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Barreiras na inclusão da sexualidade no cuidado de enfermagem de mulheres com câncer ginecológico e mamário: perspectiva das profissionais1 1 Artigo extraído da dissertação de mestrado "A sexualidade no cuidado de enfermagem de mulheres com câncer ginecológico e mamário", apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

Resumos

OBJETIVO:

estudo qualitativo cujo objetivo é identificar as barreiras que influenciam as práticas de enfermagem relacionadas à sexualidade no cuidado de mulheres com câncer de mama e ginecológico.

MÉTODO:

o estudo foi conduzido com 16 profissionais da equipe de enfermagem (enfermeiras, técnicas de enfermagem e auxiliares de enfermagem) de dois setores de um hospital universitário situado no estado de São Paulo. Os dados foram coletados em entrevista individual semiestruturada em profundidade. Todas as entrevistas foram gravadas e as respostas dos participantes agrupadas em categorias por meio da Análise de Conteúdo.

RESULTADOS:

três temas principais foram identificados: 1) barreiras relacionadas ao modelo biomédico; 2) barreiras relacionadas à dinâmica institucional e 3) barreiras relacionadas à interpretação social da sexualidade.

CONCLUSÃO:

os resultados deste estudo revelam que a inclusão da temática de forma sistematizada nas rotinas do cuidado de enfermagem exige mudanças no paradigma de saúde e na dinâmica do trabalho, além de reflexões sobre valores pessoais e interpretações sociais relativas ao tema. Um grande desafio consiste em destituir a sexualidade dos tabus e preconceitos que a acompanham, bem como contribuir para que a equipe de enfermagem seja mais consciente das dificuldades enfrentadas pelas mulheres com câncer ginecológico e mamário.

Descritores
Enfermagem; Sexualidade; Neoplasias dos Genitais Femininos; Neoplasias da Mama; Assistência Integral à Saúde


AIM:

qualitative study, which aimed to identify the barriers that influence nursing care practices related to the sexuality of women with gynecological and breast cancer.

METHODS:

the study was conducted with 16 professionals of the nursing area (nurses, nursing technicians and nursing assistants) from two sectors of a university hospital situated in the state of São Paulo, Brazil. The data was collected using semi-structured, in-depth individual interviews. All the interviews were recorded and the participants' responses were identified and categorized using Content Analysis.

RESULTS:

three major themes were identified. These are as follows: 1) barriers related to the biomedical model; 2) barriers related to institutional dynamics and 3) barriers related to the social interpretations of sexuality.

CONCLUSIONS:

the results of this study showed that the systematized inclusion of this issue in nursing care routines requires changes in the health paradigm and in the work dynamic, as well as reflection on the personal values and social interpretations related to the topic. A major challenge is to divest sexuality of the taboos and prejudices which accompany it, as well as to contribute to the nursing team being more aware of the difficulties faced by women with gynaecological and breast cancer.

Descriptors
Nursing; Sexuality; Genital Neoplasms, Female; Breast Cancer; Comprehensive Health Care


OBJETIVO:

estudio cualitativo que tuvo como objetivo identificar las barreras que influencian las prácticas de enfermería relacionadas a la sexualidad en el cuidado de mujeres con cáncer de mama y ginecológico.

MÉTODO:

estudio conducido con 16 profesionales del equipo de enfermería (enfermeras, técnicas de enfermería y auxiliares de enfermería) de dos sectores de un hospital universitario situado en el estado de Sao Paulo. Los datos fueron recolectados utilizando la entrevista individual semiestructurada en profundidad. Todas las entrevistas fueron grabadas y las respuestas de los participantes fueron agrupadas en categorías por medio del Análisis de Contenido.

RESULTADOS:

tres temas principales fueron identificados: 1) barreras relacionadas al modelo biomédico; 2) barreras relacionadas a la dinámica institucional; y 3) barreras relacionadas a la interpretación social de la sexualidad.

CONCLUSIÓN:

los resultados de este estudio revelan que la inclusión de la temática de forma sistematizada en las rutinas del cuidado de enfermería exige realizar cambios en el paradigma de la salud y en la dinámica del trabajo, además es necesario reflexionar sobre los valores personales e interpretaciones sociales relativas al tema. El gran desafío consiste en destituir a la sexualidad de los tabús y prejuicios que la acompañan, así como contribuir para que el equipo de enfermería sea más consciente de las dificultades enfrentadas por las mujeres que tienen cáncer ginecológico y de mama.

Descriptores
Enfermería; Sexualidad; Neoplasías de los Genitales Femeninos; Neoplasías de la Mama; Asistencia Integral a la Salud


Introdução

Além de constituírem problemas de saúde pública, o câncer ginecológico e o mamário agridem órgãos que possuem valores simbólicos importantes na cultura brasileira, principalmente ligados à esfera da sexualidade e da imagem corporal. A doença em si e seus tratamentos frequentemente acarretam morbidade sexual significativa e duradoura( 1Fobair P, Spiegel D. Concerns about sexuality after breast cancer. Cancer J. 2009; 15(1):19-26.

