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Em tempo: doença celíaca - alguns aspectos atuais de epidemiologia e investigação

Desde a associação entre ingestão de glúten e doença celíaca (DC) por Dicke11 Dicke WK. Coeliac disease. Investigation of the harmful effects of certain types of cereal on patients with coeliac disease. Thesis, Utrecht 1950. durante a II Guerra Mundial, o nosso conhecimento sobre a fisiopatologia da enteropatia sensível ao glúten tem aumentado de forma vertiginosa, especialmente com os recursos da investigação molecular. Contudo, se é claro que a ingestão de glúten causa enteropatia e doença extraintestinal em indivíduos geneticamente suscetíveis, mantemos uma enorme ignorância sobre os fatores adicionais nos mecanismos de desencadeamento e de prevenção da doença.

Na década de 1960, havia enorme tendência de introduzir cereais precocemente na alimentação infantil para prevenir a deficiência de ferro e a anemia. Em consequência, rapidamente se verificou um aumento acentuado de novos casos doença celíaca e parecia haver também relação da doença com o tipo de aleitamento, o que influenciaria a idade de apresentação dessa doença.22 Kelly DA, Phillips AD, Elliott EJ, Dias JA, Walker-Smith JA. Rise and fall of coeliac disease 1960-85. Arch Dis Child. 1989;64:1157-60.

Nos anos 1980-90, ocorreu notável aumento de incidência de DC na Suécia, causando a famosa “epidemia sueca de doença celíaca”, que motivou numerosas publicações e análises. A explicação mais imediata parecia relacionar-se à idade da introdução do glúten na alimentação e ao padrão de aleitamento. Após a implantação de medidas de retardo na introdução de glúten na alimentação infantil, verificou-se acentuada redução do número de novos casos.33 Ivarsson A, Persson LA, Nystrom L, Ascher H, Cavell B, Danielsson L, et al. Epidemic of coeliac disease in Swedish children. Acta Paediatr. 2000;89:165-71.

4 Ivarsson A, Persson LA, Stenhammar L, Hernell O. Is prevention of coeliac disease possible? Acta Paediatr. 2000;89:749-50.
-55 Myléus A. Towards explaining the Swedish epidemic of celiac disease - an epidemiological approach, in Department of Public Health and Clinical Medicine, Epidemiology and Global Health. Umeå, Sweden: Print & Media, Umeå University; 2012.

A análise dessa evolução sugeriu que a introdução do glúten durante o aleitamento materno pudesse conferir proteção à ocorrência da doença. Um importante estudo multicêntrico (PreventCD) comparou a introdução de glúten ou placebo aos quatro meses durante o aleitamento materno em um grupo de cerca de 900 lactentes com risco genético de DC. O resultado do estudo com seguimento de cinco anos revelou que não houve efeito protetor do aleitamento materno durante a introdução de glúten.66 Vriezinga SL, Auricchio R, Bravi E, Castillejo G, Chmielewska A, Crespo Escobar P et al. Randomized feeding interven-tion in infants at high risk for celiac disease. N Engl J Med. 2014;371:1304-15. Outro estudo que envolveu 553 crianças avaliadas até dois anos mostrou que a introdução precoce ou tardia do glúten não influenciou o risco de ocorrência da DC, embora influenciasse a idade da sua ocorrência.77 Lionetti E, Castellaneta S, Francavilla R, Pulvirenti A, Tonutti E, Amarri S, et al. Introduction of gluten, HLA status, and the risk of celiac disease in children. N Engl J Med. 2014;371:1295-303. Uma revisão sistemática obteve a mesma conclusão, sugeriu que a clássica recomendação de retardar a introdução do glúten até seis meses carece hoje de fundamentação científica.88 Szajewska H, Shamir R, Chmielwska A, Piescil-Lech M, Auricchio R, Ivarson A, et al. Systematic review with meta-analysis: early infant feeding and coeliac disease - update 2015. Aliment Pharmacol Ther. 2015;41:1038-54.

É preciso concluir que não sabemos ainda quais são os fatores que seguramente podem reduzir o risco de DC em indivíduos geneticamente predispostos. Outras hipóteses de estudo, como a exposição intrauterina, infecções ou outros fatores ambientais, necessitam de ser avaliadas na busca da resposta exata.99 Lebwohl B, Murray JA, Verdu EF, Crowe SE, Dennis M, Fasano A, et al. Gluten introduction, breastfeeding, and celiac disease: back to the drawing board. Am J Gastroenterol. 2016;111:12-4.

