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O CONHECIMENTO MÉDICO A RESPEITO DAS DIVERSAS RELIGIÕES NOS CUIDADOS PEDIÁTRICOS

RESUMO

Objetivo:

Descrever o conhecimento dos médicos pediatras e residentes de pediatria a respeito do significado da morte segundo as religiões mais prevalentes no Brasil.

Métodos:

Estudo transversal em que foi aplicado um questionário aos médicos pediatras e residentes de um hospital pediátrico de nível terciário da cidade de São Paulo, SP, Brasil, sobre o conhecimento e as experiências acerca de religiões de pacientes paliativos.

Resultados:

Ao todo, 116 médicos responderam ao questionário, 98 (84,5%) religiosos, definidos como seguidores de algum dogma espiritual existente no mundo, e 18 (15,5%) não religiosos. Do total, 97 (83,6%) considera-se apto a lidar com os cuidados espirituais de pacientes católicos, 49 (42,2%) de pacientes protestantes e 92 (79,3%) de pacientes espíritas em processo de morte. Médicos religiosos utilizaram menos os serviços de capelania do que médicos não-religiosos (risco relativo - RR 2,54; p=0,043; intervalo de confiança de 95% - IC95% 1,21-5,34). Dos entrevistados, 111 (96%) acreditam que a espiritualidade é benéfica na aceitação do processo de morte, resposta associada à religiosidade dos médicos (RR 1,18; p=0,026; IC95% 0,95-1,45). Ainda, 106 (91,4%) dos entrevistados desconhecem a religião de seus pacientes. A mesma quantidade de participantes considera os pediatras, em geral, despreparados para lidar com o aspecto espiritual da morte, e esses dados não estão ligados à manifestação de religiosidade.

Conclusões:

Apesar de a maioria dos médicos pediatras e residentes se dizer apta a lidar com as religiões mais prevalentes no Brasil e afirmar que a espiritualidade é benéfica durante o processo de morte, pouca importância é dada à identidade espiritual de seus pacientes, o que pode dificultar uma abordagem adequada ao seu processo de morte.

Palavras-chave:
Religião; Espiritualidade; Cuidados paliativos; Criança

ABSTRACT

Objective:

To describe the knowledge of pediatricians and pediatric residents about the meaning of death according to the most prevalent religions in Brazil.

Methods:

A cross-sectional survey was conducted among pediatricians and pediatric residents at a tertiary-level children’s hospital in the city of São Paulo, SP, Brazil, questioning about their knowledge and experience related to spiritual care and the most common religious beliefs among pediatric palliative care patients in Brazil.

Results:

116 physicians answered the questionnaire, 98 (84.5%) considered themselves religious, defined as followers of any spiritual creed around the world, and 18 (15.5%) non-religious. Of the total, 97 (83.6%) considered themselves capable of dealing with the spiritual care of Catholic patients, 49 (42.2%) of Protestant patients and 92 (79.3%) of patients that follow Spiritism in the process of death. Religious doctors used less chaplaincy services than non-religious doctors (relative risk - RR 2.54; p=0.0432; confidence interval of 95% - 95%CI 1.21-5.34). Among the physicians, 111 (96%) believe that spirituality is beneficial in accepting the death process, responses were associated with the religiosity of the physicians (RR 1.18; p=0.0261; 95%CI 0.95-1.45). Also, 106 (91.4%) are unaware of the religion of their patients and the same number of participants consider pediatricians, in general, unprepared to deal with the spiritual aspect of death. These data are not associated with the participants’ religiosity.

Conclusions:

Although most pediatricians and residents consider themselves able to deal with the most prevalent religions in Brazil and affirm that spirituality is beneficial during the death process, little importance is given to the spiritual identity of their patients, which could limit an appropriate approach to their death process.

Keywords:
Religion; Spirituality; Palliative care; Child

INTRODUÇÃO

Mesmo que a morte seja inevitável a todo ser vivente, o homem é o único que tem real consciência de sua própria finitude. Isso molda nossa forma de viver e a maneira como enxergamos nossa própria morte: há outra forma de consciência? Há descanso eterno em campos paradisíacos? Reencarnaríamos em novos invólucros corporais? Ou há simplesmente o fim das atividades biológicas? Amálgama de nossas dúvidas e anseio por respostas, as religiões e suas filosofias são parte importante nesse processo do morrer.