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- 4Cebeci F, Yangin H, Tekeli A. Determination of changes in the sexual lives of young women receiving breast cancer treatment: a qualitative study. Sex Disabil. 2010; 28(4):255-64. ), com alterações nos relacionamentos durante e após o tratamento, principalmente o relacionamento com o parceiro íntimo( 5Julien JO, Thom B, Kline NE. Identification of barriers to sexual health assessment in oncology nursing practice. Oncol Nurs Forum. 2010;37(3):186-90.

Sheppard LA, Ely S. Breast cancer and sexuality. Breast J. 2008;14(2):176-81.

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Apesar da grande prevalência da disfunção sexual, os profissionais muitas vezes não conseguem avaliar adequadamente e nem mesmo abordar tais problemas. São escassas as discussões abertas e a exploração de alternativas, não limitadas à relação sexual, para promover a expressão da intimidade afetivo-sexual da mulher e seu parceiro( 5Julien JO, Thom B, Kline NE. Identification of barriers to sexual health assessment in oncology nursing practice. Oncol Nurs Forum. 2010;37(3):186-90. , 1313 Stilos K, Doyle C, Daines P. Addressing the sexual health needs of patients with gynecologic cancers. Clin J Oncol Nurs. 2008;12(3):457-63. - 1414 Akyüz A, Güvenç G, Ustünsöz A, Kaya T. Living with gynecologic cancer: experience of women and their partners. J Nurs Scholarsh. 2008;40(3):241-7. ). Mesmo reconhecendo que a avaliação da sexualidade é uma parte intrínseca do cuidado, por inúmeras razões, muitos enfermeiros não abordam essas questões na prática assistencial( 5Julien JO, Thom B, Kline NE. Identification of barriers to sexual health assessment in oncology nursing practice. Oncol Nurs Forum. 2010;37(3):186-90. , 1313 Stilos K, Doyle C, Daines P. Addressing the sexual health needs of patients with gynecologic cancers. Clin J Oncol Nurs. 2008;12(3):457-63. , 1515 Nakopoulou E, Papaharitou S, Hatzichristou D. Patients' sexual health: a qualitative research approach on greek nurses' perceptions. J Sex Med. 2009;6(8):2124-32. - 1616 Akinci AC. The comfort levels of nurses during clinical experiences which include sexual topics. Sex Disabil. 2011;29(3):239-50. ).

Embora os estudos apontem as dificuldades de comunicação sobre sexualidade na prática do enfermeiro em oncologia, ainda há lacunas no conhecimento sobre as barreiras que dificultam a inclusão do tema nos cuidados de enfermagem. A relação entre as atitudes e percepções do profissional sobre a sexualidade inserida nas práticas assistenciais deve ser explorada para que se possa compreender por que os enfermeiros de oncologia muitas vezes não conseguem concluir uma avaliação da saúde sexual durante o cuidado( 5Julien JO, Thom B, Kline NE. Identification of barriers to sexual health assessment in oncology nursing practice. Oncol Nurs Forum. 2010;37(3):186-90. ). Na instituição onde o estudo foi realizado não há serviço de aconselhamento sexual formal e esta situação se agrava quando se considera a cultura brasileira, em que o corpo ocupa posição de centralidade, principalmente entre as mulheres. Existe um modelo de corpo prestigiado, bem como é notória a preocupação contínua pela obtenção de um corpo perfeito( 1717 Goldenberg M. Afinal, o que quer a mulher brasileira? Psicol Clín. 2011;23(1):47-64. ).

Assim, torna-se necessário um enfoque mais ampliado a essa problemática, de modo que as vivências, os significados e as experiências vividas por essas mulheres possam ser valorizadas e contempladas nas práticas assistenciais de enfermagem. A sexualidade não pode ser separado da saúde, pois questões relacionadas à sexualidade e intimidade são imprescindíveis para a manutenção do bem-estar e da autoestima da mulher acometida pelo câncer( 6Sheppard LA, Ely S. Breast cancer and sexuality. Breast J. 2008;14(2):176-81. , 1818 Krebs LU. Sexual assessment in cancer care: concepts, methods, and strategies for success. Semin Oncol Nurs. 2008; 24(2):80-90. ). Considerando que a sexualidade não pode ser negligenciada na assistência, quais barreiras dificultam a inclusão do tema nos cuidados de enfermagem? Partindo dessa questão, este estudo tem como objetivo identificar as barreiras que influenciam as práticas de enfermagem relacionadas à sexualidade, no cuidado de mulheres com câncer ginecológico e mamário.

Métodos

Como o estudo aborda o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes dos profissionais de enfermagem no Brasil, foi selecionada a abordagem qualitativa.

