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O docente de enfermagem nos campos de prática clínica: um enfoque fenomenológico

Resumos

No desenvolvimento das atividades teórico-práticas nos campos de prática clínica, o docente de enfermagem proporciona as bases necessárias para o desenvolvimento do futuro profissional. O objetivo proposto foi compreender a vivência dos docentes de enfermagem, junto aos estudantes de enfermagem, nos campos de prática clínica. Para isso, optou-se por metodologia qualitativa fenomenológica e, para fundamentar a análise dos dados, foi adotado o referencial filosófico de Martin Heidegger. Cinco docentes de uma universidade do Chile participaram do estudo. A análise possibilitou descobrir os seguintes temas: ser docente no hospital, a convivência com enfermeiras clínicas e ser docente no ensino do cuidado. O estudo demonstrou que a integração docente/assistencial é elemento construtivo e facilitador do processo ensino/aprendizagem, buscando a formação de profissionais da enfermagem que incorporem, na sua atuação, as bases de cuidado autêntico.

Enfermagem; Educação em Enfermagem; Pesquisa Qualitativa


During theoretical and practical activities in clinical training areas, nursing teachers provide the bases needed for the development of future professionals. The goal is to understand the experience of nursing teachers with nursing students in clinical training areas. Therefore, a phenomenological qualitative method was chosen, and Martin Heidegger's philosophical framework was used to support data analysis. Five faculty from a Chilean university participated in the study. The analysis permitted discovering the following themes: being a faculty at the hospital, contact with nurse practitioners and being a faculty in care teaching. The study demonstrated that teaching/care integration is a constructive element that facilitates the teaching and learning process, aiming to prepare nursing professionals who incorporate the bases of authentic care into their activities.

Nursing; Education, Nursing; Qualitative Research


El docente de enfermería en el desarrollo de las actividades teórico-prácticas en los campos de práctica clínica proporciona las bases necesarias para el desarrollo del futuro profesional. El objetivo propuesto es comprender la vivencia de los docentes de enfermería junto a los estudiantes de enfermería, en los campos de práctica clínica. Para ello se optó por una metodología cualitativa fenomenológica, y para fundamentar el análisis de los datos, se utilizó el marco filosófico de Martín Heidegger. Cinco docentes de una universidad de Chile participaron del estudio. El análisis posibilitó descubrir los siguientes temas: ser docente en el hospital, la convivencia con enfermeras clínicas y ser docente en la enseñanza del cuidado. El estudio demostró que la integración docente/asistencial es un elemento constructivo y facilitador del proceso de enseñanza y aprendizaje, que busca la formación de profesionales de enfermería que incorporen en su actuación las bases de un cuidado auténtico.

Enfermería; Educación en Enfermería; Investigación Cualitativa


ARTIGO ORIGINAL

O docente de enfermagem nos campos de prática clínica: um enfoque fenomenológico

Lorena BettancourtI; Luz Angelica MuñozII; Miriam Aparecida Barbosa MerighiIII; Marcia Fernandes dos SantosIV

IEnfermeira Obstétrica, Mestre em Enfermagem, Professor Auxiliar, Universidad de Valparaiso, Chile. E-mail: lorena.bettancourt@uv.cl

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Facultad de Enfermería, Universidad Andres Bello, Santiago de Chile, Chile. E-mail: lmunoz@unab.cl

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: merighi@usp.br

IVEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professor Auxiliar, Universidad Andres Bello, Santiago de Chile, Chile. E-mail: marcia_fsantos@yahoo.com.br

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Lorena Bettancourt Universidad de Valparaíso Blas Cuevas, 1028 Valparaiso, Chile E-mail: lorena.bettancourt@uv.cl

RESUMO

No desenvolvimento das atividades teórico-práticas nos campos de prática clínica, o docente de enfermagem proporciona as bases necessárias para o desenvolvimento do futuro profissional. O objetivo proposto foi compreender a vivência dos docentes de enfermagem, junto aos estudantes de enfermagem, nos campos de prática clínica. Para isso, optou-se por metodologia qualitativa fenomenológica e, para fundamentar a análise dos dados, foi adotado o referencial filosófico de Martin Heidegger. Cinco docentes de uma universidade do Chile participaram do estudo. A análise possibilitou descobrir os seguintes temas: ser docente no hospital, a convivência com enfermeiras clínicas e ser docente no ensino do cuidado. O estudo demonstrou que a integração docente/assistencial é elemento construtivo e facilitador do processo ensino/aprendizagem, buscando a formação de profissionais da enfermagem que incorporem, na sua atuação, as bases de cuidado autêntico.

