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Importância do contexto sociofamiliar na abordagem de crianças obesas

Importance of the social and familial context in the management of obese children

Resumos

OBJETIVO: Aprofundar a compreensão das interações interpessoais das crianças obesas no contexto familiar e social. MÉTODOS: Foi utilizada uma metodologia qualitativa de pesquisa, adotando-se uma fundamentação teórico-metodológica apoiada na teoria sistêmica. Empregaram-se os seguintes instrumentos: entrevistas de aprofundamento; técnica do genograma e desenhos da imagem corporal. Os sujeitos da pesquisa foram crianças e seus familiares (pai, mãe e irmãos), atendidos pelo serviço de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. RESULTADOS: Evidenciaram-se os seguintes indicadores relevantes: segredos familiares das histórias de origem das figuras parentais; relação emaranhada mãe/filhos que indica certo distanciamento dos pais na relação com as crianças; fenômenos transgeracionais em seus aspectos biológicos e simbólicos da obesidade em três gerações dos grupos familiares estudados; mitos e lealdades familiares, os quais se apresentaram como um suporte da identidade pessoal e familiar no ser gordo. Os sinalizadores auxiliaram a compreender as dificuldades do processo de diferenciação dessas crianças, ou seja, a possibilidade de o emagrecimento ser vivenciado como uma ameaça aos processos de identidade do grupo familiar. CONCLUSÕES: Este estudo possibilitou demonstrar a importância de contextualizar a obesidade na infância, retirando a responsabilidade pelo problema da própria criança e deslocando-a para o contexto sociofamiliar. A prática desta pesquisa indicou outras possibilidades de intervenção, ressaltando a atuação interdisciplinar como postura profissional relevante para o tratamento da obesidade na infância.

obesidade; criança; psicologia; família


OBJECTIVE: This study aimed to understand obese children's interpersonal interactions in family and social contexts. METHODS: A qualitative methodology of research was used and the methodological and theoretical support was based on the systemic theory. The following tools were applied: interviews, genogram technique and drawings regarding body image. The subjects of the research were children and their relatives (parents and siblings) assisted by the Pediatric Nutrology Service at the Clinical Hospital of the Federal University of Minas Gerais. RESULTS: The analysis showed the following relevant contents among children's perceptions: family secrets regarding the stories of parental figures' origins; distant relationship of the parents in relation to the children; transgenerational phenomena in their biologic and symbolic aspects of obesity in three generations of the studied family groups; family myths and loyalties, which supported the obesity identity in the family group. These indicators helped to understand the difficulties of the process of differentiation of these children, that is, the possibility that loosing weight may be seen as a threat to their identity process in the family groups. CONCLUSIONS: This study shows the importance of contextualizing obesity in childhood, shifting the focus away from the child's self-responsibility and widening it to encompass the social/family context, highlighting the interdisciplinary action as a relevant professional approach to treat obesity in children.

obesity; child; psychology; family


ARTIGO ORIGINAL

Importância do contexto sociofamiliar na abordagem de crianças obesas

Importance of the social and familial context in the management of obese children

Valéria TassaraI; Rocksane Carvalho NortonII; Walter Ernesto U. MarquesIII

IMestre em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdade de Medicina da UFMG; Psicóloga Clínica do Setor de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG; Belo Horizonte, MG, Brasil

IIDoutora; Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

IIIDoutor; Professor do Departamento de Ciências Aplicada à Educação da Faculdade de Educação da UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Valéria Tassara Rua Plínio de Morais, 885, apto. 101 - Cidade Nova CEP 30170-170 - Belo Horizonte/MG E-mail: val.tassara@terra.com.br

RESUMO

OBJETIVO: Aprofundar a compreensão das interações interpessoais das crianças obesas no contexto familiar e social.

MÉTODOS: Foi utilizada uma metodologia qualitativa de pesquisa, adotando-se uma fundamentação teórico-metodológica apoiada na teoria sistêmica. Empregaram-se os seguintes instrumentos: entrevistas de aprofundamento; técnica do genograma e desenhos da imagem corporal. Os sujeitos da pesquisa foram crianças e seus familiares (pai, mãe e irmãos), atendidos pelo serviço de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais.