Participantes, local e amostra

Optou-se por uma seleção por conveniência, na qual as informantes foram escolhidas para atender ao objetivo do estudo. Vale mencionar que, no Brasil, o trabalho de enfermagem é realizado por diferentes categorias de trabalhadores. Tais categorias profissionais (auxiliar de enfermagem, técnico de enfermagem e enfermeiro) têm um processo de formação próprio e um conjunto distinto de atividades e responsabilidades profissionais. O enfermeiro exerce todas as atividades de enfermagem, o técnico de enfermagem exerce atividade de nível médio, envolvendo orientação e acompanhamento do trabalho de enfermagem em grau auxiliar e participação no planejamento da assistência de enfermagem( 1919 Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986 (BR). Dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, e dá outras providências. Presidência da República. Casa Civil. Suchefia para assuntos Jurídicos. [acesso 13 set 2014]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7498.htm.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
). O auxiliar de enfermagem exerce atividades de nível médio, de natureza repetitiva, envolvendo serviços auxiliares de enfermagem sob supervisão, bem como a participação em nível de execução simples, em processos de tratamento( 2020 Göttems LBD, Alves ED, Sena RR. Brazilian nursing and professionalization at technical level: a retrospective analysis. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2007;15(5):1033-40. ). Ao enfermeiro compete o exercício de funções de organização e gerenciamento do serviço, coordenando as ações dos profissionais da equipe de enfermagem.

Considerando as funções de cada categoria, 16 profissionais de enfermagem, todas mulheres, foram incluídas: 4 enfermeiras, 3 técnicas de enfermagem e 9 auxiliares de enfermagem. Desse total, 9 estão alocadas na Seção de Enfermagem da Unidade de Ginecologia e 7 no Ambulatório de Mastologia e Oncologia Ginecológica de um hospital universitário situado no interior do estado de São Paulo, Brasil. A inclusão de profissionais das duas unidades ampliaram a perspectiva da avaliação, uma vez que permite observar diferentes contextos de cuidados para o mesmo tipo de paciente.

Considerações éticas

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Após a aprovação, foi realizado um contato com as enfermeiras responsáveis pelos dois campos de investigação, de modo a integrá-las na realização do estudo. Posteriormente, foi feito um convite individual e informado os objetivos da pesquisa para cada profissional de enfermagem selecionada como fonte de informação. Termos de Consentimento Livre e Esclarecido foram entregues e explicados.

Para preservar a identidade das profissionais de enfermagem, optou-se pela utilização do sistema alfanumérico por meio do codinome E, relativo à entrevista, seguido da numeração arábica, conforme ordem de ocorrência das entrevistas (E1, E2, E3... E16). Mencionou-se a categoria profissional (enfermeira, técnica de enfermagem ou auxiliar de enfermagem), bem como o local de trabalho de cada profissional (Unidade de Internação ou Ambulatório).

O processo de entrevista

Os dados foram coletados entre maio e julho de 2011. O primeiro autor conduziu as entrevistas individuais semiestruturadas e em profundidade. As entrevistas foram previamente agendadas e realizadas no próprio local de trabalho das profissionais de enfermagem. O tempo médio de duração de cada entrevista foi de 30 minutos. As entrevistas foram gravadas em gravador digital. As questões básicas foram listadas em um roteiro, abrangendo questões relacionadas à prática de cuidados, inserção na profissão, perguntas específicas sobre a sexualidade e experiências relacionadas com a questão no contexto da atenção.

Análise dos dados

A análise dos dados não ocorreu em um tempo predeterminado. A realização de entrevistas e a análise dos dados ocorreram simultaneamente, desde o início do processo de coleta de dados até o fim. Os registros das entrevistas foram posteriormente transferidos por download para o computador, utilizando-se o programa Voice Editing versão 1.0. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra e, para ser fiel à narrativa, apenas algumas adequações à língua padrão foram realizadas, procurando-se manter as marcas de expressões individuais e os deslizes formais cometidos pelas entrevistadas quanto ao uso da língua.

Para identificar as barreiras que interferem nas práticas de enfermagem relacionadas à sexualidade, no cuidado de mulheres com câncer ginecológico e mamário, procurou-se compreender o contexto cultural no qual este cuidado se produz, partindo da premissa de que ele determina as ações das profissionais de enfermagem, bem como suas percepções em relação à temática. Nesse intuito, consideraram-se os espaços de atuação e os sujeitos envolvidos nesse processo.

Elaborado esse pano de fundo para subsidiar a análise, passou-se para a exploração do material. Para nortear o trabalho, foi adotada a metodologia de Análise de Conteúdo( 2121 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2008. ), que, por meio de procedimentos especializados e científicos, permite replicar e validar inferências sobre dados de um determinado contexto, no caso específico, o ambiente hospitalar. Esse processo utiliza grande raciocínio indutivo, pelo qual temas e categorias emergem dos dados, por meio de um exame criterioso realizado e por constantes comparações. Essa análise não se dá isolada do raciocínio dedutivo, uma vez que conceitos ou variáveis de teorias ou estudos prévios são também utilizados, especialmente no início da análise.

