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Sobre o feminino e os transtornos da procriação, ou a disjunção mulher-mãe*1 *1 Artigo parcialmente baseado na tese Uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher: o feminino em psicanálise por Medéia e Madeleine Gide, 2015, Universidade Federal de Santa Catarina.

About the feminine and procreation disorders, or the woman-mother disconnection

A propos du féminin et des troubles de la procréation, ou la disjonction femme-mère

Sobre lo femenino y los trastornos de la procreación, o la disyunción mujer-madre

Über das Weibliche und Reproduktionsstörungen oder die Frau-Mutter-Disjunktion

Resumos

O artigo analisa o recurso, no discurso psicopatológico, a categorias diagnósticas para delimitar o que diverge da norma relativa ao que se espera da mulher no lugar de mãe. Discute-se, a partir da perspectiva em que a psicanálise aborda o tema do feminino, que a abordagem patologizante desconsidera justamente tal dimensão, na qual o feminino inclui, não como exceções à norma, o impasse frente à maternidade. Neste sentido, tal patologização denunciaria o horror por ele suscitado.

Palavras-chave:
Feminino; disjunção mulher-mãe; transtornos da procriação; lógica fálica


The article analyses the use of diagnostic categories in the psychopathological discourse to outline the boundaries between what is expected from a woman as a mother and what diverges from such expectation. Based on the perspective that the psychoanalysis addresses the topic of feminine, we discuss that the pathologizing approach disregards such dimension, in which the feminine includes, not as exceptions to the rule, the deadlock posed by maternity. In this regard, such pathologization would uncover the horror it arouses.

Key words:
Feminine; woman-mother disconnection; procreation disorders; phallic logics


Cet article analyse l'utilisation, dans le discours psychopathologique, des catégories de diagnostic pour définir ce qui s'écarte de la norme par rapport à ce que l'on attend des femmes dans leur rôle de mère. Basé sur la perspective de la psychanalyse par rapport à la question du féminin, on affirme que l'approche de la pathologisation ne tient pas compte précisément de cette dimension dans laquelle le féminin comprend — non comme exception à la règle — la maladresse en ce qui concerne la maternité. En ce sens, cette pathologisation dénonce l'horreur qu'elle suscite.

Mots clés:
Féminin; disjonction femme-mère; troubles de la procréation; logique phallique


El artículo analiza el recurso, en el discurso psicopatológico, y las categorías diagnósticas para delimitar lo que diverge de la norma relativa a lo que se espera de la mujer en el papel de madre. Se discute, desde la perspectiva en la que el psicoanálisis aborda el tema de lo femenino, que el abordaje patologizante desconsidera, justamente, tal dimensión, en la cual lo femenino incluye, no como excepciones a la norma, el impasse frente a la maternidad. En este sentido, tal patologización denunciaría el horror por él suscitado.

Palabras clave:
Femenino; disyunción mujer-madre; trastornos de la procreación; lógica fálica


Der vorliegende Artikel analysiert die Verwendung von diagnostischen Kategorien im psychopathologischen Diskurs, um das zu definieren, was sich von der Norm abhebt, welche bestimmt was von der Frau in ihrer Mutterrolle erwartet wird. Basierend auf der psychoanalytischen Sicht des Weiblichen wird die Auffassung vertreten, dass der pathologisierende Ansatz gerade diese Dimension ignoriert, in der das Weibliche die Zweifel an der Mutterschaft beinhaltet, und zwar nicht als Ausnahme zur Norm. In diesem Sinn verrät diese Pathologisierung den von ihnen erzeugte Abscheu.

Schlüsselwörter:
Weibliche; Frau-Mutter-Disjunktion; Reproduktionsstörungen; phallische Logik


A dificuldade em descrever, explicar, compreender a mulher (ou as mulheres) não é novidade no campo das discussões psicanalíticas. Antes disso, do saber popular às teorias, do senso comum aos manuais, verifica-se uma longa e antiga trajetória que se estabelece na tentativa de delimitar o feminino. Trata-se de uma história complexa, repleta de imbricações culturais e viradas científicas e religiosas, que, apesar de todos os esforços, demonstra nada mais que a natureza opaca de seu objeto. Em um enfoque mais específico, Lisa Appignanesi (2011)Appignanesi, L. (2011). Tristes, loucas e más: a história das mulheres e seus médicos desde 1800. Rio de Janeiro, RJ: Record. veio a realizar na atualidade um levantamento do estatuto da mulher e seus transtornos no campo da psiquiatria, dos primeiros tempos até os dias correntes.