Descritores: Enfermagem; Educação em Enfermagem; Pesquisa Qualitativa.

Introdução

O processo ensino/aprendizagem na enfermagem tem algumas características especiais, pelo fato de ser, em grande parte, baseado na teoria e prática, além de ser desenvolvido em instituições prestadoras de serviços de saúde que atuam como campos de prática clínica(1). A cognição do estudante, embora real, não tem essência palpável, sendo própria de cada um e, assim, inacessível ao professor. Sabe-se que o conhecimento teórico e prático é traduzido pelos aprendizes, mostrando que não são experiências separadas umas da outras(2).

Aprender a cuidar ocorre necessariamente dentro do relacionamento estudante e pessoa cuidada, onde o estudante aplica e transforma os conhecimentos teóricos aprendidos na sala de aula, através de ações práticas de cuidado, apoiadas pelo docente. A atuação do docente, nesse contexto, se transforma em elemento importante do processo já que, ao integrar-se aos estudantes nos campos clínicos, o docente proporciona, através do seu conhecimento pessoal e dos seus conhecimentos atuais, as bases e o apoio necessários para o desenvolvimento do futuro profissional de enfermagem(3-4). Porém, é nesse ambiente clínico de cuidado que ocorre a integração docente/assistencial propriamente dita. O docente de enfermagem e a enfermeira clínica têm papel fundamental na formação do estudante(5).

Os docentes não somente instruem, mas também estimulam o estudante na tomada de decisões, a fazer observações, perceber relações e trabalhar com indagações. Dessa maneira, o docente proporciona ao estudante o desenvolvimento de habilidades e atitudes que levam à aquisição de poder técnico e também político, permitindo a atuação em benefício da sociedade(6).

A experiência das autoras deste estudo, como enfermeiras clínicas e logo como docentes de enfermagem, foi o que as fez pesquisar, com maior profundidade, o que acontece atualmente na docência de enfermagem, nos campos de prática clínica. Através do desempenho de uma das autoras como docente no curso de graduação em enfermagem, da Universidade de Valparaíso, no Chile, percebia-se o entorno enfrentado pelas docentes da escola, às vezes um ambiente cálido e facilitador, outras vezes hostil e ameaçador, no qual se sentia a tensão que dificultava a aprendizagem do estudante.

Cabe destacar que os estudantes desta Escola de Enfermagem iniciam suas experiências clínicas a partir do segundo ano de estudos, sendo nesse e no terceiro ano acompanhados por docentes de forma integral. A partir do quarto e quinto ano, são supervisionados de forma parcial.

Nesse contexto, o docente é responsável por: selecionar os pacientes segundo os objetivos do programa, prestar o cuidado com os estudantes, promovendo a reflexão sobre a experiência, distribuir tarefas, supervisionar e atuar como elemento facilitador no processo de aprendizagem. Com o máximo de 7 estudantes por docente, deve garantir a qualidade do ensino prestado e estimular para que o estudante comece a desenvolver e integrar os conhecimentos recebidos nos blocos teóricos, além de, gradativamente, integrar-se no ambiente profissional e, assim, ter seus primeiros contatos com as enfermeiras clínicas nas diversas instâncias de sua experiência.

Outro elemento observado, durante o desempenho nos campos clínicos, refere-se à ansiedade de algumas docentes por não poderem cumprir as exigências do curso, ao que se soma o pouco reconhecimento do trabalho desenvolvido, tanto por parte dos usuários como das próprias enfermeiras e do pessoal da saúde.