Após inúmeras leituras do material das entrevistadas, frases foram selecionadas como unidades de análise, orientadas por temas: prioridade nos aspectos técnicos; foco no controle da doença e nas complicações físicas resultantes do tratamento; rodízio entre os setores de trabalho; falta de tempo; excesso de burocracia institucional; falta de áreas privadas; a sexualidade estar situada na esfera de proibições; questões de gênero; as pacientes muitas vezes se sentirem culpadas e envergonhadas por pensar em sexo. As influências culturais que norteiam a prática de enfermagem e a incorporação da sexualidade no cuidado foram consideradas na interpretação dos dados encontrados (22).

As barreiras mencionadas pelas profissionais de enfermagem como impeditivas da abordagem da sexualidade dentro das práticas adotadas foram agrupadas em três categorias: barreiras relacionadas ao modelo de saúde; barreiras relacionadas à dinâmica institucional e barreiras relacionadas às interpretações sociais da sexualidade.

Resultados e discussão

Barreiras relacionadas ao modelo de saúde

A instituição de saúde em que o estudo foi realizado adota uma prática assistencial baseada no preceito biomédico. Inserida nesse contexto, a equipe de enfermagem reproduz os mesmos preceitos, o que resulta, segundo os relatos das profissionais, em uma prática de saúde tecnicista, normatizada e biologizante.

Além de reproduzir o modelo de saúde vigente, o processo de trabalho em enfermagem é organizado incorporando-se os preceitos administrativos. Dessa forma, os depoimentos das profissionais privilegiam os aspectos técnicos, como valorização do cuidado para recuperação do corpo físico e ênfase excessiva na organização do ambiente em que o trabalho se desenvolve, como observado nos relatos.

A gente chega, primeiro passa nas enfermarias, verifica os sinais vitais, vê como que elas estão, então escuta as queixas principais de dor, vê o que é primordial. Tem um soro acabando, já faz um apanhado geral de cada enfermaria e de cada paciente pra depois a gente poder acompanhar elas o resto do plantão. Verifica os sinais vitais, faz as medicações. (E8, auxiliar de enfermagem Unidade de Internação)

Ao priorizar ações e práticas que a equipe considera essenciais para a manutenção da vida, as profissionais de enfermagem não reconhecem que outros aspectos do cuidado, que envolvem as questões da subjetividade da mulher, são tão importantes quanto o cuidado do corpo físico.

Eu já cheguei a conversar com algumas [pacientes] "não se preocupe com o cabelo né, ou com a mama, preocupe-se em primeiro lugar em preservar a sua saúde". (E11, auxiliar de enfermagem, Ambulatório)

Ao reproduzir o modelo biomédico, a enfermagem define as ações prioritárias que devem ser implementadas com as mulheres com câncer ginecológico e mamário. As profissionais se preocupam com o atendimento do que chamam de necessidades básicas, mas que se restringe ao desenvolvimento de práticas que têm como objetivo o controle da doença e das complicações físicas decorrentes do tratamento. Considerando as atitudes dos profissionais de enfermagem na assistência oncológica, todos estão focados no tratamento do câncer e se esquecem da sexualidade e da sua importância para o bem-estar do paciente( 7Hughes MK. Sexuality and Cancer: the final frontier for nurses. Oncol Nurs Forum. 2009;36(5):241-6. ).

Com foco na cura e pautando-se em um cuidado tecnicista, a enfermagem deixa de valorizar as subjetividades do cuidado, negando a integralidade do sujeito. Características semelhantes foram encontradas em estudo realizado com enfermeiras em seis hospitais na China. Embora a assistência em saúde nesse país esteja em processo de mudança, procurando incorporar definitivamente uma abordagem holística, a prática atual ainda segue o modelo biomédico. Dessa forma, as enfermeiras chinesas não possuem autonomia e se sentem inseguras em abordar questões subjetivas, tais como a sexualidade no cuidado de pessoas com câncer ginecológico( 2323 Zeng YC, Liu X, Loke AY. Addressing sexuality issues of women with gynaecological cancer: Chinese nurses' attitudes and practice. J Adv Nurs. 2012;68(2):280-92. ).

Barreiras relacionadas à dinâmica institucional

A cultura organizacional da instituição contribui para que a abordagem da sexualidade seja negligenciada pela equipe de enfermagem. A dificuldade no estabelecimento de vínculo é uma decorrência da organização do trabalho e isso constitui barreira decisiva na abordagem da sexualidade com as mulheres em tratamento oncológico.

Essa dificuldade é parcialmente percebida pelas profissionais de enfermagem, que justificam sua existência apontando para o rodízio entre os setores como um dos aspectos que interferem negativamente na formação do vínculo com as pacientes. As profissionais entrevistadas alternam frequentemente de setor, de turno e até de local de trabalho, e isso ocorre tanto no setor de internação como no ambulatório.