Objetivamente e para fins de documentação, a medicina segue definições rígidas e estipuladas para estabelecer a morte de um indivíduo. Tais definições não serão aqui discutidas, pois o foco deste trabalho não é a doença em si, mas sim as pessoas. Este estudo situa-se no contexto das questões filosófico-existenciais que permeiam o fim da vida do paciente pediátrico, a fim de proporcionar-lhes (e à sua família) suporte físico, emocional, psicológico, social e espiritual inclusive post mortem.11. Broeckaert B, Gielen J, van Iersel T, van den Branden S. Palliative care physicians' religious/world view and attitude towards euthanasia: a quantitative study among flemish palliative care physicians. Indian J Palliat Care. 2009;15:41-50.

O atual avanço tecnológico proporciona à medicina o prolongamento de vidas, que, apesar dos esforços, têm o prognóstico restrito. Por tal prolongamento no processo de morte, reitera-se a necessidade de melhorias na implantação dos cuidados paliativos pediátricos, propiciados por meio de equipes multidisciplinares, que são responsáveis pelo cuidado integral e humanizado do indivíduo, englobando as esferas da dor física, emocional, social e espiritual,22. Sadeghi N, Hasanpour M, Heidarzadeh M. Information and communication needs of parents in infant end-of-life: a qualitative study. Iran Red Crescent Med J. 2016;18:e25665. a fim de promover a qualidade de vida e o alívio do sofrimento do paciente e de seu núcleo familiar.33. Broeckaert B. Spirituality and palliative care. Indian J Palliat Care. 2011;17:S39-41.

Entre as quatro esferas da assistência paliativa ao paciente, o presente estudo enfatiza o eixo espiritual, pois se observa certo despreparo médico na abordagem do paciente no que tange às suas crenças individuais e convicções existenciais. A despeito da graduação especializada em cuidados paliativos, o conhecimento sobre a espiritualidade alavanca a relação médico-paciente e altera substancialmente o modo como a criança e seu núcleo familiar atravessarão o processo de morte.44. Nawawi NM, Balboni MJ, Balboni TA. Palliative care and spiritual care: the crucial role of spiritual care in the care of patients with advanced illness. Curr Opin Support Palliat Care. 2012;6:269-74.,55. Edwards A, Pang N, Shiu V, Chan C. The understanding of spirituality and the potential role of spiritual care in end-of-life and palliative care: a meta-study of qualitative research. Palliat Med. 2010;24:753-70.

Ressalta-se, no contexto da multidisciplinaridade da equipe de cuidados paliativos pediátrica, o papel da capelania. Após a regulamentação da Lei nº 9.982, de 2000, foi autorizada a prestação da assistência religiosa em entidades hospitalares públicas e privadas, provendo o livre acesso de representantes das diversas religiões a esses estabelecimentos.66. Francisco DP, Costa CP, Andrade CG, Santos KF, Brito FM, Costa SF. Contributions of the chaplaincy service to the care of terminal patients. Texto Contexto - Enferm. 2015;24:212-9. Instituiu-se então a presença dos capelães nas equipes de cuidados paliativos, que têm como principal função oferecer apoio espiritual, emocional e social, atendendo às singularidades e subjetividades dos enfermos, de seus cuidadores e dos próprios profissionais de saúde e respeitando-as.77. Elias AC. Relaxamento mental, imagens mentais e espiritualidade na re-significação da dor simbólica da morte de pacientes terminais [master's thesis]. Campinas (SP): Unicamp; 2001.

Com esse avanço, enlaçou-se um cuidado especializado que tende a evitar conflitos éticos entre a equipe profissional e seus pacientes.88. Gentil RC, Guia BP, Sanna MC. Organization of Hospital Chaplaincy Services: a bibliometric study. Esc Anna Nery Rev. 2011;15:162-70. Mas, para que esse objetivo seja concretizado, os médicos, por serem os gerenciadores das equipes multidisciplinares, devem compreender os principais dogmas de cada religião. Considerando essa responsabilidade e a pluralidade de crenças religiosas na cultura brasileira, questionamos se há entre os médicos pediatras e residentes de pediatria brasileiros preparo suficiente para lidar com o aspecto espiritual do processo de morte de seus pacientes.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa transversal em que foi aplicado um questionário aos médicos pediatras e residentes de pediatria de um hospital pediátrico de nível terciário, filantrópico e laico de grande porte da cidade de São Paulo, SP, Brasil. Tais profissionais, que atuam em pronto-socorro, Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) e enfermarias clínicas e oncológicas pediátricas, foram perguntados sobre o conhecimento e as experiências acerca de crenças e religiões de pacientes paliativos.