Sendo assim, surgem as inquietações sobre a atuação do docente de enfermagem nos campos da prática clínica. Em uma busca sistemática da bibliografia, observou-se que a literatura destacava aspectos mais curriculares, os quais, porém, não respondiam às interrogações que surgiam: como é a experiência de estar com os estudantes no hospital? Como a enfermeira docente clínica relaciona-se com a enfermeira clínica? Como a enfermeira docente clínica entende seu papel na aprendizagem do estudante de enfermagem no hospital?

Essas inquietudes precisavam de uma resposta; por isso, sentiu-se a necessidade de tentar desvelar o fenômeno: ser docente de enfermagem nos campos da prática clínica.

Este estudo se justifica na medida em que busca a experiência através de quem a vivencia. Considera-se que o significado dessa vivência constitui conhecimento que poderá contribuir para a reflexão e reelaboração da atuação das docentes de enfermagem frente àquelas atividades que desenvolvem nos campos de prática clínica. Dessa forma, o presente estudo poderá propor bases que contribuam para melhorar a qualidade da aprendizagem, do cuidado e da produção do conhecimento em enfermagem.

Dessa maneira, o objetivo desta pesquisa é compreender a vivência dos docentes de enfermagem junto aos estudantes do curso de graduação nos campos de prática clínica.

Metodologia

Para obter compreensão mais global da experiência vivida pela docente, a partir de sua própria perspectiva, considerou-se a pesquisa qualitativa como o caminho mais coerente para os propósitos deste estudo.

A pesquisa qualitativa é um processo aberto, submetido a infinitos e imprevisíveis desdobramentos, cujo centro organizador é um modelo que o investigador desenvolve e em relação ao qual as diferentes informações empíricas ganham significado(7). Neste caso, o fenômeno objeto desta pesquisa está inserido no contexto das vivências individuais de enfermeiras docentes, que exercem o ensino prático no curso de graduação em enfermagem.

Buscando compreender o fenômeno vivenciado pela enfermeira docente nos campos clínicos, a fenomenologia de Martin Heidegger é pertinente, já que busca, sem preconceitos nem teorias, pesquisar, compreender e interpretar o ser docente como experiência concreta e como sujeito consciente. Dessa maneira, atribui-se significado conforme sua própria visão do mundo-vida, segundo seus costumes, saberes e valores, vividos intersubjetivamente com os outros. Heidegger, no seu estudo sobre o existencialismo, não separa a razão da emoção, e pergunta sobre o modo de ser da existência, revelando que esse ser engloba a totalidade, que pode ser apreendida em seu ser baseado na mundaneidade, ou seja, em um modo essencial de viver, fundamentado sobre diversas maneiras(8).

Para conduzir esta pesquisa, buscaram-se docentes de enfermagem que estavam em contato com os estudantes nos campos da prática e que aceitaram participar do estudo. Assim, a região ontológica, onde o fenômeno foi pesquisado, foi a Escola de Enfermagem da Universidade de Valparaíso, no Chile.

O número de sujeitos participantes desta pesquisa foi definido depois das entrevistas. Entrevistaram-se oito docentes e trabalhou-se com cinco entrevistas, já que essas foram consideradas como as mais ricas em significados e, além disso, eram suficientes para responder às inquietudes aqui propostas.

Assim, um grupo de cinco enfermeiras conforma o quadro dos participantes deste estudo. As entrevistas se realizaram na Escola de Enfermagem, ou onde os participantes acharam conveniente. No momento da entrevista, foi explicado, em linhas gerais, como era consistituído o estudo. O período de tempo necessário foi entre julho e agosto de 2006.

Segundo os princípios éticos, que, como pesquisador, se deve preservar na interação com os sujeitos, todos os dados foram obtidos com prévia autorização dos participantes, e firmou-se um termo de consentimento informado, garantindo o anonimato. O protocolo da pesquisa foi apresentado ao Comitê de Ética da Universidade, sendo aprovada a sua realização.