RESULTADOS: Evidenciaram-se os seguintes indicadores relevantes: segredos familiares das histórias de origem das figuras parentais; relação emaranhada mãe/filhos que indica certo distanciamento dos pais na relação com as crianças; fenômenos transgeracionais em seus aspectos biológicos e simbólicos da obesidade em três gerações dos grupos familiares estudados; mitos e lealdades familiares, os quais se apresentaram como um suporte da identidade pessoal e familiar no ser gordo. Os sinalizadores auxiliaram a compreender as dificuldades do processo de diferenciação dessas crianças, ou seja, a possibilidade de o emagrecimento ser vivenciado como uma ameaça aos processos de identidade do grupo familiar.

CONCLUSÕES: Este estudo possibilitou demonstrar a importância de contextualizar a obesidade na infância, retirando a responsabilidade pelo problema da própria criança e deslocando-a para o contexto sociofamiliar. A prática desta pesquisa indicou outras possibilidades de intervenção, ressaltando a atuação interdisciplinar como postura profissional relevante para o tratamento da obesidade na infância.

Palavras-chave: obesidade; criança; psicologia; família.

ABSTRACT

OBJECTIVE: This study aimed to understand obese children's interpersonal interactions in family and social contexts.

METHODS: A qualitative methodology of research was used and the methodological and theoretical support was based on the systemic theory. The following tools were applied: interviews, genogram technique and drawings regarding body image. The subjects of the research were children and their relatives (parents and siblings) assisted by the Pediatric Nutrology Service at the Clinical Hospital of the Federal University of Minas Gerais.

RESULTS: The analysis showed the following relevant contents among children's perceptions: family secrets regarding the stories of parental figures' origins; distant relationship of the parents in relation to the children; transgenerational phenomena in their biologic and symbolic aspects of obesity in three generations of the studied family groups; family myths and loyalties, which supported the obesity identity in the family group. These indicators helped to understand the difficulties of the process of differentiation of these children, that is, the possibility that loosing weight may be seen as a threat to their identity process in the family groups.

CONCLUSIONS: This study shows the importance of contextualizing obesity in childhood, shifting the focus away from the child's self-responsibility and widening it to encompass the social/family context, highlighting the interdisciplinary action as a relevant professional approach to treat obesity in children.

Key-words: obesity; child; psychology; family.

Introdução

A obesidade tornou-se um fenômeno alarmante e preocupante em praticamente todas as faixas etárias da população e em vários países do mundo. Nos últimos anos, com crescente prevalência mundial, a obesidade vem constituindo um dos mais significativos problemas de saúde pública, principalmente devido às graves consequências biopsicossociais(1).

No Brasil, estudos epidemiológicos constataram excesso de peso em 40,6% da população adulta e, na faixa etária pediátrica, prevalência de excesso de peso entre 10,8 e 33,8% em diferentes regiões. Considera-se que a obesidade na infância e adolescência esteja diretamente relacionada à obesidade na fase adulta, pois cerca de 50% de crianças obesas aos seis meses e 80% das crianças obesas aos cinco anos permanecerão obesas(2). É importante salientar que vários estudos(3-5) corroboram essa alarmante estatística de que a obesidade na infância vem aumentando de forma significativa, gerando complicações para a saúde na infância, adolescência e fase adulta.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS)(6), medidas efetivas para o controle da obesidade incluem uma abordagem preventiva e de promoção da saúde na infância e adolescência. Mello et al(7) relatam haver uma variedade de intervenções para o tratamento da obesidade infantil, tais como: médica; orientação nutricional; terapia de família, comportamental e cognitiva e farmacológica. Há estudos(8,9) que mostram programas de tratamento da obesidade na infância com articulação da intervenção nutricional e atividade física, assim como outros abordam intervenções multidisciplinares(10,11) envolvendo os aspectos médicos, nutricionais e emocionais.

Este estudo teve como objetivo pesquisar as interações interpessoais das crianças obesas no contexto familiar e social para aprofundar a compreensão da complexidade de fatores que se inter-relacionam, tais como os biogenéticos, os nutricionais, os familiares e os psicossociais, na abordagem da criança obesa.