Foram incluídos todos os indivíduos que estavam devidamente matriculados no programa de residência médica e médicos contratados pelo hospital da pesquisa no ano de 2017 e que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Excluíram-se aqueles que não pertenciam ao corpo clínico, que não se apresentavam com cadastro ativo no programa de residência médica, ou que não assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Os termos espiritualidade e religiosidade foram usados como sinônimos em todo o nosso estudo, sendo definidos como dogmas e pensamentos pertencentes a algum dos seguimentos religiosos existentes no mundo.

Foi produzido e aplicado um questionário, junto a um termo de consentimento livre e esclarecido, redigido e revisado pelos responsáveis deste estudo, sem validação ou avaliação psicométrica. Por meio desse questionário, o gênero, a idade, a graduação e a área de atuação de cada participante foram identificados.

O questionário foi composto de 22 questões fechadas com respostas “sim” ou “não” sobre conhecimentos e experiências acerca das religiões de pacientes pediátricos. A solicitação para a participação na pesquisa foi feita uma vez, pessoalmente, e os questionários foram preenchidos ao vivo e por escrito, imediatamente (Tabela 1).

Tabela 1
Questionário aplicado aos participantes.

Incluíram-se nesse questionário as cinco religiões mais prevalentes no Brasil - catolicismo, protestantismo, espiritismo, testemunha de Jeová e umbanda -, além do judaísmo, que, apesar de ser a nona religião mais comum no país, é de grande frequência na comunidade estudada.

As variáveis qualitativas são apresentadas em frequências e porcentagens, e as variáveis quantitativas, em medidas resumo. Para ponderar quanto à associação entre variáveis qualitativas, foram utilizados os testes do qui-quadrado e exato de Fisher. O nível de significância adotado foi de 5%. Aplicou-se o pacote estatístico Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 13.0 para análise.

Foi obtida aprovação para realização desta pesquisa no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

RESULTADOS

Foram convidados 252 integrantes do corpo clínico da instituição estudada, incluindo médicos e residentes. Destes, 116 (46%) pessoas responderam ao questionário, sendo 97 (84%) mulheres, 18 (16%) homens e um não identificado. Todos os questionários estavam aptos à análise. A média de idade entre todos os participantes foi de 31,4 anos, com mediana de 28 anos. Entre os participantes, 61 (53%) indivíduos eram médicos cursando o primeiro ou o segundo ano de residência de pediatria geral, 29 (25%) residentes de especialidades pediátricas e 26 (22%) já haviam terminado a especialização em pediatria.

Dos 116 questionados, 106 (94%) afirmaram não saber a religião de todos os pacientes que acompanham, 111 (96%) acreditam que ter uma religião ajuda o paciente a aceitar o processo de morte, 115 (99%) pensam que ela gera alívio ao paciente e a seus familiares, e 21 (18%) já acionaram o serviço de capelania em seu hospital.

Dos participantes, 98 (85%) afirmaram ter uma religião, sendo 69 (60%) católicos, 18 (16%) espíritas, seis protestantes (5%) e nenhum participante da umbanda ou testemunha de Jeová. Apesar de incluído o judaísmo em nosso estudo, apenas dois (2%) são judeus, e três classificaram-se na categoria “outras religiões”, sendo dois (2%) cristãos e um (1%) espiritualista, e 18 (15%) apontaram não possuir nenhuma religião.

De todos os entrevistados, 108 (93%) disseram conhecer sobre a morte de acordo com o catolicismo, 49 (42%) com o protestantismo, 92 (79,3%) com o espiritismo, 22 (19%) com a umbanda, 14 (12%) com a testemunha de Jeová e 28 (24%) com o judaísmo.

Quando questionados se saberiam usar seus conhecimentos para explicar sobre o processo de morte e confortar os pacientes de acordo com cada religião, 97 (84%) disseram-se preparados para lidar com o catolicismo, 48 (41%) com o protestantismo, 70 (60%) com o espiritismo, 15 (13%) com a umbanda, 12 (10%) com a testemunha de Jeová e 22 (19%) com o judaísmo.

Dos entrevistados, 106 (91%) responderam que os médicos pediatras e residentes de pediatria não estão aptos a lidar com o aspecto espiritual de seus pacientes em processo de morte, e 88 (76%) participantes acham que deveria ser instituído um curso sobre religiões na graduação médica brasileira.

