Acessibilidade / Reportar erro

A prática clínica do enfermeiro na atenção básica: um processo em construção

Resumos

Este estudo objetivou apresentar o movimento de ressignificação dos sentidos da prática clínica de enfermeiros, na atenção básica, em processo de qualificação, na perspectiva da clínica ampliada e educação permanente. Realizou-se pesquisa-intervenção aprovada em comitê de ética. Nove enfermeiros participaram do grupo de reflexão, de setembro a dezembro de 2008, em Ribeirão Preto, SP, Brasil. Cartografou-se o processo de ressignificação dos sentidos proposto pela análise institucional. Os resultados apontam que os enfermeiros percebem diferenças no fazer clínico, ao reconhecer o sentido da clínica centrada no usuário, os limites e tensões do cotidiano e a necessidade de respaldo da gerência e da equipe para o manejo de situações e problemas dos usuários. Identificou-se a necessidade de abrir espaço na agenda para realizá-la. Conclui-se que a prática clínica do enfermeiro vem se consolidando e que processos coletivos de análise possibilitam aprendizagens e reconstrução das práticas.

Enfermagem em Saúde Pública; Atenção Primária à Saúde; Aprendizagem; Trabalho; Conhecimentos, Atitudes e Práticas em Saúde


This study aims to present the re-signification process of the meanings of nurses' clinical practice in primary care from the perspective of extended clinic and permanent education. An intervention research was carried out with the approval of an ethics committee. Nine nurses participated in reflection groups from September to December 2008 in Ribeirão Preto-SP-Brazil. The redefinition process of the meanings proposed by the institutional analysis was mapped. The results point out that the nurses perceive differences in clinical work, by acknowledging the sense of user-centered clinical practice; daily limits and tensions and the need for support from managers and the team to deal with users' problems and situations. They identify the necessity to open space in the schedule to do that. It was concluded that nurses' clinical practice is being consolidated, and that collective analysis processes permit learning and the reconstruction of practices.

Public Health Nursing; Primary Health Care; Learning; Work; Health Knowledge, Attitudes, Practice


Este estudio tuvo por objetivo presentar el movimiento de dar nuevo significado a los conceptos de la práctica clínica de enfermeros en la atención básica en proceso de calificación en la perspectiva de la clínica ampliada y educación permanente. Realizamos una investigación-intervención aprobada en comité de ética. Nueve enfermeros participaron del grupo de reflexión, de septiembre a diciembre de 2008, en Ribeirao Preto, SP, en Brasil. Cartografiamos el proceso dar nuevo significado a los conceptos propuesto por el análisis institucional. Los resultados apuntan que los enfermeros perciben diferencias en el quehacer clínico, al reconocer el sentido de la clínica centrada en el usuario, los límites y tensiones de lo cotidiano y la necesidad de obtener soporte de la administración y del equipo para el manejo de situaciones y problemas de los usuarios. Identifican que necesitan abrir espacio en la planificación para realizarla. Concluimos que la práctica clínica del enfermero se viene consolidando y que los procesos colectivos de análisis posibilitan aprendizajes y la reconstrucción de las prácticas.

Enfermería en Salud Pública; Atención Primaria de Salud; Aprendizaje; Trabajo; Conocimientos, Actitudes y Práctica en salud


ARTIGO ORIGINAL

IEnfermeiras, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: Silvia - smatumoto@eerp.usp.br, Cinira - fortuna@eerp.usp.br

IIEnfermeira, Doutoranda, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. Professor Assistente, Universidade Federal de Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: lsuemi@hotmail.com

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Titular, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: smishima@eerp.usp.br

IVEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: zezebis@eerp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Este estudo objetivou apresentar o movimento de ressignificação dos sentidos da prática clínica de enfermeiros, na atenção básica, em processo de qualificação, na perspectiva da clínica ampliada e educação permanente. Realizou-se pesquisa-intervenção aprovada em comitê de ética. Nove enfermeiros participaram do grupo de reflexão, de setembro a dezembro de 2008, em Ribeirão Preto, SP, Brasil. Cartografou-se o processo de ressignificação dos sentidos proposto pela análise institucional. Os resultados apontam que os enfermeiros percebem diferenças no fazer clínico, ao reconhecer o sentido da clínica centrada no usuário, os limites e tensões do cotidiano e a necessidade de respaldo da gerência e da equipe para o manejo de situações e problemas dos usuários. Identificou-se a necessidade de abrir espaço na agenda para realizá-la. Conclui-se que a prática clínica do enfermeiro vem se consolidando e que processos coletivos de análise possibilitam aprendizagens e reconstrução das práticas.