Método

Neste estudo, utilizou-se a metodologia de pesquisa qualitativa, fundamentada em um aprofundamento e abrangência da compreensão do fenômeno estudado(12). Dessa maneira, buscou-se uma perspectiva contextual para compreender o processo interativo entre as histórias dos valores e crenças do aprendizado dos hábitos alimentares familiares e as histórias que as crianças estão aprendendo a construir para elas mesmas em relação ao significado da postura alimentar de comer muito, comer bem e de ser gordo na família.

A casuística foi composta por quatro crianças e seus familiares (pai, mãe e irmãos): dois meninos e duas meninas com idades entre sete e 12 anos(13), atendidas pelo Setor de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). As crianças apresentaram diagnóstico de obesidade, de acordo com índice de massa corpórea (IMC), acima do percentil 95. As famílias eram nucleares simples (composta por pai, mãe e filhos) e pertenciam à classe social de baixa renda(14). A escolha da amostra foi intencional(15,16), usando como critério os sujeitos mais significativos para o entendimento das interações familiares tecidas em um emaranhamento(17) que se tornou recorrente nas entrevistas.

Os instrumentos de pesquisa utilizados foram as entrevistas de aprofundamento com os pais e as mães, e a técnica do genograma(18) para retratar aspectos transgeracionais biológicos e simbólicos da obesidade dos grupos familiares estudados e os desenhos da imagem corporal como possibilidade de expressão das crianças quanto às vivências em relação ao próprio corpo no contexto sociofamiliar. As entrevistas com pais, mães, crianças e grupos familiares foram gravadas e transcritas posteriormente. As análises e interpretações foram calcadas na vertente sistêmica.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição. O termo de consentimento livre e esclarecido foi assinado pelos pais. Para preservar a identidade das mães, pais e crianças entrevistadas, as falas foram identificadas com M para as mães, P para os pais e C para as crianças.

Resultados e Discussão

Para este estudo, as análises e interpretações foram fundamentadas na teoria sistêmica, evidenciando assim as categorias relevantes, tais como: os segredos familiares das histórias de origem das mães; a relação emaranhada mãe/filhos e filhas, que indicou certo distanciamento da parte dos pais; os fenômenos transgeracionais em seus aspectos biológicos e simbólicos da obesidade em três gerações dos grupos familiares estudados; os mitos e lealdades familiares, as quais se apresentaram como um suporte da identidade pessoal e familiar para o ser gordo. Tais sinalizadores foram fundamentais para compreender as dificuldades do processo de diferenciação dessas crianças, ou seja, a possibilidade de emagrecimento vivenciada ocultamente como uma ameaça aos processos identificadores do grupo familiar, tal como foi retratado em seus desenhos da imagem corporal.

Relações familiares e obesidade na infância

No contexto dos grupos familiares estudados, as mães expressaram vivências sofridas em seu contexto familiar de origem, que se configuraram, na perspectiva sistêmica, como segredos familiares(19). Mason(20) relata que os segredos estão relacionados a eventos dolorosos de vida e que ocorrem fora das normas sociais e culturais. As histórias dessas mães relacionadas a abuso sexual, gravidez antes do casamento e abandono produziram sentimentos de insegurança, medo, vergonha e fracasso, que permaneceram ao longo de suas vidas como "segredos de si mesmas"(21), um sofrimento acautelado que se revelou em uma relação fusionada com os filhos.

As vivências maternas de sofrimentos aprisionados podem ser reeditadas na relação com os filhos, sendo traduzidas em dependência, superproteção e cuidados excessivos na alimentação, o que provoca secundariamente um cerceamento das suas vidas ao cotidiano familiar. A restrição nas relações interpessoais e sociais, segundo Sluzki(22), leva à produção de um sofrimento gerador de adoecimento biopsicossocial decorrente do processo de isolamento social.

Na perspectiva da psicologia sistêmica, a restrição da vida familiar ao espaço doméstico representa sofrimento para as crianças, uma vez que dificulta a ampliação das suas relações interpessoais e sociais. Há recorrência de passividade manifestada, por exemplo, no tempo diante da televisão e ansiedade(23), expressa em forma de "comer excessivamente"(24) . Por outro lado, as filhas e os filhos são vistos pelas mães como preguiçosos, sem iniciativa para os cuidados diários (tomar banho, trocar de roupa, fazer as refeições etc.), e também desanimados para as atividades físicas, de lazer e da orientação nutricional.