As entrevistas foram realizadas em um local previamente selecionado e em horário previamente acordado. Os discursos foram gravados e solicitou-se às enfermeiras que expressassem livremente suas vivências com o tema investigado, a partir da seguinte pergunta orientadora: como é para você a experiência de estar com os estudantes de enfermagem quando realizam seu estágio clínico no hospital?

Cada entrevista ocorreu em uma só oportunidade, de modo que o sujeito expressou seu ponto de vista no momento, emergindo espontaneamente do discurso. Os discursos foram numerados de 1 (um) a 5 (cinco), precedidos da letra E (entrevista) E1, E2, e, assim, sucessivamente.

Para efetuar a análise das entrevistas, recorreu-se a procedimentos metodológicos definidos por estudiosos da fenomenologia(9). Inicialmente, os discursos foram numerados e lidos de maneira integral e atenta, a fim de apreender o sentido global, mas ainda sem interpretar ou identificar os atributos neles contidos. A seguir, buscou-se, nas descrições de cada discurso, a presença evidente das essencialidades do fenômeno docente de enfermagem nos campos clínicos. Assim, as unidades de significado (os fragmentos das entrevistas) que tiveram sentido para as investigadoras e que respondiam à pergunta orientadora foram identificadas, destacadas e enumeradas. Depois da obtenção das unidades de significado, buscou-se identificar e agrupar as unidades de cada discurso que apresentavam um tema comum. Dessa maneira, três temas emergiram das entrevistas: ser docente no hospital, convivendo com as enfermeiras clínicas e ser docente no ensino do cuidado.

Após delimitar os temas, como já mencionado, os conceitos de Martin Heidegger serviram como fio condutor para a interpretação dos discursos dos docentes. Para a apresentação e análise dos dados, foram utilizados recortes de relatos das docentes de enfermagem.

Resultados

A enfermeira docente é um ser-aí que vive a experiência como ser no mundo, e se relaciona com estudantes, enfermeiras e equipe de saúde no ambiente de um serviço clínico de um hospital, por período limitado, e a essa experiência são atribuídos diversos significados.

O primeiro tema que emerge do estudo refere-se ao modo de ser docente que atua no hospital juntamente com os estudantes.

Ser docente no hospital

(...) Com o passar dos dias, percebo que, quando consigo ver um aluno em algo tão básico, por exemplo, não sei, a administração de um medicamento, encontro erros grosseiros e isso me faz questionar minha forma de distribuir o trabalho dos estudantes, mas também penso que, se não o faço, si tomamos todas as atividades que aparecem, eles perdem oportunidades que são enriquecedoras (E3).

(...) Porque na realidade tenho fatores que estão produzindo tensão. Está te expondo a uma crítica, a de que o paciente não aceite que volte a repetir a técnica e, se a família fica sabendo que esse paciente foi atendido por um aluno e está muito puncionado, então a colega poderá negar-te o direito de voltar a atendê-lo (E2).

( ) Faz-se complexa também a docência porque, bom, no último tempo tem que partilhar com outras universidades ( ) os campos clínicos (E3).

( ) Além disso, partilhamos espaços às vezes com outras unidades, inevitavelmente se geram comparações, e se essas comparações em algum minuto, momento, nos prejudicam, também vai ser um fator que vai diminuir a oportunidade, não somente para um, mas para todos os estudantes (E5).

( ) A gente tem a responsabilidade de se precaver de que os campos estejam abertos, que o clima no interior seja positivo para que os estudantes apreendam (E5).

A convivência das docentes com as enfermeiras clínicas se apresenta por meio do tema mostrado a seguir.

Convivendo com as enfermeiras clínicas

( ) Eu normalmente faço contato e tento manter uma comunicação (...) com a enfermeira, (...) considero que nós estamos de passagem, (...) e é ela que tem que ver com clareza o que ocorreu ou não ocorreu no seu serviço. Se você não respeita isso, a enfermeira (...) vai começar a sentir que estamos atrasando seu trabalho e com justa razão (E1).

