabalhadores de enfermagem e o decorrente SM não são enfocadas apenas como as relações de poder se constroem e desconstroem na enfermagem e na saúde, avançando também para o modo como os profissionais da enfermagem se transformam em sujeitos, se subjetivam e se governam, nem sempre como seres éticos(10).

Ao mencionar o termo governo, principalmente aludindo ao governo de si e dos outros, direcionam-se as análises à segunda categoria apresentada. Nessa, destacam-se as estratégias de resistência modificadoras, primeiramente do contexto organizacional da instituição hospitalar e dos ambientes onde a prática de enfermagem se desenvolve, passando a estratégias de modificação pessoal, através da criatividade, da reflexão ou da qualificação.

O discurso, nesse contexto, seja em relações dialógicas seja na denúncia de situações reconhecidas como de desrespeito aos sujeitos e aos valores profissionais, constitui-se em exercício de poder, demonstrando que a minúcia da técnica discursiva pode gerar resultados positivos quando utilizada como resistência frente a situações que levam ao SM(14), caracterizando-se, também, como expressão de cuidado de si dos trabalhadores(15).

Constituindo-se como importante ferramenta veiculadora de informações, muitos profissionais acreditam que denunciar atos incorretos parece ser a forma de resistência mais eficaz, uma vez que essa atitude pode repercutir em mudanças significativas para a qualidade do cuidado. Assim, o falar verdadeiro denominado parrhesia, o exercício do diálogo e da denúncia são apontados como técnicas de si, como estratégias de resistência ao SM, numa perspectiva ética, presentes no contexto dos profissionais deste estudo(15).

Os profissionais, ao utilizarem estratégias de cuidado de si e dos outros, optam por ações predominantemente coletivas, evidenciando que "constituir-se como sujeito que governa implica que se tenha constituído como sujeito que cuida de si" e também dos outros(16). Assim, um dos pontos fundamentais das práticas de si e do cuidado de si é que os mesmos não se constituem em exercícios de solidão, mas se engajam no campo das práticas coletivas, reforçando o espírito de grupo: "o cuidado de si aparece, portanto, intrinsecamente ligado a um serviço de alma que comporta a possibilidade de um jogo de trocas com o outro e de um sistema de obrigações recíprocas", reforçando a responsabilidade dos profissionais de enfermagem com os pacientes(17).

Do ponto de vista pessoal, ocupar-se consigo é voltar-se para si mesmo como sujeito de ação, nas relações pessoais e com o outro(15). O cuidado de si é um ato vital, representado pela infinita e complexa variedade de atividades que o profissional realiza durante sua existência. Como construção humana, é o resultado de um processo socializador envolvendo costumes, hábitos, atitudes, crenças, valores, representando, assim, a autovalorização, a sensibilidade e o compromisso social e consigo mesmo(18).

No contexto do estudo, o cuidado de si pode ser compreendido "como um conjunto de experiências modificadoras do sujeito, cuja finalidade é estabelecer para si mesmo um modo de vida ético e estético ativo"(19). Dessa maneira, a necessidade de cuidar de si estaria vinculada ao exercício de poder, ao domínio pessoal de práticas e desejos, além da necessidade de reflexão, uma vez que nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode ser adquirida sem exercício constante de reflexão(20).

Entre as habilidades destacadas pelos entrevistados, a criatividade destaca-se como fundamental para assegurar o cuidado aos pacientes, principalmente em virtude das constantes situações de insuficiência de recursos materiais e de pessoal de enfermagem.

Uma questão a ser destacada diz respeito ao tempo gasto para colocar em prática essa criatividade. Embora a criatividade tenha sido destacada como relevante para assegurar o cuidado aos pacientes, o tempo dispensado para seu exercício pode se tornar demasiadamente extenso, com comprometimento da qualidade e continuidade da atenção a ser dispensada aos pacientes. De forma ambígua, a criatividade pode servir simultaneamente de resistência e, também, de fonte de SM, exigindo dos profissionais zelo constante em relação à administração do tempo disponível para realizar o seu trabalho.

Ainda, quando o SM se faz presente e o profissional se percebe impotente para enfrentar o contexto que provoca seu sofrimento, sua opção de afastamento pode se constituir em uma fronteira a ser cruzada, não apenas como forma evasiva ante os problemas vivenciados, mas, também, como possibilidade de resistência positiva. Assim, a solicitação de mudança de unidade de trabalho pode ser estratégia para tentar assegurar a preservação dos valores profissionais e a continuidade de uma atuação qualificada em outros ambientes, evitando aparente conformismo ao existente, apesar da manutenção e continuidade das condições consideradas como inadequadas na unidade de trabalho anterior.

