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Trinta dias na casa de tiros: o estranho caso do Dr. Edmund Forster e Adolf Hitler

Thirty days at the shooting house: the strange case of Dr. Edmund Forster and Adolf Hitler

Resumos

Em 1918, em um hospital militar da reserva situado na pequena cidade pomerânia de Pasewalk, o neuropsiquiatra Prof. Edmund Forster tratou de um cabo austríaco chamado Adolf Hitler, que apresentava uma neurose de guerra (cegueira histérica), utilizando-se de técnicas terapêuticas sugestivas. Logo após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha nazista, em 1933, o Prof. Forster reuniu-se com um grupo de escritores alemães exilados em Paris e secretamente passou a eles informações sobre o caso. O escritor Ernst Weiss, também médico, mais tarde utilizou tais informações para escrever seu romance A Testemunha Ocular, que, porém, só seria publicado em 1963. Em circunstâncias estranhas, o Prof. Forster cometeu suicídio após uma campanha difamatória sistemática articulada pelos nazistas em 1933. Weiss também cometeu suicídio em 1940, quando as tropas alemãs invadiram Paris. A Gestapo também assassinou diversas outras pessoas envolvidas no prontuário médico de Hitler.

Hitler; neurose de guerra; cegueira histérica; história da psiquiatria; literatura


In 1918, in a military reserve hospital located in the small pomeranian town of Pasewalk, the neuropsychiatrist Prof. Edmund Forster treated an Austrian caporal called Adolf Hitler, suffering from a war neurosis (hysterical blindness), by means of suggestive techniques. Soon after the Hitler's ascension to the power in the Nazi Germany, in 1933, Dr. Forster met with a group of exiled writers living in Paris and secretly gave them information about the case. The writer Ernst Weiss, also he a physician, latter used this information in order to produce his novel "The Eye Witness", which would be published only in 1963. In strange circumstances, Prof. Forster committed suicide after successive defamatory statements in 1933. Weiss also committed suicide in 1940, when German troops invaded Paris. The Gestapo murdered several other persons involved in the Hitler's medical chart.

Hitler; war neurosis; hysterical blindness; history of psychiatry; literature


PSIQUIATRIA, HISTÓRIA E ARTE

Trinta dias na casa de tiros. O estranho caso do Dr. Edmund Forster e Adolf Hitler* * Traduzido do alemão por Paulo Clemente Sallet.

Thirty days at the shooting house. The strange case of Dr. Edmund Forster and Adolf Hitler

David Lewis

Doutor em Psicologia pela Universidade de Sussex, França

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: E-mail: pcsallet@usp.br

RESUMO

Em 1918, em um hospital militar da reserva situado na pequena cidade pomerânia de Pasewalk, o neuropsiquiatra Prof. Edmund Forster tratou de um cabo austríaco chamado Adolf Hitler, que apresentava uma neurose de guerra (cegueira histérica), utilizando-se de técnicas terapêuticas sugestivas. Logo após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha nazista, em 1933, o Prof. Forster reuniu-se com um grupo de escritores alemães exilados em Paris e secretamente passou a eles informações sobre o caso. O escritor Ernst Weiss, também médico, mais tarde utilizou tais informações para escrever seu romance A Testemunha Ocular, que, porém, só seria publicado em 1963. Em circunstâncias estranhas, o Prof. Forster cometeu suicídio após uma campanha difamatória sistemática articulada pelos nazistas em 1933. Weiss também cometeu suicídio em 1940, quando as tropas alemãs invadiram Paris. A Gestapo também assassinou diversas outras pessoas envolvidas no prontuário médico de Hitler.

Palavras-chave: Hitler, neurose de guerra, cegueira histérica, história da psiquiatria, literatura.

ABSTRACT

In 1918, in a military reserve hospital located in the small pomeranian town of Pasewalk, the neuropsychiatrist Prof. Edmund Forster treated an Austrian caporal called Adolf Hitler, suffering from a war neurosis (hysterical blindness), by means of suggestive techniques. Soon after the Hitler's ascension to the power in the Nazi Germany, in 1933, Dr. Forster met with a group of exiled writers living in Paris and secretly gave them information about the case. The writer Ernst Weiss, also he a physician, latter used this information in order to produce his novel "The Eye Witness", which would be published only in 1963. In strange circumstances, Prof. Forster committed suicide after successive defamatory statements in 1933. Weiss also committed suicide in 1940, when German troops invaded Paris. The Gestapo murdered several other persons involved in the Hitler's medical chart.

Key-words: Hitler, war neurosis, hysterical blindness, history of psychiatry, literature.

"Sempre haverá a suspeita de que o paciente esteja de fato simulando. A distinção definitiva entre cegueira histérica e simulação é quase impossível de ser feita."

Hanus J. Grosz and J. Zimmerman 1

Em uma sexta-feira, 25 de outubro de 1918, o Dr. Edmund Robert Forster, neuropsiquiatra da Clínica Neurológica do Hospital Charité de Berlim, Alemanha, recebeu o prontuário médico de um paciente recentemente admitido em um dos sete hospitais militares da reserva localizados em Pasewalk (Pomerânia), a cerca de 13 quilômetros ao norte da cidade. O prontuário era de Adolf Hiltler, um austríaco de 29 anos, cabo do 16o Regimento de Infantaria da Baviera, que fora admitido no hospital no sábado anterior apresentando cegueira devido a um ataque britânico com gás no front oeste.