De todos os debates ali presentes, interessa destacar um aspecto em especial: a maneira como a relação da mulher com a procriação é descrita (e prescrita); o modo, portanto, como são lidos, a partir de uma perspectiva médica, os dados clínicos associados. O fato de que os manuais diagnósticos (Organização Mundial de Saúde, 1993Organização Mundial da Saúde. (1993). Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.; Associação Psiquiátrica Americana, 1994Associação Psiquiátrica Americana. (1994). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4ᵃ ed.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) não apresentam consenso a respeito das classificações neste campo não impede que, ainda assim, os dados das pesquisas a eles conjugadas, suas estatísticas, municiem produções técnicas e teóricas cuja tendência geral é a redução dos impasses da maternidade a sintomas extensivos a categorias diagnósticas.

As discussões buscam destacar uma espécie de déficit ou disfunção da mulher que contradiria certa norma relativa à maternidade, a qual não deixa de reportar ao imaginário de um instinto materno. Por abordar o feminino desde outra perspectiva, veremos como a psicanálise pode lançar outro olhar sobre tais ocorrências. Frente a isso, pretende-se destacar, no artigo, uma face da maternidade (na verdade, uma face do feminino) que permaneceria à sombra dessas discussões, na medida em que constituiria a contrapartida à suposta satisfação feminina (ou mesmo anseio feminino) pela maternidade. Do mesmo modo, os dados que essas categorias e discussões fornecem darão aqui subsídio ao debate dos próprios argumentos a partir de Freud e Lacan.

O que se apreende pelas noções de transtorno ou disfunção no que concerne à maternidade aponta, assim, desde uma perspectiva ampliada, à complexidade da operação mulher-mãe. Restringindo-se à lógica classificatória, os transtornos da procriação velariam, contudo, tal complexidade, tributária a algo do feminino que justamente não se dobra à miragem de um instinto materno, às razões morais ou de eficiência relativa ao exercício da função materna. Mesmo a psicanálise, quando associou a passagem mulher-mãe a um sistema de troca e substituição fálica (Freud, 1917/1996cFreud, S. (1996c). As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XVII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1917).;1925/1996gFreud, S. (1996g). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1925).;1933/1996hFreud, S. (1996h). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência 33: Feminilidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1933[1932]).), deu margem a concepções simplistas e esquemáticas quanto às vicissitudes do feminino. Trata-se, no que aqui visamos, do que justamente é não todo equacionável falicamente, com o que incluiríamos o próprio raciocínio classificatório, fálico por excelência.

As categorias puerperais

Na tentativa de explicar condutas inesperadas após a gestação, produziram-se discussões na psicologia e na psiquiatria que estão pautadas, de modo majoritário, em diagnósticos construídos para designar um conjunto de sintomas ocorridos no período pós-parto. As dificuldades relativas à experiência da gestação e do parto são descritas há muito tempo (Appignanesi, 2011Appignanesi, L. (2011). Tristes, loucas e más: a história das mulheres e seus médicos desde 1800. Rio de Janeiro, RJ: Record.). Deixando de lado os achados e tratados religiosos e pré-científicos, iniciamos com o que foi descrito a partir do começo do século XIX, período da ascensão da psiquiatria. O saber médico, conjugado ao racionalismo e ao humanismo da Revolução Francesa, tinha então a preocupação de catalogar e descrever as doenças e os doentes mentais. Por questões políticas e sanitárias, tornava-se necessário adaptar espaços e tratamentos. O hospital Sainte-Anne, por exemplo, passou a ter mais instalações para mulheres que para homens, “para impedir a ‘deterioração’ do sexo que ‘perpetua a sociedade’” (p. 65).

A hipótese de que a resposta para a loucura feminina estaria na experiência gestacional e puerperal comparecia, abrindo, assim, um campo de pesquisa: “É certo que entre lunáticos e furiosos havia mais mulheres que homens. Um novo tema de pesquisa. Essa diferença se originaria nas sequelas do parto, nas sensações nervosas que acompanham a lactação?” (p. 65). Pinel e Esquirol, pioneiros do alienismo, seguiam nessa linha de diagnóstico e percebiam a relação entre a procriação e a loucura feminina, sem ultrapassar, no entanto, a visão de uma relação biológica entre uma e outra. Buscavam-se então as respostas, e o Estado francês as tomava no âmbito da preocupação com suas mães.

Por representar uma possibilidade etiológica que se reportava a parâmetros biológicos, as mulheres grávidas e, principalmente, as recém-mães eram descritas como mais suscetíveis à loucura: “A ‘loucura puerperal’, como se tornou conhecida, respondeu por um décimo da entrada de mulheres no Salpêtrière entre 1811 e 1814, observa Esquirol” (p. 88), número que a autora sugere poder ter sido ainda maior. A loucura puerperal, um diagnóstico especificamente feminino, seguiu importante e mantinha, àquela época, sua força na insistência de que o sistema reprodutivo da mulher teria uma relação direta com suas afetações mentais.