( ) Eu parto da base de que mesmo sendo ex-alunas minhas ou mais jovens, ou que tenham menos experiência, (...) tem uma pessoa que é responsável, que é uma colega e eu não posso tirar a sua autoridade frente ao que se decida de enfermagem, assim, creio que a comunicação e o respeito pela colega que está aí é fundamental (E1).

( ) Meu relacionamento em geral com as enfermeiras do serviço é bastante boa em (...) nenhuma delas era enfermeira quando eu trabalhava nesse serviço, bom, tem uma que sim, mas está no intermediário, assim não tenho muito contato com ela, são todas mais jovens ou levam menos tempo no hospital e ( ) existe um bom relacionamento (E3).

( ) Para um bom relacionamento, primeiro elas te avaliam e, particularmente para mim, é uma vantagem ( ) procurar ir aos serviços onde vou estar antes, e estar aí e participar do trabalho, envolver-me e mostrar conhecimento do que são as normas, os protocolos, o funcionamento, do trabalho cotidiano dentro da unidade, porque isso dá a elas tranquilidade de que você será uma a mais da equipe (...) então reconhecem e facilitam as coisas (E5).

( ) Sabem que eu trabalhei aí, percebem o relacionamento que tenho com o pessoal, no fundo, ainda me chamam de chefa, então, ( ) isso te mostra em certa medida um pouco de credibilidade entre elas ( ) se sinto que algumas pessoas ( ) pelo fato de estar na universidade ( ) te desacreditam porque pensam que a prática clínica é mais importante que aquilo que você faz na universidade (E3).

( ) Quando temos ido uma e outra vez, a ( ) um mesmo serviço, já temos um caminho pavimentado, aí a percepção muda, mas o primeiro é como essa sensação de rejeição, não existe consciência acadêmica, consciência docente nos hospitais (E4).

( ) Porque a colega está pensando que lhe desordenam a casa, a colega pensa que você lhe muda a rotina, embora seja uma contribuição que também está protegendo seu território laboral (E2).

( ) Mas igualmente é um processo como docente porque, ao partir, você não tem mais que a vontade, tem a experiência clínica, os conhecimentos. ( ) É um trabalho de maturidade profissional, de maturidade pessoal, de reforçar o conhecimento, também no teu instrumental, também na interação com o estudante, também ir vendo de que maneira você vai cumprindo esse papel de tutela, de ser efetivamente ( ). Ser esse tutor, sinto que ( ) pessoalmente estou aprendendo com o fazer (E5).

Tem sido (...) fundamental para mim poder assimilar-me a elas e que possam sentir que eu sou uma a mais na equipe, e isso me tem aberto as portas para poder facilitar que os estudantes tenham as oportunidades, porque, do contrário, tem insegurança pela responsabilidade que elas sentem que tem pelo seu trabalho, pelos seus pacientes, elas vão fechando as portas, negando possibilidades, e, além disso, compartilhamos espaços, às vezes com outras unidades, inevitavelmente se geram comparações, e se essas comparações em algum minuto, momento, nos prejudicam também vai ser um fator que vai diminuir a oportunidade, não somente para um, mas para todos os estudantes (E5).

A experiência do docente com os estudantes de enfermagem nos campos clínicos se constata no tema a seguir.

Ser docente no ensino do cuidado

(...) A docência que lecionamos no hospital é aluno a aluno, (...) personalizada, (...) nos permite (...) captar melhor como é o aluno, (...) é muito importante (...) que você trabalhe com grupos pequenos, para poder ir entregando o que você deseja fornecer e poder observar se o aluno entende ou não entende a ideia do que é a enfermagem (E1).

(...) Ver como vem progredindo, como vem ganhando confiança, como se vão desenvolvendo e vão ganhando certa autonomia para poder tomar decisões e ser responsáveis pelo que fazem (E5).

(..) Sinto que corro muito e que tenho uma grande necessidade de cumprir muitas técnicas ou muitas demandas relacionadas à qualidade dos pacientes (E2).

( ) Quando eu chego pela manhã ao hospital, habitualmente distribuo os estudantes por salas, tento deixar dois por sala e se tenho mais estudantes ( ) deixar alguém no intermediário. ( ) Começo a insistir em que terminem rapidamente os curativos para que não existam (...) quando chegar a hora do almoço (E2).

