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Psicanálise e homofobia: o infamiliar na sexuação

Psychoanalysis and homophobia: the uncanny in sexuation

Psychanalyse et homophobie: l'inquietante étrangeté dans la sexuation

Psicoanálisis y homofobia: lo extraño en la sexuación

Resumos

De que forma o infamiliar (das Unheimliche) formulado por Freud pode nos ajudar a localizar uma parte do que está em jogo nas homofobias e transfobias? Partindo de seis relatos de ataques homofóbicos recolhidos em notícias de jornal, teceremos algumas considerações visando articular o infamiliar à tábua da sexuação de Jacques Lacan, por meio da orientação que o objeto a nos fornece. Debruçando-nos sobre os casos recolhidos, sintetizamos da seguinte forma o que se passa nessas situações: o “viado” é tomado como “mulher”, por parte de alguém que parece se situar numa posição de “macho”. Diante disso, proporemos uma dupla via de leitura: por um lado, pela irrupção de algo do feminino que angustia o “macho”; e, por outro, pela exposição do fato de que, no fundo, o falo não passa de um pedaço de carne que não garante ao sujeito uma posição viril.

Palavras-chave:
Infamiliar; homofobia; objeto a; falo


In what way might the uncanny (das Unheimliche) help us locate part of what is at stake in homophobias and transphobias? Drawing upon six accounts of homophobic attacks, recovered from newspapers, we intend to make some contributions articulating the uncanny to the graph of sexuation, hence utilizing the orientation that the object a provides us with. As we discuss the collected cases, we synthesize in the following manner what seems to happen in these situations: the “faggot” is taken as a “woman” from the perspective of someone who situates himself in a “male” position. Thus, we propose two different readings: on the one hand, by irruption of something feminine that anguishes the “male” and, on the other hand, by the exposition of the fact that, deep down, the phallus is nothing but a piece of flesh that doesn't ensure the subject a virile position.

Key words:
Uncanny; homophobia; object a; phallus


Dans quelle façon l'inquiétante étrangeté (das Unheimliche) peut-elle nos aider à localiser une partie de ce qui est en question dans les homophobies et les transphobies ? Nous utilisons six articles de journaux décrivant des attaques homophobes pour élaborer quelques considérations en mettant en rapport l'inquiétante étrangeté et le tableau de la sexuation par moyen de l'orientation que nous fournit l'objet a. En discutant ces cas, nous synthétisons ce qui se passe dans ces situations de la manière suivante : le « pédé » est abordé comme « femme » par quelqu'un qui apparemment se situe dans une position de « mâle » dans la sexuation. Cela dit, nous proposons une doble voie de lecture : d'une part, par l'irruption de quelque chose du féminin qui angoisse le « mâle » et d'autre part, par l'exposition du fait que, au fond, le phallus n'est qu'un morceau de viande qui ne garantit pas la position virile du sujet.

Mots clés:
Inquietante étrangeté ; homophobie ; objet a ; phallus


¿De qué manera lo extraño (das Unheimliche) puede ayudarnos a localizar una parte de lo que está en juego en lo relacionado con las homofobias y transfobias? Partiendo de seis relatos de ataques homofóbicos recopilados en noticias de periódico, haremos algunas consideraciones con el fin de articular lo extraño al esquema de la sexuación, a través de la orientación que el objeto nos ofrece. Analizando los casos reunidos, resumimos de la siguiente forma lo que pasa en dichas situaciones: el “maricón” es asumido como “mujer”, por parte de alguien que parece situarse en una posición de “macho”. Frente a eso, proponemos una doble vía de lectura: por un lado, por la irrupción de algo de lo femenino que angustia al “macho”; y, por otro, por la exposición del hecho de que, en el fondo, el falo no es más que un pedazo de carne que no le garantiza al sujeto una posición viril.

Palabras claves:
Lo extraño; homofobia; objeto a; falo


Ao nos debruçarmos sobre os relatórios de assassinatos de pessoas LGBTs — a exemplo do relatório anual feito pelo Grupo Gay da Bahia, na ausência de estatísticas oficiais do Estado —, salta aos olhos a brutalidade com que muitos desses crimes são realizados, fazendo pensar que, de fato, não se trata apenas de homicídios, de crimes comuns ou crimes passionais, mas especialmente de crimes de ódio (Efrem Filho, 2016Efrem Filho, R. (2016). Corpos brutalizados: conflitos e materializações nas mortes de LGBTs. Cadernos Pagu, 46, 311-340, jan.-abr./2016. Recuperado em 6 maio 2019 de: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-4449-cpa-46-0311.pdf>.
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n46/1809-44...
). Golpes de faca peixeira no ânus, o pênis decepado e colocado na boca da vítima, extração do coração, desmembramento do corpo, deformação do rosto a facadas ou pedradas, carbonização, espancamento, inúmeros tiros e/ou facadas. Tais requintes de crueldade dirigidos ao corpo das vítimas, com frequência articulados às regiões genitais, fornecem uma pista para o entendimento de que, muitas vezes, esses crimes são motivados por homofobia ou transfobia — um tipo de ódio específico, mobilizado pelas normas da cis-heterossexualidade e endereçado à população LGBT.

Essa série de elementos corporais desprendidos de seu suporte, bastante recorrentes nos crimes homofóbicos, pare- ce corresponder a alguns dos fatores descritos por Freud (1919/2019)Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919). como responsáveis pela sensação de infamiliaridade [Unheimlichkeit]. No texto freudiano que leva esse mesmo nome, o infamiliar (“das Unheimliche”) diz respeito a algo do secreto e do oculto que, mesmo tendo sido recalcado pelo sujeito, acabou por vir à luz, provocando uma sensação angustiante de ser confrontado a algo do íntimo que o sujeito não reconhece como tal. Nesse sentido, o psicanalista nos fornece, entre outros, os seguintes exemplos: “Membros cortados, uma cabeça decepada, uma mão separada do braço [...] têm algo de extremamente infamiliar”, na medida em que se relacionam ao “complexo de castração” (Freud, 1919/2019, p. 93Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919).). No entanto, tais elementos corporais, nessa passagem do texto de Freud, são alegadamente retirados dos contos fantásticos, de forma que sua consideração pareceria restringi-los ao âmbito da ficção:

O infamiliar da ficçãoda fantasia, da criação literária — [é] muito mais rico do que o infamiliar das vivências. Ele não só o abrange na sua totalidade, como é-mbém aquele que não aparece sob as condições do vivido. (p. 107; grifos nossos)

Se, por um lado, a literatura de fato permite uma liberdade criativa muito maior do que o âmbito do vivido, por outro, é um pouco desconcertante que essa abordagem freudiana de 1919 — escrita às vésperas da invenção da pulsão de morte — pareça deixar de lado uma dimensão da violência que talvez se ligue a algo de infamiliar efetivamente encontrado nas vivências. Afinal, Freud não considera em seu texto a possibilidade violenta de aparição desses pedaços corporais na experiência do sujeito; ele parece confinar tais aparições aos contos fantásticos, sendo que o seu próprio trabalho contém elementos para desdobrar esse aspecto vivido do infamiliar. Nesse caso, precisaríamos nos arriscar a ir além de Freud e perguntar: poderiam os requintes de crueldade que encontramos nos crimes de homofobia e transfobia nos confrontar com um ponto de infamiliaridade ainda mais angustiante do que aqueles que encontramos nos contos literários?

