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O inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty: contribuição para a psicoterapia

The unconscious in Merleau-Ponty: a contribution to psychotherapy

L'inconscient dans la pensée de Merleau-Ponty: une contribution à la psychothérapie

El inconciente en el pensamiento de Merleau-Ponty: contribución para la psicoterapia

Resumos

Este artigo tem como objetivo apresentar a contribuição do conceito de inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty para a psicoterapia. Propõe a noção merleau-pontyana de fala autêntica enquanto uma expressão do inconsciente em psicoterapia, definido como "articulações do campo". Conclui que o conceito de inconsciente em Merleau-Ponty densifica a teorização da psicoterapia humanista-fenomenológica como uma psicoterapia que, buscando os significados do Lebenswelt, tem por propósito, sempre inacabado, a compreensão do quiasma.

Inconsciente; Merleau-Ponty; psicoterapia


This article discusses the concept of the unconscious in the thinking of Merleau-Ponty as a contribution to psychotherapy. It proposes this thinker's notion of authentic speech as an expression of the unconscious in psychotherapy, defined as "articulations of the fields." We conclude that the concept of the unconscious in Merleau-Ponty densifies the theorization of humanistic-phenomenological psychotherapy as a process of seeking for the meanings of the Lebenswelt, which has as its ever-unfinished objective an understanding of the chiasmus.

Unconscious; Merleau-Ponty; psychotherapy


Cet article a pour but de présenter la contribution du concept de l'inconscient dans la pensée de Merleau-Ponty à la psychothérapie. Nous proposons la notion merleau-pontyenne de la parole authentique en tant qu'une expression de l'inconscient en psychothérapie définie comme "articulations du champ". Nous concluons que le concept d'inconscient chez Merleau-Ponty densifie la théorisation de la psychothérapie humaniste-phénoménologique comme une psychothérapie qui, en cherchant les significations du Lebenswelt, a pour but - jamais atteint - la compréhension du chiasme.

Inconscient; Merleau-Ponty; psychothérapie


Este artículo tiene como objetivo presentar la contribución del concepto de inconsciente en el pensamiento de Merleau-Ponty para la psicoterapia. Propone la noción merleaupontyana de habla autentica como una expresión del inconsciente en psicoterapia, definido como "articulaciones del campo". Concluye que el concepto de inconsciente en Merleau-Ponty densifica la teorización de la psicoterapia humanista-fenomenológica como psicoterapia que, buscando los significados del Lebenswelt, tiene por propósito, siempre inacabado, la comprensión del quiasma.

Inconsciente; Merleau-Ponty; psicoterapia


ARTIGOS

O inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty: contribuição para a psicoterapia* * Este artigo foi originalmente apresentado no Colloque de l'École Française de Daseinsanalyse, realizado em Paris, 20 de junho de 2009. Tradução para o português por Lucas Bloc.

The unconscious in Merleau-Ponty: a contribution to psychotherapy

L'inconscient dans la pensée de Merleau-Ponty: une contribution à la psychothérapie

El inconciente en el pensamiento de Merleau-Ponty: contribución para la psicoterapia

Virginia Moreira

RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar a contribuição do conceito de inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty para a psicoterapia. Propõe a noção merleau-pontyana de fala autêntica enquanto uma expressão do inconsciente em psicoterapia, definido como "articulações do campo". Conclui que o conceito de inconsciente em Merleau-Ponty densifica a teorização da psicoterapia humanista-fenomenológica como uma psicoterapia que, buscando os significados do Lebenswelt, tem por propósito, sempre inacabado, a compreensão do quiasma.

Palavras-chave: Inconsciente, Merleau-Ponty, psicoterapia

ABSTRACT

This article discusses the concept of the unconscious in the thinking of Merleau-Ponty as a contribution to psychotherapy. It proposes this thinker's notion of authentic speech as an expression of the unconscious in psychotherapy, defined as "articulations of the fields." We conclude that the concept of the unconscious in Merleau-Ponty densifies the theorization of humanistic-phenomenological psychotherapy as a process of seeking for the meanings of the Lebenswelt, which has as its ever-unfinished objective an understanding of the chiasmus.