De acordo com esse relato, as lesões sofridas por Hitler, bem como por outros soldados do mesmo regimento, tinham sido infligidas na manhã de 15 de outubro2, quando os homens estavam tomando o café da manhã em uma fortificação abandonada. Antes que pudessem colocar suas máscaras, já estavam tossindo em meio à densa nuvem de gás. Logo depois, como Hitler lembraria mais tarde, o "mundo escureceu" em torno deles3.

Um dos feridos com menor gravidade, Herman Heer4, tratou de guiar seus colegas feridos do front próximo à pequena cidade belga de Wervicq Sul para um hospital de campo em Linselle, a aproximados cinco quilômetros dali. "Todos seguravam na jaqueta do homem que ia à frente e assim fomos marchando como cegos", como lembraria mais tarde Hans Raab, um dos sobreviventes5.

No hospital de campo, um médico diagnosticou intoxicação por gás (Gasvergiftung), e, algumas horas mais tarde, os soldados, com uma exceção, foram transferidos para um hospital militar prussiano permanente e melhor equipado, nas cercanias de Bruxelas6. A única exceção foi Adolf Hitler.

Na manhã seguinte, ele foi levado de Linselle para outro hospital na cidade belga de Oudenaarde, a 50 quilômetros dali. No dia posterior, o médico de lá tomou a decisão aparentemente insólita de enviá-lo para seguir tratamento não no hospital de Bruxelas, que ficava a menos de uma hora de caminhão dali, mas em uma clínica na pequena cidade pomerânia de Pasewalk, próxima à fronteira com a Polônia e na qual só chegaria após longos 800 quilômetros percorridos de trem.

Embora, diante dos fatos, sua decisão parecesse um extraordinário desperdício de recursos em uma época na qual a Alemanha estava lutando pela sobrevivência, os médicos de Oudenaarde não tinham outra opção: a despeito das pálpebras inchadas e vermelhas de Hitler, eles concluíram que a sua cegueira se devia menos ao trauma físico do que a um colapso psicológico. Não era o caso de que o agitado cabo não pudesse ver, mas, sim, de que ele não queria ver. Hitler estava sofrendo daquilo que os médicos à época chamavam de transtorno histérico, e desde 19176 estava estabelecido que tais pacientes não deveriam ser tratados em alas abertas de hospitais gerais. Para todos esses casos, havia regras rigorosas que obrigavam os médicos a enviá-los para tratamento em uma das várias clínicas militares especializadas em neuropsiquiatria, localizadas em áreas rurais remotas da Alemanha7.

Essa política era sustentada por diversas razões tanto médica, como políticas. Especialmente importante era o temor entre os psiquiatras de que soldados com lesões físicas pudessem ter seu espírito de combate comprometido caso fossem tratados junto a pacientes histéricos, por meio do assim chamado "contágio psíquico". Esse diagnóstico era considerado tão vergonhoso que, no início da guerra, muitos psiquiatras tinham se recusado peremptoriamente a fazê-lo, considerando-o um insulto à raça germânica, posto que ela pudesse produzir homens tão fracos e vis, capazes de tamanha fraqueza moral e mental.

Como todos os lados do conflito acreditavam que a coragem e o espírito de combate dos seus soldados fossem superiores aos de seus inimigos, na ausência de qualquer lesão física, os psiquiatras concluíam que o transtorno era devido a uma falha lamentável na força de vontade (Willenkraft [volição]).

Na Grã-Bretanha, as autoridades militares diziam que soldados neuróticos apresentavam falta de fibra moral (Lack of Moral Fibre – LMF), enquanto os médicos alemães os descreviam de maneira variada, como manifestação de uma "inibição da vontade" (Willensperrung), "negação da vontade" (Willensversagung) ou um "retardo da vontade" (Willenshemmung).

Tais conclusões são mais compreensíveis se considerarmos a ligação entre a perda da força de vontade e o desenvolvimento da histeria, prevalente na Psiquiatria alemã na virada do século.

Em 1904, o médico de Karlsruhe, Willy Hellpach, descrevia "vontade" como o "A a Z da histeria"8, enquanto o neurologista Alfred Goldscheider proclamava que "a atividade da vontade eleva-se no seu mais alto nível através do amor à pátria, por meio do exemplo mútuo e não menos pela camaradagem que mescla superiores e subordinados em uma só massa de vontade"9.

Três anos antes do início da guerra, Robert Gaupp, um dos mais proeminentes psiquiatras alemães, descreveu a força de vontade como "a mais alta conquista da saúde e da força e a mais sublime de todas as virtudes morais, incorporando traços masculinos essenciais, tais como serenidade estóica, disciplina e autocontrole"10. Esses traços, insistia ele, eram encontrados apenas nos homens ocidentais verdadeiramente heróicos e viris e estavam completamente ausentes na constituição de mulheres, crianças, homens efeminados, massas incultas e quaisquer outros vivendo fora da influência da cultura européia ocidental. Pelo fato de que esses indivíduos, propunha Gaupp, "negassem essas qualidades do ideal masculino", eles estariam mais propensos à perda de controle sob pressão e a procurar escapes psicológicos, "fugindo" para a histeria11.

