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Os agentes de enfermagem nas práticas sanitárias paulistas: do modelo bacteriológico à programação em saúde (1889-1983)

Nursing profession in public health practice in the state of São Paulo: from bacteriological model to health program (1889-1983)

Los agentes de enfermería en las prácticas sanitarias de la provincia de São Paulo del modelo bacteriológico a la programación de salud (1889 -1983)

Resumos

Identificou-se as raízes históricas dos agentes de enfermagem nas práticas sanitárias paulistas entre 1900 e 1980. O trabalho da enfermeira foi institucionalizado na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 1970, no modelo de "Programação", para treinar, coordenar e supervisionar os agentes de enfermagem a realizar normas programáticas. Evidenciou-se o caráter controlista da atividade de supervisão em busca da eficiência do atendimento e a capacidade da enfermeira estabelecer relações entre as ações de saúde executadas por diferentes agentes.

programas de saúde pública; enfermagem de saúde pública


The historical roots of the nursing profession in public health in the estate of São Paulo from 1900-1980 have been identified. Nurses have effectively participated to implement a new public health program - "Programação em Saúde", having the assignment to train, coordinate, supervise/manage other nurses who lacked specialized training. The nurse's understanding of her role in the health process was limited to individual performance with emphasis on technical ability, without understanding the purpose of her actions in the overall model.

public health nursing; public health program


Se ha identificado la origen histórico de los agentes de Enfermería en las práticas sanitárias de la Provincia de São Paulo entre 1900-1989. El trabajo de la Enfermera fue institucionalizado en la Secretaría de la Salud de la Provincia de São Paulo, 1970, en el modelo de "Programación", para entrenar, coordinar y supervisionar los agentes de Enfermería para realizar normas programáticas. Se ha evidenciado el carácter de control de la actividad de supervisión, en la búsqueda de la eficiencia de la asistencia y la capacidad de la Enfermera en establecer relaciones entre las acciones de salud ejecutadas por los diferentes agentes.

programas de salud pública; enfermería de salud pública


ARTIGO ORIGINAL

Os agentes de enfermagem nas práticas sanitárias paulistas: do modelo bacteriológico à programação em saúde (1889-1983)

Nursing profession in public health practice in the state of São Paulo : from bacteriological model to health program (1889-1983)

Los agentes de enfermería en las prácticas sanitarias de la provincia de São Paulo del modelo bacteriológico a la programación de salud (1889 -1983)

Tereza Cristina Scatena Villa; Silvana Martins Mishima; Semiramis Melani Melo Rocha

Enfermeira/Professora do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

RESUMO

Identificou-se as raízes históricas dos agentes de enfermagem nas práticas sanitárias paulistas entre 1900 e 1980. O trabalho da enfermeira foi institucionalizado na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, 1970, no modelo de "Programação", para treinar, coordenar e supervisionar os agentes de enfermagem a realizar normas programáticas. Evidenciou-se o caráter controlista da atividade de supervisão em busca da eficiência do atendimento e a capacidade da enfermeira estabelecer relações entre as ações de saúde executadas por diferentes agentes.

Descritores: programas de saúde pública, enfermagem de saúde pública

ABSTRACT

The historical roots of the nursing profession in public health in the estate of São Paulo from 1900-1980 have been identified. Nurses have effectively participated to implement a new public health program - "Programação em Saúde", having the assignment to train, coordinate, supervise/manage other nurses who lacked specialized training. The nurse's understanding of her role in the health process was limited to individual performance with emphasis on technical ability, without understanding the purpose of her actions in the overall model.

Descriptors: public health nursing, public health program

RESUMEN

Se ha identificado la origen histórico de los agentes de Enfermería en las práticas sanitárias de la Provincia de São Paulo entre 1900-1989. El trabajo de la Enfermera fue institucionalizado en la Secretaría de la Salud de la Provincia de São Paulo, 1970, en el modelo de "Programación", para entrenar, coordinar y supervisionar los agentes de Enfermería para realizar normas programáticas. Se ha evidenciado el carácter de control de la actividad de supervisión, en la búsqueda de la eficiencia de la asistencia y la capacidad de la Enfermera en establecer relaciones entre las acciones de salud ejecutadas por los diferentes agentes.

Descriptores: programas de salud pública, enfermería de salud pública

Este estudo busca reconstituir as raízes históricas dos agentes de enfermagem nas práticas sanitárias do Estado de São Paulo desde o período Bacteriológico (1889) até a Programação em Saúde (1983).