Descritores: Enfermagem em Saúde Pública; Atenção Primária à Saúde; Aprendizagem; Trabalho; Conhecimentos, Atitudes e Práticas em Saúde.

Introdução

Estudou-se, aqui, a prática clínica do enfermeiro na atenção básica brasileira, entendendo-a como prática social, isto é, aquela realizada a partir de necessidades sociais de cada momento histórico e que se constitui e se transforma na dinâmica das relações com outras práticas(1).

Na década de 70, período da Programação em Saúde, no Estado de São Paulo, a atenção à saúde se estruturava através de programas e os enfermeiros atuavam em centros de saúde, desenvolvendo ações preferencialmente gerenciais, de supervisão, treinamento, controle e coordenação do pessoal de enfermagem(2). Nas décadas 80-90, a expansão do acesso aos serviços e a proposta de articular a atenção médica individual com ações de saúde coletiva resultaram, predominantemente, em ações do tipo pronto atendimento, e o trabalho dos enfermeiros voltava-se à organização e manutenção da infraestrutura do serviço para o atendimento médico, a organização do trabalho da enfermagem e algumas ações de saúde coletiva como vacinação e vigilância epidemiológica(1,3).

O processo de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), direcionado por seus princípios e pelo conceito de saúde como produção social, compõe o contexto de ressignificação do trabalho do enfermeiro no âmbito da atenção básica. Está previsto, dentre suas atribuições, não só o trabalho de administração e de organização do serviço de saúde e enfermagem, mas, também, a realização de ações clínicas de atenção direta ao usuário. Apesar disso, as práticas de enfermagem têm se configurado mais centradas no pronto atendimento e na produção de procedimentos(1). Há, portanto, necessidade de revisão da prática clínica do enfermeiro, para que essa prática se constitua integral e resolutiva, centrada no usuário, considerando sua singularidade e respeitando a autonomia do sujeito que necessita de cuidados(4-5).

O trabalho de enfermagem tem a função de prestar assistência ao indivíduo sadio, ou doente, família e comunidade, desempenhando atividades para promoção, manutenção e recuperação da saúde, assim, contribuindo com a implementação e consolidação do SUS(5).

O Ministério da Saúde propõe a atenção básica como eixo da organização do sistema de saúde e a Saúde da Família (SF) como estratégia prioritária para promover mudanças nas práticas de saúde, orientadas pelos princípios do SUS(4).

Para a enfermagem, a Estratégia da Saúde da Família representa possibilidade de reorientar suas ações em direção às necessidades de saúde dos usuários e não para a racionalização do trabalho do profissional médico. A prática de enfermagem, nessa perspectiva, se direciona para sua finalidade específica, o cuidado de enfermagem(6).

O enfermeiro, ao desempenhar seu papel social de cuidador, vive as tensões próprias da produção dos atos de saúde - a produção de procedimentos versus a produção de cuidado. Estabelece relações intercessoras com o usuário, necessitando incorporar, em sua caixa de ferramentas, tecnologias leves(7) como a escuta, o acolhimento, o vínculo, a responsabilização, e habilidades para lidar com os altos graus de incerteza intrínseca desse trabalho. Além de que, no papel de gestor do projeto terapêutico, o enfermeiro vive as tensões características da articulação dos diversos núcleos de saberes e responsabilidades dos diferentes profissionais envolvidos no projeto terapêutico. Isso é, vive a tensão entre o trabalho em equipe versus o trabalho especializado mais individualizado(7).

Assim, sintetizou-se, aqui, o trabalho do enfermeiro na atenção básica, na dupla dimensão assistencial e gerencial: voltado para o indivíduo - produção do cuidado de enfermagem e gestão de projetos terapêuticos - e para o coletivo - monitoramento da situação de saúde da população, gerenciamento da equipe de enfermagem e do serviço de saúde para a produção do cuidado. As ações gerenciais são predominantes dentre as práticas do enfermeiro em unidades básicas de saúde (UBS)(8); já na dimensão assistencial, a consulta de enfermagem, como prática clínica, é reconhecida como importante pelo próprio enfermeiro(9); mas permanece, principalmente na lógica da atenção clínica individual, curativa, sem ampliar a compreensão do processo saúde/doença como produção social(10-11). Acredita-se que esta pesquisa possa contribuir para a ampliação do conhecimento da dimensão assistencial do enfermeiro.