Butler e a estranheza do abjeto: a bicha feminizada e a sapatão falicizada

Em Bodies that matter, Judith Butler (1993)Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge. faz uma interpelação decisiva à psicanálise lacaniana. Partindo da noção de performatividade, definida como os mecanismos linguísticos de repetição ou reiteração de certas normas ao longo do tempo, que produzem como efeito sedimentado e naturalizado a estabilização ilusória de uma dada identidade ou uma dada noção de corpo, a filósofa relê a ordem simbólica em Lacan como um conjunto de normas sociais performativamente reiteradas, e não como uma ordenação a-histórica, eterna ou imutável que estaria isenta de toda possibilidade de transformação social.

Butler (1993)Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge. sugere que, com a noção de Simbólico, o psicanalista teria reificado um arranjo de subjetivação heterossexual, em que as posições de “homem viril” e de “mulher feminina” seriam as únicas realmente possíveis, não se prestando a nenhum tipo de modificação ou subversão. Dessa maneira, a narrativa de Lacan quanto à assunção do “tipo ideal do sexo” não passaria de uma citação performativa das normas de gênero, em que as identidades coerentes de “homem” e “mulher” são coercitivamente instaladas a partir de um ideal straight advindo da heterossexualidade normativa.

Se nos debruçamos sobre O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente, efetivamente encontramos aí que a identificação aos ideais do Simbólico é o que faz “com que o homem assuma o tipo viril e com que a mulher assuma um certo tipo feminino, se reconheça como mulher, identifique-se com suas funções de mulher”1 1 Poderíamos nos perguntar sobre as inflexões que se introduziriam nesse ponto ao considerarmos a identificação viril que, desde o Seminário 3, já era tomada como estrutural na constituição subjetiva da menina. Pois a proposta de Lacan nesse Seminário (e que certamente terá suas consequências na lógica da sexuação) é a de que a identificação da menina não é simétrica à do menino, pois é, antes, a mesma que a dele, isto é, masculina (uma identificação viril). Como se o “ideal feminino” com o qual a menina deveria se identificar, no fundo, não pudesse fornecer uma consistência para seu ser — proposta cuja radicalidade talvez só seja extraída no Seminário 20, a partir do não-todo e da inexistência d'A mulher. (Lacan, 1957-58/1999, p. 171Lacan, J. (1999). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58).). De forma que virilidade e feminização são os termos que traduziriam a função do Édipo, pela transmissão das insígnias que virão constituir o Ideal do Eu. Nesse momento da obra lacaniana, o Simbólico é o modo pelo qual o psicanalista faz uma articulação entre o Édipo e a castração, pautado pelas identificações ideais que regulam a constituição normativa do sujeito. Assim, nessa acepção do termo, a ordem simbólica diria respeito ao veículo de certas normas herdadas da tradição, que permitiriam ao sujeito encontrar um lugar na cadeia das gerações. E é nesse ponto que se insere a questão da filósofa.

Tomando a “assunção do sexo” como uma demanda simbólica de que sejam incorporados certos ideais normativos do gênero, Butler (1993)Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge. se pergunta quais são os destinos da homossexualidade abjeta nessa narrativa do Simbólico lacaniano. Isto é, quando uma criança dotada de pênis se identifica como um homem viril, quais seriam os destinos psíquicos da figura da bicha feminizada? O argumento da filósofa é de que, no cenário da constituição subjetiva orientada pelo ideal heterossexual do Édipo, o Simbólico pressupõe duas ausências estruturantes que constituem a homossexualidade abjeta: a bicha feminizada e a sapatão falicizada (“the feminized fag”, “the phallicized dyke”) (Butler, 1993, p. 96Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge.).

Seguindo o raciocínio de Butler (1993)Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge., para que o Ideal heterossexual funcione como tal, a homossexualidade precisa ser situada no campo da abjeção. Assim, o terror em identificar-se com a bicha e a sapatão estaria implícito no relato de Lacan, na medida em que a castração, lida aí como uma ameaça de punição, situaria tacitamente essas duas figuras como posições aterrorizantes que o sujeito não deveria ocupar. Desse modo, ambas seriam estruturantes do Simbólico lacaniano, por sua ausência silenciosa entre os ideais edípicos do homem viril e da mulher feminina. A filósofa parece localizar aí uma estranheza íntima às normas simbólicas da tradição, ao desvelar aquilo que precisa ser apagado para que o Ideal possa manter seu brilho.

A homossexualidade abjeta se tornaria, portanto, aquilo que resta inarticulado nas identificações ideais do Édipo, ao mesmo tempo que as organiza. Esse gesto de Butler (1993)Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge. parece trazer à tona um estranho elemento que deveria permanecer oculto no Simbólico lacaniano, mas de algum modo veio à luz; trata-se da persistência ou reaparição espectral dessa forma de duplo do sujeito heterossexual, sob as roupagens da bicha feminizada e da sapatão falicizada.2 2 Cumpre frisar que as homossexualidades estão longe de se restringirem apenas às figuras ainda binárias da bicha afeminada e da sapatão viril (Butler, 1993, p. 110). No entanto, seguindo a leitura de Butler, tomaremos a bicha feminizada como uma espécie de personagem conceitual, que nos orientará para pensar as incidências do infamiliar na norma do “macho”. Em seu argumento, a homossexualidade abjeta parece assombrar a hegemonia simbólica como esse espectro estranho-familiar. O que está em jogo é o aparecimento inquietante de alguma coisa que não se acomoda na imagem narcísica, na especularidade narcísica do eu e do semelhante — como o surgimento espectral do duplo de Freud (1919/2019)Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919). no vagão de trem, e mesmo como a aparição pública de uma bicha, por exemplo, que aqueles que se colocam na posição sexuada do “macho” frequentemente não conseguem suportar.

A pergunta de fundo de Butler nesse raciocínio parece ser a seguinte: quais são os destinos da homossexualidade abjeta na constituição normativa do sujeito no Simbólico lacaniano? No relato que encontramos particularmente no Seminário 5, o sujeito parece se identificar apenas com o Ideal — o ideal viril, no caso do homem, e o ideal feminino, no caso da mulher. Qual destino subjetivo teriam as figuras da abjeção? A hipótese da autora é de que o sujeito em sua constituição normal não pode se identificar com essas figuras porque, no fundo, uma identificação inconsciente — com essas mesmas figuras — já ocorreu (Butler, 1993, p. 112Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge.).

Dessa forma, a filósofa situa, no coração da identificação heterossexual, uma identificação com a homossexualidade abjeta que nunca deve aparecer e da qual o sujeito não quer saber. Donde sua formulação de que a coerência da identidade é baseada no repúdio de uma identificação inconsciente que atravessa o sujeito. Afinal, uma denegação radical de alguma coisa, tal como acontece com a homossexualidade nas formas normativas da heterossexualidade, pode também sinalizar uma identificação inconsciente com aquilo que é rejeitado pelo eu (Butler, 1993, p. 113Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge.). No limite, o que Butler sustenta é que há um resto repudiado que insiste em toda tentativa de determinação coerente da identidade.