A abordagem escolhida baseou-se em identificar na prática de enfermagem, enquanto trabalho socialmente estruturado e institucionalizado, o sentido de conjunto de suas características, evidenciando as atividades desenvolvidas por seus agentes. O fundamento teórico mais geral é que as práticas de saúde, dentre elas, a de enfermagem, são práticas sociais, isto é, estão articuladas as demais práticas da sociedade, reproduzindo internamente e se modificando. A prática de saúde é um trabalho que se realiza a partir de uma necessidade. Na sociedade capitalista é possível visualizar duas vertentes de práticas de saúde, que são diferentes e se referem a necessidades diversas e portanto, tomam o trabalho individualmente e coletivamente. Nas práticas de saúde voltadas para o coletivo, o objeto de trabalho é um processo contínuo com dimensões biológicas, psicológicas e sociais a finalidade do trabalho inclui objetivamente todas as etapas do processo saúde-doença, por identificá-Ias e tratá-Ias ao nível populacional (promoção, prevenção, cura), fundamentando-se na epidemiologia, ou seja, esta vertente do trabalho, apreende a doença no coletivo. Nas práticas de saúde voltadas para as necessidade individuais, o objeto de trabalho é uma alteração morfofuncional do corpo biológico individual, sendo que a finalidade do trabalho inclui objetivamente apenas a doença individual manifesta, ou suas conseqüências. Fundamenta-se no saber da clínica, ou seja, esta vertente do trabalho apreende a doença no corpo individual. Os instrumentos de trabalho que a clínica e que a epidemiologia usam, são instrumentos que sintetizam determinado saber, que são as grandes vertentes ou "modelos" de trabalho em saúde uma que se volta mais para o trabalho coletivo e a outra mais para o trabalho individual. Essas vertentes de "modelos" de trabalho se referem a necessidades diferentes, recortam o objeto de trabalho de modo diferente e portanto, geram produto de modo diferente (MENDES GONÇALVES)1.

Um processo de trabalho só existe se estiver articulado a outros processos de trabalho que correspondem às necessidades sociais. Neste estudo, procurou-se compreender a enfermagem articulada ao processo de trabalho em saúde, transformando-se no atendimento das necessidades sociais de cada momento histórico, ou seja, recuperou-se as características gerais (fases ou "modelos") da Saúde Pública operada no Estado de São Paulo, de 1889 a 1983, descritas por MERRY2, MENDES GONÇALVES1 e NEMES3.

A abordagem desta investigação compreende duas etapas:

Primeira Etapa - procurou-se apreender os agentes se constituindo nas práticas sanitárias no Estado de São Paulo, desde o início da República até 1967/69, através de levantamento bibliográfico buscando compreender como a enfermagem vai se constituindo enquanto agente destas práticas, quando e por que a enfermeira é introduzida na SES-SP.

Segunda Etapa - inicia com a reestruturação da SES-SP em 1967/69, que cria condições necessárias a implantação dos programas, expressando o que se convencionou denominar modelo de "Programação em Saúde", mantendo-se aproximadamente, até 1983. Sucede, neste período, a emergência institucional da enfermeira no serviço público estadual de saúde diante desta constatação, procurou-se apreender a natureza das atividades realizadas por este agente, as relações e nexos que estabelecem no trabalho em saúde e quais as finalidades do trabalho em saúde atendem, no contexto histórico, político e institucional desta prática sanitária.

Os objetivos desta pesquisa consistem em:

1) reconstituir as raízes históricas dos agentes de enfermagem nas práticas sanitárias no Estado de São Paulo;

2) analisar a inserção da enfermeira e a natureza das atividades desenvolvidas por este agente nos serviços de saúde pública da SES-SP, entre 1969 e 1989, bem como a sua articulação na divisão técnica do trabalho com a equipe de enfermagem e demais profissionais de saúde.

O CONTEXTO OPERACIONAL DA PESQUISA

Para a reconstituição do período "Bacteriológico" até o "Médico-Sanitário" foi realizado um levantamento bibliográfico, enfatizando-se a abordagem nos agentes que operaram estas práticas.