Key words: Unconscious, Merleau-Ponty, psychotherapy

RESUMÉ

Cet article a pour but de présenter la contribution du concept de l'inconscient dans la pensée de Merleau-Ponty à la psychothérapie. Nous proposons la notion merleau-pontyenne de la parole authentique en tant qu'une expression de l'inconscient en psychothérapie définie comme "articulations du champ". Nous concluons que le concept d'inconscient chez Merleau-Ponty densifie la théorisation de la psychothérapie humaniste-phénoménologique comme une psychothérapie qui, en cherchant les significations du Lebenswelt, a pour but - jamais atteint - la compréhension du chiasme.

Mots clés: Inconscient, Merleau-Ponty, psychothérapie

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo presentar la contribución del concepto de inconsciente en el pensamiento de Merleau-Ponty para la psicoterapia. Propone la noción merleaupontyana de habla autentica como una expresión del inconsciente en psicoterapia, definido como "articulaciones del campo". Concluye que el concepto de inconsciente en Merleau-Ponty densifica la teorización de la psicoterapia humanista-fenomenológica como psicoterapia que, buscando los significados del Lebenswelt, tiene por propósito, siempre inacabado, la comprensión del quiasma.

Palabras clave: Inconsciente, Merleau-Ponty, psicoterapia

Introdução

Partindo dos escritos do último Husserl, Merleau-Ponty utiliza como fio condutor de todo o seu pensamento o conceito de Lebenswelt. Propõe uma fenomenologia da percepção, uma fenomenologia do corpo, e não uma fenomenologia da consciência constitutiva, o que o distingue da tradição fenomenológica da consciência, baseada no primeiro Husserl. Em Fenomenologia da percepção, ele se refere a uma consciência perceptiva, que procura romper com o dualismo percepção-pensamento, ou o dualismo consciência-mundo. A percepção é para ele o fundamento do processo de conhecimento, a experiência imediata, primeira. A percepção tem lugar no nível do pré-reflexivo.

Ao longo de sua obra, Merleau-Ponty se desvia da consciência perceptiva na direção do "corpo vivido", da intercorporeidade pré-reflexiva. Nos seus últimos textos, o conceito de consciência se dissolve definitivamente pela primazia da percepção, buscando uma ontologia do sensível com seu conceito de carne. É nesta última fase do seu pensamento que, mesmo tendo mantido desde sua primeira obra - A estrutura do comportamento - um diálogo com a psicanálise, criticando o conceito de inconsciente de Freud, Merleau-Ponty cria seu próprio conceito de inconsciente, não suficientemente desenvolvido por ele em razão de sua morte prematura em 1961.

A possível contribuição do conceito de inconsciente à psicoterapia, no pensamento de Merleau-Ponty, já é perceptível, de uma forma embrionária, na obra Fenomenologia da percepção, quando ele desenvolve suas ideias sobre o corpo como expressão e fala, e formula a ideia de fala autêntica.

Baseada na minha prática clínica, este artigo tem como objetivo: 1) apresentar o conceito de inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty; 2) descrever a fala autêntica e mostrar como ela se dá ao longo do processo psicoterapêutico; 3) compreender a fala autêntica no processo terapêutico como uma expressão do inconsciente, como "articulações do campo"; 4) pensar o processo psicoterapêutico como busca da compreensão do Lebenswelt.