A clínica ampliada apresenta-se como ferramenta para que os processos de trabalho em saúde se voltem para a produção do cuidado centrado nos usuários, incluindo, além da doença, o sujeito em seu contexto e o âmbito coletivo. São ampliados o objeto de atenção, os meios e as finalidades. Visa a cura e o alívio do sofrimento, bem como o desenvolvimento de autonomia das pessoas para lidarem com seus problemas e condições concretas de vida, através do uso predominante de tecnologias leves e da construção dialogada entre trabalhador, usuário e sua família e equipe de saúde(12-13).

A Educação Permanente em Saúde(14) (EPS) pode ser estratégia para qualificação do enfermeiro para a clínica ampliada. A EPS opera processos de aprendizagem significativa em que o próprio trabalhador analisa seu trabalho, gerando conhecimentos sobre esse fazer, identificando potências e lacunas que, assim, mobilizam a busca por novos conhecimentos.

A EPS e a micropolítica do processo de trabalho em saúde utilizam conceitos da análise institucional que facilitam a compreensão do modo de produção do trabalho em saúde, nos aspectos objetivos e subjetivos inerentes.

Explorar a prática clínica dos enfermeiros, como objeto de estudo, conduz ao campo das instituições, ao modo como a sociedade define e reconhece o que é a enfermagem, como deve ser sua prática, instituindo regras e normas de funcionamento. Entra-se, então, no campo das identidades profissionais, campo das segmentaridades instituídas. Examinam-se seus limites, ou seja, o que é e o que não é atribuição e responsabilidade desse grupo profissional e de cada categoria que compõe a equipe de enfermagem, demarcando campo de conflitos e disputas no campo das práticas políticas, legais, jurídicas, de formação, enfim, disputas entre classes sociais, entre as diversas profissões e segmentos da sociedade e que também disputam o modo como essa mesma sociedade se mantém(15).

O funcionamento da sociedade se estrutura por meio de um sistema político global de linhas de segmentaridade. As mais lineares fixam código e território e implicam, por exemplo, em um dispositivo de poder do fazer das profissões, definem formas de deslocamentos entre os segmentos, construindo hierarquia e burocracia que se tornam muito pouco flexíveis. Ao mesmo tempo, outras espécies de linhas, denominadas circulares, desenham a segmentaridade com centralidade em um ponto, como, por exemplo, o trabalho do médico, a partir do qual orbitam os círculos das demais categorias, e, da mesma forma, fixam modos de operar, com pouca flexibilidade. Uma terceira espécie de linhas se faz presente o tempo todo no cotidiano, quase imperceptíveis: são as linhas de fuga, que surgem no ato de produção do trabalho em saúde, emaranhadas às outras linhas, abrindo espaço para a quebra do modo instituído, das rotinas cotidianas, abrindo espaço para o fazer diferente. As linhas de fuga provocam estranhamentos pela ruptura das certezas, deixando aqueles que as percebem em um estado chamado desterritorialização, estado do qual não se pode mais voltar àquele seu imediatamente anterior, pois já se é outro, algo sucedeu, procedeu-se o novo(16).

Nos serviços de saúde, os conceitos acima são subsumidos em um cotidiano tenso e conflituoso, que se produz predominantemente na manutenção de modos tradicionais de trabalhar, convivendo com frágeis movimentos de invenção de novas práticas.

Neste estudo, a centralização está na prática clínica do enfermeiro e no seu núcleo de competência e responsabilidade - o cuidado de enfermagem - indagando: como se caracteriza a clínica do enfermeiro na atenção básica? Quais seriam as dificuldades enfrentadas? Como ampliar e qualificar a prática clínica do enfermeiro na atenção básica?

O objetivo foi apresentar o movimento de ressignificação dos sentidos da prática clínica de alguns enfermeiros na atenção básica em processo de qualificação dessa prática, tendo em vista a clínica ampliada.

O caminho metodológico

O objeto de estudo desenha seu caminho metodológico de abordagem qualitativa. Utilizou-se da pesquisa-intervenção, modalidade de pesquisa participativa. As diferentes abordagens de pesquisa participativa têm em comum a participação de grupos sociais na compreensão de sua realidade e busca de soluções para seus problemas.