A partir da década de 1960, com a reforma administrativa da SES-SP ate 1983, foram utilizados três fontes para a coleta de dados.

a) referências bibliográficas;

b) documentos, legislação e normatização da SES-SP e do serviço de enfermagem;

c) entrevistas selecionadas com agentes que ocuparam determinados cargos nos órgãos centrais e demais níveis hierárquicos da SES-SP, entre 1960 e 1980.

OS MODELOS DA SAÚDE PÚBLICA NO ESTADO DE SÃO PAULO - 1889 A 1983 E O TRABALHO DE ENFERMAGEM

"Modelo bacteriológico"

A primeira fase corresponde ao período pré-republicano, quando os instrumentos de trabalho eram a higiene pública e o controle das epidemias, supondo-se que a transmissão das doenças era a forma miasmática. A segunda fase ou "Modelo Bacteriológico" (1889 - 1925) se baseia na Epidemiologia da era Bacteriológica, responsável pela associação causal entre agentes microbianos e doenças infecciosas. A concepção bacteriológica altera a qualidade das ações sobre as doenças; sendo as mais utilizadas as campanhas, a política sanitária e o saneamento ambiental (vigilância dos portos) ou seja, ações dirigidas diretamente no coletivo. Os agentes deste projeto de saúde foram os médicos, os mata-mosquitos, os engenheiros sanitários e os guardas, cujas ações de saúde eram dirigidas ao controle do meio ambiente (desinfecção de domicílio, controle de vetor, remoção de cadáveres, segregação de doentes para hospitais de isolamento), como medida para proteger a sociedade sã do contágio. Estas eram realizadas de forma coercitiva e fiscalizadora entendidas como questão de polícia. Os agentes de enfermagem não estavam institucionalizados na prática de saúde pública no Brasil desse período, uma vez que a finalidade do trabalho em saúde não era prestar assistência ao corpo individual, nem a educação do indivíduo, mas promover a saúde através da atuação no meio ambiente.

O "modelo médico-sanitário" e o trabalho de enfermagem

Uma nova política de saúde pública paulista vai se conformando a partir de 1925 até o final da década de 1960, denominada de fase ou "Modelos Médico Sanitário". Foi proposto a criação de Centros de Saúde que visavam atenção a grupos populacionais cuja finalidade era puramente sanitária, destinando-se a promoção da saúde das pessoas ao lado da manutenção das campanhas sanitárias e dos aparelhos de controle da tuberculose e hanseníase, incorporando a educação sanitária, considerada a pedra fundamental de toda a campanha moderna da saúde pública, pois visava formar a consciência do povo em geral, além das medidas de controle das doenças transmissíveis. A ação sanitária dirigia-se ao indivíduo através de um processo de inculcação para obter hábitos de higiene e assim manter em harmonia a relação saudável entre o homem e seu meio. Em outras palavras, essa nova fase da Saúde Pública começa a fazer ações individuais, tendo como principal instrumento a educação sanitária, exercendo assim a ação coletiva através do indivíduo. Durante essa fase, os Centros de Saúde não atendiam o indivíduo doente, salvo os Dispensários da Lepra e da Tuberculose. Os agentes incorporados pelas práticas médico-sanitárias, como por exemplo: os médicos, exerciam a função de controlar os indivíduos sadios, ou seja, fazer a medicina preventiva (Ex.: puericultura). Em relação aos agentes de enfermagem, foram incorporados algumas categorias, tais como: educadora sanitária (curso de nível superior criado em 1925 na USP) ROCHA4, visitadora sanitária e atendente (ocupacional, sem preparo formal, sem treinamento prévio a admissão, sem supervisão das ações de enfermagem desenvolvidas).

Evidencia-se que o trabalho de enfermagem era realizado por agentes sem formação profissional, predominando o atendente, sendo que a atuação da educadora ficou mais restrita aos Centros de Saúde da capital (São Paulo), não chegando a se impor na rede estadual de Centro de Saúde, enquanto categoria profissional. A enfermeira não foi identificada como agente necessário no processo de trabalho da saúde na SES-SP, durante o 'Modelo Médico-Sanitário"; estando presente, em apenas alguns serviços sem entretanto, estar prevista na organização mais geral da assistência a saúde da população.

Neste período, o processo de trabalho é polarizado entre médico (nível universitário, responsável pelo atendimento médico individual e chefia do serviço) e atendentes e visitadoras (sem formação específica na área da saúde).

