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A dinâmica familiar na visão de pais e filhos envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes

Resumos

Nesta investigação buscou-se compreender a dinâmica familiar para pais e filhos envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes institucionalizados no Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vitimizado (CACAV), na cidade de Ribeirão Preto, SP. O estudo é qualitativo, utilizando-se de entrevistas semi-estruturadas aplicadas a seis famílias, entre pais e filhos envolvidos na violência doméstica. Tratou-se os dados através da análise de conteúdo. Utilizou-se, como referencial teórico, a ecologia do desenvolvimento humano. A violência doméstica esteve presente nos discursos, embora seja compreendida como prática usual para essas famílias. Identificou-se que a ótica dos pais favorece a negação da violência perpetrada. Já as crianças apontam que vínculos de amor e afeição são mais significativos para seu desenvolvimento do que os vínculos familiares estabelecidos por meio de consangüinidade. Acredita-se que, a partir do conhecimento de como a violência é experienciada, pode-se trazer possíveis contribuições para se pensar estratégias de intervenção capazes de romper o ciclo perverso das relações familiares violentas.

violência doméstica; família; criança; adolescente


We sought, in this investigation, to understand the family dynamics in the view of parents and children involved in Domestic Violence against children and adolescents institutionalized in the Center of Assistance to the Victimized Child and Adolescent (CACAV), in Ribeirão Preto-SP, Brazil. This is a qualitative study with semi-structured interviews applied to parents and children from six families involved in domestic violence. The data were analyzed through content analysis. Ecology of human development was used as theoretical reference. Domestic violence was reported, though it is understood as common practice for the families. We identified that the parents' view favors the denial of the violence perpetrated. The children, on the other hand, point that love ties and affection are more significant for their development than blood relations. We believe that the knowledge acquired as how violence is experienced, can contribute with intervention strategies capable of breaking the perverse cycle of violent family relationships.

domestic violence; family; child; adolescent


En esta investigación, buscamos comprender la dinámica familiar para padres y hijos involucrados en Violencia Doméstica contra niños y adolescentes institucionalizados en el Centro de Atención al Niño y al Adolescente Víctima (CACAV), en Ribeirão Preto-SP, Brasil. El estudio es cualitativo, utilizándose entrevistas semiestructuradas aplicadas a seis familias, entre padres y hijos involucrados en violencia doméstica. Tratamos los datos a través del análisis de contenido. Utilizamos como referencial teórico la ecología del desarrollo humano. La violencia doméstica estuvo presente en los discursos, aunque sea comprendida como práctica usual para esas familias. Identificamos que la óptica de los padres favorece la negación de la violencia perpetrada. Los niños apuntan que vínculos de amor y afección son más significativos para su desarrollo que los vínculos familiares establecidos mediante consanguinidad. Creemos que, a partir del conocimiento de como la violencia es vivida, podemos traer posibles contribuciones para pensar estrategias de intervención capaces de romper el ciclo perverso de las relaciones familiares violentas.

violencia doméstica; familia; niño; adolescente


ARTIGO ORIGINAL

A dinâmica familiar na visão de pais e filhos envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes

Camilla Soccio MartinsI; Maria das Graças Carvalho FerrianiII; Marta Angélica Iossi SilvaIII; Nide Regina ZahrIV; Kátia Michelli Bertoldi AroneIV; Eliana Mendes de Souza Teixeira RoqueV

IEnfermeira, Doutoranda, e-mail: camilla@eerp.usp.br

IIOrientador, Professor Titular. e-mail: caroline@eerp.usp.br

IIIProfessor Doutor; e-mail: maiossi@eerp.usp.br

IVGraduanda do curso Bacharelado em Enfermagem, Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, e-mail: nideusp@yahoo.com.br

VBacharel em Direito, Assistente Social do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Brasil, Doutoranda, e-mail: caroline@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil

RESUMO

Nesta investigação buscou-se compreender a dinâmica familiar para pais e filhos envolvidos na violência doméstica contra crianças e adolescentes institucionalizados no Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vitimizado (CACAV), na cidade de Ribeirão Preto, SP. O estudo é qualitativo, utilizando-se de entrevistas semi-estruturadas aplicadas a seis famílias, entre pais e filhos envolvidos na violência doméstica. Tratou-se os dados através da análise de conteúdo. Utilizou-se, como referencial teórico, a ecologia do desenvolvimento humano. A violência doméstica esteve presente nos discursos, embora seja compreendida como prática usual para essas famílias. Identificou-se que a ótica dos pais favorece a negação da violência perpetrada. Já as crianças apontam que vínculos de amor e afeição são mais significativos para seu desenvolvimento do que os vínculos familiares estabelecidos por meio de consangüinidade. Acredita-se que, a partir do conhecimento de como a violência é experienciada, pode-se trazer possíveis contribuições para se pensar estratégias de intervenção capazes de romper o ciclo perverso das relações familiares violentas.