"Na proposta da análise institucional (...), o momento da pesquisa é o momento da produção teórica e, sobretudo, de produção do objeto e daquele que o conhece; o momento da pesquisa é o momento de intervenção, (...) a pesquisa-intervenção tem como mote o questionamento do 'sentido' da ação"(17).

O questionamento do "sentido" busca o reconhecimento da ação, explora o modo de funcionamento da equipe que produz a ação. Esse reconhecimento busca gerar intervenção que produza diferença, um novo e irretornável posicionamento de sentido e finalidade, na perspectiva da produção de movimentos coletivos singulares de apropriação e invenção da vida.

A pesquisa-intervenção foi realizada através de grupo de reflexão(18); com participação de nove enfermeiros da rede básica de saúde do município de Ribeirão Preto. Desses, cinco trabalhavam na estratégia SF, três trabalhavam na Estratégia Agentes Comunitários de Saúde, e um atuava em UBS tradicional. Não foram diferenciados os sujeitos segundo o modelo assistencial da unidade de saúde, para explorar, de modo mais abrangente, a prática clínica do enfermeiro na atenção básica. Realizaram-se oito encontros de duas horas cada, entre setembro e dezembro de 2008. Os encontros foram gravados e transcritos. O grupo foi coordenado por equipe composta por dois cocoordenadores e um observador silente. A equipe contou com supervisão do trabalho grupal realizado por especialista.

Realizou-se análise cartográfica dos movimentos dos enfermeiros na apreensão do seu processo de trabalho, na aprendizagem significativa, no sentido da identificação do que denominam prática clínica e na percepção de elementos dificultadores e potencialidades. O próprio processo analítico possibilitou aos enfermeiros ampliação da compreensão de suas ações, bem como a revisão de si mesmos no exercício da prática clínica na atenção básica, configurando, assim, um processo de aprendizagem significativa da EPS.

A cartografia é ferramenta metodológica da pesquisa-intervenção na análise institucional, construída a partir do vivido, compondo um desenho que acompanha os movimentos de transformação dos sentidos. Trata-se de experiências singulares em que algo deixa de fazer sentido, ao mesmo tempo em que novos mundos de referências se criam(19).

Na apresentação dos resultados, os encontros grupais estão identificados com o número correspondente ao encontro. Nos recortes dos diálogos, os enfermeiros estão identificados como Enf, seguido de número sequencial de 1 a 9.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (Processo nº0832/2007). Todos os participantes assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, conforme previsto na Resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde.

Apresentando resultados

O grupo da pesquisa constituiu-se em espaço de ESP dos enfermeiros, com trocas e análises coletivas sobre sua prática clínica, através da autoanálise do cotidiano, em que se reconheceu o quê, porquê, como e para que fazem o trabalho. Dessa forma, foram analisados o seu sentido e seus limites, ao revisarem o que necessitava ser modificado(18).

Serão apresentados, agora, alguns dos temas tratados em diferentes momentos de reconhecimento e de descoberta de novos sentidos vividos pelos sujeitos do estudo. Esses momentos recebem títulos que destacam seus aspectos mais significativos.

Tema 1 - O que os enfermeiros chamam de prática clínica na atenção básica

Os enfermeiros consideram como atividade clínica: as práticas de acolhimento, a consulta de enfermagem (mais frequentemente voltada para coleta do exame de Papanicolau, pré-natal e puerpério, planejamento familiar, atendimento de puericultura, hipertensos e diabéticos, saúde mental), a visita domiciliar/atendimento domiciliar, trabalho em grupo e, como atividade clínica indireta, a orientação a auxiliares de enfermagem e agentes comunitários de saúde e o apoio ao atendimento do médico.

Referem que a clínica do enfermeiro, na atenção básica, vem se desenvolvendo em função das exigências legais do exercício da profissão(20).

A análise leva o grupo a outro plano de compreensão dessa prática: o modelo conhecido é o da consulta médica, no qual se percebem reproduzindo o modelo hegemônico.

O encontro me suscitou reflexão a partir da conversa aqui (...) Por que a gente não consegue fazer... (...) Quando a enfermeira é chamada para tarefa de assistência direta (...) a gente se volta pro modelo hegemônico conhecido que é a prática da clínica médica que já tem uma estrutura conhecida, né? Em que momento nós nos aproximamos daquela clínica ou distanciamos daquela clínica. É, eu tô pensando nisso. (...) Porque nós tamo construindo (Encontro 2).