O trabalho de enfermagem caracteriza-se por desenvolver-se em órgãos isolados da SES-SP como o Dispensário da Lepra, da Tuberculose, Posto de Puericultura dentre outras, delimitando um tipo de assistência em cada área especializada que facilita o domínio das atividades na prática por agentes de enfermagem, sem preparo formal e sem treinamento em serviço, mas com um nível de desempenho na área específica de atuação, de tal forma a conferir-lhes importância, respeito e satisfação nas relações de trabalho.

Os depoimentos dos agentes de enfermagem que trabalham neste período, apresentam como um dado recorrente:

- Não havia padronização de atividades nos serviços da SES-SP, as normas eram esporádicas e pouco cumpridas na prática; o critério de admissão no serviço era a indicação política;

- Das atividades de enfermagem realizadas constatou-se ações de educação sanitária, as quais se somam o autoritarismo da fase da política sanitária do tipo mais coercitivo e de controle, que se dava tanto a nível dos bens distribuídos como o leite, quanto da busca de comunicantes e portadores de doenças transmissíveis;

- Constatou-se ausência de supervisão técnica nas atividades de enfermagem, bem como de métodos racionalizadores do trabalho, ou seja, os agentes de enfermagem executam todas as ações e dividem o trabalho entre seus pares, sem uma supervisão técnica do trabalho. Em relação a forma de organizar o trabalho em saúde, esta fase não requer mecanismos burocráticos nem racionalizadores, o que permite aos agentes imprimir autonomia e iniciativa na forma de conduzir o seu trabalho. Existe portanto, uma adequação entre as atividades de enfermagem e as habilidades requeridas de seus agentes de nível médio e elementar, que eles valorizam as suas habilidades, sentem satisfação, orgulho e importância no próprio trabalho;

- A inserção da enfermeira é esporádica em alguns serviços, estando relacionada ao treinamento do pessoal auxiliar em atividades técnicas, sendo que nos serviços em que a profissional se insere já desperta conflitos nas relações de trabalho, negando a necessidade do profissional.

Durante a década de 1970, amplia-se a necessidade da incorporação da assistência médica individual nos serviços de saúde pública. Inicia-se a terceira fase da Saúde Pública Paulista, quando a SES-SP passa por uma reforma administrativa, visando agrupar numa concepção de Centro de Saúde, todos os serviços dispersos como: Dispensário da Lepra, da Tuberculose, Posto de Puericultura, Posto do Tracoma, sem entretanto, caracterizar uma efetiva mudança na prática sanitária.

O "modelo da programação" e o trabalho de enfermagem

Em 1969, com a Reforma Administrativa da SES-SP é criado o Serviço de Enfermagem na Coordenadoria de Saúde da Comunidade C.S.C. (responsável pela coordenação da rede de Centros de Saúde), sendo introduzida a enfermeira como um dos agentes eleitos para implementar a política de saúde tratada pela instituição, que vai se desenvolver a partir de 1976, caracterizando uma nova fase das práticas sanitárias, denominada "Programação em Saúde", que amplia e diversifica a assistência médica individual a grupos populacionais. Outras características do modelo da Programação são:

- Atendimento médico ao doente e controle do sadio, de forma a integrar no mesmo serviço de saúde, prevenção primária, secundária e terciária, conforme definiram LEA VELL & CLARK;

- Eleição do Centro de Saúde como eixo integrador da assistência;

- Atividades de rotina centradas na prevenção primária e secundária do binômio saúde-doença; as atividades eventuais visavam a prevenção secundária e terciária;

- Atividades de enfermagem: pré-consulta, pós-consulta, atendimento de enfermagem, controle de faltosos e de comunicantes, visita domiciliar, trabalhos educativos e outras atividades de alcance coletivo;

- Sistemática de avaliação (fichas de avaliação);

- Padronização de atividades, determinando normas de tratamento de doenças, manuais de procedimentos, condutas diagnosticas, cronograma de atendimento;

- Estrutura de gerência a nível de Centro de Saúde, com direção técnica, chefia administrativa e chefia de enfermagem, cabendo ao médico a direção técnica da unidade e a enfermeira, a chefia de enfermagem;

- Formação de recursos humanos;

- Utilização de agentes não médicos através da delegação de funções a pessoal auxiliar.