Outro aspecto muito importante no conceito atual de DC é a autoimunidade. É hoje bem reconhecido que a DC se associa a outras doenças autoimunes e que a prevalência de DC em doentes com diabetes tipo 1 (DM1) é mais elevada do que na população geral. A pesquisa de marcadores sorológicos de DC deve ser feita em todos os doentes com DM1. A questão torna-se ainda mais interessante na análise de qual doença precede a outra e a possibilidade de influenciar a progressão autoimune.1010 Peretti N, Bienvenu F, Bouvet C, Fabien N, Tixier F. Thivolet C, et al. The temporal relationship between the onset of type 1 diabetes and celiac disease: a study based on immunoglobulin a antitransglutaminase screening. Pediatrics. 2004;113:e418-22. Um interessante estudo foi apresentado em 2015 por Korponay-Szabo: um grupo de 2.690 crianças em idade escolar foi submetido a rastreio de DC em 2005. Em 2014, procedeu-se a um rastreio de DM1 na mesma região, envolvendo 21.724 crianças. Verificou-se então que nenhuma das 45 crianças diagnosticadas previamente com DC e tratadas tinha desenvolvido DM1, enquanto a prevalência foi de 0,93/1.000 entre as crianças cujos pais haviam declinado o rastreio de DC em 2005. Esse estudo, que requer confirmação, sugere que será possível modificar a evolução da autoimunidade pelo rastreio e identificação precoce de DC. Segundo os autores, a idade de seis anos parece ser eficaz para esse processo. (Resumo PA-0054, disponível em http://journals.lww.com/jpgn/Documents/ESPGHAN%202015%20-%20Abstracts%20JPGN%20FINAL.pdf)

A divulgação da potencial relação entre ingestão de glúten e doenças tem sido profundamente difundida na comunicação social. Para além da “sensibilidade não celíaca ao glúten”’, um razoável número de personalidades famosas anunciou a decisão de adotar uma alimentação isenta de glúten para emagrecer ou para se sentir bem. As redes sociais rapidamente amplificaram essa moda como forma de ser elegante ou saudável (http://glutenull.com/gluten-free-celebrities/). Perante essa importante influência de opiniões, muitas pessoas decidem hoje iniciar uma dieta sem glúten, mesmo na ausência de diagnóstico seguro de DC. Nada há a contestar no que se refere à adoção de dieta sem glúten por “moda”, mas há o risco real de tratar apenas de forma temporária (até que a moda passe) a DC, caso ela esteja presente, e voltar a aumentar o risco de complicações ao retomar a dieta sem restrição. Por esse motivo, e devido ao risco inerente, parece fortemente recomendável que os profissionais de saúde aconselhem os seus pacientes a iniciar alimentação isenta de glúten apenas depois de testar com razoável segurança (usar, por exemplo, os anticorpos antitransglutaminase ou antiendomísio) e excluir ou confirmar o diagnóstico.

Apesar do fantástico avanço da investigação e do conhecimento, a DC continua a ser uma doença fascinante, com componente genético indiscutível, mas também com fatores ambientais que não conhecemos completamente. No futuro próximo, perfilam-se novos avanços no diagnóstico e na terapêutica que nos ensinarão a ajudar melhor os nossos pacientes.

  • Financiamento
    O estudo não recebeu financiamento.

References

  • 1
    Dicke WK. Coeliac disease. Investigation of the harmful effects of certain types of cereal on patients with coeliac disease. Thesis, Utrecht 1950.
  • 2
    Kelly DA, Phillips AD, Elliott EJ, Dias JA, Walker-Smith JA. Rise and fall of coeliac disease 1960-85. Arch Dis Child. 1989;64:1157-60.
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    Ivarsson A, Persson LA, Nystrom L, Ascher H, Cavell B, Danielsson L, et al. Epidemic of coeliac disease in Swedish children. Acta Paediatr. 2000;89:165-71.
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    Ivarsson A, Persson LA, Stenhammar L, Hernell O. Is prevention of coeliac disease possible? Acta Paediatr. 2000;89:749-50.
  • 5
    Myléus A. Towards explaining the Swedish epidemic of celiac disease - an epidemiological approach, in Department of Public Health and Clinical Medicine, Epidemiology and Global Health. Umeå, Sweden: Print & Media, Umeå University; 2012.
  • 6
    Vriezinga SL, Auricchio R, Bravi E, Castillejo G, Chmielewska A, Crespo Escobar P et al. Randomized feeding interven-tion in infants at high risk for celiac disease. N Engl J Med. 2014;371:1304-15.
  • 7
    Lionetti E, Castellaneta S, Francavilla R, Pulvirenti A, Tonutti E, Amarri S, et al. Introduction of gluten, HLA status, and the risk of celiac disease in children. N Engl J Med. 2014;371:1295-303.
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    Szajewska H, Shamir R, Chmielwska A, Piescil-Lech M, Auricchio R, Ivarson A, et al. Systematic review with meta-analysis: early infant feeding and coeliac disease - update 2015. Aliment Pharmacol Ther. 2015;41:1038-54.
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    Lebwohl B, Murray JA, Verdu EF, Crowe SE, Dennis M, Fasano A, et al. Gluten introduction, breastfeeding, and celiac disease: back to the drawing board. Am J Gastroenterol. 2016;111:12-4.
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    Peretti N, Bienvenu F, Bouvet C, Fabien N, Tixier F. Thivolet C, et al. The temporal relationship between the onset of type 1 diabetes and celiac disease: a study based on immunoglobulin a antitransglutaminase screening. Pediatrics. 2004;113:e418-22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2015
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