Descritores: violência doméstica; família; criança; adolescente

INTRODUÇÃO

O enfrentamento da violência na família constitui tarefa complexa na sociedade atual, com suas características e dimensões peculiares em relação a vários aspectos sociais, morais, geopolíticos, históricos, econômicos e psicológicos. Razão pela qual se torna pertinente aprofundar os estudos acerca desse fenômeno, uma vez que suas conseqüências são desastrosas e repercutem em todos os segmentos da sociedade, inclusive no que diz respeito ao agravo à saúde.

A família tem sido foco de preocupação e cuidado para a área de enfermagem, pois seu papel é de extrema relevância nas estratégias preventivas na área da saúde, no planejamento e na assistência à criança e ao adolescente. De certa forma, o cuidado centrado na família envolve todos os seus membros e uma importância especial é dada nas relações estabelecidas entre eles, entendida como um dos determinantes do processo saúde-doença.

O fato de a violência ocorrer no meio doméstico pode levar à desestruturação familiar, cuja manutenção é referência para o desenvolvimento afetivo, psicológico e social. Pode-se dizer que a violência doméstica rompe o vínculo de confiança básica para o desenvolvimento da vida em família, entrando na seara das relações familiares e seus significados.

A violência doméstica é geralmente caracterizada por abuso do poder disciplinador e coercitivo dos pais, ou responsável, em que a vítima é completamente objetificada, e seus direitos fundamentais como a vida, a liberdade e a segurança são desrespeitados(1). Essa violência traz em si noções culturais e socialmente construídas, tais como a noção de proteção à infância, de castigo como instrumento pedagógico, hierarquia familiar e de dominação do mais forte(2).

Embora esse tipo de violência seja fenômeno de difícil entendimento pelas controvérsias que gera, pode-se classificá-lo em suas formas e expressões. São quatro principais tipos de violência: violência física, violência sexual, violência psicológica e a negligência/abandono. Todas essas formas são definidas como práticas abusivas, transgredindo os direitos de crianças e adolescentes(3).

As equipes de saúde, assim como outras especialidades, vivenciam cotidianamente os efeitos da violência doméstica e suas conseqüências, interferindo no crescimento e desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Portanto, é com a perspectiva de produzir conhecimento, a partir do senso comum, para sistematizá-lo em um perspectiva sociológica e psicossociológica, visualizando o significado da dinâmica familiar para pais, filhos e/ou responsáveis, vítimas da violência doméstica, foi realizada esta pesquisa, para possibilitar, também, ao profissional repensar suas práticas e facilitar seu trabalho no enfrentamento desse fenômeno.

OBJETIVO

Compreender a dinâmica familiar para pais e filhos envolvidos no episódio da violência doméstica contra crianças e adolescentes institucionalizados no Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente Vitimizado (CACAV), na cidade de Ribeirão Preto, SP.

REFERENCIAL TEÓRICO

Para entender melhor como a família se configura diante da violência doméstica de maneira ampla e sistêmica, esta análise foi embasada em um recorte do modelo ecológico do desenvolvimento humano(4).

O estudo das relações sociais violentas dentro da família requer estrutura teórica capaz de explicar as variáveis causais no seu contexto mais amplo. Nesse sentido, a Teoria de Bronfenbrenner dos Sistemas Ecológicos(4) traz subsídios para compreender a família em seu contexto de desenvolvimento e as complexas relações entre seus membros.

O termo "ecológico" é empregado para designar um ambiente natural, objetos e atividades da vida cotidiana no contexto da pesquisa. Já o desenvolvimento humano é entendido como transformação duradoura na maneira pela qual uma pessoa percebe e lida com o seu ambiente, sendo o ser humano considerado uma entidade em crescimento e dinâmica, que progressivamente penetra no meio em que reside e o reestrutura.

Segundo esse referencial, o microssistema é um conjunto de papéis desempenhados e relações interpessoais experienciadas pela pessoa em desenvolvimento num dado ambiente com características físicas e materiais específicas.

O microssistema é o primeiro ambiente que o ser humano em desenvolvimento se insere, de acordo com os padrões societais. Esse ambiente possui atividades e relacionamentos que são associados a determinados comportamentos e expectativas como, por exemplo, a relação da mãe com a criança. Fatos ocorridos em um microssistema estão relacionados e se entrelaçam com o que acontece em outros microssistemas.