No que diz respeito ao Serviço de Enfermagem C.S.C., a opção da instituição foi contratar agentes sem formação em enfermagem, como atendentes e visitadores sanitários, e adestrá-los no serviço, sendo a enfermeira um dos agentes previstos para:

- Treinar o pessoal de enfermagem a executar as atividades previstas nos programas;

- Participar da implantação das atividades técnicas e burocráticas dos programas;

- Intermediar as relações de prestação de assistência médica individual realizada pelo médico e coordenar uma equipe de agentes, mediando esta assistência, através de uma ascendência técnica sobre os agentes de enfermagem de nível médio e elementar mas sem linha de mando sobre eles.

Com a introdução de novos agentes modifica-se, gradativamente a organização do processo de trabalho em saúde, bem como altera-se em parte, a relação de trabalho polarizado entre o médico e os atendentes. A introdução da enfermeira institucionaliza a divisão técnica e social do trabalho de enfermagem, uma vez que passa a interferir tecnicamente no trabalho de enfermagem pois detém o conhecimento do instrumental de enfermagem, como as técnicas, os princípios da administração científica e as normas dos Programas de Assistência, o que lhe permite conhecer todas as fases do processo de trabalho em saúde. Estrutura-se uma equipe para mediar as várias atividades entre um agente e outro, modificando-se também as relações hierárquicas no trabalho. A sistematização das ações de enfermagem como forma de organizar o trabalho que viabiliza os treinamentos dos agentes menos qualificados (cumprir etapas do trabalho prescritas) favorece a implantação de maior rigidez na divisão técnica do trabalho, diversificada entre os vários agentes legitimando a hierarquia e a disciplina, possibilitando o controle social dos agentes através do processo de formação.

Esta hierarquização nas relações de trabalho de enfermagem não foi aceita de imediato, tomando-se fator desencadeador de conflitos, desejando o pessoal auxiliar manter a mesma linha de mando da organização de trabalho presente no modelo anterior, ou seja, uma relação direta com o médico.

A prática da enfermeira apresenta uma contradição: apesar do profissional desejar prestar o cuidado de enfermagem a clientela, que seria a sua competência técnica específica de enfermagem, esta não encontra espaço no processo de trabalho da saúde. Sua presença, no entanto, tem outra dimensão: ocupar o lugar de controle na produção de serviços de saúde e disciplinar o pessoal de enfermagem subalterno.

As atividades de enfermagem foram previstas no modelo de "Programação" complementando o ato médico numa concepção de atendimento integral, seja nas ações promocionais, preventivas e curativas; além de visar ao maior rendimento deste recurso mais caro e relativamente mais escasso (ato médico). Dentro dessa linha encontra-se o Atendimento de Enfermagem (AE) que substituiria a consulta médica, quando a atividade não incluísse diagnóstico de doenças até então não diagnosticadas. A Pré e Pós-consulta e o AE, além de atenderem ao aumento da eficiência dos Programas, eram padronizados, articulados e integrados aos seus objetivos e buscaram também a redução da morbidade e mortalidade de grupos populacionais específicos. Assim, a Pré e Pós-consulta absorveriam parte da consulta médica (CM), sendo que a Pré-consulta consistia no preparo e orientação do cliente para a CM e para o AE, favorecendo a coleta e o registro de dados necessários, organização e racionalização do trabalho e a maior rentabilidade das atividades; a Pós-consulta constava de orientações ao cliente, atualização dos dados e agendamento para o próximo retorno (São Paulo)5.

Estas ações de enfermagem complementares ao ato médico, eram parte de uma ação programática, não sendo portanto, o AE uma atividade autônoma que poderia ser realizada de forma isolada do processo de trabalho em saúde.

Este conjunto de atividades previstas no Programa, dentre elas a CM, o AE, a Visita Domiciliar (VD), pré e pós-consulta compunha um piano de intervenção dirigido a coletivos, subordinados a uma espécie de "gerência epidemiológica". (NEMES)3.

Assim, essas ações de enfermagem só se definiam em relação a outros trabalhos de saúde, não existindo uma proposta isolada para os agentes de enfermagem. Portanto, as ações de enfermagem integradas as outras ações de saúde iriam atender a finalidade do modelo, ou seja: estender a cobertura de assistência médica individual a população marginalizada e controlar a doença a nível coletivo.

Como já foi exposto, a prática de enfermagem já nasce dividida no modelo de Programação, que traz a idéia de incorporação de várias categorias sem preparo formal como os atendentes e visitadores para a execução de parcelas mais simples do trabalho em saúde, em obediência as normas existentes, visando racionalizar o trabalho do agente mais caro, o médico, conferindo maior rentabilidade a esta atividade desenvolvida internamente na Unidade. Para o visitador sanitário foram previstas atividades, que visam controlar a doença, enquanto fenômeno coletivo, mas atuando sobre indivíduos através da: visita domiciliar, educação sanitária para doentes e comunicantes de doenças transmissíveis.