O conceito de inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty

Nos manuscritos registrados na Biblioteca Nacional da França, Merleau-Ponty descreve o inconsciente a partir do conceito de figura e fundo, segundo o qual alguma coisa existe graças a um fundo, a um conteúdo latente que, como campo, constitui a figura (Dupond, 2008). Trata-se da ideia desenvolvida pela Psicologia da Gestalt, na qual o sujeito percebe o fato por meio de uma organização de estímulos, estruturando-se de tal maneira que uma configuração se destaca no primeiro plano, e este processo é possível porque existe um fundo. É interessante lembrar que na Gestalt-terapia, desenvolvida por Frederick Perls, o contato, seu conceito central, é descrito como uma experiência de formação figura-fundo, ou como a busca de uma Gestalt. Para Perls (1969/1979), a propriedade mais importante da Gestalt é sua tendência a se completar, a se fechar. Quando a Gestalt não se fecha e fica incompleta, a pessoa permanece em uma situação inacabada. A formação de Gestalten completas é a condição de saúde mental e de crescimento (Perls, Heffeline e Goodman, 1951). A "situação inacabada", ou a "Gestalt aberta" poderá dificultar a formação de novas Gestalten vigorosas, impedindo o desenvolvimento do indivíduo. Dessa maneira, a neurose e a psicose são compreendidas como perturbações da elasticidade da formação figura-fundo no contato. Pode-se produzir uma rigidez ou uma ausência de figura. A partir desta perspectiva, a psicoterapia gestaltista busca restabelecer a fluidez do processo de formação figura/fundo.

O conceito de figura/fundo é definido por Araújo (2007) com a ajuda da metáfora onda/mar, que me parece muito útil para a compreensão da noção de inconsciente em Merleau-Ponty:

O mar, repleto de toda sorte de seres aquáticos, ora com águas transparentes ao olhar humano, ora com águas mais profundas e opacas (inconscientes?), ora, ainda, com águas insondáveis, representa o fundo (campo perceptual cultural que compõe a história singular e coletiva do indivíduo). A onda (figura) é ondulação no mar. Ela não se destaca do mar; ela se destaca no mar. Cada experiência vivida é uma ondulação no mar, uma onda que se levanta e se faz figura, ganhando significado sob o lampejo da awareness. A fluidez da relação figura/fundo é como fluidez da onda no mar. A onda (figura), em nenhum momento, perde as características do mar (fundo). Nunca deixa de ser mar. Radicalizando: a figura é, no fundo. (p. 114)

Nas notas de trabalho póstumas da obra O visível e o invisível, Merleau-Ponty (1964) afirma: "O sentido é invisível, mas o invisível não é o contraditório do visível: o visível possui, ele próprio, uma membrura de invisível, e o in-visível é a contrapartida secreta do visível, não aparece senão nele (...) o visível está prenhe do invisível" (p. 269). Na metáfora onda/mar, a figura se torna visível como parte de um fundo invisível, mas o visível jamais deixa de constituir o invisível, da mesma maneira que a onda é o mar.

Parece-me que, de forma análoga à metáfora onda/mar, Merleau-Ponty utiliza o conceito figura/fundo para pensar seu conceito de inconsciente. A figura (a onda visível) não existe sem um fundo (o mar invisível). Ou seja, o inconsciente é compreendido como conteúdo latente, que não faz parte da figura - a consciência? - aquela que se move continuamente, como as ondas do mar. Ao mesmo tempo, o inconsciente constitui e determina a consciência como campo que se mostra e se dissimula em constante movimento. Nessa linha de pensamento, onde o sentido é percebido e a percepção é um campo de Gestaltungen, Merleau-Ponty afirma: "A percepção é inconsciente. O que é o inconsciente? O que funciona como pivô existencial, e nesse sentido, é e não é percebido" (p. 240).

Mas é no desenvolvimento do conceito de carne que a noção de inconsciente se amplia no domínio do corpo sensível, em oposição à psicanálise, pensada em termos de causa e consequência, que Merleau-Ponty critica como mecanicismo (Coelho Jr. 1991). Nesta fase do seu pensamento, desenvolvida por ocasião do seu curso Nature et logos, realizado no Collège de France nos anos 1959-1960, Merleau-Ponty (1968) se refere à sua filosofia como uma filosofia da carne, que ultrapassa as noções de consciência e mesmo de consciência perceptiva:

Uma filosofia da carne é contrária às interpretações de inconsciente em termos de "representações inconscientes", tributo pago por Freud à psicologia de seu tempo. O inconsciente é o sentir mesmo, já que o sentir não é a possessão intelectual "daquilo que" é sentido, mas despossessão de nós mesmos em seu benefício, abertura ao que nós não temos necessidade de pensar para reconhecer (...) A fórmula dupla do inconsciente ("eu não sabia" e "eu sempre soube") corresponde aos dois aspectos da carne, aos seus poderes poéticos e oníricos. (p. 178-179)