Com o avanço da psiquiatria, o discurso sobre a loucura — que passou a estar enquadrada na lógica dos transtornos — diluiu-se em bases estatísticas, incluindo padronizações prevalentes como depressão (pós-parto) e psicose (puerperal). Além da depressão e da psicose puerperal, encontramos ainda referência a uma categoria intermediária, que surge para designar uma forma branda de depressão materna após o nascimento do rebento, a Síndrome de Tristeza Pós-Parto, também conhecida como Baby Blues: “o ‘blues’ apresenta incidência de 50% e é considerado um transtorno normal e passageiro, caracterizando-se por crises de choro, ansiedade, fadiga, preocupações excessivas com o bebê etc.” (Felice, 2000Felice, E. M. (2000). A psicodinâmica do puerpério. São Paulo, SP: Vetor., p. 35).

Se o Baby Blues é tido como um transtorno normal, por que dizer então que se trata de um transtorno? Aliás, se acomete metade das mulheres, isso significaria que 50% das mulheres são transtornadas em sua condição de mãe. Ainda que a proposta desse tipo de referencial classificatório seja mesmo distinguir os grupos em categorias, uma classificação que encontra metade de sua amostra comprometida merece ser, no mínimo, problematizada. O que se torna aparente nessa explanação é uma generalização que, no lugar de concluir pelo mal-estar da mulher com a maternidade como algo frequente, aproxima-o da patologização. Quando esses sinais inesperados ou anormais ocorrem com maior acento e duração, passamos à designação da depressão pós-parto, descrita por sintomas como tristeza patológica, perda do prazer, hipocondria, irritabilidade, desânimo, ideação suicida, entre outros (Felice, 2000Felice, E. M. (2000). A psicodinâmica do puerpério. São Paulo, SP: Vetor.). As pesquisas apontam, porém, para uma menor incidência em relação ao Baby Blues, em torno de 10% (Felice, 2000Felice, E. M. (2000). A psicodinâmica do puerpério. São Paulo, SP: Vetor.).

Na depressão pós-parto, descreve-se o abandono do bebê como uma saída maníaca para as crises depressivas, acompanhado de um interesse exacerbado pela vida social. Há casos, porém, em que a mãe é descrita como totalmente voltada aos cuidados do bebê em detrimento de qualquer outra atividade. Segue um trecho que explicita a presença desse imaginário de uma medida ideal de investimento no bebê:

De qualquer maneira e sem chegar aos limites alarmantes do estado psicótico, acham-se presentes em todos os casos, em maior ou menor grau, as ideias depressivas e persecutórias, o desejo de afastar-se, o abandono. A sensação dominante é de haver perdido a própria personalidade e ser uma mera escrava do bebê e do ambiente. Quando a família e os amigos podem colaborar de modo eficiente, tais sensações acabam por se transformar em carinho para com o filho, em alegria pelo seu progresso e crescimento. Mas, como já dissemos, se essa colaboração não é suficiente ou se mostra inadequada, o estado depressivo, mesmo sem chegar à psicose, pode prolongar-se. (Soifer, 1992Soifer, R. (1992). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 73)

Aqui é importante também ressaltar o pressuposto de uma evolução para a psicose e o acento no risco associado ao prolongamento das sensações negativas frente à maternidade. Em relação à psicose puerperal, fala-se em perturbações mentais severas, descrevendo-se significativas alterações de humor e de contato com a realidade, achando-se presentes ideações delirantes, alucinações e alterações cognitivas (Soifer, 1992Soifer, R. (1992). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.). Tentativas de suicídio e de ataque ao bebê também são características descritas neste quadro, assim como aspectos de melancolia, com sentimentos de inutilidade, incapacidade e autodepreciação (Soifer, 1992Soifer, R. (1992). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.). Em compêndios de psiquiatria, a psicose pós-parto encontra-se como psicose atípica: “Uma psicose pós-parto é uma síndrome clínica que ocorre após o parto e se caracteriza por delírios e depressão grave. Os pensamentos sobre a vontade de ferir o bebê recém-nascido não são incomuns e representam um perigo real” (Kaplan & Sadock, 1993Kaplan, H.I., & Sadock, B. (1993). Compêndio de Psiquiatria – ciências comportamentais e psiquiatria clínica. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 381).