Os enfermeiros estranham o próprio modo de agir habitual, estranhamento necessário para a ressignificação de sentidos, possibilitando, posteriormente, apropriação da perspectiva da clínica ampliada, abrindo brechas para novas formas de fazer seu trabalho.

Tema 2 - Diferenciando as práticas clínicas em busca de uma definição

Os enfermeiros identificam diferenças nos atendimentos que realizam, reconhecendo a existência da "clínica do cuidado" e da "pseudoconsulta médica".

Enf1 - Acho que a gente precisa discutir também (...) do enfermeiro começar exercer mais o papel clínico de cuidado. O que é que é isso? (...) o enfermeiro vai fazer clínica, o que é essa clínica?

Enf2 - (...) cada um tem o entendimento de um jeito.

Enf1 - A clínica nossa tem que ser a clínica do cuidado. Com essa clínica do cuidado eu fico tranquila, agora a clínica da enfermeira que é pseudoconsulta médica, eu discuto isso há anos (...) (Encontro 1).

Embora não definam a "pseudoconsulta médica", ela é colocada em contraposição à clínica do cuidado, que se abre para a escuta das necessidades das pessoas, não se limitando à estrutura formal de uma consulta com foco no indivíduo doente, mas, sim, ampliando ao se estender o olhar para a família e o contexto em que vive a pessoa.

E, nesse movimento, o grupo busca clarear o que é a clínica ampliada.

Enf3 - (...) a proposta da clínica ampliada que é uma clínica diferente, diferenciada. Porque aí a gente não vai olhar só o indivíduo biológico, patológico, tratar e prescrever. Acho que envolve o projeto terapêutico com ações muito além da doença e do indivíduo, mas olhar o coletivo, olhar o contexto de vida dele. É fazer com que (...) ele mesmo possa controlar e influenciar os seus fatores determinantes do seu adoecimento, do seu processo saúde/doença. Então (...) acho que nossa clínica se aproxima muito com a proposta da clínica ampliada. Onde a gente vai transformar os sujeitos. (...) a gente vai envolver a família, o contexto (...) (Encontro 2).

Na reflexão, o grupo chega a uma formulação de clínica na perspectiva ampliada que se semelha àquela que tem sido proposta como ferramenta para a mudança do modelo assistencial(12, 21). Ao mesmo tempo discute e reflete sobre sua execução.

Tema 3 - As condições estruturais e organizacionais das unidades de saúde

Os enfermeiros identificam disparidades nas condições estruturais em diferentes unidades de saúde para a prática clínica. Poucas contam com consultório adequadamente equipado e de uso exclusivo do enfermeiro. Na maioria delas, independentemente de modelo assistencial (SF, EACS, ou tradicional), é preciso aguardar o término do atendimento médico para utilizar a sala, comprometendo a oferta de serviços pelo enfermeiro.

Também apontam a falta de alguns aspectos da organização do serviço, necessários para que a ação de enfermagem seja executada, como o apoio de serviço de recepção em alguns horários, a retirada de prontuários e o apoio da gerência local.

Enf3 - (...) quando fala em clínica ampliada (...) ver, ouvir, sentir, subjetividades, ampliar a escuta, abrir espaço pra tudo aquilo. Mas, ao mesmo tempo, é conflituoso. (...) não temos suporte, apoio, estrutura pra conseguir concretizar a clínica que tanto almejam.... (...) Na hora de fazer, às vezes, você não tem as tecnologias duras, a estrutura, o consultório, a mesa, a cadeira, a maca pra você tentar fazer a clínica ampliada. (...) Eu não tenho um espaço pra fazer a escuta, pra ouvir o paciente, pra receber o paciente (...) (Encontro 1).

Os enfermeiros relatam inexistência de apoio técnico para a prática clínica de enfermagem, de uma supervisão técnica específica. Utilizam protocolos do Ministério da Saúde ou de outros municípios, embora alguns não sejam adotados oficialmente pela Secretaria Municipal da Saúde. No entanto, esses nem sempre atendem as necessidades.

Assim, algumas condições estruturais e organizacionais das unidades de saúde são apontadas como dificuldades cotidianas da prática clínica dos enfermeiros na atenção básica, e revelam que, apesar de as ações, como consulta de enfermagem, constarem entre as atribuições do enfermeiro(4) e constituírem atribuição privativa(20); as condições arquitetônicas de algumas unidades de saúde e organizacionais não favorecem a oferta desse atendimento, pois, historicamente, vêm sendo orientadas para a atenção em saúde médico centrada.