É nesta última fase, quando sua filosofia evolui para se tornar uma filosofia da carne, que Merleau-Ponty faz referência a um "inconsciente primordial", que consistiria na "indivisão do sentir", onde o corpo e a percepção se tornam, de maneira mais radical,

... as bases para uma filosofia da "carne", para uma ontologia do sensível, que trazem em si uma dialética da visibilidade e da invisibilidade, que o conceito de inconsciente, agora já de certa forma redefinido [com relação à definição de Freud que ele criticava], talvez ajude a esclarecer (...). O inconsciente não é definido como o inverso da consciência; o corpo em sua dialética visível-vidente, a "carne" como sendo entrelaçamento, o quiasma, que traz em si o duplo movimento sensível, daquilo que sente, parecem pedir a presença da noção de inconsciente para poderem ser melhor compreendidos. (Coelho Jr., 1991, p. 140-141)

Merleau-Ponty define esta noção de inconsciente mais claramente em suas notas de fevereiro de 1959 publicadas em O visível e o invisível (1964):

Fala-se sempre do problema do "outro", de "intersubjetividade" etc. Na realidade, o que se deve compreender é, além das "pessoas", os existenciais segundos os quais nós as compreendemos voluntárias e involuntárias. Este inconsciente a ser procurado, não no fundo de nós mesmos, atrás das costas de nossa "consciência", mas diante de nós como articulações de nosso campo. (p. 233)

A noção de inconsciente em Merleau-Ponty não é clara no plano físico, mental ou como oposto à consciência, mas na percepção, no quiasma da experiência sensível de interseção corpo-mundo, como "articulação do nosso campo", ou como carne. O inconsciente é compreendido aqui como o tecido, a atmosfera que compõe o entrelaçamento corpo-mundo.

Não se trata de buscar algo oculto atrás de minha consciência ou de meu campo perceptivo consciente, mas sim de trabalhar no entre, no quiasma, no entrelaçamento do visível com o invisível (...) Merleau-Ponty entende aqui a experiência sensível como esta que se situa entre o visível e o invisível, entre o atual e o virtual, como se encontrando no ponto de reversibilidade de todos os contrários, situando-se na imbricação de uns com os outros (...) O inconsciente em Merleau-Ponty, portanto, aparece como articulação, como textura presente no imbricamento corpo-mundo. O inconsciente é, não um topos situado no psíquico, mas primordialmente uma atmosfera, aquilo que permite ser. (Coelho Jr., 1991, p. 143-144)

Para o filósofo, o inconsciente é, portanto, inseparável de um corpo desejante, de um corpo que sente. Ele compreende o fenômeno do sentir não de um modo representacional - eu penso que - herdeiro de uma fenomenologia da consciência, mas como incorporação ou ejeção. O sentir é saber e não saber. Segundo Dupon (2008) "... o inconsciente é inseparável do modo não representacional da abertura do corpo desejante aos outros e ao mundo (...) Então, o inconsciente é uma maneira de nomear a impercepção que habita toda percepção" (p. 104).

Merleau-Ponty tampouco compreende o inconsciente como estrutura linguística; ele busca sempre o inconsciente na articulação do visível e do invisível que, na sua visão, constitui o processo de percepção. No colóquio de Boneval em 1960, durante a conferência de Conrad Stein, ele avança nessa linha de pensamento com sua intervenção sobre a linguagem e o inconsciente, onde argumenta contra a utilização preponderante da linguística. Para ele, mesmo a fala está na percepção, em uma articulação perceptiva na relação entre o visível e o invisível, a qual ele designa como latência, no sentido heideggeriano (Verborgenheit): "Ver é não ter necessidade de formar um pensamento" (Merleau-Ponty, 2000, p. 274). As intervenções de Merleau-Ponty neste colóquio não chegaram a ser integralmente publicadas, visto que estas não haviam sido revisadas por ele quando de sua morte, em 1961. Elas indicam a direção de sua filosofia no sentido da relação perceptiva, pré-reflexiva, e não como estrutura da linguagem, para compreender a questão do inconsciente (Coelho Jr., 1991).