No CID-10, a psicose puerperal está na categoria dos Transtornos Mentais e de Comportamento Associados ao Puerpério, sendo, no entanto, uma categoria dita pouco usual: “a maioria dos especialistas nesse campo é da opinião de que um quadro clínico de psicose puerperal é tão raramente (se é) distinguível confiavelmente de transtorno afetivo ou esquizofrenia que uma categoria especial não é justificada” (Organização Mundial de Saúde, 1993Organização Mundial da Saúde. (1993). Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre, RS: Artes Médicas., p. 16). Tampouco o DSM-IV (Associação Psiquiátrica Americana, 1994Associação Psiquiátrica Americana. (1994). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4ᵃ ed.). Porto Alegre, RS: Artes Médicas.) inclui referência específica aos quadros puerperais, exceto pela explicitação do pós-parto como condição médica associada. Como dissemos acima, não é possível encontrar, nos manuais classificatórios, consenso acerca do assunto (Cordas & Fisch, 1992Cordás, T.A., & Fisch, S.B. (1992). Psicose atípica no puerpério. Status nosológico: relato de caso. J Bras Psiquiatr, 1(41), 54-6.).

De todo modo, recorre-se muito frequentemente no debate a uma explicação calcada na ideia do transtorno, concedendo-se lugar especial aos riscos que o estado mental materno configura para o bebê. Cabe interrogar, com base na inconsistência e desacordos encontrados nas descrições, como essas acabam por subsumir o mal-estar da mulher diante da maternidade. A partir disso, o que essas classificações contraditórias sinalizam quanto a esse mesmo mal-estar.

O feminino e o impasse frente à maternidade

Não se pretende, aqui, buscar um novo modelo explicativo para essas situações, tendo em conta a particularidade das histórias e desenlaces, inviabilizando qualquer tentativa de generalização. A intenção é, antes, questionar a maneira como se tem guiado a compreensão desses casos, a qual parece desconsiderar qualquer discussão acerca do feminino, prevalecendo apenas a problemática relativa ao lugar de mãe, à função materna.

Introduz-se, então, uma reflexão em dois tempos. Primeiramente, discutiremos que a dimensão do feminino na maternidade comporta uma margem de impasse que não precisa necessariamente estar reportada a determinadas categorias diagnósticas. Desde aí proporemos, em um segundo tempo, que o discurso estritamente patologizante denuncia um horror frente a esse impasse, a ser assim tamponado do lado daquele que se encontra na posição de ajuizar acerca daquilo que escapa do esperado ou recomendado como função materna.

Os lugares de mãe e de mulher são profunda e largamente debatidos no âmbito da psicanálise, onde se incluem os impasses na relação das mulheres com a maternidade. Se esses podem ser lidos em referência às soluções fálicas, propomos, todavia, apoiarmo-nos no que conduz para além desta questão: “em que a maternidade confrontaria a mulher com a castração, ao invés de tamponá-la, como nos sugere Freud através da equivalência criança-falo?” (Marcos, 2007Marcos, C. Figuras da maternidade em Clarice Lispector ou a maternidade para além do falo. Ágora, 10(1), 35-47., p. 37). Tanto em Freud quanto em Lacan, no que se articula da feminilidade, da mulher, podemos localizar uma falta não equacionável à lógica fálica, a qual justamente, como veremos aqui, encontra-se associada à tematização da disjunção mulher-mãe.

O enigma da sexualidade feminina desafiou Freud e esteve presente em todo seu trajeto clínico e teórico desdobrando-se em ricas formulações acerca do tornar-se mulher. Em muitos momentos, serviu-se dessas formulações para dar corpo à sua metapsicologia, abrindo passagem para a hipótese de um feminino que ultrapassa a figura da mulher e comparece na concepção psicanalítica da subjetividade de diversas maneiras. O edifício teórico de Freud foi, assim, amplamente nutrido por suas tentativas de elucidação da feminilidade. Para além de uma configuração desta última que, atrelada a um referencial masculino original, acha-se circunscrita ao advento de substitutos fálicos, no que se inclui a correspondência criança-falo (Freud, 1925/1996gFreud, S. (1996g). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1925).), podemos encontrar em sua obra desdobramentos do feminino a ela não redutíveis.

Em “Introdução ao narcisismo”, ao relacionar as diferentes formas de amar, Freud (1914/2010)Freud, S. (2010). Introdução ao narcisismo. In Obras completas (Vol.12). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original p ublicado em 1914). descreve a distinção que faz da mulher um ser narcisista, para quem ser amada seria mais importante que amar. Ali, a “vida amorosa dos sexos” (p. 17) apresenta-se como uma das vias para se descrever e compreender o narcisismo. E na exploração dessa via de acesso, Freud diferencia dois tipos de escolha de objeto: a escolha por apoio e a escolha narcísica. Na primeira, elege-se o objeto de amor a partir do modelo das figuras parentais, aquelas que asseguraram alimento, cuidados e proteção à criança. Diferentemente de tal processo, se dá o tipo narcísico de escolha, observado naqueles que “buscam a si mesmos como objeto amoroso” (p. 22).