Desta maneira, a relação mãe-filho caracterizou-se como emaranhada(17), ou seja, pela indiferenciação das fronteiras do subsistema familiar mãe-filho, conforme expressaram as mães entrevistadas: "Ela é tudo [...] razão deu viver é ela" (M.1); "Ele foi a base de tudo pra mim [...]" (M.2); "Eu não deixava ela [...]" (M.3); "[...] se eu perder eu morro [...] é minha vida [...] é meu filho" (M.4).

Pode-se considerar que a expressão de passividade e de ansiedade, bem como o comer excessivo dessas crianças representam a ponta de um iceberg, em que a parte submersa é o sofrimento das crianças amalgamado ao das mães, que tenta emergir e transparecer nos corpos obesos dessas crianças.

Tais experiências familiares demonstraram que determinados segredos, associados às trajetórias de sofrimento, propiciaram aprisionamentos nas relações mãe-filho. No entanto, essas tramas complexas apresentaram outros elementos intercorrentes; ou seja, a fusão mãe-filho contribuiu para algum distanciamento do pai(25) na relação com o filho. Sendo assim, a dinâmica familiar gerou implicações para a saúde dessas famílias, representadas pela obesidade das crianças. Nesse aspecto, Miermont et al(17) salientam: "Um subsistema mãe-filho altamente emaranhado (que perpetue os primeiros tempos simbióticos da relação) costuma excluir o pai, que se desliga ao extremo. A autonomia dos filhos é, então, diminuída, o que pode se transformar em um importante fator de desenvolvimento de sintomas".

Torna-se importante destacar que o termo "simbiose" vem do grego symbiosis, "associação e entendimento íntimo entre duas pessoas"(26). Quer dizer, na relação mãe-filho ocorre uma fusão que faz parte do desenvolvimento da relação. No entanto, nessas famílias, a simbiose torna-se prejudicial à relação familiar, já que o prolongamento dessa fusão propicia, de alguma forma, o afastamento do pai na relação com o filho, bem como restringe o movimento ativo das crianças na vida, como brincar na rua e tomar iniciativas para realizar atividades cotidianas, culminando em experiências de sofrimento. Nesse aspecto, Minuchin(25) analisa que, nos subsistemas familiares emaranhados, desenvolvem-se fronteiras excessivamente rígidas que dificultam o intercâmbio com o mundo exterior, assim como desencorajam a autonomia da criança para lidar com situações da vida e, também, inibem suas habilidades cognitivo-afetivas.

Quanto a essa dinâmica relacional, evidencia-se um emaranhamento de conflitos compartilhados entre pai, mãe e filho que é visível no excesso de peso da criança e armazena uma sobrecarga psicológica invisível, tal como o segredo familiar. Contudo, na vivência da criança, esses pesos estabelecem conexões, já que a expressão do sofrimento psíquico aparece na postura do "comer mais", revelando a ingestão dessa mistura de sofrimentos e conflitos familiares.

Desta maneira, a conduta do comer excessivo pela criança se expressa como um "sintoma-comunicação"(27), por meio do qual ela tenta comunicar que, simbolicamente, "ingere" conflitos e sofrimentos do sistema familiar, dada a dificuldade de expressá-los e compreendê-los.

Essas questões mais profundas, que dizem respeito a esses emaranhamentos de sofrimentos e conflitos, indicam a importância de o profissional que acompanha a criança obesa rever a sua atuação e não restringi-la à prescrição dietética. O profissional precisa considerar questões mais amplas do sistema familiar no processo de mudanças de hábitos alimentares da criança e sua família. Essas questões psicológicas, familiares e sociais se articulam aos fatores biogenéticos na constituição da obesidade na infância. Tal conexão pode ser evidenciada pelo fenômeno transgeracional, ou seja, a reedição da obesidade em três gerações, no que diz respeito aos aspectos de identidade dessas crianças em seus grupos familiares.

