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Lacan e as Matemáticas

Lacan and Mathematics

As Matemáticas de Jacques Lacan. . Víctora, Ligia Gomes. Evangraf, 2022. 120 págs

Muitos têm sido os efeitos do mundo pandêmico. Um deles foi a ampliação do tempo disponível, aproveitado, por alguns, para desengavetar projetos. É o caso da compilação, em livro, de seminários sobre a formalização da psicanálise, no que concerne às matemáticas, ministrados entre 2010 e 2014 em Porto Alegre (APPOA) por Ligia Gomes Víctora.

Ao longo de seu ensino e dos seus Escritos, Lacan fez uso da Topologia, da Lógica-matemática, da Álgebra, da Teoria dos Grafos e dos nós para fazer a “escritura do sujeito” e construir um “sistema de raciocínio”.

No seu Seminário Problemas cruciais para a Psicanálise (1964-65/2006), Lacan anunciava que se o estatuto moderno do sujeito não estava dado em Platão, era na medida em que lhe escapava a tensão que há do outro ao Um. Esse outro fundamentará o que Lacan chamará de Um-a-mais com a teoria dos números desde Frege (1848-1925).

A relevância desse matemático alemão deve-se à articulação de uma nova área, a lógica-matemática. Advertindo seus contemporâneos quanto aos mal-entendidos que têm origem na imperfeição da linguagem, Frege complementou a linguagem das fórmulas matemáticas com sinais para as relações lógicas.

O livro pretende ser um guia da teoria dos números na obra de Lacan. São nove capítulos sobre o ser, o zero, os números racionais, irracionais, imaginários, a questão do infinito e como esses temas entraram na composição da teoria de Lacan. Assim, o livro tem como destino os psicólogos e psicanalistas como suporte de leitura.

Ingressar no terreno da lógica e da matemática ainda é um desafio aos psicanalistas. Sem uma iniciação nesses campos, é difícil o entendimento de alguns dos conceitos lacanianos como o objeto a e suas relações. Víctora tomou para si esse cuidado, como atestam esse livro, bem como suas demais publicações. Para nossa boa sorte, o texto aqui apresentado tem uma linguagem que torna a leitura simples e agradável.

As matemáticas ganharam grande desenvolvimento desde o final do século XIX, influenciando as demais áreas como filosofia, arte e literatura. Freud foi contemporâneo desse efervescer, mas foi Lacan quem investiu e usou as novas descobertas.

Ao trazer para a mesa o tema do “Ser e o Zero: a falta fundamental” no capítulo dois, a autora problematiza noções como o nada, a falta, o vazio, o furo, o buraco, o vácuo, o zero, o negativo e os infinitos. Não é propósito diferenciá-los entre si, mas trazer o contexto da criação do Zero como número. Mas o que é um número? A pergunta orienta a escrita e situa o leitor diante da problemática que nos é contemporânea, fazendo um percorrido desde os matemáticos até o uso do Zero em Lacan. O capítulo três mostra um caminho para responder à pergunta: Como o número 1 nasce do Zero? Para isso, utiliza a topologia do pote de mostarda. A ideia bíblica da criação ex-nihilo foi usada por Lacan, que procurou demonstrar como é possível criar do nada, desde os pontos de vista filosófico, lógico, topológico, aritmético e algébrico, sem esquecer do mito. Esse percurso concerne a questão do desejo, do gozo e do falo em suas variadas transformações. Ao chegar no tema da angústia, abre-se o caminho para pensar o irracional e os números que foram batizados pelo mesmo nome.

Os números irracionais ganham dois capítulos, o quatro, que traça um breve histórico do desenvolvimento dos mesmos e o quinto que trata dos usos desses na obra de Lacan. Entre os irracionais estão a raiz quadrada de dois e o Φ, o número de ouro, pronunciado “fi”.

No capítulo cinco, a autora aborda alguns usos que Lacan faz do fi, como letra minúscula (φ), maiúscula (Φ) e minúscula negativa (-φ) e explora essas aparições na construção dos esquemas L, Z, R e I. Com isso, mostra as transformações do falo e seu lugar, quando entra como organizador no Esquema R e quando não entra como organizador no esquema I. Ainda sobre o (-φ), a autora faz uma leitura crítica do “cogito lacaniano”, em especial no seminário O ato psicanalítico e aponta dois possíveis erros de notação, deixando, assim, uma lacuna para futuras pesquisas. Ao formular a pergunta: como o fi passa de negativo minúsculo para positivo maiúsculo? ela está tratando da passagem das insígnias fálicas para o significante Phallus e usa o grafo do desejo para nos mostrar os caminhos do circuito imaginário ao circuito simbólico e suas implicações na leitura do matema do fantasma.

O capítulo seis é dedicado aos números imaginários “de” Lacan. A autora considera que o psicanalista francês “realmente imaginou uma apresentação perfeita dos números complexos”. O número imaginário é impossível, tem a notação i = √-1. Lacan o utilizou para mostrar como pensou o sujeito antes de receber o nome do pai, localizar o tempo do sujeito dividido e a recomposição em 1. Para realizar o cálculo, é necessário recorrer às séries de múltiplos de √-1. A nominação é uma função no sentido da lógica matemática e está ligada ao quarto nó da cadeia borromeana, portanto ao ponto nodal da identificação.

Para tratar dos números infinitos Víctora dedica os dois capítulos seguintes. No sete, traça um caminho desde o paradoxo de Zenão (485-430 a.C.), quando não se admitia, como número, nem o Zero nem o infinito, até a conceituação do Zero, por Frege (1884); e a invenção do símbolo ∞ para o infinito por Cantor (1845-1918). Desde a antiguidade, a ideia do Zero e do infinito estiveram envolvidas por questões religiosas e superstições. Na filosofia, a formulação dos conceitos de ato e potência, por Aristóteles, regeu por dois mil anos a lógica que posicionava o infinito como potência, jamais como ato, a não ser no pensamento religioso onde era identificado a Deus. Com Cantor o infinito passa a ser enumerável, abrindo possibilidade para a teoria dos conjuntos e para a topologia. Cantor classifica os números em conjuntos numéricos Reais e Complexos, e lhes atribui com os símbolos R, N, Z, Q, I e C.

A seguir, são mostrados vários pontos onde há transversalidade entre as matemáticas e a psicanálise. O infinito se faz presente desde o texto freudiano com o sonho, a angústia e os sintomas, continuando em Lacan ao aparecer nos grafos, esquemas, o objeto a na divisão harmônica, nas superfícies uniláteras e muitos outros. Com isso, a promessa do livro se converter em um guia de leitura vai se concretizando.

Acreditamos que o texto preenche uma lacuna na literatura psicanalítica. Muito embora não se proponha como um texto acadêmico, cumpre a função, trazendo além de um trabalho denso e consistente, uma escrita que prima pela clareza e simplicidade.

Referências

  • Kaplan, R. (2001). O nada que existe: uma história natural do zero Rocco.
  • Lacan, J. (2003). O seminário. Livro 9. A identificação Centro de Estudos Freudianos do Recife (Publicação para circulação interna). (Trabalho original publicado em 1961-62).
  • Lacan, J. (2006). O seminário. Livro 12. Problemas cruciais da psicanálise Centro de Estudos Freudianos do Recife (Publicação para circulação interna). (Trabalho original publicado em 1964-65).

Editado por

Editora/Editor: Profa. Dra. Marta Regina de Leão D’Agord

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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