Sob o alerta de que não pretende generalizar o argumento, Freud destaca uma diferença manifesta entre as escolhas amorosas do homem e da mulher. Quanto à transposição do narcisismo original para o objeto sexual e a notória superestimação sexual que lhe é então atribuída, Freud afirma que “o amor objetal completo, segundo o tipo ‘de apoio’, é de fato característico do homem” (p. 23). Diversamente, “no tipo mais frequente e provavelmente mais puro e genuíno de mulher” (p. 23), a puberdade acarreta um aumento do narcisismo original. Assim, conclui Freud sobre as mulheres, “sua necessidade não reside tanto em amar quanto em serem amadas, e o homem que lhes agrada é o que preenche tal condição” (p. 23). Nesse sentido, a mulher em seu tipo mais puro seria aquela que se faz objeto de amor: “ser amado representa o objetivo e a satisfação na escolha narcísica de objeto” (p. 31). Do mesmo modo, “não ser amado rebaixa o amor-próprio, dada sua íntima relação com a libido narcísica” (p. 31).

Apesar dessas descrições da mulher como um ser narcísico em sua forma de amar, Freud afirma existir um caminho possível de amor objetal completo para as mulheres narcísicas (e frias para com os homens): a maternidade. Seria a partir do narcisismo que esse amor (completo) pode ser alcançado e oferecido ao objeto estranho, gerado do próprio corpo: “No filho que dão à luz, uma parte do seu próprio corpo lhes surge à frente como um outro objeto, ao qual podem então dar, a partir do narcisismo, o pleno amor objetal” (p. 24). Seria possível ler aí uma indicação de que uma cota de frieza para com o homem se estabelece como condição para o amor completo na maternidade?

De todo modo, Freud já explicita uma dificuldade estrutural: a da transferência do amor para um ou para outro objeto (homem – criança). No tipo feminino mais frequentemente encontrado vemos, diz-nos Freud no mesmo texto (p. 23), no lugar da transferência, um retorno que intensifica o narcisismo original. Aparentemente, o reconhecimento desse objeto estranho como parte de si mesma não constitui uma tarefa simples, colocando em jogo o investimento narcísico e seu lugar de objeto de amor do homem. Essa dificuldade feminina, se podemos chamá-la assim, estaria fundada não apenas nessa configuração narcisista, mas também, avançando na obra de Freud, na constituição particular de seu supereu:

Não posso fugir à noção (embora hesite em lhe dar expressão) de que, para as mulheres, o nível daquilo que é eticamente moral, é diferente do que ele é nos homens. Seu superego nunca é tão inexorável, tão impessoal, tão independente de suas origens emocionais como exigimos que o seja nos homens. (Freud, 1925/1996gFreud, S. (1996g). Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1925)., p. 286)

Essa diferença estaria relacionada de forma mais acentuada às ameaças externas da perda do amor que à da castração, ameaça que inexistiria para as mulheres (Freud, 1924/1996fFreud, S. (1996f). A dissolução do complexo de Édipo. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1924).). Em outras palavras, o posicionamento diverso frente à castração lhes insere no Édipo, enquanto retira dele os meninos. A constituição de um superego dependeria, então, muito mais do medo da perda do amor que da castração propriamente, já que não se pode perder algo que não se tem. Ressalvada a possível deriva de descrições do tipo feminino como hostil à civilização, pode se pensar nos matizes da feminilidade que causam horror àquela justamente por não encontrarem nela ordenação.

Em parte da obra de Freud, a feminilidade acaba não por identificar uma saída substitutiva à falta que se reporta ao referencial fálico, mas designa a própria falta, em uma dimensão comum a homens e mulheres. A encarnação da castração na figura feminina, o que a feminilidade muitas vezes designa, vem explicar alguns mecanismos de revolta contra a castração, como no trabalho “Uma neurose demoníaca do século XVII” (1922[1921]/1996dFreud, S. (1996d). Uma neurose demoníaca do século XVII. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1922[1921]).). Freud utiliza essa expressão para designar o “repúdio à atitude feminina” (p. 106). Diante do medo da castração, o menino projeta no pai as características da feminilidade representadas pela castração, da qual deve se defender. Daí as características femininas do diabo, “uma projeção da própria feminilidade do indivíduo sobre o substituto paterno” (p. 106). Trata-se, ainda aí, da feminilidade reportada a reações masculinas diante da castração.

Ao final do artigo, Freud aborda o posicionamento de Alfred Adler a respeito do repúdio à castração, dizendo que ele retirou dessas manifestações a sua interpretação de origem orgânica e atribuiu-lhe um significado de anseio de poder presente nos homens, substituindo a expressão por protesto masculino. Freud retomará essa discussão em “Análise terminável e interminável” (1937/1996iFreud, S. (1996i). Análise terminável e interminável. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XXIII). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1937).), afirmando que o protesto masculino de Adler estaria limitado aos homens e, portanto, não serviria à “descrição correta dessa notável característica da vida psíquica dos seres humanos” (p. 268).