( ) Você tem que preparar o aluno para a frustração e não deixá-lo, que se deixe usar e que seja uma carga pensando na situação (E4).

(...) Vão cumprir uma tarefa, elas vão dar apoio, serão realmente elementos de substituição, para alcançar que o paciente tenha seus problemas solucionados e que satisfaçam suas necessidades (E3).

Discussão

Ser docente no hospital inclui prestar cuidado, distribuir tarefas, supervisionar e apoiar os estudantes.

Uma forma de estar no mundo é estar consciente de sua existência(8). Quando a docente de enfermagem vai com estudantes ao hospital, ela entra em um mundo-vida distinto do seu, onde sua presença é por tempo limitado, e onde a dona da situação já não é ela, e sim os outros integrantes da equipe de saúde e o paciente(10).

Os docentes demonstram insegurança ao atuar nesse mundo do ensino. Esse passo ao mundo da clínica provoca angústia na docente, angústia pura, sem algo determinado que leve o homem a questionar sua existência. De modo geral, ela surge a partir do medo. Medo e angústia são sentimentos muito próximos e, na maioria das vezes, inseparáveis, ao ponto de o homem não saber se tem medo daquilo que o angustia ou se tem angústia por aquilo que teme(8).

No medo, o que é temido é sempre uma entidade do mundo ou a coexistência com os outros homens(8). No caso das enfermeiras, que estão na clínica e que coexistem com a docente, a angústia emerge na docente quando ela se sente insegura ao compartilhar seu eu de forma plena e espontânea.

Outro aspecto muito importante que provoca conflitos na docente é ter que compartilhar o campo clínico com outros estudantes de universidades privadas da região, um aspecto que incomoda devido ao enfrentamento do desconhecido, à comparação entre estudantes. Sente-se responsável por fazer com que os campos clínicos se mantenham abertos aos seus estudantes.

Atingir habilidades cognitivas, técnicas e afetivas exige muito mais das denominadas matérias do ensino, dado que a transmissão de conteúdos requer todo um conjunto de ações e procedimentos dos agentes do processo educativo, docentes e profissionais da saúde articulados entre si. Nesse sentido, pode–se reafirmar a necessidade do compromisso de todos os docentes e profissionais de saúde na formulação da proposta educativa(5).

Convivendo com as enfermeiras clínicas, a integração entre enfermeira docente e enfermeira clínica pressupõe abertura ao diálogo e à aceitação de divergências, para que os sujeitos desse relacionamento possam construir experiência de qualidade.

O ser-com é uma maneira de se relacionar, sentir, pensar, atuar, viver com seus pares no mundo, partilhando com os outros. Esse coexistir, estar-com o outro, possibilita as condições para compreender a experiência do outro e ver o que ele vê através de seus gestos, de seu modo de ser, de sua linguagem(8).

Entre os vários modos que o ser humano utiliza para se relacionar, se encontra o ser-com, no sentido do mundo, ser sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da pre-sença é mundo compartilhado; assim, o ser-em é ser-com os outros, e o ser-em-si, intramundano desses outros, é co-pre-sença(8). Para Heidegger, esse relacionamento com o outro é essencial, pois somos seres-de-relacionamento.

A enfermeira docente se reconhece no mundo como um ser que comparte experiências. O relacionamento com a enfermeira clínica se enquadra no respeito pelas colegas e pelo seu espaço de trabalho, mantendo o contato e a comunicação, independentemente da idade ou experiência dessa. Através de comum acordo, se distribuem, entre os estudantes, a carga clínica e os pacientes.

Em pesquisa realizada em uma instituição brasileira, as autoras observaram e relataram a linha tênue existente no relacionamento enfermeira clínica e enfermeira docente, o que provoca sentimentos de choque de poder, sofrimento e resistência(11). Os discursos das docentes demonstram seus sentimentos ao partilhar seu trabalho com as enfermeiras clínicas. De igual maneira, isso acontece com a enfermeira clínica, com suas vivências e conhecimentos, que, com sua presença, compartilha com a docente.