As situações destacadas demonstram que não existe relação de poder sem resistência, sem instabilidade, sem fuga ou escapatória, sem a possibilidade de uma inversão eventual da intensidade das relações de forças. As relações de poder presentes entre os profissionais de enfermagem implicam desejo de luta, de afrontamento, inclinando-se, a seguir, a sua própria linha de conduta e desenvolvimento, para tornar-se efetivamente estratégias de ação(5).

Possibilidades de mudança nas relações de poder são realidades concretas aos profissionais de enfermagem que buscam construir formas de resistência que ultrapassem a simples aceitação do contexto como ele se apresenta. Torna-se necessário, para isso, um nível de percepção que permita compreender as tênues linhas que o poder trama na vida de cada profissional, em suas múltiplas relações com outros seres, permitindo-lhes postura moral condizente com a prática a ser exercida(10).

Essa prática, identificada nas entrevistas como a defesa dos interesses dos pacientes, termo relacionado ao cuidado e advocacia, evidencia, em sua essência, uma relação ética e estética. Foi possível perceber, nas situações de uso da criatividade, ou mesmo de enfrentamento das adversidades numa perspectiva ética, que a advocacia do paciente pode gerar alívio para os profissionais de enfermagem ou, diferentemente, maior intensidade de SM quando o profissional de enfermagem não consegue desempenhar esse papel de maneira que corresponda aos seus ideais(19) e ao que acredita.

A advocacia dos pacientes é uma dimensão importante da assistência de enfermagem, sendo considerada valor fundamental da profissão. Embora não seja um atributo exclusivo da enfermagem, porque a advocacia é praticada também por outros profissionais de saúde, é um papel que merece amplo destaque nesta pesquisa. Situações de SM reforçam a necessidade de resistência dos trabalhadores de enfermagem para atuarem como advogados do paciente, principalmente em virtude da natureza do seu trabalho, da sua proximidade com o paciente e do caráter de continuidade do cuidado de enfermagem. Como situações integrantes da advocacia do paciente, percebem-se o reforço da sua autonomia, a construção de relações de cuidado terapêutico e a melhoria da qualidade da comunicação entre profissionais de enfermagem e pacientes(20).

Por fim, compreende-se que, no cotidiano do trabalho, pode ser difícil para os profissionais de enfermagem reconhecerem, de maneira individual, os problemas de desrespeito aos direitos que afetam seus pacientes e a si e tentarem enfrentá-los. Se o objetivo da enfermagem passa prioritariamente pelo cuidado do paciente e pela defesa dos seus interesses, destaca-se que essa meta necessita ser alcançada coletivamente, pois somente assim a própria enfermagem como profissão é reforçada(21).

Considerações finais

Frente os problemas do cotidiano do trabalho enfrentados pelos sujeitos desta pesquisa, resultando em situações de SM, percebe-se que alguns profissionais parecem utilizar estratégias de enfrentamento éticas, de modo a assegurar e preservar valores profissionais. No entanto, muitas vezes, a opção de alguns profissionais de enfermagem pode recair no imobilismo e na ausência de construção de estratégias éticas de resistência. Essa situação que pode representar o seu reduzido exercício de poder e insuficiente resistência frente aos problemas éticos, contribui para intensificar sua invisibilidade na área da saúde.

Para o enfrentamento das situações que resultam em SM, os trabalhadores de enfermagem necessitam ultrapassar dimensões de aparente conformismo em que, por vezes, se encontram, possivelmente por ainda acreditarem que a resolução da maior parte dos problemas do seu cotidiano de trabalho encontra-se na própria profissão e não em suas relações, passando a agir de forma isolada e não coletiva.

É importante avançar nesse contexto, considerando que formas concretas de modificação dos ambientes de trabalho resultam da relação construída com o outro, do exercício de relações de poder e resistência, numa perspectiva ética, ou seja, do encontro de possibilidades coletivas que favoreçam relações interpessoais e a preservação de valores profissionais, em busca do enfrentamento dos problemas cotidianos e do consequente SM.

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  • Sofrimento moral no cotidiano da enfermagem: traços ocultos de poder e resistência

    Edison Luiz Devos BarlemI; Valéria Lerch LunardiI; Guilherme Lerch LunardiI; Jamila Geri Tomaschewski-BarlemII; Rosemary Silva da SilveiraI
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Fev 2013

    Histórico

    • Recebido
      23 Jun 2012
    • Aceito
      11 Nov 2012
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