No entanto, Freud não mantém a expressão utilizada em 1922 (repúdio à castração), substituída, em “Análise terminável e interminável”, por repúdio à feminilidade. Presente tanto no homem como na mulher, o repúdio à feminilidade mantém-se diretamente reportado à castração, o grande obstáculo à análise devendo-se, segundo ele, à origem desse repúdio comum ao homem e à mulher:

Algo que ambos os sexos possuem em comum foi forçado, pela diferença entre eles, a formas diferentes de expressão. Os dois temas correspondentes são, na mulher, a inveja do pênis — um esforço positivo por possuir um órgão genital masculino — e, no homem, a luta contra sua atitude passiva ou feminina para com outro homem. (p. 268-269)

Seguiremos, com Lacan, naquilo que pudemos destacar da problemática da feminilidade em Freud: o que se situa na disjunção mulher-mãe e o feminino que tem incidência no homem. Com relação ao primeiro ponto, encontramos em seu escrito “Juventude de Gide, ou a letra e o desejo” (Lacan, 1958/1998bLacan, J. (1998b)). Juventude de Gide, ou a letra e o desejo. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958).) a importante referência a “uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher” (p. 772), designando o ato de Madeleine Gide, em associação com o da personagem Medeia da tragédia de Eurípedes (431a.c./1991)Eurípedes. (1991). Medéia. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 431a.c.). Fez equivaler aí a incineração, por Madeleine, das cartas trocadas durante mais de trinta anos entre ela e o escritor André Gide, seu marido e primo, com o assassinato dos próprios filhos por Medeia. Ambos os atos sucedem a traição dos homens em que se situavam como objeto de amor. Atos que os atingem, mobilizados pela quebra da promessa de amor.

A referência à verdadeira mulher aparece reportada à disjunção mulher-mãe na leitura, por exemplo, feita por Miller (1992/2012)Miller, J.-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H. Caldas, A. Murta, & C. Murta. (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico. Belo Horizonte: Scriptum. (Trabalho original publicado em 1992).: “Porém, o que seria uma verdadeira mulher? Há uma resposta muito simples: para Lacan, o verdadeiro, em uma mulher, se mede por sua distância subjetiva da posição da mãe (…) A mulher que tem” (p. 69). Ele usa o A maiúsculo em menção à maternidade como uma via para que possa existir A mulher sem barra, a mulher que possui o falo. O verdadeiro, na mulher, remeteria, portanto, ao para além do falo ou ao que as saídas fálicas não recobrem. Nesse sentido, Soler (2005)Soler, C. (2005). O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. defende que o que os atos em jogo realizam “despedaça as meias medidas de qualquer dialética e instaura um ponto sem volta”, concluindo que “Freud lia melhor, no fundo, quando reconheceu aí, antes, uma recusa do supereu civilizado” (p. 68).

O que situa esta articulação entre a mulher e o supereu seria, então, a dimensão de algo que não tem limites. No Seminário livro 5: as formações do inconsciente, Lacan (1957-1958/1999)Lacan, J. (1999). O Seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-1958). já afirmara que “nas verdadeiras mulheres há sempre algo meio extraviado” (p. 202). Voltando ao comentário de Miller (2012)Miller, J.-A. (2012). Mulheres e semblantes. In H. Caldas, A. Murta, & C. Murta. (Orgs.), O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico. Belo Horizonte: Scriptum. (Trabalho original publicado em 1992)., ele dirá: “uma verdadeira mulher explora uma zona desconhecida, ultrapassa os limites, e, se Medeia nos dá um exemplo do que há de extraviado em uma verdadeira mulher, é porque explora uma região sem marcos, além das fronteiras” (p. 71). Esse ilimitado apontará, como já indicávamos em Freud, não para o que define a mulher, mas para o que suplementa o próprio estabelecimento da diferença segundo uma lógica fálica.

Ressalvada a diferença do enfoque psicanalítico sobre o tema, o que parece subjacente à circunscrição dos casos às classificações médicas é a denegação da problemática do feminino na maternidade. Em outras palavras, é quando o feminino desarticula a mãe, ou o ideal de mãe, que as classificações puerperais incidem. O impasse que a maternidade suscita provoca saídas diversas, nem sempre loucas, nem sempre trágicas, nem sempre violentas. Entretanto, ao menor sinal de que um conflito se faz presente, recorre-se ao silenciamento da designação transtorno puerperal. É preciso lembrar do que Freud insistiu em dizer; que quanto mais se tenta silenciar o que diz respeito ao campo do inconsciente, com mais força ele se faz ouvir.