Como um sistema de encaixes contidos uns nos outros, o microssistema está inserido em sistemas mais amplos que o influenciam e é por eles influenciado. Os demais sistemas são denominados: mesossistema, exossistema e macrossistema.

O mesossistema constitui-se na interação de dois ou mais ambientes em que a pessoa participa ativamente. Então, um mesossistema é um sistema de microssistemas.

Já o exossistema compreende os ambientes nos quais apenas um ou mais membros da família mantêm relações diretas. No entanto, essas relações se refletem indiretamente nos outros membros que não participam desse ambiente(4).

O macrossistema é o sistema mais amplo e abrange todos os outros. Ele é formado por um padrão global de ideologias, crenças, valores e organização social comum a uma determinada cultura.

As políticas sociais de combate à violência e de promoção de educação e saúde são exemplos de macrossistemas que influenciam diretamente o desenvolvimento do sistema familiar. A violência doméstica se insere no microssistema, pois se manifesta nas relações pais-filhos, contudo, pode ter essencialmente suas causas e conseqüências no sistema subseqüente ou até mesmo no macrossistema.

De acordo com o exposto acima, julgou-se de fundamental importância, nesta pesquisa, a compreensão, pelo ponto de vista da criança e adolescente e não só apenas dos pais, de como o ambiente familiar é experienciado nos diversos níveis de desenvolvimento ecológico.

MÉTODOS

Optou-se pela abordagem qualitativa que abarca a totalidade dos seres humanos, concentrando-se na experiência humana. O pesquisador que usa essa abordagem acredita que seres humanos únicos atribuem significados a suas experiências e que elas derivam do contexto de vida(5).

O recorte desta pesquisa se dá no Centro de Atendimento à Criança e Adolescente Vitimizados (CACAV) na cidade de Ribeirão Preto, SP, um abrigo para crianças e adolescentes de 2 a 17 anos, vítimas de violência doméstica em risco grave. De acordo com o referencial teórico, o abrigo é considerado o microssistema imediato dessas crianças e adolescentes vitimizados. Acredita-se que o microssistema delineia, a partir de aspectos relacionais e comportamentais, a compreensão acerca da família para esses atores sociais.

Os sujeitos envolvidos no estudo foram membros das famílias que possuem criança(s) e/ou adolescente(s) institucionalizado(s) no CACAV, no ano 2004, por estarem envolvidos nos episódios de violência doméstica, totalizando oito famílias. Todos esses atores sociais são de importância central para a presente pesquisa, pois cada um representa uma faceta da problemática da violência doméstica aqui estudada.

Elegeu-se como instrumento de coleta de dados a entrevista semi-estruturada e identificou-se as entrevistas dos pais/responsáveis e irmãos das crianças e adolescentes abrigados com a letra F, representando a família. Por sua vez, as entrevistas das crianças e adolescentes abrigados serão identificadas com a letra A.

Utilizou-se, para o tratamento dos dados, a técnica de análise de conteúdo, modalidade temática(6). Essa técnica consiste em classificar elementos que compõem a entrevista constituindo-se em núcleos temáticos sob um título genérico, agrupando os assuntos em comum.

Esclarece-se, aqui, que esta pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto - USP, Protocolo nº 0120/2000, conforme a resolução 196, de 1996, do Conselho Nacional de Saúde. Só foram utilizadas neste estudo as entrevistas devidamente autorizadas.

RESULTADOS

Núcleo temático - o contexto familiar

Na tentativa de elucidar a dimensão e a complexidade do tema abordado através das falas dos sujeitos entrevistados, este núcleo foi configurado em dois subtemas: família ideal e família real.

Subtema 1 - família ideal

Neste subtema procurou-se agrupar definições de família, de uma perspectiva ideal, identificados nos discursos dos sujeitos envolvidos no estudo.

Quanto à configuração familiar, a visão dos pais agressores traduz-se na família nuclear, ou seja, a idealização de uma família vinculada aos pais biológicos e laços consangüíneos. Destaca-se também a existência de uma relação hierárquica deles sobre os filhos. Em um estudo com famílias brasileiras de baixa renda constatou-se que o modelo idealizado de família é aquele baseado no parentesco, na família nuclear burguesa onde predomina a estrutura do pai, mãe e filhos. Somente esse modelo é capaz de prover as condições necessárias para o desenvolvimento de uma criança(7). O relato abaixo demonstra essa idealização.

Um conjunto de pessoas que tem algum vínculo sangüíneo( F5).