Poderíamos aproximar esse resto irredutível ao que Lacan elaboraria, alguns anos depois, com o seu objeto a? Se, na época do Seminário 5, o psicanalista parece ter se restringido a apontar a faceta ideal e normativa das identificações, gerando uma espécie de mal-estar na teoria do simbólico, foi apenas no Seminário 10 que ele veio a se debruçar sobre aquilo que resta aquém do Ideal, a dimensão do resíduo, do dejeto, do objeto a (Lacan, 1962--63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).). Ao mesmo tempo, é certo que a complexidade do ensino lacaniano não nos permite fazer uma narrativa demasiado simplificadora, como se a década de 1950 fosse um período normativo da obra que só se atenuaria pela invenção do objeto a. Afinal, já no Seminário 5, o psicanalista afirma que seu projeto levaria a uma “crítica das identificações normativas, precisamente, do homem e da mulher” (Lacan, 1957-58/1999, p. 315Lacan, J. (1999). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1957-58).).

Assim, desde os anos 1950, o que encontramos em Lacan não é uma mera reiteração impensada das normas de gênero, como os trabalhos de Butler (1993)Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge. às vezes permitiriam inferir. Antes, a obra do psicanalista coloca uma questão sobre o fracasso estrutural de nossa sujeição ao simbólico, franqueando ao sujeito a possibilidade de ir além das normas da tradição que incidiram sobre seu corpo. Essa reflexão desembocaria, nos seminários subsequentes, na escrita do S(Ⱥ), lido como a incompletude da ordem simbólica, que não oferece nenhuma garantia às nossas identificações, e na formulação do objeto a como resíduo irredutível ao significante, para além das estruturas normativas do parentesco heterossexual (cf. Lima & Vorcaro, 2019Lima, V. M., & Vorcaro, A. M. R. (2019). A solução de Daniela Andrade: a identidade de gênero como assunção de um significante. In M. Lasch, & N. V. de A. Leite (Orgs.), Anatomia destino liberdade (pp. 475-484). Campinas, SP: Mercado de Letras.). Partindo da figura abjeta da bicha feminizada que Butler nos entrega, pode a elaboração lacaniana do objeto a — e sua posterior escrita na sexuação — nos orientar na circunscrição de uma parte do que está em jogo nas homofobias?

Os relatos dos ataques

Seguindo a observação de Gómez (2007)Gómez, M. M. (2007, dez.). Violencia, homofobia y psicoanálisis: entre lo secreto y lo público. Revista de estudios sociales, 28, 72-85. Recuperado em 6 maio 2019 de: <http://www.scielo.org.co/pdf/res/n28/n28a05.pdf>.
http://www.scielo.org.co/pdf/res/n28/n28...
, sabemos que existem muitos trabalhos sobre psicanálise e homossexualidade, bem como sobre a homofobia interiorizada em indivíduos e também em certos momentos da teoria e da prática psicanalíticas; no entanto, não há tantos trabalhos que se sirvam da psicanálise para debater as dinâmicas de violência física (e verbal) contra as sexualidades não normativas. Inserindo-nos nessa lacuna, tomaremos como base de nosso trabalho alguns ditos proferidos por agressores e recontados por vítimas de ataques motivados por homofobia, tal como os recolhemos de uma série de notícias de jornal.

Essa escolha se deu na medida em que, de maneira geral, esses agres-sores não procuram análise ou psicoterapia. Diante do silêncio desses sujeitos em relação a seus próprios atos, as situações de violência homofóbica veiculadas pela mídia se tornam um meio público de acesso a esse tipo de conteúdo a partir do relato dos sobreviventes. Partiremos então de seis relatos desse tipo de ataque, tomando como recorte as violências que são dirigidas a homens cis gays afeminados (a “bicha”, o “viado”) — sujeitos que, como muitas das mulheres trans e travestis, ocupam posições lidas como femininas, desafiando as normas de gênero tradicionais.

No primeiro relato, ocorrido em julho de 2018, Lucas Souza, de 23 anos, estava numa praia em Santos com uma amiga. Ele conta: “Tínhamos acabado de sair do mar e fomos ao chuveiro que fica no calçadão, para sair da praia e assistir ao jogo do Brasil. Eu fui pedir um isqueiro para dois caras que estavam sentados próximos, e ali começou tudo”. “Eu tenho trejeitos [femininos], e aquele grupo logo percebeu”. “Fui xingado e, logo em seguida, mais quatro caras apareceram para me bater”. Ele recebeu chutes na cabeça, no estômago e socos no rosto a ponto de desmaiar. “A minha amiga que viu tudo e me ajuda a lembrar. Eles gritaram para mim: ‘vai ter que apanhar para deixar de ser veadinho'. Foi quando ela foi tirar satisfação, e os seis começaram a me bater. Eu meio que desmaiei, e foi quando eles fugiram” (Querino, 2018Querino, R. (2018, 12 jul.). Depoimento de jovem gay que sofreu ataque homofóbico em Santos viraliza nas redes sociais [Versão Eletrônica]. Observatório G. Recuperado em 15 abr. 2019 de: <https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/2018/07/depoimento-de-jovem-gay-que-sofreu-ataque-homofobico-em-santos-viraliza-na-redes-socias>.
https://observatoriog.bol.uol.com.br/not...
).

No segundo relato, ocorrido em abril de 2017, Lucas Ferreira, de 21 anos, a caminho do trabalho em Juiz de Fora, foi interceptado por um grupo de sete rapazes, munidos de bastão de madeira e usando touca e capuz. Um deles, com um artefato na mão semelhante a um coquetel molotov, arremessou o explosivo contra o rapaz. Nesse momento, Lucas ouviu dos agressores: “Não queremos viado andando na nossa área”. Em razão do estouro, ele sofreu queimaduras de segundo grau na cabeça, face, tórax e braço. “Cercaram-me, e fiquei sem reação. Disseram que não queriam viado naquela área. Fui cercado e não consegui falar nada. Só ouvia: viado, viado, viado, quando tamparam o artefato contra mim”, desabafa o jovem (Araújo & Zanella, 2017Araújo, M., & Zanella, S. (2017, 26 abr.). Jovem é atacado por ser gay e negro [Versão Eletrônica]. Tribuna de Minas. Recuperado em 15 abr. 2019 de: <https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/26-04-2017/jovem-e-atacado-por-ser-gay-e-negro.html>.
https://tribunademinas.com.br/noticias/c...
).

No terceiro relato, ocorrido em setembro de 2014, Gabriel Kowalczyk, de 18 anos, foi agredido duas vezes perto de sua casa, em Interlagos, zona sul de São Paulo. Na última, em setembro, foi atacado por três homens, que, no momento da agressão, repetiam para ele: “Você quer ser mulher? Então agora vai apanhar como mulher”. Gabriel pensa que alguém do próprio bairro pode ter ordenado o espancamento (Montenegro, 2014Montenegro, R. (2014, 21 nov.). Quem são os agressores de homossexuais. Istoé, 2348. Recuperado em 15 abr. 2019 de: <https://istoe.com.br/393402_QUEM+SAO+OS+AGRESSORES+DE+HOMOSSEXUAIS/>.
https://istoe.com.br/393402_QUEM+SAO+OS+...
).

No quarto relato, ocorrido em março de 2017, um casal de Araraquara (SP) alega ter sido agredido por dois homens, após terem se abraçado em uma praça. Douglas Braga, de 22 anos, e Pablo Marton, de 23 anos, contam que foram abordados pelos agressores ao saírem de uma festa: “Quando nos abraçamos eles disseram: ‘são duas bichinhas'. Um deles deu um chute na minha costela, o outro veio por trás e chutou a cabeça do Douglas. Depois bateu na cabeça dele com uma pá”, contou Marton (Segnini, 2017Segnini, C. (2017, 15 mar.). Casal gay é espancado com pá após abraço e alega homofobia: ‘bichinhas' [Versão eletrônica]. G1 São Carlos e Araraquara. Recuperado em 15 abr. 2019 de: <http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao/noticia/2017/03/casal-gay-e-espancado-com-pa-apos-abraco-e-alega-homofobia-bichinhas.html>.
http://g1.globo.com/sp/sao-carlos-regiao...
).