Tema 4 - Tensões e limites da prática clínica do enfermeiro

A problematização sobre os limites da prática clínica leva o grupo de enfermeiros a reconhecer algumas das tensões do cotidiano por meio do processo de autoanálise.

Os enfermeiros identificaram como limites as referências técnicas e normatizações do exercício da profissão pelo Conselho de Enfermagem. Percebem que essas têm o sentido simultâneo de limite e de orientação do trabalho clínico.

Enf1 - O parâmetro fica sendo o que eu já estudei como consulta de enfermagem, o que eu olho que é limite técnico legal (...).

Enf4 - Eu acho que chegou no meu limite, daqui pra frente não é mais o meu. (...) E pelo limite legal pelo COREN, aí eu vou lá discuto com a médica (Encontro 1).

O grupo também identifica como limite o trabalho de outros trabalhadores da equipe de saúde, principalmente o médico.

Enf2 - Fui lá colher cito. Tinha uma lesão. Pra mim aquilo parecia que não era HPV, parecia que não era condiloma, parecia que não era uma condição maligna, mas parou, acabou minha capacidade clínica. Eu tive que manter a moça, tirar espéculo, pedir pra ela aguardar, e fui atrás de quem tem capacidade de discernir sobre esse aspecto do limite (Encontro 2).

Os integrantes do grupo referem ao incômodo pelo não reconhecimento do trabalho clínico do enfermeiro, no âmbito da organização e gestão. Relatam que, no cotidiano, o trabalho do enfermeiro é lembrado para substituir aquele que o médico não quer ou não gosta de fazer, ou, então, como forma de ampliar a cobertura, e não pelo trabalho em si.

Apontam que o reconhecimento dos usuários é diferente, pois, quando esses vivenciam atendimento clínico com o enfermeiro, identificam aí a referência para o seu cuidado, o que traz muita satisfação e dá sentido ao trabalho.

Enf2 - Muitas pessoas já chegam e... eu quero falar com a enfermeira, e isso dá ciúme, dá inveja. Deixa eles (Encontro 1).

As tensões apresentadas demonstram que o processo de constituição do trabalho clínico do enfermeiro, como uma prática social, se conforma em um terreno de disputas que incluem trabalhadores de saúde, usuários e gestores(7).

Da mesma forma, a prática da clínica ampliada provoca no enfermeiro grande tensão ao produzir o cuidado. Essa tensão resulta dos medos, receios, incertezas, próprios da subjetividade das situações e das implicações decorrentes do vínculo.

Enf1 - (...) o paciente de vocês, você não conhece por nome e sobrenome. Nós conhecemos.

Enf6 - (...) Paciente da área. A agente comunitária chega dizendo que a filha que tava cuidando disse: minha mãe tá assim. A moça tava embotada, dizendo: eu não vou comer, vou morrer, não quero viver (Encontro 1).

Tal prática clínica traz para o enfermeiro demandas inespecíficas(13) para as quais nem sempre conta com conhecimentos e habilidades técnicas para lidar. Transita, assim, em território desconhecido que espera por invenção de novos modos de enfrentar os problemas de saúde. Ao inespecífico e ao não saber, associa-se a dependência do trabalho dos demais membros da equipe, o que acentua ainda mais as tensões do enfermeiro no cotidiano.

Esse quadro de tensões, complexidade e não saberes é enfrentado de diferentes formas pelos enfermeiros. Alguns se colocam com disposição para construir esse novo fazer, outros fogem do trabalho clínico, e outros não se dispõem claramente a fazê-lo.

Enf4 - Existe um protocolo que também ninguém usa. Durante uns 15 anos, tinha unidades básicas de saúde que tinha colega que fugia da sala da vacina... e lá tá tudo protocolado como conduta (Encontro 1).

Se, por um lado, o grupo reconhece que há situações de domínio do conhecimento, o que permite argumentar consistentemente e sustentar uma posição sobre determinado ponto de vista e/ou de conduta, por outro, no entanto, percebem que há situações de não saber e que uma atitude de humildade e de busca ativa, ao se esclarecer com o profissional dotado de competência para tal, podem ser resolutivas. Nesses casos, em geral, recorrem aos médicos, mas isso gera incômodo, pela sensação de dependência, de ter que dar satisfação, atualizando a histórica disputa instituída entre as duas categorias profissionais.

