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Das paixões da alma

MEDICINA DA ALMA

ENSAIO

Das paixões da alma* * Retirado de Ancora medicinal para conservar a vida com saude. Lisboa: Officina Augustianiana, 1731, Seção V, capítulo VII.

Francisco da Fonseca Henriques

As paixões da alma são uns movimentos e impulsos do ânimo, nascidos da apreensão do bem, ou do mal, presente, ou futuro. Da apreensão do bem próprio e presente nasce a alegria, o gosto e deleitação. Da apreensão do bem alheio nasce a inveja, a malevolência. Da apreensão do bem futuro, a esperança, o amor. Da apreensão do mal presente, a ira, a tristeza. Da apreensão do mal futuro, o medo e a desesperação. Todas estas paixões têm grande poder no corpo humano, que não só causam gravíssimos males, mas também morte, e às vezes repentinas, de cujos casos estão cheias as histórias. Assim lemos que Quilo, um dos sete sábios gregos, morreu de gosto, abraçando um filho seu vencedor nos jogos olímpicos. Morte que tiveram também Crotoniates e Eneto, recebendo a coroa de vitoriosos nos mesmos jogos. Diágoras, vendo coroados três filhos em um mesmo dia, o gosto e o contentamento o mataram de repente. Filípide Cômico, vencendo em certame sete poetas, subitamente morreu de gosto. O Papa Leão X, sabendo que os franceses haviam restaurado a cidade de Milão, foi tão grande o gosto que teve, que morreu subitamente com ele. O famoso pintor Zêuxis, depois de pintar uma velha, vendo a deformidade dela, morreu de gosto de haver feito aquela pintura, o que com esta e outras paixões da alma sucedeu a muitos. Nós vimos uma mulher tão irada que lhe rebentou o sangue pela boca e dentro de meia hora exalou a alma.

E não há dúvida que as paixões do ânimo comovem muito os humores, alteram o sangue e os espíritos, e chegam a mudar a constituição e temperamento do corpo, quando são excessivas e continuadas. Entre todas, as principais são a tristeza, o medo, a ira e o gosto. A tristeza faz recolher ao interior do corpo o calor dele, o sangue e os espíritos, de que resulta o impedimento da transpiração insensível pela periferia do corpo, de que nascem febres humorais podres e outros muitos danos. E continuando a tristeza debilita o calor natural, refrigera e desseca o corpo, faz pálida a cor do rosto e finalmente vem a consumir e gastar os espíritos e toda a valentia do corpo se vem a render à tirania da morte.

O medo revoca subitamente ao coração o calor do corpo, ficando as partes externas e extremas álgidas e pálidas, com tremores e estridor dos dentes, a voz trêmula e ininterrupta, as pernas e braços sem alento para os movimentos, porque os espíritos se recolheram com o calor ao interior do corpo e por isto mesmo, se o medo é grande, solta-se o ventre e a urina, como se a bexiga e os intestinos estivessem paralíticos, porque no recurso do calor, as desampararam os espíritos animais, ficando laxas as fibras e pervertido o teor delas, que com os espíritos se conservava. E por último no grande medo se acaba a vida, quando o recurso do sangue e dos espíritos ao coração é tanto e tão impetuoso, que sufoca e mata de repente, como aconteceu a algumas pessoas ouvindo o estrondo de bombardas e armas de fogo, que de medo acabaram a vida, e a outros, que havendo passado sem saber por lagos e rios gelados, contando-lhe depois, morreram de repente, cujas histórias se podem ver em Petrônio.

A ira, se é grande, agita veementissimamente o sangue e os espíritos, fazendo-o ferver e inflamar, move e aguça a cólera, excita febres diárias, podres e ardentes e chega muitas vezes a ofender a razão, o que principalmente faz em naturezas coléricas, cujo sangue é mais apto para estes danos e causa mortes repentinas, como sucedeu ao imperador Nerva que, irando-se contra um régulo, a própria paixão o matou de repente e ao imperador Valentino, que embravecendo-se contra os sármatas, à veemência da ira exalou a alma, infortúnio que padeceu também Venceslau, rei da Boêmia.

O gosto é entre as paixões da alma a única que conduz para conservação da saúde, porque, sendo moderado, faz com que o calor natural, os espíritos e o sangue se difundam a todo o corpo, de que resulta grande vigor em todas as suas partes e boa nutrição, boa cor e boa umectação em todo ele. Por isto dizia o sábio: animus gaudens aetatem floridam facit. Porém se o gosto é excessivo, exolve e dissipa os espíritos de maneira que causa uma síncope e muitas vezes mata de repente, como já dissemos, o que principalmente sucede nos velhos, nas mulheres e em naturezas debilitadas.

Sendo pois certo que as paixões da alma fazem tantos e tão graves danos, os que forem estudiosos de conservar a saúde, devem solicitar muito a tranquilidade do ânimo, resistindo à veemência daquelas afecções, desprezando toda a ocasião e motivos que possam excitá-las, prevalecendo sobre todos os estímulos da paixão os superiores poderes do entendimento, que tudo dominam. É verdade que muitas vezes são tais os casos e tão inopinados os sucessos, que não podem evitar-se as paixões, nem prevenir-se os sofrimentos. Mas passado o primeiro impulso, o que podem fazer os homens é divertir-se com vários entretenimentos, ou empregos, que lhe moderem o sentimento. Uns jogando, outros lendo, outros caçando, segundo as suas inclinações, e todos conversando com pessoas de seu agrado, que nada diverte tanto como a conversação de que se gosta, com a qual os prazeres se moderam e os trabalhos se aliviam.

Francisco da Fonseca Henriques (1665-1731)

Natural de Mirandela, Portugal, doutorou-se em medicina pela Universidade de Coimbra em 1688 e foi médico do rei português D. João V a partir de 1706. É também autor do Medicina Lusitana, socorro delphico, aos clamores da natureza humana, para total profligação de seus males (1731), entre outras obras médicas.

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    Retirado de
    Ancora medicinal para conservar a vida com saude. Lisboa: Officina Augustianiana, 1731, Seção V, capítulo VII.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008
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