Essa percepção da "vontade" como uma sublime qualidade masculina, que, nas palavras do psiquiatra suíço Otto Binswanger, "tinha purificado e fortalecido nossas mentes"12, exerceu uma influência profunda e perigosa no tratamento da histeria em ambos os lados do conflito, especialmente na Alemanha, em que a idéia de força de vontade evocava emoções atávicas e profundas. Assim, todos os soldados diagnosticados como histéricos eram vistos como seres humanos defeituosos, com "sistemas nervosos inferiores" ou com "cérebros degenerados e inferiores", e como traidores que ameaçavam a unidade nacional na medida em que força de vontade e obediência militar eram vistas como sinônimos.

O Dr. Edmund Forster provavelmente estava de acordo com essas idéias e não é surpreendente que tais opiniões tenham determinado as formas de tratamento que ele acreditava serem mais efetivas. Em sua concepção, independentemente de quão estranha e estressante fosse a situação, ele considerava que esses pacientes não eram doentes, mas, em essência, apenas "mal comportados".

"Desde o início, sempre procurei deixar claro aos pacientes que apresentassem reações histéricas que isso não se tratava de uma doença ou distúrbio, mas, sim, de um mau hábito", escreveu ele em 1917. "Eu mostrava a eles o quão antipatriótico e degradante era seu comportamento, sendo indigno um soldado alemão tentar evitar serviços no front fingindo ter sintomas de uma doença ou deliberadamente exagerando o que seriam apenas queixas menores"13.

Assim como a maioria dos médicos alemães, o Dr. Forster acreditava firmemente que sua obrigação médica e militar, tal como declarado na política oficial da Associação Psiquiátrica Alemã, era "nunca esquecer que nós, médicos, devemos agora colocar todo nosso esforço a serviço de uma missão: servir nossas forças armadas e nossa pátria"14.

No propósito dessa política, aos médicos era dada a licença para planejar e praticar virtualmente qualquer tratamento – mesmo que extremo – que se acreditasse poder, nas palavras de Otto von Schjerning, Inspetor Sanitário Chefe das Forças Armadas, "converter medrosos em seres humanos e fazer retornar sua capacidade de trabalhar e levar uma vida digna"15.

Os métodos empregados variavam de acordo com preferências e habilidades individuais. Aqueles que dominavam a hipnose, como Max Nonne, em Munique, eram favoráveis a intervenções terapêuticas relativamente benignas, enquanto outros preferiam tratamentos mais diretos e brutais, como a administração de eletrochoque, as duchas prolongadas, a colocação dos pacientes em banheiras cheias de gelo por tempo prolongado ou a permanência trancafiada em confinamento solitário.

Muitos, como o Dr. Edmund Forster, selecionaram seus tratamentos com base na personalidade e na incapacidade do paciente, conjuntamente às suas próprias convicções teóricas sobre a causa dos transtornos histéricos. Como Forster com freqüência exprimia a idéia de que aos soldados histéricos faltava simplesmente força de vontade, ele tratou de fortalecer sua decisão de retornar ao campo de batalha, por quaisquer que fossem os meios, como a estratégia que melhor funcionaria. Por vezes, usaria sua personalidade dominante para coagi-los à obediência: "Com um pouco de força de vontade você poderia cumprir seus deveres", admoestava com severidade. "Eu sei muito bem que nem todos têm o mesmo nível de força de vontade e é por isso que você está sendo tratado aqui por enquanto. Não porque você esteja doente, mas por você ter sido criado de maneira errada e não ter força de vontade, a qual precisa ser fortalecida"16.

Para outros, ele favoreceu a punição física: "Assim como não tratamos crianças levadas como doentes, não as recompensamos com dias sem ir à escola, mas as punimos se não tratam de melhorar sua conduta"17.

Entre os castigos que costumava aplicar, novamente na companhia de um grande número de psiquiatras alemães, estavam os eletrochoques dolorosos. Antes de ligar a corrente, Edmund anotaria: "Sempre digo aos pacientes que não estou dando choques elétricos porque estejam doentes. O seu suposto sofrimento foi apenas um mau hábito que poderia facilmente ser evitado se eles quisessem fazê-lo. Forçando-os a suportar a dor do eletrochoque eu fortalecia a sua força de vontade e a sua determinação de retornar ao front em vez de ficarem agüentando choques elétricos dolorosos no hospital".

Ainda que à luz do conhecimento médico moderno tais condutas pareçam cruéis e antiéticas, ao advogá-las, Edmund Forster estava apenas refletindo a visão geral dos psiquiatras europeus de que, de fato, essa condição chamada histeria não existia. Como o eminente psiquiatra francês Jean-Martin Charcot costumava ensinar aos seus alunos: "Tenham sempre bem em mente – e isso não iria requerer um grande esforço – que a palavra 'histeria' não significa nada"18.

Meio século mais tarde, uma grande parte dessa mesma visão ainda era expressa por dois eminentes psiquiatras americanos. "Muito do comportamento do paciente tem o mesmo sentido quando assumimos que sua cegueira tenha sido 'simulada', que ele deliberada e voluntariamente tenha levado outros a acreditar que estava cego, ou, quando adequado a ele, que estivesse começando a recuperar sua visão"19.