Enf7 - Eu tenho dificuldade em algumas coisas, mas eu acho que a gente precisa ter humildade assim, de poder procurar (...) pra me auxiliar. Eu procuro (Encontro 1).

Muito provavelmente, o incômodo dos enfermeiros decorre da atitude da categoria médica de se colocar como cliente do serviço, como foi observado no processo de trabalho hospitalar(22). Os médicos esperam que o serviço lhes garanta os "insumos" (exames, medicamentos, inclusive o trabalho da enfermagem) para realizar o seu trabalho. Assim, não há atitude de construção de trabalho em equipe, mas há atitude de apropriação do trabalho do outro, daí o incômodo.

Em meio a essa discussão sobre o incômodo da dependência do trabalho do médico, surge outra possibilidade de olhar a questão, como segue.

Eu tô achando um pouco preconceituoso e um pouco (...) que desmerece nosso trabalho por causa disso. Por que eu posso concluir uma consulta dele, fazendo uma pós-consulta, fazendo as orientações, e por que ele não pode fazer a prescrição da minha consulta? (Encontro 2).

A colocação aponta um ângulo diferente. Tradicionalmente, a enfermagem "completa" o atendimento do médico na pós-consulta. O novo sentido apontado quebra a forma hegemônica: também o médico, por sua vez, "completaria" a consulta de enfermagem. O grupo prossegue relatando como organizam o trabalho para enfrentar as tensões.

Enf8 - Então, a gente [enfermeira e médica] estipulou a faixa etária que a gente vai colher. A gente colhe em mulheres menor de 45 anos. (...) ela me ajuda, ela já medica junto comigo (...) (Encontro 2).

Novos sentidos começam a se esboçar como possibilidades.

Enf1 - É, nesse sentido que eu fiz a reflexão clínica. A gente pode olhar nossa clínica pelo limite, mas nós podemos olhar nossa clínica pela potência (Encontro 2).

Gradativamente, o grupo vai percebendo que é preciso priorizar a prática clínica, abrindo espaço em sua agenda de trabalho.

Enf2 - Eu fico sabendo que nenê nasceu (...). Eu vô visitar o nenê, pergunta se tá tudo bem, porque não vou só pra ver o nenê. Aí eu marco consulta pro nenê dentro de uma semana até 10 dias (...).

Enf5 - Eu não consigo marcar.

Enf1 - Eu fecho a agenda pra isso. Tenha coragem pra fechar a agenda. É prioridade na unidade (Encontro 1).

A construção da prática clínica ampliada, como uma das ações constitutivas da dimensão assistencial do trabalho do enfermeiro, vai se dando no cotidiano, na relação com as outras práticas, como resposta às necessidades de saúde da população, mas é preciso que, também, o próprio trabalhador compreenda esse processo de construção social e que depende dele a conquista desse espaço e a consolidação de sua prática.

Considerações finais

Os encontros do grupo de reflexão efetivaram um processo de EPS dos enfermeiros participantes, pois possibilitaram análise e reflexão sobre a própria prática cotidiana, explorando seus sentidos no atual contexto, nas condições dadas da atenção básica.

A prática clínica, na perspectiva ampliada, vem se constituindo no interior da prática hegemônica, desafiando os enfermeiros a enfrentar as tensões, conflitos, não saberes, medos, incertezas, características inerentes ao trabalho na atenção básica. A clínica ampliada aponta como caminho do cuidar a construção em equipe e a necessidade de revisão e ressignificação das linhas que demarcam os territórios de atuação profissionais.

O estudo demonstra a necessidade de criação e manutenção de espaços de EPS para que os enfermeiros se apropriem de seu trabalho clínico, construído na perspectiva da clínica ampliada.

Agradecimentos

À Profª Maria Cecília Puntel de Almeida, in memorian, pela participação ativa na formação das autoras, e pela revisão do projeto de pesquisa do qual resultou este trabalho, nossa eterna gratidão pelo aprendizado, convivência e compartilhamento de tanto conhecimento.

Ao Dr. Jorge Bichuetti, do Instituto Felix Guatari, guerreiro da saúde e da vida e ativo produtor de utopias, agradecemos imensamente sua supervisão das coordenadoras do grupo.

À Fapesp pelo financiamento da pesquisa.