No quinto relato, ocorrido em dezembro de 2018, Plínio Lima andava na Avenida Paulista de mãos dadas com o namorado quando dois homens se aproximaram e começaram a insultá-los, fazendo troça e chamando-os de “viado”. Quando Plínio tentou responder aos homens, um deles sacou um canivete e atingiu Plínio no peito, levando-o a óbito. De acordo com o depoimento do assassino à polícia, ele teria feito uma “brincadeira” com a vítima, dizendo: “Anda que nem homem”. Já o marido de Plínio e os dois amigos relatam que “o tempo todo [o agressor] vinha falando frases de cunho homofóbico, provocando, falando frases bem fortes, tipo: ‘seus bichinhas', e no final falou ainda: ‘gays têm de morrer'” (Ribeiro, 2018Ribeiro, A. (2018, 22 dez.). Cabelereiro é morto a facadas na avenida Paulista, em São Paulo [Versão Eletrônica]. O Globo. Recuperado em 15 abr. 2019 de: <https://oglobo.globo.com/brasil/cabeleireiro-morto-facadas-na-avenida-paulista-em-sao-paulo-23323368>.
https://oglobo.globo.com/brasil/cabeleir...
).

No sexto relato, ocorrido em novembro de 2018, uma mulher (cisgênero) de 31 anos sofreu ofensas homofóbicas e agressões no centro do Rio de Janeiro. Ela esperava na calçada a mãe estacionar o carro numa avenida, quando o guardador de veículos do local começou a gritar: “Viadinho, filho da puta, viadinho de merda”. Na sequência, estufando o peito, ele passou a empurrá-la, até que outro guardador de carros o contivesse. Deborah Lourenço estava com cabelos bastante curtos devido às sessões de quimioterapia, que faz para tratar um câncer de mama. Ela foi confundida pelo agressor com um homem gay afeminado (Brito, 2018Brito, C. (2018, 24 nov.). De cabelos curtos devido a quimioterapia, educadora relata agressão e ataque após ser confundida com homossexual no Rio. G1 Rio. Recuperado em 15 abr. 2019 de: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/11/24/de-cabelos-curtos-devido-a-quimioterapia-educadora-relata-agressao-e-ataque-homofobico-no-rio.ghtml>.
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
).

Desses relatos sobre os quais nos debruçamos, recortamos os ditos centrais enunciados pelos agressores no momento dos ataques. As situações envolviam cenas cotidianas que deveriam ser banais: um casal se abraçando na rua ou andando de mãos dadas, um jovem indo para o trabalho, caminhando em seu próprio bairro, e mesmo a mera aparição pública dessas pessoas, recebida com xingamentos e agressões: “Vai ter que apanhar para deixar de ser viadinho”. “Não queremos viado andando na nossa área”. “Viado, viado, viado”. “Você quer ser mulher? Então agora vai apanhar como mulher”. “São duas bichinhas”. “Anda que nem homem”. “Gay tem que morrer”. “Viadinho, filho da puta, viadinho de merda”. A partir desses ditos, teceremos algumas considerações lacanianas acerca das homofobias, buscando localizar uma parte do que está em jogo nessas ocorrências a partir da releitura que Lacan faz do infamiliar pela via do objeto a, desdobrando-o na lógica da sexuação.

Angústia diante do feminino: a degradação viril do Outro a um objeto (a)

Uma primeira pista para entrarmos no debate é a importância, nessas situações, da dimensão de depreciação, de degradação do Outro a um objeto: “bichinha”, “viadinho de merda”. Essa estratégia de objetificação do Outro — e, particularmente, um objeto-dejeto — nos coloca na trilha da lógica masculina da sexuação, pela depreciação ou degradação (Erniedrigung) que, desde Freud (1912/2018)Freud, S. (2018). Sobre a mais geral degradação da vida amorosa. In Obras Incompletas de Sigmund Freud – Amor, sexualidade, feminilidade (Vol. 7, pp. 137-154). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1912)., marca a vida amorosa dos homens. Nesse texto, o psicanalista observa que o rebaixamento do objeto é, para muitos homens, uma condição para que possam desempenhar o ato sexual. Com esse gesto, esses homens buscam se certificar de que estão se relacionando não tanto com a mãe idealizada (o objeto incestuoso proibido), mas com uma mulher rebaixada, que, por não ser tão digna de respeito, permitiria a entrada do elemento sexual, a partir da degradação e da abjeção.

Nos casos de homofobia aqui discutidos, o xingamento e a injúria, índices da depreciação, parecem constituir um traço decisivo no encontro entre o “macho” agressor e o sujeito tido como homossexual, geralmente em função dos trejeitos afeminados. O que está em causa parece ser, de fato, algo que concerne ao objeto-merda, objeto-dejeto, um “abjeto” (Lacan, 1973/2003b, p. 524Lacan, J. (2003b). Televisão. In Outros escritos (pp. 508-543). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973).), que é localizado pelo sujeito do lado do Outro, rebaixando-o a um objeto depreciado. Enquanto Freud atribui essa operação à iminente proximidade do objeto incestuoso idealizado, que precisa ser depreciado para evitar a possibilidade de sua presença, aqui parece ser a posição do próprio sujeito como objeto diante do Outro que está sendo afastada. O lugar do “macho” é constituído, assim, por uma forte recusa da posição de objeto (traço que feminizaria o sujeito), atribuindo essa posição à “bicha” e às mulheres. No entanto, esse mesmo traço já faz parte de sua constituição subjetiva, na medida em que cada sujeito vem ao mundo inicialmente no lugar de um objeto para o Outro, como veremos mais adiante.

Uma segunda pista pode ser extraída dos seguintes ditos: “Vai ter que apanhar para deixar de ser viadinho”; “Você quer ser mulher? Então agora vai apanhar como mulher”. Essa ideia de que o “viado” deve “apanhar” (articulada à presunção de que, por ser afeminado, ele quereria ser “mulher”) nos remete à suposição de que existiria um masoquismo próprio ao feminino, o qual Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63). reduz a uma fantasia masculina. Esse suposto masoquismo feminino não passaria, então, da famosa degradação fantasmática do objeto sexual que marca o gozo fálico, dito masculino, na sexuação (Lacan, 1972-73/2008Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.(Trabalho original publicado em 1972-73).).

Mas o que esse tipo de suposição nos revela mais fundamentalmente é que o que está em jogo na homofobia é menos a realidade objetiva da vítima (suas identificações ou modos de gozo concretos) do que uma questão subjetiva do próprio agressor, tal como constrangido pela estrutura lógica da sexuação masculina. Nesse ponto, algo da ordem do fantasma parece entrar na cena, pois não necessariamente um sujeito homossexual goza na posição de objeto, mesmo que se trate de uma “bicha feminizada”. Dessa forma, é curioso que os homens agressores convoquem os homossexuais nesse lugar do feminino objetalizado, já que é a vertente masculina da sexuação que reduz o Outro a um objeto degradado para poder abordá-lo.