Consta das atribuições deste agentes que suas tarefas seriam determinadas pela enfermeira do serviço, seu superior hierárquico na estrutura da instituição e responsável pela chefia de enfermagem.

Assim, a enfermeira foi atribuída funções de mediar e implementar o processo de trabalho em saúde que se volta tanto para a recuperação da força de trabalho, através de ações complementares a consulta médica, como para o controle do processo saúde-doença na coletividade, de forma a oferecer suporte a infra-estrutura na prestação de serviço de saúde.

A Programação representou um avanço no reconhecimento técnico e na esfera de poder da enfermeira, por referência a sua participação nas práticas operadas nos modelos anteriores; pois ofereceu condições para a categoria participar de forma mais atuante, tendo o respaldo normativo dos programas.

Houve muita resistência dos médicos em cumprir a padronização de condutas; por outro lado, houve um alto grau de comprometimento profissional da enfermeira com as normas institucionais, reproduzindo o "autoritarismo" de um modelo implantado de forma vertical, sem questionar, a sua adequação ao atendimento. Assim, sua participação esteve mais relacionada a utilização das normas programáticas para controlar cada fase do processo de trabalho e seu modo de execução. A atuação da enfermeira relacionou-se mais a eficiência do atendimento prestado na Unidade do que a eficácia da assistência de enfermagem, como seria o seu desejo expresso, uma vez que se preocupou mais com a organização racional do trabalho e os seus métodos, para estabelecer padrões de desempenho, como o acompanhamento da tarefa ao nível dos agentes de enfermagem menos qualificados. O que ocorre, é uma racionalização do trabalho a nível do agente de enfermagem, que se reduz a uma série de tarefas obedecendo as normas já traçadas numa instância superior. Isso evidencia o caráter controlista das atividades de supervisão, na sua dimensão gerencial, pois cobra do agente executor da assistência, a eficiência estabelecida pelas instâncias de planejamento, onde os programas foram concebidos (rendimento do instrumento, metas, etc.) ao mesmo tempo que resgata a dimensão técnica do trabalho de enfermagem através do acompanhamento direto das atividades.

A especificidade do trabalho da enfermeira está na capacidade deste agente dominar tecnicamente as ações de enfermagem, ao mesmo tempo que as coordena, supervisiona, controla e estabelece as relações destas com as outras ações de saúde executadas por diferentes agentes.

Portanto, essa especificidade do trabalho da enfermeira, que a diferencia dos demais agentes, tem a característica de uma função gerencial que visa imprimir ao trabalho a melhor utilização dos recursos disponíveis, buscando a eficiência, na medida em que resolve problemas de ordem técnica e burocrática, salvaguarda os recursos, faz cumprir tarefas, escalas e treina os subordinados, caracterizando-se por um agente que se concentra nas operações e aspectos internos da Unidade, tentando resgatar nas ações prestadas a noção da integração entre o preventivo e o curativo. Essa e a especificidade do trabalho da enfermeira que a diferencia de outros profissionais, uma vez que participa na supervisão direta da assistência (técnica) e coordenação do processo de execução das inúmeras e complexas atividades meio, das quais outros agentes não participam do processo de produção.

De uma maneira geral, é difícil para os demais agentes, o entendimento de que quando o trabalho é parcelado necessita-se de um agente para fazer a coordenação dessas tarefas e recompor a unidade do trabalho. Assim o profissional que assume essa função não pode executar cotidianamente uma das tarefas, para não perder o controle do todo. Ao mesmo tempo, este profissional deve ter o domínio e a compreensão para executar qualquer uma das tarefas, de acordo com nível de complexidade requerido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do estudo realizado foi possível reconstituir as raízes históricas dos agentes de enfermagem nas práticas sanitárias paulistas e analisar a inserção da enfermeira nos serviços de saúde pública, a natureza das atividades desenvolvidas por este agente, bem como a sua articulação na divisão técnica do trabalho com a equipe de enfermagem e demais profissionais da saúde, tendo como referencial teórico, a organização do trabalho em saúde (MENDES GONÇALVES)1.