A fala autêntica na psicoterapia

Em sua constante busca de ultrapassar a dicotomia clássica entre sujeito e objeto, e mais precisamente na sua obra Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (1945) se propõe a "descrever o fenômeno da fala e o ato expresso de significação" (p. 236) como fazendo parte do debate sobre corpo como expressão.

Para o filósofo,

... o sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, como o mostra o exemplo de tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o que nele colocarão. Um pensamento que se contentasse em existir para si, fora dos incômodos da fala e da comunicação, logo que aparecesse cairia na inconsciência, o que significa dizer que ele nem mesmo existiria para si. (p. 206)

Então, é a fala que faz existir o pensamento, é a comunicação que lhe dá vida. Entretanto, imediatamente após este mesmo texto, Merleau-Ponty (1945) nos recorda que: "O fato é que temos o poder de compreender para além daquilo que espontaneamente pensamos" (p. 208). Esta compreensão, além do pensamento, se encontra no corpo sensível ou no inconsciente, como ele formulará anos mais tarde em sua ontologia do sensível.

Mas é na Fenomenologia da percepção que Merleau-Ponty (1945) propõe a noção de fala autêntica: "Trata-se, é claro, de distinguir uma fala autêntica, que formula pela primeira vez, e uma expressão segunda, uma fala sobre falas, de que é constituída a linguagem empírica ordinária. Só a primeira é idêntica ao pensamento" (p. 208). A fala autêntica é a fala primária, originária, saída do plano pré-reflexivo: é a fala nova, espontânea, criativa. Os pensamentos que já foram comunicados são uma expressão segunda, que já foi pensada. Então, se o pensamento não comunicado previamente ou jamais posto em falas é inconsciente, a fala autêntica, que é a fala que jamais foi formulada antes, pode ser compreendida como expressão deste inconsciente, como "articulação do nosso campo".

Penso que a fala autêntica é a fala buscada na psicoterapia, seja pelo paciente, seja pelo psicoterapeuta. Na psicoterapia, esta fala emerge quando o paciente não pensou antes aquilo que irá falar. A expressão segunda tem lugar quando ele conta um pensamento já formulado anteriormente. Na fala autêntica, a pessoa formula "... o pensamento que está tendo no ato de falar (...) É quando ela surpreende e formula seus pensamentos e ou inquietações presentes pela 'primeira vez'. Neste caso, a pessoa está improvisando, está dando forma ao que ela está sendo e sendo o que fala. Sua fala é nova" (Amatuzzi, 1989, p. 25).

É neste momento em que o paciente avança, que uma nova figura se constitui na percepção que ele tem da realidade. Esta figura, como a onda visível que se destaca, é o fundo invisível, como o mar. Então, o que diz o paciente nesse momento criativo pode ser compreendido como expressão de um inconsciente que constitui a consciência, um sendo a extensão do outro e vice-versa. A fala autêntica torna visível o invisível na sua constante reversibilidade; ela torna possível as novas configurações deste inconsciente latente.

Da mesma maneira, quando o psicoterapeuta coloca à disposição do paciente somente seus conhecimentos e competências, sua fala será uma expressão segunda. A fala do psicoterapeuta será uma fala autêntica

... quando ele, terapeuta, estiver também improvisando, formulando pela primeira vez ou fazendo pela primeira vez aquilo que faz, por mais experiência que tenha (...) O que torna a resposta terapêutica uma fala autêntica é a qualidade da presença do terapeuta: sua resposta é a formulação de sua reação total (e integral) à fala do cliente. É uma resposta. (p. 26-27)

Carl Rogers propôs a noção de autenticidade como uma das atitudes facilitadoras do processo psicoterapêutico. Embora ele jamais tenha lido Merleau-Ponty, nem mesmo proposto um conceito de fala autêntica, durante a "fase experiencial" de sua obra (Moreira, 2001, 2007 e 2009) tematiza o conceito de autenticidade do psicoterapeuta. Introduz esta noção na medida em que enfatiza o processo intersubjetivo entre terapeuta e paciente, sobre o qual repousa a compreensão da experiência vivida. Rogers (1961) define a autenticidade a partir de uma expressão de Kierkegaard: "Ser o que realmente se é" (p. 146). Para Rogers (1961), a relação psicoterapêutica não pode existir sem a autenticidade do psicoterapeuta: "os sentimentos e o conhecimento se fundem em uma experiência unitária que é vivida em vez de ser analisada, cuja consciência é não-reflexiva e em que eu sou mais um participante do que um observador" (p. 201).