Em suma, nesses casos, a bicha passiva se revela uma fantasia do “macho”. Tal constatação nos orienta a trabalhar com a hipótese de que as homofobias podem ser situadas a partir do lado masculino da sexuação. Como desenvolveremos a seguir, trata-se aí de uma dupla via: a primeira, pela forma como o lado masculino aborda o lado feminino da tábua; e a segunda, pela maneira masculina de se organizar discursivamente. É na segunda via que encontraremos mais propriamente o componente infamiliar que parece se apresentar nas homofobias.

Figura 1
Tábua da sexuação

A lógica da sexuação, que Lacan (1972-73/2008)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.(Trabalho original publicado em 1972-73). nos apresenta em O seminário. Livro 20. mais, ainda, diz respeito a duas posições de satisfação não complementares entre si: o gozo todo fálico e o gozo não-todo fálico. Do lado esquerdo da tábua, o gozo fálico se define pela solidão do fantasma [($ ◊ a)], que produz uma satisfação masturbatória definida como gozo do idiota, uma vez que por essa via não há acesso ao Outro: só se goza da mesmidade da sua própria fantasia. Do lado direito, o não-todo é o que permite acessar algo do Outro, por não se submeter inteiramente ao roteiro autístico do falo [Φ], ao articular o gozo à experiência do amor e da abertura à alteridade, ao heteros [S(Ⱥ)].

Diante disso, sabemos que quem se aferra à posição masculina na sexuação pela crença no viril só parece conseguir convocar alguém da posição feminina a partir da redução desse Outro a um objeto; quem ocupa — ou parece ocupar — a posição feminina é assim convocado a partir da fantasia masculina — uma fantasia que tem a ver com a degradação fetichista do objeto amoroso. O recurso à objetificação vem, assim, localizar no abjeto um inapreensível da lógica dita feminina. Ainda que, na sexuação, o gozo feminino não seja redutível à posição de objeto (e podemos supor que Lacan escreve a tábua para justamente distinguir melhor entre o feminino e o objeto a enquanto fantasia masculina), a posição de objeto participa do lado feminino da lógica da sexuação, ao menos segundo a forma com que o “macho” aborda a dimensão do não-todo.

Talvez pudéssemos até mesmo extrair desse ponto uma leitura psicanalítica do insulto: com a injúria (a exemplo do xingamento de “viado”, como vimos acima), trata-se de reduzir a um objeto-dejeto cada um que se recusa a entrar no pelotão do universal. Se o feminino implica um inapreensível (porque fora de universo), a objetificação busca localizar, nesse dejeto, algo do inapreensível — isto é, o insulto constituiria uma tentativa de localização precária do que escapa ao Um-niversal, reduzindo esse ponto de furo do Outro a um objeto degradado.

Esse mesmo objeto, o objeto a, é o que concentra em si o gozo, o desejo e também a angústia, mais além das representações narcísicas que o sujeito faz de si mesmo; talvez seja bem por isso que Lacan relê o Unheimliche freudiano pela via do objeto a. A esse respeito, podemos nos lembrar da passagem em que Freud (1919/2019)Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919). nos relata uma vivência infamiliar que ele mesmo experimentou, em um de seus passeios numa pequena cidade da Itália. O psicanalista nos conta ali de uma estranha compulsão à repetição na qual ele se percebe, perplexo, retornando a um reduto local de prostituição, do qual ele conscientemente tentara se desviar, mas, ao andar a esmo, se viu levado a um mesmo ponto:

[...] depois de um tempo em que vaguei sem direção, encontrei-me, subitamente, de novo na mesma rua, onde, então, levantei os olhos e chamou-me a atenção que meu apressado afastamento teve como consequência ter tomado, pela terceira vez, um novo desvio. (Freud, 1919/2019, p. 75Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919).)

Foi em relação a essa estranha forma de repetição, que o levava conti-nuamente às “mulheres maquiadas nas janelas”, que Freud localizou uma sensação de infamiliaridade. Segundo Rocha e Iannini (2019)Rocha, G. M., & Iannini, G. (2019). O infamiliar, mais além do sublime. In S. Freud. Obras Incompletas de Sigmund Freud – O infamiliar (Vol. 8, pp. 173-198). Belo Horizonte, MG: Autêntica., trata-se aí de um “efeito de angústia gerado pela estranha sensação de aproximação contínua daquilo de que, conscientemente, deseja-se distanciar-se” (p. 189). É precisamente esse “elemento de não identidade” a irromper no seio do sujeito, por meio de sua aproximação angustiante a um reduto de prostituição, que nos indica o caráter magnético, e mesmo fascinante, do abjeto, nome mais tardio do objeto a (Lacan, 1973/2003bLacan, J. (2003b). Televisão. In Outros escritos (pp. 508-543). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1973).). Este é o ponto que talvez defina a sensação do infamiliar, sob a roupagem da abjeção: parece haver um estranho magnetismo no abjeto, um ponto de repetição enigmática que divide o sujeito, gerando um efeito de infamiliaridade.

É nesse sentido que Lacan relê a Unheimlichkeit pela via do objeto a, indicando que o objeto que angustia é o mesmo que causa o desejo; ou mesmo o contrário: que o objeto que causa desejo é o mesmo que angustia. Tudo depende de como esse objeto aparece para o sujeito, se dentro ou fora do marco regulatório do fantasma. No infamiliar, o que está em jogo é a reaparição de algo do íntimo que o sujeito não pode reconhecer como próprio, levando-o a estranhar, com angústia, a irrupção desse elemento inquietante. É essa experiência do Unheimliche que aos poucos conduzirá Lacan a localizar um regime de apreensão do objeto que não passa pela imagem narcísica. Afinal, na época do Seminário 2, os objetos do mundo, por se organizarem ao redor da “sombra errante” do próprio eu, eram considerados narcísicos (Lacan, 1954-55/2010, p. 226Lacan, J. (2010). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (2ª ed.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1954-55).). O eu seria responsável por regular esse mundo dos objetos, dando-lhes uma consistência a partir de sua própria imagem, de forma que todos os objetos teriam um caráter antropomórfico e mesmo egomórfico.

Entretanto, há em Lacan a progressiva descoberta de um outro tipo de objeto que é radicalmente estranho ao eu: ele será nomeado como pequeno a, um objeto que não tem imagem especular e não obedece aos protocolos narcísicos do eu do sujeito (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).). A esse respeito, no Seminário 6, Lacan (1958-59/2016)Lacan, J. (2016). O seminário. Livro 6. O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1958-59). já nos fornecia uma “pincelada” do que estaria por vir nos anos subsequentes. Ele ali afirma que o Unheimliche estaria ligado “a esse tipo de desequilíbrio que se produz na fantasia quando, ultrapassando os limites a ela atribuídos de início, ela se decompõe e vem se juntar à imagem do outro” (p. 344). Trata-se aí de uma crescente consideração do objeto a, inscrito na estrutura da fantasia [($a)], como um objeto que regularmente opera no sujeito fora do campo do eu. Mas, quando o a aparece ao lado da imagem especular [i(a)], desfazendo sua consistência, emerge a sensação de estranheza que constitui a Unheimlichkeit.