Fenômeno transgeracional e reedição da obesidade

Na perspectiva sistêmica, o fenômeno transgeracional trata de valores e crenças que são compartilhados com as gerações passadas das famílias, apoiando-se em mitos familiares que configuram as histórias dos grupos estudados. Nesse aspecto, Neuburger(28) elucida que o mito representa um elemento organizador do grupo familiar, define crenças, regras e papéis familiares, postula sua forma de funcionamento, além de proporcionar aos membros do seu grupo um sentido de identidade. No entanto, cada família constrói sua mitologia com base nas singularidades genéticas, culturais e históricas(29).

Dessa forma, os relatos dos pais, mães e crianças sobre as relações afetivas estabelecidas em torno da alimentação(30), seus aprendizados de valores, crenças, gostos e saberes alimentares, as formas de se alimentar, as receitas culinárias das avós, as comemorações, assim como a retratação dos familiares obesos, possibilitam reportar à reedição do sentido de ser gordo em suas famílias. A utilização da expressão "ser gordo" representa a retratação que os sujeitos da pesquisa têm de si mesmos, a qual constitui elemento significativo de suas identidades. Essa recorrência intergeracional aponta para os mitos familiares, ou seja, para a memória familiar: "Minha tia (mais nova) é gordinha, minha avó é gordinha, meu vô é gordinho e meu pai é palitinho." (C.1); "Nasceu igual uma bolota. Puxou a família da mãe" (P.2); "Eu sempre fui gordinho. Toda vida fui gordinho, desde pequeno. Minha mãe era gorda. Ela (filha) puxou minha família" (P.3); "É gordo. Mesma coisa que fulano (pai biológico)" (M.4).

Observa-se que esses aspectos intergeracionais na constituição da identidade(31) familiar dos sujeitos - no ser gordo - se sustentam pelos mitos e, também, pelas lealdades familiares. Segundo Aun(32), as lealdades representam as expectativas que cada membro tem a respeito dos demais e da relação familiar, depositadas nas gerações posteriores. A identificação com o "ser gordo" torna-se um modelo homogeneizador, dificultando o processo de diferenciação(33), ou seja, de possibilidades de identificação com outras pessoas significativas da família. Agregado a isso, essas crianças se deparam com um padrão normativo corporal-magro característico da sociedade pós-moderna(34). Evidenciam-se, então, vivências de conflitos em relação à identidade dada - ser gordo - e à possibilidade de emagrecer, ou seja, diferenciar-se - tornar-se magro.

Imagem corporal e obesidade na infância

Essas vivências conflituosas das crianças em relação à identidade - ser gordo - e à possibilidade de emagrecer, ou seja, diferenciar-se em relação ao outro, são expressas nos seus desenhos da imagem corporal(35). Por exemplo, uma das crianças expressou em relação ao seu desenho da imagem corporal: "Eu sempre fui gordinha" (C.1), porém, desenhou-se magra, ou seja, diferente de como ela fala a respeito si mesma e de que os familiares afirmam para ela. Assim, ela disse: "Eles acham natural eu engordar" (C.1). Dessa forma, a criança expressou que se imagina de outra maneira, diferente do que foi pré-estabelecido no seu contexto familiar. No entanto, mostrou que se sente aceita e reconhecida. Referiu-se a isso falando sobre os apelidos: "Na família, só apelido de rir. Apelido que eu já conheço. Eu não fico ofendida." (C.1). Porém, no âmbito social, em relação aos apelidos que os colegas colocam, ela expressou: "Me dá uma raiva!" (C.1).

Essas crianças, ao se desenharam magras, demonstraram desejo de emagrecer como possibilidade de se diferenciarem desse aspecto de identidade familiar de "ser gordo", ou seja, poder identificar-se com outras pessoas significativas do contexto familiar e social. Ressalta-se que o desejo de emagrecer dessas crianças não retratou a desvalorização da identidade familiar, mas evidenciou dificuldades emocionais (sentimentos de medo e culpa) em relação ao processo de emagrecimento(36) - ao fato de a diferenciação se tornar uma ameaça ao sentimento de pertencimento familiar e à identidade - ser gordo.