Amatuzzi (1989) considera Merleau-Ponty e Rogers teóricos da fala autêntica, o primeiro na filosofia e o segundo na psicoterapia. No entanto, não se pode esquecer, a superação do dualismo cartesiano que caracteriza todo o pensamento de Merleau-Ponty torna-o fundamentalmente diferente do pensamento de Carl Rogers (Moreira, 2001 e 2007).

A fala autêntica como expressão do inconsciente

A fala autêntica para Merleau-Ponty é, então, a fala original, que jamais havia sido formulada anteriormente. Ela não é uma representação consciente de alguma coisa, mas uma percepção que faz parte da experiência sensível, uma expressão do inconsciente como articulações do campo. Ela é um tipo de tecido latente ou ainda o fundo que torna possível a constituição da figura no quiasma corpo-mundo. Neste sentido, quando na psicoterapia nós buscamos o que emerge na fala autêntica, não estamos buscando algo que está escondido ou recalcado; buscamos algo que está diante de nós, na relação psicoterapeuta-paciente-mundo sensível. É por isso que eu proponho que a fala autêntica seja compreendida como uma expressão do quiasma, na constituição mútua homem-mundo. A fala autêntica está ligada à percepção, é da ordem do sensível e não do pensamento representativo.

Não é com "representações" ou com um pensamento que em primeiro lugar eu comunico, mas com um sujeito falante, com um certo estilo de ser e com o "mundo" que ele visa. Assim como a intenção significativa que pôs em movimento a fala do outro não é um pensamento explícito, mas uma certa carência que procura preencher-se, da mesma maneira a retomada dessa intenção por mim não é uma operação do meu pensamento, mas uma operação sincrônica de minha própria existência, uma transformação de meu ser. (Merleau-Ponty. 1945, p. 214)

É o que Merleau-Ponty chama aqui de "intenção significativa" ou "certa falta que procura se preencher" e que pode ser compreendido no sentido de sua conceituação do inconsciente: como o que eu não sei e o que eu sempre soube, ou ainda o não percebido da percepção como imbricação do visível e do invisível, tal como ele formulará anos mais tarde.

A ideia de inconsciente como tecido original que constitui o quiasma homem-mundo, visível-invisível, tocante-tocável, sentindo-sentido, aparece também na sua obra de 1945, mais explicitamente ainda quando Merleau-Ponty (1945) afirma que "... nossa visão sobre o homem continuará a ser superficial enquanto não remontarmos a essa origem, enquanto não reencontrarmos, sob o ruído das falas, o silêncio primordial, enquanto não descrevermos o gesto que rompe o silêncio" (p. 214).

Esta origem no silêncio primordial, que deve ser rompido pelo gesto e não pela fala segunda, é o inconsciente. É preciso que ele seja expresso pela fala autêntica na psicoterapia. A fala autêntica forma o silêncio primordial, a partir do qual esta fala é original, nova e criativa. Contudo, é preciso lembrar com Amatuzzi (1989) que "a fala secundária é útil e dá continuidade [ao processo terapêutico]. A fala original cria. Uma depende da outra. O problema de um paciente de psicoterapia é apenas que seu potencial de criar está bloqueado, e a permanência na continuidade desvitaliza, estiola, debilita" (p. 35).