Referências

  • 1. Almeida MCP. O trabalho de enfermagem e sua articulação com o processo de trabalho em saúde coletiva - rede básica de saúde em Ribeirão Preto. [tese livre-docência]. Ribeirão Preto (SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/USP; 1991.
  • 2. Villa TCS, Mishima SM, Rocha SMM. Os agentes de enfermagem nas práticas sanitárias paulistas: do modelo bacteriológico a programação em saúde (1889-1983). Rev. Latino-Am. Enfermagem. 1994 julho;2(2):73-85.
  • 3. Mishima SM, Almeida MCP, Matumoto S, Pinto IC, Oba MDV, Pereira MJB, et al. A classificação Internacional para a prática de enfermagem em saúde coletiva no Brasil - CIPESC - Apresentando o cenário de pesquisa do município de Ribeirão Preto. In: Chianca TCM, Antunes MJM. A classificação Internacional das Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva - CIPESC. Brasília (DF): ABEn; 1999. p. 204-41. (Série didática; Enfermagem no SUS).
  • 4
    Portaria n° 648 de 28 de março de 2006 (BR). Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa de Saúde da Família (PSF) e o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS). Brasília: Ministério da Saúde; 2006.
  • 5. Silva EM, Nozawa MR, Silva JC, Carmona SAMLD. Práticas das enfermeiras e políticas de saúde pública em Campinas, São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2001 jul-ago; 17(4):989-98.
  • 6. Peduzzi M. A inserção do enfermeiro na equipe de saúde da família, na perspectiva da promoção da saúde. In: Anais do 1ş Seminário Estadual: O enfermeiro no programa de saúde da família; 2000 nov. 9-11; São Paulo. São Paulo: Secretaria de Estado da Saúde; 2000. p. 1-11.
  • 7. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002.
  • 8 Nauderer TM, Lima MAD. Nurses' practices at health basic units in a city in the south of Brazil. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2008 setembro-outubro;16(5):889-94.
  • 9. Santos SMR, Jesus MCP; Amaral AMM, Costa DMN, Arcanjo RA. A consulta de enfermagem no contexto da atenção básica de saúde, Juiz de Fora, Minas Gerais. Texto Contexto Enferm. 2008 jan-mar;17(1):124-30.
  • 10. Ermel RC, Fracolli LA. O trabalho das enfermeiras no programa de saúde da família em Marília/SP. Rev Esc Enferm USP. 2006;40(4):533-9.
  • 11. Maciel ICF, Araujo TL. Consulta de enfermagem: análise das ações junto a programas de hipertensão arterial, em Fortaleza. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2003 março-abril;11(2):207-14.
  • 12. Campos GWS. Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drummond M Júnior, Carvalho YM. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. p. 53-92.
  • 13. Junges JR, Selli L, Soares NA, Fernandes RBP, Schreck M. Processos de trabalho no Programa Saúde da Família: atravessamentos e transversalidades. Rev Esc Enferm USP. 2009;43(4):937-44.
  • 14. Merhy EE, Feuerwerker LCM, Ceccin RB. Educación Permanente em Salud: uma estratégia para intervenir em la micropolitica del trabajo em salud. Salud Colect.. 2006 mai-ago;2(2):147-60.
  • 15. Baremblitt GF. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. 3.ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; 1996.
  • 16. Deleuze G, Guattari F. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia, v.3. Rio de Janeiro: Ed. 34; 1999.
  • 17. Passos E, Barros RB. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicol: Teoria Pesqui. 2000 janeiro-abril;16(1):71-9.
  • 18. Coronel LCI. Grupos de reflexão. In: Zimerman DE. Como trabalhamos com grupos. Porto Alegre: Artes Médicas; 1997. p. 345-9.
  • 19. Baremblitt GF. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Instituto Felix Guattari; 1998.
  • 20
    Conselho Federal de Enfermagem. Resolução n° 272 de 27 agosto de 2002. Dispõe sobre a sistematização da assistência de enfermagem - SAE - nas instituições de saúde brasileiras. Conselho Federal de Enfermagem. Disponível em: http://www.portalcofen.gov.br/2007/materias.asp?ArticleID=7100&sectionID=34
  • 21
    Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico singular. 2. ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007.
  • 22. Merhy EE, Cecilio LCO. O singular processo de coordenação dos hospitais. Saúde em Debate. 2003 maio-agosto;27(64):110-22.
  • A prática clínica do enfermeiro na atenção básica: um processo em construção

    Silvia MatumotoI; Cinira Magali FortunaI; Lauren Suemi KawataII; Silvana Martins MishimaIII; Maria José Bistafa PereiraIV
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Fev 2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Out 2009
    • Aceito
      16 Jul 2010
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br