É essa perspectiva que Lacan avançará no Seminário 10, pela articulação entre o infamiliar e a angústia. Nos casos de homofobia ora discutidos, o que parece estar em jogo é precisamente a angústia do “macho” frente a alguém que parece — ou tem permeabilidade a — ocupar uma posição dita feminina. Em boa parte desses relatos, o “viado” é tomado como “mulher” — por parte daqueles que se situam numa posição de “macho”. Podemos, assim, nos perguntar se a homofobia seria mobilizada por uma desestabilização que parece se produzir na fantasia, a partir do encontro entre o “macho” e algo que ele não pode reconhecer na imagem especular, algo na bicha feminizada que ele não pode situar dentro das suas categorias do entendimento, produzindo angústia (Lacan, 1962-63/2005, p. 134Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).).

Sob a roupagem da bicha, o abjeto traz para a cena a posição de objeto e, mesmo, o lugar de dejeto. Talvez seja possível uma leitura dos crimes de homofobia a partir daí, pois é essa a posição objetalizada (que se torna atrelada à posição feminina) da qual o neurótico (especialmente o “macho”) não quer saber: o objeto a injeta um efeito feminizante no “macho”, que, como todo ser falante, já ocupou a posição de objeto para o Outro (Lacan, 1969-70/1992Lacan, J. (1992). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-70).). Nessa medida, podemos pensar que a “bicha feminizada” coloca em cena essa posição de objeto que costuma ser recalcada pelo neurótico em sua fantasia inconsciente, isto é, a dimensão insuportável do feminino, que constituiu o limite freudiano da análise para os homens, o repúdio da feminilidade: adotar uma postura passiva — de objeto — frente a outro homem (Freud, 1937/2017Freud, S. (2017). A análise finita e a infinita. In Obras Incompletas de Sigmund Freud – Fundamentos da clínica psicanalítica (Vol.6, pp. 315-364). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1937).).

Aproximamo-nos aqui da ideia de que há uma dimensão da homofobia ativada pela angústia, pela infamiliaridade do neurótico “macho” frente a um homem (ou frente a alguém dotado de um corpo com pênis) que pode não frequentar a posição masculina, a exemplo da bicha feminizada, das travestis e das mulheres trans. Esse ponto de angústia inoculado no “macho” pelos desviantes da norma nos permite entender a formulação lacaniana de que o normal não é mais que uma norma masculina (isto é, uma norma-macho [norme male], a partir do jogo com a escrita de normale e mâle, o “macho”) (Lacan, 1972/2003a, p. 480Lacan, J. (2003a). O aturdito. In Outros escritos (pp. 448-497). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1972).).

Partindo da lógica da sexuação, podemos localizar que a aparição pública da bicha feminizada implica a irrupção de um elemento Outro (dito feminino) no seio do Mesmo (dito masculino). Se o Universo masculino se pauta por um encadeamento do discurso que segue a norma-macho, que obedece a uma regra de formação e se apresenta conforme a nossa expectativa (de forma que podemos dizer “é isso mesmo”), designamos como Outro os elementos “cujo surgimento se desencadeia dessa sequência esperada, e apontam para fora do limite desse universo” (Teixeira, 2007, p. 34Teixeira, A. (2007). Do Mesmo ao Outro sexo. In A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura (pp. 33-42). São Paulo, SP: Annablume.). Assim, o feminino comparece como aquilo que, por uma infiltração, desestabiliza o encadeamento norme-mâle da realidade discursiva; no caso, o encadeamento da norma heterossexual — tal como vimos no sexto relato, em que o guardador de carros se angustia em relação ao aparecimento na cena de algo que não cabe em suas categorias do entendimento, algo que ele então toma como “viado”.

Se levamos em conta essa articulação do regime do Mesmo com o lado masculino da sexuação, a crença no viril se torna associada a uma fé nos ideais normativos, que produzem o encadeamento do discurso segundo a ordem do significante-mestre e de suas exigências de coerência identitária. Nesse contexto, a bicha feminizada vem colocar esses ideais em questão, ao denunciar que a posição sexuada não é um dado natural, na medida em que ela depende da assunção subjetiva de cada um, da forma como cada um aparelha seu corpo para o gozo, a partir da escolha forçada de seu inconsciente, mas exilado de toda garantia do Outro para sua identificação sexuada [S(Ⱥ)].

Nesse cenário, na dialética entre o “macho” e uma bicha, o primeiro busca no semelhante uma confirmação imaginária de sua própria virilidade, e o que se segue poderia se enunciar da seguinte forma: espero ver um outro que seja “macho” como eu (suponho que sou) — e me deparo com uma fratura do masculino: a posição feminizada de alguém que, mesmo dotado de pênis, não sustenta o ideal normativo da heterossexualidade, alguém que não parece se orientar pela norma do “macho”. “Anda que nem homem!”: esse dito nos permite supor que, ali, algo aparece na cena que o sujeito (suposto heterossexual) não pode tomar como Mesmo, como um semelhante. Ao contrário, o que se apresenta é algo de Outro que o angustia: “toda situação caprichosa, na qual este encadeamento necessário [do Mesmo] se desfaz, traduz-se, para o sujeito, como o sentimento de angústia que acompanha a perda da realidade” (Teixeira, 2007, p. 34Teixeira, A. (2007). Do Mesmo ao Outro sexo. In A soberania do inútil e outros ensaios de psicanálise e cultura (pp. 33-42). São Paulo, SP: Annablume.).

No Seminário 10, Lacan apresentava o Unheimliche como uma forma de aparecimento do objeto mais além dos protocolos narcísicos do eu, isto é, algo do objeto que aparece fora do enquadre inconsciente da fantasia, algo que não pode ser tomado como um semelhante, que desfaz a imagem narcísica e foge às categorias do entendimento, gerando uma incerteza intelectual (como propunha E. Jentsch), mas acrescido de algo do íntimo (Freud, 1919/2019Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919).). Nos casos aqui discutidos, parece que o íntimo se revela pela fantasia de que a bicha ocupa uma posição feminina, tal como todo sujeito pode ocupar na fantasia inconsciente. É a aparição a céu aberto de tal fantasia masculina que parece expor algo de um segredo, produzindo angústia.

Mas, se as pessoas trans, as travestis e as bichas angustiam o “macho”, por fazerem a posição de objeto aparecer mais além de seu enquadramento normativo, então essa operação parece desvelar algo do funcionamento norme-male da sexuação. A bicha feminizada, por exemplo, mesmo tendo um corpo dotado de pênis, ocupa uma posição que não condiz com o ideal viril, apresentando-se, portanto, mais além do enquadramento masculino da sexuação. Disso podemos depreender que a norma do “macho” tenta organizar relações normativas entre gênero e modos de gozo: que fique do lado esquerdo da tábua todo aquele que nasce com pênis; e que se restrinja ao lado direito cada um que nasce sem esse atributo. É esse funcionamento da norma heterossexual (que prescreve que o homem ocupe a posição viril e a mulher, uma posição feminina, proscrevendo trânsitos nessas posições) que cumpre esclarecer a partir de uma releitura da tábua da sexuação.

Ao nomear os dois lados da tábua como “masculino” e “feminino”, vale observar que Lacan está atento ao “aspecto performativo” da sexuação (Cossi, 2018, p. 325Cossi, R. K. (2018). Lacan e o feminismo: a diferença dos sexos. São Paulo, SP: Annablume.). Isto é, ele afirma explicitamente, no Seminário 20, que os termos “homem” e “mulher” são extraídos do uso corrente da linguagem (Lacan, 1972-73/2008, p. 40Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.(Trabalho original publicado em 1972-73).) e, por isso, são elementos que pertencem a um dado encadeamento discursivo que organiza a realidade socialmente partilhada, de forma que tais termos não passam de abreviaturas (p. 70). Diante disso, nossa hipótese é de que “homem” e “mulher” correspondem às formas historicamente constituídas de tentar distribuir os gêneros entre os modos de gozo, ao passo que o contemporâneo nos confronta precisamente com a desestabilização dos semblantes de gênero tradicionais (“homens” e “mulheres”) em relação aos modos de gozo (fálico e não-todo fálico) que eles vinham recobrir.