A visão do Dr. Edmund Forster deve também ser considerada à luz do espírito prevalente na época (Zeitgeist), bem como em seu próprio background profissional. O seu treinamento em Medicina e Neurologia, que incluiu um período trabalhando sob a direção do lendário Carl Wernicke, tinha sido rigorosamente científico e enfatizava que diagnóstico e tratamento deveriam sempre ser fundados em dados objetivos. Ele aprendera que doenças mentais eram devidas a lesões específicas no cérebro ou no sistema nervoso e, como tais, poderiam ser observadas e medidas somente por meio de raios X, microscópios ou testes laboratoriais. Essa perspectiva materialista, combinada à sua própria postura de intolerância com coisas aparentemente sem sentido, tinha lhe deixado pouco tempo para o entendimento das teorias psicoterápicas e psicanalíticas propostas na Áustria por Sigmund Freud e seus associados. Edmund Forster não apenas rejeitou tais tratamentos, julgando-os perigosos xamanismos, como, juntamente à maioria dos neuropsiquiatras europeus, se sentia ultrajado pelo desafio que eles representavam aos estabelecidos modelos médicos da doença mental. Um desafio – temiam eles – que poderia obscurecer a credibilidade de sua profissão e o status científico duramente conseguidos aos olhos de outras especialidades médicas.

Independentemente de qual tipo de tratamento Forster e seus colegas psiquiatras favorecessem, todos eram necessariamente praticados em um ambiente hospitalar em que as regras de disciplina militar eram rigorosamente aplicadas e os confortos familiares, mesmo visitas de familiares ou amigos, eram negados. "As enfermarias de neuroses permaneceram sob disciplina extraordinariamente rígida", comentou o psiquiatra Karl Pönitz. "Não se abusava dos pacientes, mas sua estada na internação certamente não era um paraíso"20.

O propósito de tal regime, como a equipe médica abertamente admitia, era o de produzir condições tão desagradáveis que o soldado seria encorajado a "cair na real" e retornar ao front tão rapidamente quanto possível. "O soldado deve ter o sentimento de que nenhum lugar é tão bom quanto o campo de batalha", escreveu Willy Hellpach em 1915, "a despeito de todos os perigos e estresses, nenhum lugar é tão desagradável como a internação no hospital, a despeito de sua tranqüilidade e segurança"21.

Em quatro anos como psiquiatra militar, Edmund Forster especializou-se no tratamento de transtornos histéricos por meio de métodos que ele mesmo concebia como "draconianos". Tanto que entre seus colegas tinha a fama de que, por vezes, tratava seus pacientes de maneira despótica e abusiva.

Em 1916, um médico do hospital de Brugges, Bélgica, onde ele havia trabalhado por diversos meses, descreveu-o como um médico "muito enérgico e voluntarioso que tinha feito do tratamento dos assim chamados neuróticos de guerra uma de suas atividades favoritas e favorecidas. Entretanto, em algumas ocasiões ele procedia de maneira um pouco rude, sugerindo e impondo seu próprio arbítrio aos outros". Mas também admitia que "ele era popular entre os colegas devido à sua personalidade jovem, inspiradora e agradável". Quaisquer que fossem os tratamentos utilizados por ele e por mais esdrúxulos que agora possam parecer, Edmund Forster apenas os colocou em prática por estar convencido de que estava cumprindo suas obrigações, no melhor interesse de seus pacientes e de seu país. Além do mais, embora freqüentemente pouco ortodoxo mesmo para os padrões de seu tempo, essas intervenções em geral levavam a resultados espetaculares, e, com freqüência, aqueles mesmos pacientes com os quais ele fora mais abusivo eram os mais empolgados em expressar sua gratidão e seu apreço.

Na manhã em que leu o relatório psiquiátrico de Hitler, Edmund Forster havia retornado tinha poucas semanas de seu antigo trabalho na Clínica Neuropsiquiátrica. Durante a maior parte da guerra, tinha estado em Flandres dividindo seu tempo entre trabalho com pacientes em hospitais, aulas na Universidade de Brugges, e apresentações de evidências médicas em Cortes Marciais, motivo pelo qual fora agraciado com a Cruz de Ferro de Primeira Classe.

Embora não fosse mais médico militar em tempo integral, permaneceu como consultor de diversos hospitais militares da reserva, incluindo aquele de Pasewalk.

Aos 40 anos, Edmund Forster era uma pessoa obstinada e com idéias independentes, falava abertamente e não parecia se preocupar com a impressão que viesse a causar nos outros. Muito inteligente e bem educado, além do alemão, falava e escrevia fluentemente holandês, francês e inglês. Edmund era bastante viajado e possuía um gosto apurado para os bons vinhos e a boa gastronomia. Embora tenha nascido na Baviera, tinha um espírito mais ao estilo berlinense, despojado e freqüentemente sarcástico, compartilhando uma visão cosmopolita. Ainda que empenhado em seu racionalismo científico, havia também uma dimensão artística em sua natureza. No seu laboratório, foi pioneiro em novas técnicas para extração de líquor e no estudo dos efeitos neurológicos da paralisia geral, causada pela sífilis.

Durante seu tempo de lazer, gostava de pintar aquarelas, nas quais demonstrava seu grande talento, e de explorar a natureza durante longas caminhadas pelos Alpes Bávaros. Longe do trabalho, seus companheiros preferidos não eram os outros médicos, mas escritores, artistas e pessoas de teatro.

Como um homem que sempre teve a vida militar em elevada consideração, alistou-se como voluntário com a idade de 19 anos, quando ainda estudante de Medicina, e sempre demonstrou um forte senso de dever tanto como soldado quanto como médico.

Hitler na casa de tiros

O desgrenhado cabo assistiu do trem-hospital sua chegada à estação de desembarque na pouco atrativa estação ferroviária de Pasewalk, com seus arcos de entrada cobertos por trepadeiras22, numa pobre alusão ao homem cujas características impassíveis e obstinadas um dia iriam dominar a Europa.