Esses pais, mães e crianças precisam ser retratados em suas vivências, já que, emaranhados em seus sofrimentos, não encontram outras maneiras para se relacionarem com seus filhos e filhas e, ocultamente, reeditam as vivências conflituosas nas suas histórias atuais. Portanto, evidencia-se a importância de considerar o contexto sociofamiliar no tratamento da obesidade na infância.

Este estudo aponta que, no tratamento da obesidade na infância, é fundamental a atuação interdisciplinar apoiada na perspectiva sistêmica de que a criança representa a parte de um todo, não configurando um elemento isolado do grupo familiar. Portanto, as interações que se estabelecem entre pais, mães, filhos e filhas necessitam ser incluídas e articuladas às questões nutricionais que envolvem o processo de mudança de estilo de vida das famílias.

Acolher e respeitar as famílias em suas histórias é estratégia facilitadora da relação entre a família e os profissionais, na tentativa de não tornar a intervenção uma ameaça à identidade do grupo familiar. Pelo contrário, procura-se possibilitar o envolvimento e a participação das famílias no processo de mudança. O trabalho não se reduz a cuidar da mudança de hábitos alimentares, já que inclui a vida das pessoas, seus vínculos afetivos familiares e sociais, valores, dores e conflitos. Representa um processo dinâmico e reconstrutivo de um novo estilo de vida familiar.

A responsabilidade da intervenção não pode ser atribuída exclusivamente ao médico pediatra, ao nutricionista, ao psicólogo ou ao educador físico. É necessário possibilitar diálogos e atuações entre os profissionais, com o intuito de gerar complementaridade entre os saberes(37). Nessa perspectiva, não se deposita o fracasso gerado pela dificuldade do processo de emagrecimento aos filhos e às filhas, mas se reconfigura para um contexto relacional mais amplo, discutindo representações constitutivas dos grupos familiares, assim como se estabelecem trocas afetivas entre os participantes, ajudando-os a ampliar as suas relações familiares e, por conseguinte, o desenvolvimento da autonomia(38,36) das crianças no processo.

O tratamento da obesidade na infância deve ser co-construído entre os profissionais e as famílias, levando-se em consideração que os pais, mães e filhos precisam ser acolhidos e compreendidos em suas histórias, sofrimentos, conflitos, valores, crenças, saberes e sabores.

Tratar crianças obesas implica considerá-las em seus contextos familiares e sociais. No sentido de "(trans)ver", ou seja, acolhê-las com um olhar que enxerga além da sua gordura e peso. Implica, portanto, respeitá-las nas suas histórias familiares, nos seus sofrimentos, alegrias, saberes e curiosidades. As consequências da obesidade para a saúde das crianças não se reduzem a colesterol alto, diabetes, problemas ortopédicos ou dermatológicos, mas articulam-se aos problemas psicossociais relacionados ao comprometimento da autonomia, restrição do espaço social e de possibilidades de identificações que propiciam o adoecimento das crianças e seus sistemas familiares. É necessário adotar trabalhos construídos em redes cooperativas e solidárias com vistas ao fortalecimento dos vínculos familiares, sociais, profissionais e institucionais, no intuito de ampliar a compreensão do problema e possibilitar intervenções mais efetivas diante da complexidade do fenômeno da obesidade na infância.

Agradecimentos

Aos membros do Setor de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da UFMG: Doutor Ennio Leão, Adriana, Ana Lúcia, Joel, José Venâncio, Márcia, Paulo, Ricardo, Rocksane, Rosângela e Viviane pelo incentivo caloroso e pelo reconhecimento deste trabalho.

Recebido em: 23/3/2009

Aprovado em: 30/11/2009

Fonte de financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), auxílio n.º 382/04.

Conflito de interesse: nada a declarar

Instituição: Ambulatório de Nutrologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

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  • Endereço para correspondência:
    Valéria Tassara
    Rua Plínio de Morais, 885, apto. 101 - Cidade Nova
    CEP 30170-170 - Belo Horizonte/MG
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Set 2010

    Histórico

    • Recebido
      23 Mar 2009
    • Aceito
      30 Nov 2009
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