Rodo, rodo. Igual, o mês passado eu tava no curativo, o mês retrasado eu tava na orientação, agora eu tô no ultrassom. Aí, quando eu tô de tarde, eu vou para o material às vezes. (E6, técnica de enfermagem, Ambulatório)

Aqui, é, no meu caso, eu não tenho uma escala fixa. Eu faço tanto manhã quanto tarde, quanto noturno. (E8, auxiliar de enfermagem, Unidade de Internação)

Outra característica da dinâmica institucional que dificulta a abordagem da temática, evidenciada nos depoimentos, é a escassez de tempo, identificada quando as profissionais classificam os atendimentos prestados como rápidos e que não possibilitam adentrar a questão da sexualidade.

Não sei se é porque tudo aqui é corrido, entendeu, você tem um monte de paciente pra dar cuidado. Como que você vai ter o tempo de abordar isso, sendo que às vezes não dá conta nem de ver e de fazer, vamos dizer assim, uma evolução de todos os pacientes, entendeu? (E14, enfermeira, Unidade de Internação)

A instituição assiste a um grande número de pacientes e, para desempenhar essa tarefa complexa, dispõe de um quadro de funcionários restrito. Os contatos são caracterizados como rápidos e automáticos. Muitas vezes, as profissionais de enfermagem não conseguem sentar e conversar com as pacientes durante seu plantão e, diante de tantas informações a serem transmitidas, a sexualidade não é um assunto privilegiado durante os cuidados.

Quando tá mais tranquilo o plantão, você senta, conversa, escuta histórias, várias histórias até assim, desabafo de intimidade com o marido, com o filho, a vida delas... (E1, auxiliar de enfermagem, Unidade de Internação)

Outro aspecto reforçado pelas profissionais entrevistadas é o excesso de burocracia institucional, que inviabiliza um diálogo produtivo entre profissional e paciente. São tantos formulários a serem preenchidos e tantas orientações a serem fornecidas que o trabalho acaba tornando-se mecânico e desvitalizado. Desse modo, não sobra tempo para que as dúvidas das mulheres em tratamento oncológico possam ser expostas.

As rotinas, papelada, muito impresso, preenche muita coisa. O paciente chega ali pra nós com um monte de papel que nós temos que informar ele de tudo. Então, praticamente dele nós nem pergunta. É muita coisa pequena que exige daqui, exige dali, que faz nós não termos tempo suficiente com o paciente. (E3, auxiliar de enfermagem, Ambulatório)

Ainda no que se refere à dinâmica da instituição, o espaço físico também contribui para que o tema não apareça durante as ações de enfermagem. A equipe aponta a falta de locais reservados como um fator impeditivo para que a paciente exponha livremente suas preocupações.

As orientações de alta, por exemplo... Fazer uma alta mais privativa, tipo num lugar assim [privativo]. Porque também às vezes ela tem uma dúvida, ela não vai te falar. A gente faz uma alta dentro da enfermaria com mais cinco. (E10, técnica de enfermagem, Unidade de Internação)

Percebe-se que a dimensão da sexualidade é compreendida como um aspecto que, para ser expresso de maneira confortável, exige um contato maior com as profissionais. Assim, a dinâmica do trabalho na instituição não tem permitido que as mulheres em tratamento oncológico tenham intimidade suficiente com a equipe para expressarem suas necessidades subjetivas. A dificuldade em estabelecer vínculo é decorrente da falta de tempo, bem como da alta rotatividade das profissionais entre os diferentes setores. A necessidade de contar com um bom vínculo para que assuntos relativos à sexualidade possam emergir nas práticas de saúde também foi reportada em estudo( 1616 Akinci AC. The comfort levels of nurses during clinical experiences which include sexual topics. Sex Disabil. 2011;29(3):239-50. ). Nesse estudo, foram avaliados os níveis de conforto vivenciados por enfermeiros turcos durante experiências clínicas que incluíam tópicos de sexualidade. Enfermeiros das unidades clínicas sentem-se mais confortáveis do que os que atuam com pacientes cirúrgicos. A autora justifica esse achado sugerindo que, provavelmente, a abordagem desses tópicos é propiciada por longos períodos de hospitalização, o que favorece o fortalecimento da intimidade entre o profissional e o paciente - situação frequente em unidades clínicas. Mais de 80% das enfermeiras que participaram de um estudo conduzido na China concordam que ter uma boa relação com a paciente e saber comunicar-se facilitam incluir o tema sexualidade nas práticas de enfermagem( 2323 Zeng YC, Liu X, Loke AY. Addressing sexuality issues of women with gynaecological cancer: Chinese nurses' attitudes and practice. J Adv Nurs. 2012;68(2):280-92. ).