Embora nunca estivesse especialmente bem-arrumado ou vestido de maneira imponente – em 1937, confundindo Hitler com um serviçal, Lord Halifax estava para lhe passar o chapéu (para que o guardasse) quando o Ministro das Relações Exteriores alemão evitou o que seria uma séria gafe diplomática sussurrando freneticamente: "O Führer! O Führer!" –, o homem de altura média que surgiu da escuridão da estação em um cálido sol de outubro23 parecia mais um vagabundo exausto e emaciado do que um soldado do orgulhoso exército do Kaiser Wilhelm. Seu uniforme cinza estava ainda manchado com a lama de Flandres e, depois de ter dormido com ele durante os seis dias da viagem para o norte, agora pendia amarrotado naquela silhueta magra e patética. A palidez e a magreza de sua face ficavam acentuadas por um bigode espesso, preto e pendente que formava um V invertido sob o longo nariz. Os penetrantes olhos azuis, que um dia iriam suscitar comentários e admiração das mulheres seguidoras, agora estavam obscurecidos por pálpebras inchadas e chumaços de gaze.

No sábado, 21 de outubro, ele finalmente chegou à pequena estação provinciana de Pasewalk e foi levado por uma das muitas ambulâncias puxadas por cavalos que esperavam na alameda ampla e sombreada por castanheiras, fora da estação, para conduzir os feridos aos diversos hospitais em torno da cidade (Figura 1).


Embora os historiadores desde há muito tenham se referido à estada de Hitler no hospital de Pasewalk, implicando que houvesse apenas um hospital na cidade, isso não é correto. No início da guerra, principalmente devido à estratégica confluência de linhas férreas, sete diferentes hospitais da reserva tinham sido criados nessa cidadela fortificada do século XII, junto ao rio Ücker, cujo único motivo de fama era o de ter sido local de nascimento, em 1871, de Oscar Picht, inventor da máquina de escrever para cegos.

Da variedade de construções, incluindo uma escola, um hotel e alguns abrigos privados que tinham sido postos em serviço, a mais insólita era a Casa de Tiro (Schützenhaus).

Esse edifício cinza, relativamente pequeno, construído em pedra, em sua maior extensão com um só espaço, mas em uma extremidade ramificada em três salas com estruturas em madeira, localizava-se na região sudeste da cidade. Cercado por árvores e em local bucólico, à leste dava para campos abertos e para a floresta de Pasewalk e, talvez menos encorajador para seus pacientes, ao norte, para o Cemitério Novo.

Originalmente uma fábrica de tijolos, em setembro de 1859, foi adquirida por um negociante de Pasewalk chamado Christian Darling, que converteu o local em um bar-restaurante circundado por jardins. Alguns anos mais tarde foram construídos os anexos em madeira para abrigar estandes de tiro, de onde vem o nome, e um salão de música popular. Um anúncio publicitário de um dos shows apresentados lá, em janeiro de 1907, lista, entre outras músicas populares do programa, uma verdadeiramente profética: O demônio ri às gargalhadas e você não pode fazer nada! Ainda outro anúncio descreve a Schützenhaus como "uma casa de concertos com um amplo jardim, um pavilhão de música e belas adjacências. Um grande hall com excelente palco e salas amplas para encontros, casamentos etc."24 (Figura 2).


Essa incomum combinação de restaurante, bar, clube de tiro, salas de encontro e teatro tornou-se extremamente popular entre os residentes de Pasewalk, e, em 1913, um pouco antes de ser confiscada pelo Exército, o proprietário Johannes Thom informava os leitores do jornal local: "Eu recomendo o local por seu jardim, suas grandes salas e seu palco, seus estandes de tiro para uso público e privado, com excelentes comida e bebida"25. Os negócios na Casa de Tiros mostravam-se tão bons que a casa figurava entre as primeiras com telefone – Pasewalk 363 –, para facilitar as reservas.

Alguns meses após o início da guerra, o Exército confiscou a edificação e aparelhou-a para uso como hospital militar da reserva, com o salão de música e os estandes de tiro sendo convertidos em cinco pequenas enfermarias, cada uma com seis a oito leitos, capazes de acomodar cerca de 30 pacientes. As enfermarias eram administradas por uma equipe de sete médicos e oito enfermeiras, sob o comando do Dr. Wilhelm Schroeder.

Dois dias após ser admitido na Casa de Tiros, Hitler foi examinado pelo Dr. Karl Kroner, um médico judeu de 40 anos cujo conhecimento sobre intoxicação por gás era tanto profissional quanto pessoal. Quando servia como médico no Terceiro Regimento de Cavalaria Husaren (N.T.: lendário regimento de cavalaria ligeira oriundo da região báltica), Kroner havia estado em ação no front francês de Verdun e Sedan e fora promovido a Coronel antes de ter sido vítima de intoxicação por gás seguida de cegueira temporária em 1917, motivo pelo qual foi mais tarde condecorado com a Cruz de Ferro de 1a Classe26 (Figura 3).