Assim, com Lacan (1972-73/2008, p. 86)Lacan, J. (2008). O seminário. Livro 20. Mais, ainda. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.(Trabalho original publicado em 1972-73)., podemos considerar que a tábua da sexuação não nos fornece atributos positivos que descreveriam necessária e respectivamente o gênero de “homens” e “mulheres”. Antes, encontramos ali duas posições de gozo, fálico e não-todo fálico, que podem ser assumidas por qualquer sujeito, independentemente de sua anatomia e de sua identificação de gênero. Com a sexuação, trata-se de uma “masculinidade sem homens”, como diria Jack Halberstam (1998)Halberstam, J. (1998). Female masculinity. Durham, NC: Duke University Press., e de um “feminino de ninguém”, como escreve Maria Gabriela Llansol (1994)Llansol, M. G. (1994). Lisboaleipzig 2: ensaio de música. Lisboa, PT: Rolim..

Partindo das violências dirigidas à bicha feminizada, podemos considerar que as normas de gênero seriam, no fundo, normas de gozo, que tentam fundir a diferença sexual com a distinção anatômica entre os sexos. Nessa versão da norma do “macho”, todo corpo dotado de pênis — e apenas esse tipo de corpo — deve ser constrangido a ocupar a posição masculina a todo custo; quem ousar desafiar essa ordem do discurso será punido com violência e morte, no espectro da abjeção. Nesse sentido, a norme male tenta legislar sobre quais corpos podem ocupar quais posições de gozo: ela tenta fazer a norma heterossexual funcionar como um Outro do Outro, como uma norma que permitiria operar o Juízo final das escolhas sexuadas no campo do Outro.

Nesse contexto, a homossexualidade é tomada pelo “macho” como uma posição feminizada de objeto, sendo que quem deveria ocupar essa posição, segundo a norma do “macho”, são apenas as mulheres, desde que reduzidas ao objeto a (isto é, sem acesso a nenhum Outro gozo [S(Ⱥ)]); nesses casos, portanto, algo do objeto aparece fora do enquadramento fantasmático do “macho”, angustiando o sujeito. Essa operação coloca à vista o fato de que cada sujeito, no inconsciente, ocupa ou já ocupou uma posição feminizada de objeto para o Outro, ao menos na fantasia inconsciente — como bem nos ilustram os testemunhos de passe de Santiago (2017)Santiago, J. (2017). O falasser mais além do binário homem-mulher. In A. L. Santiago, C. de F. Cunha, C. Vidigal, J. Santiago, L. Neves, & N. L. de Lima (Orgs.), Mais além do gênero: o corpo adolescente e seus sintomas (pp. 15-21). Belo Horizonte, MG: Scriptum., nos quais o ideal viril comparece justamente como uma defesa masculina do sujeito frente ao não-todo e à sua posição de objeto.

O infamiliar nas fraturas do masculino

Por mais que Freud (1919/2019, p. 95)Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919)., em seu texto sobre “O infamiliar”, tenha nos fornecido uma senha para pensarmos uma aproximação entre o unheimlich e o feminino, nossa hipótese é de que, em muitos casos de homofobia, o que está em questão não é apenas a abordagem viril do feminino, mas também a mostração angustiante de uma fratura interna ao próprio masculino. É nesse ponto que a infamiliaridade parece melhor se alojar. Passamos, agora, de uma primeira via que toma a angústia por uma irrupção do feminino, para uma segunda via, que localiza o infamiliar numa fratura do masculino.

Segundo o trabalho de Gómez (2007)Gómez, M. M. (2007, dez.). Violencia, homofobia y psicoanálisis: entre lo secreto y lo público. Revista de estudios sociales, 28, 72-85. Recuperado em 6 maio 2019 de: <http://www.scielo.org.co/pdf/res/n28/n28a05.pdf>.
http://www.scielo.org.co/pdf/res/n28/n28...
, inspirada nas discussões de S. Žižek, a ordem simbólica se organiza em torno de uma mentira, isto é, em torno da crença de que os homens têm o falo, uma mentira que não pode aparecer como tal, devendo, por isso, permanecer encoberta: “Este infortúnio masculino de estar (simbolicamente) castrado e, no entanto, obrigado a atuar como se não estivesse, cria a necessidade de formar e manter uma ordem social e simbólica que ‘compartilhe a mentira'” (p. 84; tradução nossa). Talvez seja exatamente essa mentira que a bicha feminizada denuncia como tal, ao expor que, no fundo, o falo não garante ao sujeito uma posição viril. Este é o segredo potencialmente revelado pela bicha feminizada, segredo que faz girar em torno de sua figura o estranho espectro da abjeção: que os homens também são castrados, que eles não possuem o falo.

Afinal, se abordamos o infamiliar como o retorno de algo secreto, recalcado, que deveria permanecer oculto, mas veio à tona (Freud, 1919/2019, p. 87Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919).), podemos localizar algo dessa ordem na aparição pública da bicha feminizada, que traz para a cena um elemento do íntimo que, segundo a norma do “macho”, deveria ter permanecido como segredo, mas apareceu. Uma vez que a bicha feminizada ocupa, na fantasia masculina, uma posição passiva de objeto, o falo é então revelado em sua verdade: que ele não passa de um “trapinho” (Lacan, 1962-63/2005, p. 288Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).), um menos-phi [(-φ)], bem diferentemente do grande Phi maiúsculo [Φ] que deveria honrar a posição viril como um cetro do poder. Tomada pela via da fantasia masculina, a bicha feminizada nos indica que o falo pode não passar de um pedacinho de carne, que não garante em nada a virilidade ou a posição sexuada de um sujeito.

Antes, quando encarnado nesse órgão caduco que é o pênis, o falo quase sempre assume uma sombra de ridículo, que embaraça o “macho” com a angústia de castração [(-φ)], presentificada pela detumescência e pela impotência que o assombram (Lacan, 1962-63/2005Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).). Sob a roupagem da bicha, o objeto a aparece fora do seu lugar rotineiro; ele aparece numa “lacuna do falo”, no lugar (-φ), que é uma das definições de Unheimliche que Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63). nos dá no Seminário 10: a infamiliaridade é o que acontece quando aparece “alguma coisa”, “uma coisa qualquer”, um objeto a, no lugar do (-φ), isto é, na lacuna do falo, ali onde o falo aparece fraturado, detumescido (p. 51).

Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63). ainda nos lembra que a definição do unheimlich é ser heimlich, pois é justo o que está no lugar do Heim que aparece para o sujeito como Unheim (p. 57). Dessa forma, o menos-phi é apontado em sua equivalência com o Heim, com a “ausência em que estamos”, para além da imagem de que somos feitos (p. 58). Desse modo, na releitura lacaniana, o familiar, íntimo e oculto, é o (-φ), que, mais adiante, no mesmo Seminário, Lacan traduzirá como o fato de que o falo não passa de um trapinho, nova roupagem da angústia de castração. Assim, o menos-phi como Heim é o ponto de falta em que cada um se encontra, sem disso querer saber, pois o neurótico tenta transformar esse (-φ) em um grande Φ maiúsculo, um Falo absoluto — afinal, é como esse grande Phi que o pequeno apêndice masculino é convocado a responder pela ordem do discurso, uma função discursiva em relação à qual o órgão fálico está sempre em preocupante desvantagem.