Algumas pesquisas no Brasil sobre família mostram a diversidade na sua organização, composição e forma de sociabilidade. Atualmente existem estruturas familiares diferentes coexistindo em nossa sociedade, e pode-se encontrar cônjuges com filhos de casamentos anteriores, jovens mães solteiras e pais separados dividindo as despesas e cuidados com os filhos(8). Embora tenham ocorrido todas essas mudanças na composição da família afetando substancialmente a vida doméstica, incidindo sobre as relações estruturais e definindo o modelo familiar, os pais agressores mantêm a visão nuclear de família, ou seja, aquela composta por pai, mãe e filhos. Entende-se que essa concepção de família ainda permanece social e culturalmente estabelecida em nossa sociedade.

A maioria das crianças e adolescentes entrevistadas, por seu lado, considera como membros de sua família aqueles pelas quais nutre algum sentimento de afeição e de confiança, estando vinculada mais ao sentimento de amor do que aos laços de sangue. As falas seguintes mostram isso.

Considero minha família todos que me ajudam, que ainda tem uma esperança por mim (A1).

Pessoas com quem eu convivo eu também considero como irmão, como as pessoas aqui do abrigo (A4).

De acordo com a análise das entrevistas, pode-se dizer que, em decorrência da violência doméstica, ou pelo fato de estarem institucionalizados provisoriamente, as crianças e adolescentes constroem uma determinada visão sobre família fundamentada em uma perspectiva ecológica e psicológica.

Quanto à função da família, tanto as crianças e adolescentes como seus pais e responsáveis carregam consigo uma carga de expectativas. Esperam que ela seja capaz de fornecer todo um aparato afetivo e social para o desenvolvimento dos seus membros em níveis do macro e do microsistema, a família é vista como instituição sólida e saudável. Isso pode ser evidenciado na fala.

... família é união, é amor, é carinho, é compreensão e respeito... (F3)

A complexa situação de crise social e econômica pode provocar modificações nos padrões sociais aceitos pelas pessoas, particularmente nas identificações de família. Pode-se evidenciar isso na fala seguinte.

Eu queria ter uma família como era antes, meu pai era rico e eu tinha bicicleta e o Papai Noel foi lá em casa e levou duas caixas de bolacha (A6).

A relação de bens materiais com o conceito de família pode ser explicado no contexto da institucionalização, onde muitos dos casos de abrigamento têm como pano de fundo dificuldades financeiras, que findam por determinar a própria dissolução da unidade familiar.

As determinações sociais da violência possuem espectro muito amplo de desenvolvimento, a pobreza em si não explica a violência, mas cria ou facilita a delinqüência e o banditismo, numa economia marcadamente desempregadora, seletiva e excludente(9).

A idealização dos papéis dos pais, quando esses estão ausentes, também é fator marcante. A institucionalização, de alguma forma e em algumas situações, contribui para preservar uma imagem de pais compreensivos e cuidadosos. Há necessidade constante das crianças e adolescentes de valorizar as pessoas ausentes.

Outro enfoque que vale ressaltar é a visão, de uma perspectiva ideal, de como os filhos deveriam ser educados pelos pais. A maioria dos discursos tanto das crianças como dos adultos gira em torno de que a melhor maneira de educar os filhos é por meio do diálogo, onde a agressão física nunca deveria estar presente.

Esse fato pode ser indicador de proteção ao favorecer essas famílias a repensar suas atitudes sobre a disciplina a ser adotada na criação de seus filhos, uma vez que já foram agressores e vítimas em potencial.

Para as crianças, há expectativa em relação à maneira de disciplinar e de educar seus futuros filhos. Os discursos mostram a necessidade de romper com o modelo educacional praticado pelos pais. A princípio, condenam a punição corporal e mencionam o desejo de adotar outras formas disciplinares como o diálogo e a punição restritiva

Eu trataria meus filhos muito diferente da minha mãe, totalmente. Seria muito atenciosa (F1).

Subtema 2 - família real

Quando se observa as relações interpessoais das famílias em estudo, a idéia inicial da família ideal é logo substituída por uma visão que está de acordo com a dura realidade da violência submetida.

As crianças e adolescentes afirmaram, no subtema anterior, que a família representava união e fonte de carinho. Nos discursos, pode-se apreender que o microssistema familiar se caracteriza pela presença de situações de perda, abandono, afastamento e abuso.

Nos achados, desta pesquisa, observa-se considerável dificuldade em relação à autoridade nas inter-relações familiares. A figura da mãe não consegue impor autoridade e limites, cabendo isso ao pai que, por sua vez, pode não estar presente para exercê-la, fazendo com que o microssistema familiar da criança seja deficiente no que se diz respeito à colocação de limites.