A proximidade e o envolvimento com as mulheres com câncer ginecológico e mamário suscitam vulnerabilidade nas profissionais de enfermagem e isso faz com que coloquem barreiras para dificultar a aproximação e o vínculo com as usuárias do serviço. Estudo( 2424 Martins JT, Robazzi MLCC, Bobroff MCC. Pleasure and suffering in the nursing group: reflection to the light of Dejour psychodynamics. Rev Esc Enferm USP. 2010;44(4):1107-11. ) menciona que, ao refletirem sobre a questão das vivências de prazer e sofrimento no trabalho da equipe de enfermagem, são gerados sentimentos ambíguos, podendo colaborar tanto para a vivência de prazer como para a vivência de sofrimento. Se por um lado o trabalhador se sente útil ao servir e confortar, por outro ele sofre ao se deparar com a iminência da morte e com situações difíceis e impregnadas de dor e sofrimento.

Em relação à escassez do tempo destinado aos cuidados que englobam a abordagem da sexualidade das mulheres, este pode ser resultante do número excessivo de pacientes assistidos, do quadro reduzido de funcionários, bem como das inúmeras atividades a serem desempenhadas, muitas vezes burocráticas. Em um estudo realizado na Grécia( 1515 Nakopoulou E, Papaharitou S, Hatzichristou D. Patients' sexual health: a qualitative research approach on greek nurses' perceptions. J Sex Med. 2009;6(8):2124-32. ), os enfermeiros também indicaram a falta de tempo e a carga pesada de trabalho como fatores externos que dificultam as discussões sobre problemas sexuais com os pacientes.

Em estudo que investigou as atitudes e crenças pessoais relacionadas à incorporação da avaliação da sexualidade e aconselhamento dos pacientes na prática da enfermagem, foram entrevistados 148 enfermeiros que trabalham em unidades de internação e ambulatórios selecionados a partir de um grande centro médico metropolitana em Detroit (EUA). Um importante resultado apontado foi que a maioria dos enfermeiros (70,2%) relatou que não teve tempo para discutir sexualidade com seus pacientes( 2525 Magnan MA, Reynolds KE, Galvin EA. Barriers to Addressing Patient Sexuality in Nursing Practice. Medsurg Nurs. 2005 Oct; 14(5):282-9. ). Características semelhantes também são reportadas no ambiente hospitalar da China. As enfermeiras chinesas acreditam que a falta de pessoal, resultando em falta de tempo e energia, e a falta de recursos constituem as principais barreiras para a abordagem da sexualidade( 2323 Zeng YC, Liu X, Loke AY. Addressing sexuality issues of women with gynaecological cancer: Chinese nurses' attitudes and practice. J Adv Nurs. 2012;68(2):280-92. ).

Resultados de um estudo( 2626 Southard NZ, Keller J. The importance of assessing sexuality: a patient perspective. Clin J Oncol Nurs. 2009;13(2):213-7. ) que explorou as experiências relacionadas à sexualidade de 52 pacientes durante o tratamento do câncer mostram algumas razões levantadas pelos pacientes para que a sexualidade não seja considerada na assistência de enfermagem. Um dos aspectos destacados foi a afirmação de que a enfermeira está muito ocupada para sentar e conversar sobre essas questões com os pacientes. Além da falta de tempo, nota-se que a organização dos espaços da instituição não prevê locais em que diálogos privativos possam acontecer, o que no caso da expressão da sexualidade pelas mulheres com câncer ginecológico e mamário pode ser uma barreira importante, visto ser um tema ainda permeado de valores culturais que o situam no âmbito privado. A privacidade viabiliza a abordagem da sexualidade, pois cria um clima propício à confidencialidade( 7Hughes MK. Sexuality and Cancer: the final frontier for nurses. Oncol Nurs Forum. 2009;36(5):241-6. ). Enfermeiras chinesas estão cientes da necessidade de proporcionar um ambiente adequado a essas discussões com os pacientes( 2323 Zeng YC, Liu X, Loke AY. Addressing sexuality issues of women with gynaecological cancer: Chinese nurses' attitudes and practice. J Adv Nurs. 2012;68(2):280-92. ).

Barreiras relacionadas às interpretações sociais da sexualidade

Do ponto de vista sociocultural, a sexualidade está situada na esfera dos interditos e, desse modo, sua abordagem é muitas vezes tangenciada ou mesmo evitada. As profissionais entrevistadas consideram a sexualidade um assunto sensível e delicado, pertencente ao âmbito privado e, desse modo, muitas mulheres não se sentem confortáveis em conversar sobre sua intimidade no ambiente hospitalar.

Essa repressão se intensifica quando a sexualidade é considerada sob o enfoque de gênero. Vive-se em uma sociedade marcada pelas desigualdades na construção dos papéis masculino e feminino. Esse assunto acaba sendo tomado como inapropriado porque, ao longo do seu processo de socialização, a mulher sofre contínua repressão na organização e expressão de sua sexualidade.