Assim, quando a suposta garantia viril é desvelada como um falo detumescido, o sujeito se angustia pela exposição desse segredo, de forma que a Unheimlichkeit é disparada, essa sensação angustiante de não se sentir em casa, mesmo dentro de casa (Iannini, 2019Iannini, G. (2019). Estética, clínica e política em “Das Unheimliche”. Derivas analíticas, 11. Recuperado em 20 mar. 2020 de: <http://www.revistaderivasanaliticas.com.br/index.php/estetica2>.
http://www.revistaderivasanaliticas.com....
). Se “um homem se faz O homem por se situar a partir do Um-entre-outros, por entrar-se entre seus semelhantes” (Lacan, 1974/2003c, p. 558Lacan, J. (2003c). Prefácio a O despertar da primavera. In Outros escritos (pp. 557--559). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1974).), então talvez resida aí o elemento de infamiliaridade do encontro entre o “macho” e uma bicha feminizada: “Não queremos viado andando na nossa área”. Trata-se, para o “macho”, do fato de que, mesmo entre homens, ali onde ele se sentiria em casa, há algo de perturbador; mesmo entre os homens, onde o “macho” pode supor o tranquilizador regime do Mesmo, do semelhante que confirmaria imaginariamente suas identificações viris, aparece algo que ele não pode reconhecer como “macho”, mas o constitui intimamente: uma lacuna do falo, presentificada pela posição feminizada da bicha, que parece se tornar um desconcertante duplo do sujeito.

Portanto, no infamiliar a que somos conduzidos pela investigação das vivências de homofobia, é o segredo do (-φ) que parece ser exposto como a verdade do falo, um falo que se apresenta detumescido, desinflado de sua suposta potência imaginária. Esse ponto Heim, o íntimo que corresponde ao menos-phi, é o que a bicha revela, produzindo um efeito de duplo que faz o próprio “macho” “aparecer como objeto, por nos revelar a não autonomia do sujeito” (Lacan, 1962-63/2005, p. 58Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1962-63).).

Dessa forma, a bicha feminizada, fantasiada pelo “macho” como passiva, como “mulher”, parece desvelar o segredo de que os homens também são castrados, não têm o falo. A fantasia da bicha passiva expõe, assim, algo da castração, por indicar precisamente o menos-phi, uma lacuna do falo [(-φ)], num corpo dotado de pênis. Nesse contexto, o segredo que a norma--macho tenta velar parece ser precisamente aquele da castração masculina: diferentemente do grande Phi maiúsculo, cetro do poder, o falo só se encarna como um (-φ) que angustia o “macho”. No limite, a fantasia de que a bicha ocupa uma posição de objeto (a) encobre a angústia de castração que lhe subjaz [(-φ)]. Desse modo, a angústia frente à fantasia da posição passiva da bicha parece encobrir a angústia do órgão, que é o ponto íntimo em causa para o “macho”.

Considerações finais

Dado o recorte de nosso trabalho, que se debruçou sobre os ataques partindo de homens e dirigidos a homens cis gays afeminados, permanece em aberto, no entanto, a discussão sobre as diferenças de estrutura entre os ataques homofóbicos e os ataques lesbofóbicos — além das especificidades dos ataques transfóbicos, e suas particularidades em relação a homens trans, mulheres trans, pessoas trans não binárias etc. —, de forma que a presente incursão passa longe de esgotar a temática.

Ainda assim, uma primeira hipótese é possível quanto à diferença entre as homofobias e as lesbofobias. Se, nas homofobias, o que parece estar em jogo é uma questão no nível do objeto a, nas lesbofobias, por sua vez, poderíamos examinar a possibilidade de que os ataques girem em torno de uma disputa fálica, na medida em que as lésbicas viris (e mesmo os homens trans) revelam algo da natureza faltosa do falo: primeiro, que não é preciso ter um pênis para assumir a posição fálica do ter; segundo, que o pênis não é equivalente ao falo; e terceiro, que o viril não é uma prerrogativa dos homens (cis-heterossexuais). Trata-se aí de um dos limites de nossa investigação atual, apontando para desdobramentos possíveis em trabalhos futuros.

A despeito dessa limitação, o que conseguimos aqui alcançar acerca das violências motivadas por homofobia e endereçadas a homens gays afeminados é a leitura de que, para não se haver com a angústia inerente ao fato de ter um corpo, o “macho” parece então recorrer a um destino mortífero para o infamiliar, implicado na destruição do Outro, em sua redução literal a um objeto dejeto, a um pedaço de carne desmembrado, como vimos na abertura deste trabalho, pela brutalidade com que esses crimes são cometidos. Se o texto de Freud (1919/2019)Freud, S. (2019). O infamiliar. In Obras Incompletas de Sigmund Freud (Vol. 8). Belo Horizonte, MG: Autêntica. (Trabalho original publicado em 1919). nos apresenta algumas “vicissitudes estéticas da pulsão de morte” (Rocha & Iannini, 2019, p. 176Rocha, G. M., & Iannini, G. (2019). O infamiliar, mais além do sublime. In S. Freud. Obras Incompletas de Sigmund Freud – O infamiliar (Vol. 8, pp. 173-198). Belo Horizonte, MG: Autêntica.), talvez possamos concluir provisoriamente nosso percurso sustentando a hipótese de que a homofobia nos confronta com um destino pulsional mortífero para o infamiliar.

  • Financiamento/Funding: Este trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq / This work is supported by Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.
  • 1
    Poderíamos nos perguntar sobre as inflexões que se introduziriam nesse ponto ao considerarmos a identificação viril que, desde o Seminário 3, já era tomada como estrutural na constituição subjetiva da menina. Pois a proposta de Lacan nesse Seminário (e que certamente terá suas consequências na lógica da sexuação) é a de que a identificação da menina não é simétrica à do menino, pois é, antes, a mesma que a dele, isto é, masculina (uma identificação viril). Como se o “ideal feminino” com o qual a menina deveria se identificar, no fundo, não pudesse fornecer uma consistência para seu ser — proposta cuja radicalidade talvez só seja extraída no Seminário 20, a partir do não-todo e da inexistência d'A mulher.
  • 2
    Cumpre frisar que as homossexualidades estão longe de se restringirem apenas às figuras ainda binárias da bicha afeminada e da sapatão viril (Butler, 1993, p. 110Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of ‘sex'. New York, NY & London, UK: Routledge.). No entanto, seguindo a leitura de Butler, tomaremos a bicha feminizada como uma espécie de personagem conceitual, que nos orientará para pensar as incidências do infamiliar na norma do “macho”.

Agradecimentos:

Agradecimentos: Agradeço particularmente ao professor Gilson Iannini da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, cujas aulas sobre o infamiliar durante o primeiro semestre de 2019 contribuíram de maneira decisiva na escrita deste trabalho, bem como à professora Carla Rodrigues, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –UFRJ, pela leitura gentil e cuidadosa deste texto na época de sua construção.

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Editora/Editor: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2021

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2020
  • Revisado
    08 Set 2020
  • Aceito
    29 Out 2020
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