Aposentado por invalidez, ele retornou para casa em Berlim e começou a trabalhar como especialista em Medicina Interna e doenças nervosas. Embora estabelecido na prática privada, como Edmund Forster, ele prestava serviços de consultoria para diversos hospitais militares, incluindo aquele de Pasewalk. Kroner confirmou o diagnóstico de que não havia lesões na córnea que pudessem explicar a perda visual e que a cegueira de Hitler era uma reação histérica aos seus mais de quatro anos de serviços quase contínuos na frente de batalha. Embora o exame físico e diagnóstico do caso de Hitler tenham durado menos de 30 minutos em meio a uma série de outros atendimentos, o breve envolvimento de Karl Kroner no tratamento de Hitler colocou sua própria vida e a de seus familiares em grande risco. Um ano após a chegada de Hitler ao poder, Karl Kroner foi detido pela Gestapo e enviado para um campo de concentração fora de Berlim chamado Oranienburg (mais tarde Sachsen-Hausen). Lá, ele quase certamente teria morrido se não fosse por uma boa dose de sorte e pela coragem do cônsul da Islândia em Berlim. Foi apenas pela intervenção enérgica e determinada desse homem que o Dr. Kroner, a sua esposa e o seu filho Klaus, de 7 anos, escaparam da Alemanha nazista para começar vida nova na Islândia. Quando o Dr. Edmund Forster, por razões semelhantes, enfrentou a mesma ameaça de vida um ano mais cedo, em 1933, seu destino se mostraria mais trágico.

Quando vivia em Reykjavik, em 1943, Karl Kroner foi entrevistado pela Inteligência Naval dos Estados Unidos. Seu relato, incluindo detalhes de sua consulta com Hitler, foi revelado em 1973, lançando as primeiras luzes sobre os eventos curiosos que ocorreram durante os 24 dias da estada de Hitler em Pasewalk, proporcionando a primeira clara evidência de que sua cegueira era histérica e identificando Edmund Forster como o médico que havia tratado Hitler. Dr. Schroeder concordou com o diagnóstico de seu colega e enviou o prontuário médico de Hitler para seu neuropsiquiatra consultor, o Dr. Edmund Forster, na Clínica Neuropsiquiátrica Charité, solicitando que avaliasse o paciente na sua próxima visita (Figura 4).


Os registros militares de Hitler deixam bastante claro que durante a maior parte da guerra ele era um combatente resiliente e agressivo que rapidamente se adaptou às artimanhas da guerra moderna. Em 1922, por exemplo, seu primeiro comandante de batalhão, o Tenente-Coronel von Lüneschloss, descreveu-o como consciencioso, trabalhador, voluntarioso e com bom senso do dever.

Não se sabe exatamente como o Dr. Edmund Forster e Adolf Hitler ficaram face a face na Casa de Tiros, uma vez que virtualmente todos os registros hospitalares relacionados ao tratamento desapareceram dos arquivos, certamente tendo sido retirados e destruídos após a morte de Forster em setembro de 1933. Muito provavelmente, foi durante a semana de sua chegada que Hitler foi abordado e despido para ver o neuropsiquiatra. O fato de que tenha sido obrigado a retirar toda a roupa antes de ser examinado não se deve a qualquer perversão da parte de Edmund Forster, mas simplesmente a uma prática comum na época. Os psiquiatras alemães acreditavam que, ao humilhar o soldado por mantê-lo despido enquanto usavam seus uniformes militares e aventais brancos, aumentariam significativamente o poder e a autoridade sobre ele.

Os pacientes ficavam ainda mais terrificados quando recebiam choques elétricos, também os fazendo se sentir mais vulneráveis durante os diferentes tipos da chamada "terapia sugestiva".

Se, como é provável devido ao seu caráter e a opiniões psiquiátricas, a resposta imediata de Edmund Forster a Adolf Hitler fora bastante negativa, essa opinião parece ter mudado depois de sua primeira consulta. Em vez de tomá-lo como um simulador covarde, o Dr. Forster passou a ver Hitler de maneira mais favorável. Ele pareceu-lhe genuinamente preocupado com o fato de que sua cegueira o impedisse de seu dever e disse estar ansioso para que sua visão retornasse e ele pudesse voltar ao front. Seus registros militares também forneciam fortes indícios à impressão de que, longe de ser um covarde, a despeito de soldado ordinário, ele era bastante corajoso.

Embora ainda considerando que a cegueira histérica de Hitler fosse causada por uma "falha da vontade", Edmund Forster também concebeu a idéia de que, neste caso, nem o uso da eletricidade para terrificar Hitler, levando-o a recuperar a visão, nem a tentativa de forçá-lo a abandonar a cegueira iria se mostrar efetiva. Durante as duas semanas seguintes, ele tentou elaborar uma forma de terapia que pudesse restaurar a visão do paciente. Por fim, decidiu apostar no nacionalismo fanático do homem e ordenou que Hitler fosse levado ao seu consultório no lazareto.

Depois de examinar cuidadosamente os olhos de Hitler, Forster simulou, confirmando que sua cegueira era de fato causada pelo dano tissular irreparável provocado pelo gás e que, dada a extensão das lesões, era improvável que ele algum dia voltasse a ver. Depois de esperar por alguns momentos para que sua notícia devastadora tivesse efeito, Forster apagou a luz, deixando-o no escuro. Então, de modo suave e relutante, acrescentou que havia uma ponta de esperança: "Talvez você mesmo tenha o raro poder, que ocorre uma vez a cada milênio, de realizar um milagre", disse ele a Hitler. "Jesus fez isso, Maomé e os santos. Com seus sintomas, alguém normal ficaria cego pelo resto da vida. Mas para uma pessoa com excepcional força de vontade e energia mental não há limites, o conhecimento científico não se aplica a esse tipo de pessoa. Você precisa acreditar em si completamente, então poderá voltar a ver. Você sabe que a Alemanha, agora, precisa de pessoas que tenham energia e fé cega em si mesmas. Para você tudo é possível!".