Eu acho que é por essa questão de gênero mesmo, porque mulher acaba sendo muito recolhida e não falando. Eu acho que por esta questão de ser uma coisa tão íntima, né? Então é aquela coisa bem restrita, que a gente de repente aprende desde pequena né, que tem algumas coisas que ficam restritas a sua casa, que você não fala,né? Mais pelo estereótipo de coisaíntima, né, queéuma coisa muitoíntima vocêfalar sobre a sua sexualidade, né? (E13, Enfermeira, Unidade de Internação)

As profissionais de enfermagem também justificam a ausência da abordagem da sexualidade no cuidado de enfermagem, considerando que as mulheres em tratamento oncológico reproduzem, no ambiente hospitalar, as questões culturais vivenciadas em seu processo de construção de identidade feminina. Devido às normas de gênero vigentes, as mulheres aprendem precocemente a se retrair, o que as levam a não expor o assunto com a equipe. Corroborando essa percepção das profissionais, os resultados de um estudo realizado com 202 enfermeiras chinesas mostram que 77,7% delas veem a sexualidade como uma questão muito privada para se discutir com o paciente e 63,4% assumem que a maioria dos pacientes hospitalizados está muito doente para se interessar por questões relativas à sexualidade( 2323 Zeng YC, Liu X, Loke AY. Addressing sexuality issues of women with gynaecological cancer: Chinese nurses' attitudes and practice. J Adv Nurs. 2012;68(2):280-92. ). Resultados semelhantes foram obtidos a partir de uma pesquisa realizada com enfermeiras em um grande centro médico metropolitano nos EUA. Segundo elas, a sexualidade é um assunto privado e, portanto, não deve ser abordada. Acreditavam que os pacientes internados estavam muito doentes para se interessar por questões sexuais( 2525 Magnan MA, Reynolds KE, Galvin EA. Barriers to Addressing Patient Sexuality in Nursing Practice. Medsurg Nurs. 2005 Oct; 14(5):282-9. ).

Essa carga de preconceito que envolve o tema dificulta a sua presença nas ações assistenciais em saúde. Além do constrangimento das pacientes, existe o desconforto por parte da equipe de saúde. Assim, não se pode desconsiderar que a enfermagem enquanto uma profissão predominantemente feminina transporta para a profissão as normas e os valores inerentes à construção cultural da sexualidade das mulheres. As questões de gênero, que influenciam a construção da sexualidade da mulher, são as mesmas que determinam as ações de enfermagem e as privam de expressar a sensibilidade, levando à censura de discussões relacionadas à temática e aumentando o preconceito. Muitas vezes as enfermeiras sentem-se desconfortáveis e constrangidas em abordar a sexualidade das pacientes e têm medo de violar a privacidade delas( 1313 Stilos K, Doyle C, Daines P. Addressing the sexual health needs of patients with gynecologic cancers. Clin J Oncol Nurs. 2008;12(3):457-63. , 2323 Zeng YC, Liu X, Loke AY. Addressing sexuality issues of women with gynaecological cancer: Chinese nurses' attitudes and practice. J Adv Nurs. 2012;68(2):280-92. ). No que diz respeito à privacidade e conforto, a maioria dos enfermeiros (81,7%) não acredita que a sexualidade é uma questão muito privada para discutir. No entanto, quase metade dos enfermeiros (47,9%) se sentiu desconfortável ao falar sobre questões sexuais( 2525 Magnan MA, Reynolds KE, Galvin EA. Barriers to Addressing Patient Sexuality in Nursing Practice. Medsurg Nurs. 2005 Oct; 14(5):282-9. ).

Essas atitudes da equipe de enfermagem estão relacionadas à formação profissional que tem sido influenciada culturalmente por valores, significados, símbolos e conceitos específicos. A enfermeira aprendeu a regra básica de que o cuidado é feito com naturalidade, seriedade e sem pudor. A dificuldade em interagir com a sexualidade do outro está associada à supressão da sexualidade na profissão e à adoção de padrões de comportamentos pelo viés da moralidade e não do que é considerado como promotor de saúde( 2727 Santos LV, Ribeiro AO, Campos MPA, Mattos MCT. Sexualidade humana: nível de conhecimento dos acadêmicos de enfermagem. Esc Anna Nery. 2007;11(2):303-6. ). Segundo os autores, as enfermeiras que atuam com os doentes oncológicos encontram dificuldades na apropriação do tema e tendem a evitar o assunto, deixando os pacientes com muitas questões sem respostas.

Enfermeiras que acreditam que a sexualidade é um tema muito privado para discutir com seus pacientes também sentem que as questões sexuais só devem ser abordadas se e quando o paciente inicia a conversa. As mesmas enfermeiras habitualmente adiam essas discussões e esperam que outro profissional, considerados por elas mais capacitados para enfrentarem esse tema, tomem a iniciativa de orientar o paciente( 5Julien JO, Thom B, Kline NE. Identification of barriers to sexual health assessment in oncology nursing practice. Oncol Nurs Forum. 2010;37(3):186-90. ).