O horror frente ao impasse

Os impasses concernentes à maternidade, as condutas que divergem do esperado, quando lidos na perspectiva em que a psicanálise prospecta o feminino, apontam para além da referência fálica. É em relação a isso que entendemos poder situar o horror que a ocorrência de tais situações suscita, o qual teria por resposta, justamente, o silenciamento pela via da categorização psicopatológica, recurso fundado na própria lógica fálica. Verificamos, então, a dominância no discurso médico, que se estende aos domínios jurídico e assistencial, de uma patologização do que se passa mal na relação das mulheres com a maternidade. Indicamos até aqui que tal viés explicativo suprime da maternidade uma dimensão do feminino que é explorada pela psicanálise, algo do feminino que não define estritamente o terreno do que desvia em relação a uma norma concernente ao materno.

O feminino, assim enunciado pela psicanálise, toca ao que propriamente não é normatizável, confrontando ao que se furta a qualquer categorização. O feminino da psicanálise não se dispõe, desse modo, entre a norma e as categorias que circunscrevem as exceções; ele nomeia o próprio limite desse procedimento. É dessa impossibilidade, atualizada eventualmente pelo feminino na experiência da maternidade, que adviria o horror que as classificações, em resposta, buscam conter. Retomando o ato que Lacan disse ser o da verdadeira mulher, o qual vimos reportar ao que suplementa a lógica fálica, podemos nos voltar agora ao efeito que ele teria no homem.

Segundo Lacan (1958/1998b)Lacan, J. (1998b)). Juventude de Gide, ou a letra e o desejo. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)., o ato de Madeleine implicará para Gide um vazio aberto em seu ser, na medida em que se trata da “extirpação do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas — razão pela qual as chamava de seu filho” (p. 772). No sentido de vingança que se pode atribuir ao furo assim cavado corre-se o risco de reduzir o ato — não tendo Madeleine “dado outra razão para isso senão o ter ‘tido que fazer alguma coisa’” (p. 772) — a uma significação derivada da referência a Gide, ao homem. Algo semelhante ao que encontramos interrogado por Lacan em “Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina” (1958/1998aLacan, J. (1998a). Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958).): “Será que podemos nos fiar no que a perversão masoquista deve à invenção masculina, para concluir que o masoquismo da mulher é uma fantasia do desejo do homem?” (p. 740). A verdadeira mulher aponta para algo de irredutível, no ato, ao sentido que se lhe possa atribuir, ao romance das motivações e intenções que, também ele, pretenderia enquadrar o que ali desponta de não mais demarcável.

As cartas eram o que Madeleine igualmente possuía de mais precioso (Lacan, 1958/1998bLacan, J. (1998b)). Juventude de Gide, ou a letra e o desejo. In Escritos. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1958)., p. 772). Assim, o ato destrói, então, alguma coisa que era para ambos; o pacto, a aliança, pelo qual se estabelecia o lugar de um para outro. Destrói os próprios marcos, portanto, localizando o verdadeiro no que se desdobra para além. Considerando essa perspectiva, retrocederemos ao nascedouro da experiência analítica, a partir do encontro de Freud com a histérica, visando situar o modo como ele, ao explorar o campo do sexual, sustentou uma posição inédita frente ao que o feminino comporta, apontando para um limite ao que se pode conciliar no registro do saber.

A maneira pela qual Freud se distinguiu de Breuer, com referência ao que se apresentou desde o tratamento da paciente Anna O. (Freud, 1893-1895/1996aFreud, S. (1996a) Estudos sobre histeria. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. II). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1893-1895).), delimita duas posições frente ao que justamente vimos tentando cernir quanto ao ponto acima. Em “A história do movimento psicanalítico”, Freud (1914/1996b)Freud, S. (1996b). A história do movimento psicanalítico. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1914). confessa que esteve a ponto de desistir do trabalho quando a hipótese da sedução infantil na histeria desmoronou, tendo perseverado apenas porque já não tinha outra escolha. Indica ainda que, se tivesse desistido, teria reagido como Breuer, seu estimado antecessor, ao fazer sua descoberta indesejável — a significação da sexualidade na etiologia das neuroses. A rigor, não podemos dizer que Freud e Breuer tenham feito escolhas diferentes, já que Freud nos diz que o que diferencia sua posição é não ter tido escolha.