O Dasein é o ser-no-mundo, um ser que não está só, é um ser-com (Dasein-com) e, sendo assim, um ser-de-relacionamento. Desse modo, pre-sença não é apenas estar no mundo, mas também é relacionar-se com o mundo, segundo um modo de ser predominante. No mundo, o Dasein está inserido em um contexto de fato(8).

Tudo é ser sempre, ser-consigo mesmo em solidão ou isolamento, o mundo é sempre partilhado, o viver é sempre uma vivência(8). Mesmo quando o ser-aí da docente se isole de outros, ou consiga um modo de viver sem eles, ele está num modo de ser-com, em um relacionamento deficiente de ser-com.

A enfermeira, no seu "que fazer" profissional, utiliza sua história, seu modo de ser, seu viver, sua experiência, que se expressa nos discursos, onde as docentes relatam como tem sido seu desenvolvimento profissional com o passar do tempo e da experiência adquirida.

Em estudo realizado sobre as enfermeiras clínicas que estão com estudantes de enfermagem, elas também sentem a pressão pela necessidade de estarem atualizadas quanto à teoria(12). A docente deve manter-se atualizada nos seus conhecimentos práticos e habilidades na execução do cuidado para poder estar-com a enfermeira clínica, no sentido de estar sempre sendo.

Estar situado implica que uma pessoa tem um passado, um presente e um futuro e que todos os aspectos influenciam a situação atual. As pessoas entram em uma situação com seu próprio conjunto de significados, costumes e perspectivas. O cuidar do presente é alimentado pelos significados do passado, e enriquecido pela antecipação do futuro. O futuro é o presente que está por vir, e o que interessa no cuidado é o agora. É o crescimento durante a ação(13).

Considera-se que a sensibilidade, a intuição e a empatia constituem formas de acesso ao outro e, portanto, possibilitam descrição reveladora e doadora de significados no que se refere ao estar do outro naquilo que se mostra através de sua experiência vivida. Por isso, não é um comportamento que possa ser adotado à vontade, mas que está determinado por convicções, valores e necessidades arraigadas no pessoal. Tem a ver com o que se pensa, sente, com o que se faz; tem a ver com o que se é. A coparticipação dos sujeitos em experiências vividas em comum permite-lhes compreendê-las e interpretá-las.

Heidegger, além de contribuir com o conceito de ser no mundo, desenvolve o conceito de cuidado: de ser com os outros no mundo, preocupação pelos outros. Para Heidegger, "cuidado" tem duplo significado, e esses dois significados apresentam duas possibilidades conflitantes e fundamentais(8). Segundo esse fenomenólogo, somos seres-de-cuidados.

Cuidado também abrange o significado de interesse ou cuidar de, tendo, atendendo, preocupando-se por nossos pares, como sentido oposto ao mero cuidado deles. Então, ser docente no ensino do cuidado, do ponto de vista da formação, é o que determina um relacionamento próprio ou autêntico com os outros.

O cuidado que realiza a docente se expressa como um deixar que os sujeitos em formação mostrem seu verdadeiro ser, como um deixar-lhes ser, um cuidar para que todos os estudantes se mostrem no seu ser, cheguem a ser o que são. Isso pode se traduzir em que a docente de enfermagem ajuda aos estudantes em formação para que se desenvolvam em todas as potencialidades e possibilidades do ser(14). O docente então, que se envolve com o cuidado, sabe que será capaz de ajudar ao outro a crescer a seu próprio ritmo, e será responsável pelo crescimento e desenvolvimento dos seus estudantes(13). Assim, o relacionamento da enfermeira docente com o estudante não é de dominação, mas de convivência; não é somente de intervenção, mas de interação, para poder assumir sua própria existência e transcender em seu ser.