Outra dificuldade encontrada pelas mulheres em relação à temática, na percepção das profissionais, é que elas têm uma interpretação social de que sexo, sinônimo de prazer, é incabível em uma situação de doença. A interpretação social de que o sexo está presente somente na vida saudável as inibe de dividir essas questões com a equipe.

Você pensar em sexo, sexo é prazer, é alegria, é... sei lá. É coisa boa e que nesse momento ela não tem que estar focada nisso. Porque eu acho até que elas acham assim, que seria um "pecado" abordar isso nesse momento em que elas teriam que estar voltadas para outras coisas, né? (E13, enfermeira, Unidade de Internação)

Como o sexo está atrelado à ideia de prazer, muitas vezes os pacientes sentem-se culpados e envergonhados por estar pensando em sexo nesse momento. Por achar inapropriado, eles não questionam o profissional de saúde sobre essas questões ( 7Hughes MK. Sexuality and Cancer: the final frontier for nurses. Oncol Nurs Forum. 2009;36(5):241-6. ). No entanto, a sexualidade deve ser entendida como um conceito multifacetado, incluindo a função sexual, questões relevantes relacionadas com a autoconfiança e o relacionamento( 2828 Cleary V, Hegarty J. Understanding sexuality in women with gynaecological cancer. Eur J Oncol Nurs. 2011;15(1):38-45. ).

A equipe também percebe que a mulher vive a sexualidade de uma maneira bem diferente do homem, sendo totalmente influenciada pelas circunstâncias. A carga negativa associada ao fato de ter uma doença estigmatizante como o câncer interfere nas suas motivações sexuais; suas preocupações mais admissíveis envolvem a vida, os filhos e o sustento da casa.

A mulher leva todos os problemas pra cama. A gente leva tudo, problema do trabalho, alguém que te olhou atravessado, o médico que te xingou. O marido leva o pênis dele, entendeu? A gente, a nossa cabeça tá lá, entendeu? Agora imagina você estar pensando no que ele tá pensando, "cadê seu peito, que você tinha dois e você não tem mais". Como é que você vai colocar um baby doll, fazer todo um jogo lá de sexo, como vai vestir de... sei lá de enfermeira, que elas gostam de vestir [para deleite de seus parceiros]. Que fantasia que vai ter, tudo com a luz apagada, escondida, só pra pôr naquele orifício lá... não é fácil. (E4, enfermeira, Ambulatório)

A interpretação das profissionais é de que a mulher apresenta dificuldade em se desligar das questões pessoais e familiares presentes no seu entorno e não consegue pensar em sexo com naturalidade em meio a tantas consequências adversas geradas no processo de adoecimento e tratamento.

Conclusão

Este estudo permitiu identificar as barreiras que impedem a exploração da temática da sexualidade nos cuidados de enfermagem de mulheres com câncer ginecológico e mamário na instituição de saúde onde o estudo foi desenvolvido. As ações das profissionais de enfermagem estudadas reproduzem as inúmeras influências sofridas por elas, tais como os valores e as crenças presentes na sociedade em relação à sexualidade, preceitos do modelo de saúde vigente, especificidades da organização do trabalho da enfermagem na instituição em questão, características do cuidado em oncologia, entre outras.

É possível concluir que a inclusão da temática de forma sistematizada nas rotinas do cuidado de enfermagem exige mudanças no paradigma de saúde e na dinâmica do trabalho, além de reflexões sobre valores pessoais e interpretações sociais relativas ao tema, de modo a contribuir para a tarefa coletiva de destituir a sexualidade dos tabus e preconceitos que a acompanham. Dessa forma, a sexualidade será vista como dimensão essencial do ser humano e da vida de relações, até mesmo em uma situação de doença grave e potencialmente fatal como o câncer.

Além disso, este estudo contribui para a literatura científica, uma vez que analisa as experiências de profissionais de enfermagem brasileiras em relação a este assunto. O conhecimento científico produzido até o momento tem negligenciado a importância de investigar os processos que levam os enfermeiros a evitarem abordar questões de sexualidade nas práticas assistenciais. Elucidar essas barreiras é um passo importante para sensibilizar os profissionais sobre a necessidade de uma atenção integral à saúde dos pacientes oncológicos. Mais pesquisas são necessárias, examinando o assunto do ponto de vista das pacientes, de modo a confrontar as percepções relativas à abordagem desta questão nas práticas de cuidados de enfermagem no contexto brasileiro.

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    Artigo extraído da dissertação de mestrado "A sexualidade no cuidado de enfermagem de mulheres com câncer ginecológico e mamário", apresentada à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
  • Apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Brasil, processo nº 130249/2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Nov 2013
  • Aceito
    28 Nov 2014
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