No Modelo "Bacteriológico" os agentes de enfermagem não estavam institucionalizados; no "Modelo-Sanitário", o trabalho de enfermagem foi desenvolvido por agentes sem preparo formal em saúde - os atendentes e visitadores - sendo que a organização do trabalho em saúde apresenta ausência de padronização de atividades, bem como de supervisão técnica de atividades de enfermagem. Não se constata uma divisão técnica do trabalho de enfermagem, cabendo a todos executarem todas as atividades, organizadas de forma isoladas e por especialidades. As técnicas de ação utilizadas por estes agentes foram: a educação, a política e as campanhas sanitárias.

A Reforma Administrativa da SES-SP, em 1969, necessitou de profissionais com qualificações diversas, sendo um deles, a enfermeira, para implementar as diretrizes, previamente traçadas, e viabilizar o objetivo da política de saúde - ampliar e estender a assistência médica individual a grupos populacionais, priorizados pelo critérios de risco. A opção para a área de enfermagem foi contratar mão-de-obra qualificada e adestrá-la no serviço. Para coordenar e supervisionar este trabalho, introduziram a enfermeira graduada. Institucionalizou-se a divisão técnica e social do trabalho de enfermagem. A atuação da enfermeira voltou-se para a padronização de técnicas de enfermagem, para o controle e coordenação dos agentes que executam a assistência de enfermagem, legitimando a hierarquia e disciplina.

A representação das enfermeiras, enquanto atores, mostra que este não foi um processo consciente da categoria. O desempenho das enfermeiras na instituição durante a década de 1970 conferiu-lhe um caráter de profissional polivalente sem especificidade em áreas de trabalho, com limitações de poder incompatível com o posto ocupado na estrutura administrativa da SES-SP.

No Modelo de Programação que se instaura de 1976 até 1983, o trabalho de enfermagem foi incorporado a um conjunto de atividades, dentre elas, a assistência médica individual, de acordo com um piano dirigido a grupos populacionais.

Com essa nova tecnologia, o processo de trabalho tomou-se mais complexo, estabeleceu-se uma divisão técnica e social do trabalho mais rígido; conseqüentemente, modificaram-se as relações e emergiram conflitos entre os agentes, provocando uma hierarquização e burocratização das relações .

Para os agentes, alterou significativamente a sua forma de trabalhar, a medida que ocorreu redirecionamento do objeto e instrumentos, agora submetidos a um plano.

A enfermeira introduziu a noção de "trabalho em equipe" e de integração de atividades de promoção, prevenção e cura, como, não se ateve apenas ao gerenciamento da assistência de enfermagem, uma vez que o processo de trabalho em saúde e coletivo, presidido por uma finalidade única. A enfermeira assumiu a organização racional das atividades parcelares deste trabalho coletivo e complexo coordenando as áreas de atendimento, intermediando relações entre os vários agentes, bem como entre os setores: distribuição de medicamentos, zeladoria, serviço social e outros. A programação proporcionou a enfermeira, um respaldo normativo, funções mais definidas e ampliadas técnica e administrativamente, com a criação dos cargos de chefia e encarregatura em 1976.

As entrevistas revelam que a expectativa em relação a função da enfermeira no processo de trabalho está mais centrada no atendimento clínico individual. As atividades de coordenação e controle da produção, que são funções gerenciais, e que não foram compreendidas e aceitas por todos os agentes. Essa questão merece ser repensada pela enfermeira no sentido de como articular suas funções no trabalho, adequando-as a necessidade da clientela e a finalidade do processo de trabalho, sem fazer disso um exercício de poder. Esta reflexão deve ser compreendida no contexto da Programação em saúde, uma vez que não se trata do mesmo agente: médico, enfermeira, visitador e atendente em cada período de organização do trabalho em saúde, estando suas ações reordenadas, assim como seu objeto, instrumentos e finalidade.

A conclusão desse trabalho apresenta indicações que podem subsidiar a formação da enfermeira, sem que se estabeleça previamente, a função deste agente no processo de trabalho em saúde, mas buscar esse entendimento na dinâmica da organização do trabalho em saúde em cada período histórico.

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  • 03. NEMES, M. I. B. Ação programática em saúde: recuperação histórica de uma política de programação. In: SCHRAIBER. L. Programação em saúde hoje São Paulo: HUCITEC. Cap. 2. p. 65-116.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2006
  • Data do Fascículo
    Jul 1994
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