As atividades docentes refletem, ainda, uma prática muito tecnicista. Diversas vezes, a docente se sobrecarrega de atividades buscando agradar a seus estudantes, às enfermeiras clínicas e ao paciente. Quando o cuidado é inautêntico, a enfermeira docente cuida das necessidades do estudante de maneira funcional. Esse tipo de cuidado requer poucas qualidades, principalmente de restrição, de maneira a fazer bem o serviço. Isso a leva a considerar os estudantes como "coisas" das quais cuida, desconhecendo que eles são próprios e orientados aos outros. Daí o estudante não é objeto de serviço, mas de interesse(15).

Estudo realizado sobre a experiência das enfermeiras clínicas com os estudantes de enfermagem demonstrou que o relacionamento de cuidado, descrito pelas enfermeiras docentes, é o mesmo que se observa no presente estudo. O relacionamento de cuidado que se observa na docente está presente de igual maneira na enfermeira clínica, quando essa permite ou não ao estudante desenvolver todas suas potencialidades(12).

A formação do estudante requer habilidades técnicas, mas também afetivas. Conseguir esses aspectos exige mais. Só a transmissão de conteúdos das matérias de ensino implica incorporar um ato de cuidado amplo, sustentado na referência do relacionamento pessoal. Ou seja, agregando as ações do cuidar em enfermagem à atenção pelo outro, o compromisso para com o outro, o respeito e a empatia.

Estar com estudantes em seu processo de formação traz consigo responsabilidade e compromisso, compartilhados entre os três atores: docente, enfermeira clínica e estudante. Nesse sentido, pode-se reafirmar a necessidade de compreensão por parte de todos os profissionais de saúde e profissionais da academia na formulação de propostas educativas.

Considerações finais

Desvelar o fenômeno da experiência de ser docente de enfermagem, que, nos campos de prática clínicos atua com estudantes de graduação, permitiu compreender a relevância do processo educativo nos atributos de modos de ser, comunicação, afeto, linguagem, tempo, espaço, entre outros.

A enfermeira docente como ser-aí tem a possibilidade de transcender o estar-com-o-outro no mundo, compreendendo o outro em sua existência e seu mundo e, ao mesmo tempo, tendo a possibilidade de transformar esse mundo porque permanentemente está sendo.

Formar um novo profissional de enfermagem é tarefa complexa que requer do docente competências relacionadas, não somente aos seus saberes, mas também às habilidades adquiridas de sua própria vivência enquanto ser. Habilidades essas que serão aplicadas em tempo real, em ambiente complexo como é o campo clínico, ambiente que contempla necessariamente o relacionamento com o paciente, estudante, enfermeira clínica e equipe de saúde.

Como docentes de enfermagem, as autoras, aqui, consideram que a produção de conhecimento é gerada a partir da educação. Nesse processo educativo, há que se considerar o gesto criador que resulta do homem ao estar no mundo e relacionar-se com ele, o que lhe possibilita transformá-lo e, nesse processo, transformar-se. Por outro lado, a difusão do saber favorece a reflexão da equipe docente e da enfermeira sobre o significado educativo de sua função, identificando temas a serem melhorados no processo de cuidar dos estudantes e pacientes.

É necessário ampliar as pesquisas sobre esse tema já que, como se viu, essa é uma parte importante do processo de aprendizagem do futuro profissional de enfermagem. Além disso, ao revisar a produção disponível no âmbito sul-americano sobre a temática apresentada, enfrentam-se dificuldades para encontrar pesquisas semelhantes com vistas ao enriquecimento da discussão apresentada.

Da mesma forma, entende-se que é tarefa das universidades a busca constante pela aproximação docente/assistencial, como elemento construtor e facilitador do processo de ensino, tendo como objetivo a formação de novos profissionais de enfermagem que, em seu atuar, tenham consigo as bases de um cuidado autêntico, e envolvam nesse cuidado o docente, o estudante de enfermagem e o paciente, como integrantes ativos de sua importante função.

Referencias

Recebido: 15.9.2010

Aceito: 9.2.2011

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  • Endereço para correspondência:

    Lorena Bettancourt
    Universidad de Valparaíso
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    Valparaiso, Chile
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Out 2011

    Histórico

    • Aceito
      09 Fev 2011
    • Recebido
      15 Set 2010
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