Forster fez uma pausa e acendeu uma vela sobre a mesa entre eles, explicando que, se Hitler fosse capaz de ver a chama, isso seria a prova definitiva de suas qualidades únicas como ser humano e de que Deus lhe havia dado o destino de levar a Alemanha à vitória. Em princípio, o paciente negou que pudesse ver alguma coisa, mas, depois de alguns minutos da exortação de Forster, murmurou que podia ver uma chama de vela tênue e cintilante. Gradualmente, passou a perceber mais detalhes na sala. Sua visão estava recuperada. "Tudo aconteceu como eu queria que acontecesse", relembrou mais tarde Forster. "Eu brinquei de Deus e restituí a visão a um cego insone"27.

Em 19 de novembro, uma semana após o fim da guerra, Hitler teve alta e foi enviado de volta ao seu regimento em Munique. Mas, quanto mais pensava no significado do "milagre" que lhe havia acontecido, mais claro ficava para ele que sua sobrevivência milagrosa durante a guerra – ele fora ferido apenas uma vez em quatro anos de luta intensa – devia ter sido ordenada pela mesma providência que agora exortava que ele levasse a Alemanha à glória, para uni-la em um Reich invencível, cujas pessoas de raça superior assumiriam seu destino de liderança sobre a Europa.

Edmund Forster tinha curado a cegueira de Hitler, mas, ao fazer isso, tinha também criado um monstro.

Em 1933, Hitler obteve o poder absoluto sobre a Alemanha, e, no verão daquele mesmo ano, Edmund Forster, agora um respeitado professor e chefe do Hospital Neuropsiquiátrico da Universidade de Greifswald, foi forçado a se deparar com um dilema pessoal e profissional agonizante. Um declarado antinazista, que, aberta e verbalmente, expressou sua desaprovação a Hitler e o seu desprezo pelos nazistas, Forster indubitavelmente experimentou um profundo sentimento de culpa por seu feito, a despeito do caráter não intencional, na ascensão de seu paciente à supremacia política. Ele também sabia que, se a verdade sobre a cegueira histérica de Hitler em 1918 fosse revelada, os dias do ditador estariam contados. No entanto, a única maneira pela qual ele poderia revelar os fatos sobre o caso seria traindo seu juramento sobre a confidencialidade do paciente, desmoralizando a si próprio tanto como médico quanto como oficial.

No início de julho de 1933, Forster finalmente decidiu agir. Com a assistência de Dirk, seu irmão mais jovem, que trabalhava na embaixada alemã em Paris, contatou um grupo de jornalistas e escritores alemães emigrados, entre os quais estava um reconhecido novelista checo-alemão chamado Ernst Weiss. No Café Royal, em Paris, Forster se encontrou com esses homens e entregou suas anotações clínicas sobre o tratamento de Hitler. Ele também discutiu seu tratamento de Hermann Göring por dependência de morfina e descreveu como havia diagnosticado Bernhard Rust, o recentemente nomeado Ministro das Artes, Ciências e Educação Pública, como psicopata.

Após o retorno de Forster para a Alemanha, esses emigrantes se encontravam em posse de informações extraordinariamente perigosas. Eles estavam bastante conscientes de que a publicação daquele material atrairia a fúria da poderosa polícia secreta de Hitler sobre suas cabeças.

O governo francês, cauteloso em não provocar os alemães, mantinha uma cuidadosa vigilância sobre os emigrados e estaria sempre pronto para deportar de volta à Alemanha qualquer refugiado que pudesse causar embaraços políticos dessa natureza. Como resultado de tais justificados receios, eles esconderam as anotações clínicas e mantiveram silêncio. O enorme risco pessoal que Edmund correu ao trair a confidencialidade das anotações médicas fora em vão. A exposição e a desgraça públicas que ele esperava que fossem acontecer após suas revelações nunca se materializaram.

Foi apenas em 1938 que Ernst Weiss, empobrecido e desesperado para obter um visto para os Estados Unidos, decidiu publicar detalhes do arquivo médico do Führer. Mas ele assim procedeu apenas em um aparente trabalho de ficção, uma novela intitulada Der Augenzeuge (A Testemunha Ocular), que ele esperava que fosse publicado nos Estados Unidos.

Sob um pseudônimo, Der Augenzeuge foi escrito em primeira pessoa por um médico judeu sobre o tratamento, em 1918, de um paciente acometido de cegueira histérica, conhecido como "A. H.", em um hospital militar identificado como "P". Mais tarde, esse paciente se tornaria o líder supremo da Alemanha.

Weiss escreveu seu livro em dois meses, pois essa era a data limite para participar de um concurso para escritores alemães emigrados organizado por um comitê judeu estabelecido em Nova York. O autor, empobrecido e desesperado, esperava obter o prêmio principal, o que não apenas iria provê-lo com o dinheiro tão necessitado como também, e ainda mais importante, aumentaria suas chances de obter um visto americano. Infelizmente para Weiss, Der Augenzeuge não ganhou o prêmio e ficou esquecido em uma estante até os anos 1960, quando finalmente foi publicado como um trabalho de ficção, sem qualquer indicação à altura de seus extraordinários antecedentes.