A considerar o que estabeleceu a diferença entre eles, detenhamo-nos no fato de que a hipótese que, ao se diluir, ameaçou a continuidade do trabalho de Freud dizia respeito ao sexual. Pensemos que aquilo com que Freud se depara é menos com o erro de sua hipótese acerca do lugar do sexual na etiologia das neuroses e mais com a evidência de que, ao tentar constituir um saber que recobrisse o campo do sexual, algo lhe escapou. A solução subsequente, com a inclusão da realidade psíquica, também não conseguirá dizer tudo. O que Freud suportou, portanto, ao seguir com a psicanálise, não foi o fracasso de uma hipótese, mas a impossibilidade de constituir um saber capaz de dizer tudo a propósito do sexual. Nesta perspectiva, observemos que, no encaminhamento de sua hipótese etiológica, foi a busca de um trauma na origem, invocada pelo encontro com as histéricas, que dirigiu Freud ao sexual. O que isso evidencia, em última instância, é que o sexual é traumático, o que podemos ler no sentido de que no campo do sexual, em uma declinação feminina, deparamo-nos com um limite à constituição de saber.

Sustenta-se, assim, que o horror suscitado em Breuer tem a ver com esse encontro, desde o lugar de médico, de detentor de um saber, com esse limite. Mais do que com a surpresa que possa lhe ter causado deparar-se com o sexual na clínica. Afinal, no mesmo texto de 1914, Freud incluiu Breuer entre aqueles de seus antecessores que lhe transmitiram o papel do sexual na etiologia (p. 22). A ele se juntam Chrobak, eminente ginecologista em Viena, e Charcot. Trata-se de comentários passageiros dos três, em que casos de doença nervosa foram associados a fatores sexuais. O comentário de Breuer, que assombrou Freud quando ele ainda era jovem médico residente, associava a secrets d'alcôve à doença de uma das pacientes do primeiro, esposa de um homem que haviam encontrado. A reação de Breuer ao sexual na clínica não pode ser associada, portanto, a uma intolerância em relação ao assunto. Resta, então, supor que o horror suscitado em Breuer se refira ao fato de que seu saber, que não deixa de atribuir um lugar, ainda que marginal, ao sexual, não dá conta do modo como esse adentra a experiência analítica a partir da histérica.

Nesse âmbito, tanto Breuer quanto Freud depararam-se com algo que faz furo no saber. Enquanto o primeiro isentou-se horrorizado, Freud encontrou aí um caminho a trilhar. Segundo sua interpretação (p. 22), as dissidências posteriores no interior do movimento psicanalítico poderiam também ser atribuídas a uma rejeição a esse veio aberto no campo do sexual. No sentido que estamos propondo, portanto, tratar-se-ia aí não de uma rejeição ao sexual, genericamente falando, mas a algo que o encontro da psicanálise com o sexual inclui. Algo que não se acomoda à posição discursiva desde a qual os diferentes personagens dessa história, à exceção de Freud, buscavam responder. E que propomos equivaler ao que vimos situando do feminino no contexto do artigo.

O feminino impõe um resto por relação à referência fálica, a qual organiza o saber sobre o sexual que Freud (1923/1996e)Freud, S. (1996e). A organização genital infantil: uma interpolação à teoria da sexualidade. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. XIX). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1923). pode constituir. Este, por sua vez, não suprime um elemento irredutível na feminilidade, incluindo-o no horizonte da psicanálise. Podemos dizer, portanto, que a psicanálise reivindica perscrutar essa dimensão não legível por meio da uniformidade de determinadas categorias. Admite tratar o informe como algo que não se inclui no particular da categoria. Diferente da perspectiva segundo a qual, como vimos, o que aqui abordamos é identificado a um espectro de transtornos, resposta fálica, do homem, ao que se mostra inconciliável.

Como vimos, a atenção preventiva e terapêutica ao cuidado com o infans, centrando-se na patologização da mãe, em sua conduta puerperal, esforça-se por desconhecer que a maternidade não é necessariamente resolutiva à feminilidade. Concomitantemente, preconiza para a mulher um ideal de como se conduzir em tal relação, prescrição essa que visaria o bem do par materno-infantil. Em sua discussão ética, referida à psicanálise, Lacan (1959-1960/1991)Lacan, J. (1991). O seminário. Livro 7. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1959-1960). alerta que o que se faz em nome do bem do outro pode se apresentar como uma via cruel: quero o bem do outro à condição de aniquilá-lo, visto o bem fazer barreira no sentido de não querer saber do que habita seu horizonte. Entendemos ser aqui o caso, na medida em que a redução dos impasses da mulher, no que concerne à maternidade, a categorias psicopatológicas acarreta o desconhecimento do que do feminino eventualmente se pronuncia nessa situação.

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    Artigo parcialmente baseado na tese Uma verdadeira mulher em sua inteireza de mulher: o feminino em psicanálise por Medéia e Madeleine Gide, 2015, Universidade Federal de Santa Catarina.
  • Financiamento/Funding: Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (Brasília, DF, Br) / This research is funded by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (Brasília, DF, Br).

Referências

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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2017
  • Aceito
    15 Jul 2017
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