Coerentemente com o referencial teórico, aqui usado, verificou-se que a falta de um sistema de apoio, que ofereça respaldo por meio de orientações familiares adequadas, também favorece os conflitos, como se apreende a seguir.

O Conselho Tutelar falou pra mim que bater e espancar o filho não pode, então eu não sei como é que a gente faz porque o dia que a polícia trouxe ele aqui, disse que eu tinha que dar um corretivo nele (F2).

A rede de apoio se caracteriza por um conjunto de sistemas e de pessoas significativas que participam do contexto familiar e que é percebido pelo indivíduo. A ausência desse tipo de rede pode desencadear fatores de risco para o desenvolvimento do microssistema familiar.

Não se pode deixar de mencionar que, para alguns abrigados, a dificuldade em definir família, seja ela no contexto ideal ou real, esteve presente. Pode-se explicar tal ocorrência pelo fato de essas crianças e adolescentes viverem um processo denominado triangulação, ou seja, eles estão constantemente sendo abrigados diversas vezes, fogem para rua tanto de suas casas como do abrigo e essa dinâmica triangular rua/casa/instituição implica em desvinculamento dessas crianças e adolescentes com o sentimento de família. Também pode-se apreender que a institucionalização concorre para o enfraquecimento desse referencial de origem.

Diante das considerações apontadas nesse subtema, pensar sobre sua realidade, de forma consciente, poderá auxiliar essas crianças e adolescentes a desenvolverem a resiliência familiar e buscarem relações baseadas na estabilidade e reciprocidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde a Antigüidade e, sobretudo, na atualidade, a família representa o espaço prioritário e o alicerce onde se estabelecem as oportunidades de socialização, bem-estar e proteção nas relações humanas. As características de cada núcleo familiar, sua constituição, condições e qualidade de vida a que está submetido impõe a esse núcleo um maior ou menor grau de vulnerabilidade e, conseqüentemente, maior ou menor grau de empoderamento.

A realidade da vida moderna nos impõe um conjunto de fatores de ordem moral, social, econômica, política e cultural que concorrem para que a família e a sociedade se organizem, muitas vezes, desrespeitando os princípios e valores fundamentais da vida e da convivência humana. A família configura-se, assim, como espaço que reproduz cotidianamente o poder de hierarquia e subordinação do dominante sobre o dominado, do domínio de adultos sobre crianças.

Em que pese os avanços alcançados até o momento, ainda prevalece uma permissividade social e política ao redor da violência contra crianças e adolescentes, a qual impede que esse problema seja detectado e se assista e intervenha de maneira oportuna.

Constatou-se que a dinâmica familiar é concebida a partir de referenciais de singularidade da violência experienciada, expressado através da negação dessa ou de sua naturalização. Os discursos transitam entre o imaginário de uma família ideal e a realidade de uma família concreta, cotidiana, permeada pela violência e, muitas vezes, não dispõe nem de recursos financeiros suficientes ou rede de apoio como suporte material que facilite a elaboração de seus problemas e sua intervenção.

Sabe-se que o serviço de saúde é espaço privilegiado para se atuar no campo da violência doméstica e que são encontradas inúmeras dificuldades em lidar com o fenômeno por parte dos profissionais da área. Entre algumas dessas dificuldades está o desconhecimento e despreparo desses profissionais para identificação, atendimento e encaminhamento das vítimas, a dificuldade em proceder à notificação dos casos confirmados e a inabilidade em lidar com os agressores.

Para isso, é necessário fortalecer e criar novos espaços de atenção às vítimas, com equipes multidisciplinares, dentro da lógica de rede de atenção e apoio que, também, na visão dos atores sociais, deve incluir maior empenho e compromisso político para a sua efetivação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 11.7.2006

Aprovado em: 7.5.2007

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  • 5. Wood GL, Haber J. Pesquisa em Enfermagem: métodos, avaliação crítica e utilização. 4Ş ed. Rio de Janeiro (RJ): Guanabara Koogan; 2001.
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  • 8. Romanelli G. Autoridade e poder na família. In: Carvalho MCB, organizadora. A família contemporânea em debate. 2 ed. São Paulo (SP): EDUC/Cortez; 1995.
  • 9. Roque EMST, Ferriani MGC. Desvendando a violência doméstica contra crianças e adolescentes sob a ótica dos operadores do direito na comarca de Jardinópolis-SP. Rev Latino-am Enfermagem 2002 maio; 10(3):334-44.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2006
  • Aceito
    07 Maio 2007
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