Conclusão: A psicoterapia como busca da compreensão do Lebenswelt

O inconsciente no pensamento do último Merleau-Ponty, em O visível e invisível, radicaliza, através de uma ontologia do sensível, a ambiguidade intrínseca ao conceito de Lebenswelt que, sendo pré-reflexivo, não é singular ou universal, interior ou exterior, consciente ou inconsciente, e não pode ser compreendido de maneira cindida; ele é ambíguo, sendo a experiência perceptiva atravessada de conteúdos que deslizam do pensamento à sensação, onde consciente e inconsciente se tornam os aspectos extensivos de uma mesma experiência vivida. Ou seja, a consciência se dissolve no inconsciente, como a onda se dissolve no mar. Trata-se do quiasma. Este quiasma, que compõe o Lebenswelt, consiste na interseção homem-mundo, no entrelaçamento da experiência objetiva com a experiência subjetiva. Como afirma Tatossian (1997): "É porque meu mundo é sempre, assim, nosso mundo, um mundo intersubjetivo, um mundo comum" (p. 38).

Nos últimos anos tenho utilizado como base de minha prática clínica, a ideia que o que eu faço como psicoterapeuta é, fundamentalmente, tentar compreender e fazer compreender o Lebenswelt. Busco a realidade primordial da experiência imediata no mundo das significações e o processo psicoterapêutico se produz na interseção dos Lebenswelten, do paciente e do meu. Como psicoterapeuta, algumas vezes, eu imagino que estou passeando de mãos dadas com meu paciente no seu mundo vivido, ou seu Lebenswelt, sem jamais poder me descolar do meu próprio Lebenswelt. Escutando meu paciente, eu me imagino entrar em um quadro de Cézanne que ele teria pintado, passear nele com ele - seu Lebenswelt. Veríamos juntos os cantos opacos, as cores vibrantes, os buracos obscuros, os múltiplos contornos das formas, o movimento das linhas, a densidade das cores que compõem o desenho. Isto - entrar no quadro do meu paciente - é possível graças à empatia, uma outra atitude facilitadora proposta por Carl Rogers (1977) para a psicoterapia. Para ele, ser empático "significa penetrar no mundo perceptual do outro e sentir-se totalmente relaxado dentro deste mundo" (p. 73). Eu não diria que isto é facilmente possível. A empatia é sempre incompleta, como a redução fenomenológica, tal como lembra Merleau-Ponty. Entretanto, é possível pensar que a empatia está momentaneamente completa quando chego a fazer uma intervenção que se expressa em uma fala autêntica. Neste momento, nós, meu paciente e eu, vemos juntos não somente o movimento das ondas, mas também a grandeza do mar.

O conceito de inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty densifica a teorização de uma psicoterapia humanista-fenomenológica como psicoterapia do Lebenswelt, que tem por propósito, sempre inacabado, a compreensão do quiasma.

Agradecimentos: Agradeço à Jeanine Chamond (Université de Montpelier/École Française de Daseinsanalyse) pela revisão original do texto original em francês e por seus valiosos comentários.

Recebido/Received: 23.11.2009 / 11.23.2009

Aceito/Accepted: 15.2.2010 / 2.15.2010

VIRGINIA MOREIRA

Psicóloga; psicoterapeuta humanista-fenomenológica; doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (São Paulo, SP, Brasil); pós-doutorada em Antropologia Médica pela Harvard Medical School (CAPES/ Fulbright); Docente Titular da Universidade de Fortaleza - Unifor (Fortaleza, CE, Brasil); visiting Lecturer do Departamento de Medicina Social da Harvard Medical School; supervisora Clínica Especialista em Psicoterapia credenciada pela Sociedad Chilena de Psicología Clínica (Santiago do Chile, Chile); membro da Associação Universitária de Pesquisadores em Psicopatologia Fundamental (São Paulo, SP, Brasil).

Av. Washington Soares, 1321 - Edson Queiroz

60811-341 Fortaleza, CE, Brasil

e-mail: virginiamoreira@unifor.br virginia_moreira@hms.harvard.edu

Citação/Citation: MOREIRA, V. O inconsciente no pensamento de Merleau-Ponty: contribuição para a psicoterapia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 110-121, mar. 2011.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados/This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

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    Este artigo foi originalmente apresentado no Colloque de l'École Française de Daseinsanalyse, realizado em Paris, 20 de junho de 2009. Tradução para o português por Lucas Bloc.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      23 Nov 2009
    • Aceito
      15 Fev 2010
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