Ao enviar seu manuscrito para o exterior, Weiss certamente salvou-o da destruição. Quando as tropas alemãs marcharam sobre Paris em 1940, o novelista se suicidou cortando os pulsos. Não muito mais tarde, o apartamento de Mona Wollheim, sua secretária e amante de outrora, foi invadido pela Gestapo e todos os papéis ali encontrados foram confiscados. Nessa época, entretanto, Edmund Forster já estava morto.

Forster disse aos escritores no Café de Paris que não se surpreendessem se ele, algumas semanas mais tarde, cometesse suicídio. Eles também não teriam acreditado nisso. Esse vaticínio de morte iminente foi realizado menos de dez semanas depois de seu encontro.

Logo após retornar para Greifswald, Forster foi denunciado em uma carta ao Ministro Prussiano da Educação, Bernhard Rust, por um estudante berlinense chamado Eugen Oklitz28. Entre diversas acusações, Oklitz, um jovem nazista que nunca tinha sido aluno de Edmund, descreveu Forster como um "amoral, parasita amante de judeus" e alegou que, entre outras coisas, ele tinha corrompido moralmente enfermeiras da equipe, fraudado a Universidade, insultado Hitler e abandonado seu caminho para proteger colegas judeus (Figura 5).


As autoridades da Universidade imediatamente suspenderam Forster e implementaram uma severa investigação sobre sua conduta. Quando a armação falhou em produzir o efeito desejado pelos nazistas, com muitos dos colegas de Forster corajosamente recusando-se a testemunhar contra ele, o curador tentou convencê-lo a renunciar ao cargo acadêmico mediante uma generosa pensão se ele saísse discretamente. Após alguma hesitação inicial, Edmund recusou-se em tomar o que ele reconhecera como uma desonrosa atitude. Tal decisão deixou os nazistas com apenas uma alternativa.

Um pouco antes das 8 horas da manhã, numa segunda-feira, 11 de setembro – um dia antes de seu aniversário de casamento –, sua esposa, Mila, encontrou-o morto no banheiro de sua casa dentro do campus universitário (Figura 6).


O professor Edmund Forster jazia com um único tiro de curta distância na cabeça. A seus pés havia uma pistola que ninguém da família sabia que ele possuísse. Teria sido assassinato, como Forster havia predito, ou o suicídio de um homem honrado levado ao desespero pela campanha difamatória dos nazistas?

O veredicto oficial foi que Edmund Forster tinha tirado sua própria vida porque estava deprimido. Entretanto, essa versão não é aceita pelos familiares sobreviventes, e, se os nazistas queriam vê-lo morto, a história do Terceiro Reich demonstra claramente que não haveria maiores escrúpulos na prática do assassinato.

O funeral do Dr. Edmund Forster ocorreu em 14 de setembro de 1933. Ele foi sepultado no Cemitério Novo de Greifswald, onde hoje uma simples lápide de granito ainda marca o local final de descanso de um homem descrito por um de seus colegas como "um acadêmico excelente, um extraordinário professor e um salvador dos doentes".

Quando visitei o cemitério, sua tumba mal podia ser vista atrás de um emaranhado de plantas (Figura 7), negligenciada e esquecida, como a própria história de Edmund Forster e a bizarra e talvez não intencional participação que teve na criação de um monstro.


Bibliografia

2. Embora biógrafos e historiadores sigam o testemunho de Hitler na obra Mein Kampf, sustentando que o ataque e a perda da visão ocorreram na noite de outubro 13/14, os documentos originais mostram que, de fato, esse incidente ocorreu em 15 de outubro. Ver, por exemplo, Namentliche Verlustliste: Ort und Tag des Verlustes La Montagne 15.10.18; Fünftaegige Meldungen der Lazarett: Oudenaarde Zugang am 15.10.18, Abzug am 16.10.18; Res. Laz. Pasewalk Zugang am 21.10.18; Verlustliste des Res. Inf. Regiments 16 am 15.10.18 bei La Montagne gaskrank ins Lazarett; Kriegsstammrolle: 15.10.18 bei Montagne gaskrank; Gasvergiftung ins Res. Laz. Pasewalk. 15.10.1918 bei Montagne gaskrank.

7. LERNER, P. - ibid, 281p.

11. Ibid.

16. FORSTER, E. op cit.

17. FORSTER, E. op cit.

18. GUILLAIN, G. - J.M. CHARCOT. 216p.

19. GROSS, H.J.; ZIMMERMAN, J. OP.CIT.

22. A descrição da estação de Pasewalk foi obtida de um fotógrafo contemporâneo.

23. O registro metereológico de Pasewalk em 21 de outubro mostra céu claro e quase sete horas de luz solar, com uma temperatura máxima de 16°C.

24. Arquivo do Museu de Pasewalk.

25. Ibid.

26. As Informações sobre o Dr. Karl Kroner foram gentilmente cedidas a mim por seu filho, o Prof. Klaus Kroner.

27. Esta sessão inteira foi obtida da novela Der Augenzeuge (A Testemunha Ocular), de Ernst Weiss. Embora apresentada como ficção, a obra parece ter seguido fielmente a descrição do tratamento de Hitler fornecida por Edmund Forster aos escritores alemães emigrados no Café de Paris em 1933.

28. A cópia original da carta de Oklitz encontra-se arquivada no Geheimes Staatsarchiv, em Berlim.

Recebido: 27/06/2006 - Aceito: 28/06/2006

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    Traduzido do alemão por Paulo Clemente Sallet.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      2006

    Histórico

    • Recebido
      27 Jun 2006
    • Aceito
      28 Jun 2006
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