As análises estatísticas a seguir descrevem a significância e a força da associação (risco relativo - RR) entre as variáveis “religiosidade do médico” (presente ou ausente), “sexo” (masculino ou feminino) e “categoria profissional” (médicos residentes ou pediatras) e as questões (Q) abordadas em nosso questionário.

Em relação à religiosidade do médico, houve associação significante das respostas com as questões 6, 8, 9, 14, 15 e 22:

  • Q6: 96% (111/116) dos médicos afirmaram que a religião ajuda a aceitar a morte. Do total, 98% (96/98) dos médicos que se declararam religiosos responderam afirmativamente a essa questão versus 83,3% (15/18) dos médicos que se declararam não-religiosos (RR 1,18; p=0,026; intervalo de confiança de 95% - IC95% 0,95-1,45).

  • Q8: 15% (15/98) dos médicos que se declararam religiosos usaram o serviço de capelania versus 39% (7/18) dos médicos que se declararam não-religiosos (RR 2,54; p=0,043; IC95% 1,21-5,34).

  • Q9: houve associação entre os médicos religiosos que responderam afirmativamente conhecer o processo de morte no catolicismo. Do total, 97% dos médicos (95/98) que se declararam religiosos responderam afirmativamente conhecer o processo de morte no catolicismo versus 72% (13/18) dos médicos que se declararam não-religiosos (RR 1,34; p=0,022; IC95% 1,01-1,79).

  • Q14: 19,4% dos médicos (19/98) que se declararam religiosos responderam afirmativamente que conhecem o processo de morte no judaísmo versus 50% (9/18) dos médicos que se declararam não-religiosos (RR 2,58; p=0,013; IC95% 1,40-4,76).

  • Q15: 89% (87/98) dos médicos que se declararam religiosos responderam afirmativamente saber confortar a morte de pacientes católicos versus 56% (10/18) dos médicos que se declararam não-religiosos (RR 1,60; p=0,020; IC95% 1,05-2,43).

  • Q22: 81% (79/98) dos médicos que se declararam religiosos afirmaram ser necessário implementar ensino religioso na graduação versus 50% (9/18) dos médicos que se declararam não-religiosos (RR 1,61; p=0,013; IC95% 1,01-2,59).

Quanto ao gênero dos médicos, houve associação significante das respostas com as questões 14 e 20:

  • Q14: 20% (19/97) dos médicos do sexo feminino responderam afirmativamente conhecer o processo de morte no judaísmo versus 44% (8/18) dos médicos do sexo masculino (RR 2,27; p=0,033; IC95% 1,18-4,37).

  • Q20: 16% (15/97) dos médicos do sexo feminino responderam afirmativamente saber confortar a morte no judaísmo versus 39% (7/18) de médicos do sexo masculino (RR 2,52; p=0,044; IC95% 1,20-5,29).

No que se refere a médico residente versus médico profissional, houve associação significante das respostas apenas com a questão 8:

  • Q8: 10% (9/90) dos médicos residentes utilizaram o serviço de capelania versus 46 (12/26) dos médicos profissionais (RR 4,61; p<0,001; IC95% 2,19-9,73).

DISCUSSÃO

No Brasil, por causa da sua história de colonização e da cultura latino-americana, a religiosidade, sobretudo o catolicismo, é intimamente atrelada à vida cotidiana da população. Deve-se notar, no entanto, que a religião é mais que um conjunto de visões e práticas de um povo e que seu valor não pode ser simplificado, pois ela remete o indivíduo a um modo espiritual de viver nesse mundo.99. Sloan RP, Bagiella E, VandeCreek L, Hover M, Casalone C, Jinpu Hirsch T, et al. Should physicians prescribe religious activities? N Engl J Med. 2000;342:1913-16.

Apesar de o catolicismo ser predominante no Brasil e da tendência da literatura médica de fazer mais referências a religiões cristãs em suas pesquisas,99. Sloan RP, Bagiella E, VandeCreek L, Hover M, Casalone C, Jinpu Hirsch T, et al. Should physicians prescribe religious activities? N Engl J Med. 2000;342:1913-16. ressalta-se uma grande diversidade de religiões entre os brasileiros e que é possível ao pediatra deparar com cada uma delas na prática clínica.

No caso dos cuidados paliativos pediátricos, não se lida somente com o paciente, mas com sua família como um todo. O processo de morte de uma criança, mesmo que nascida com doenças com prognósticos reservados, é tido como um evento inesperado para seus familiares, pois sempre será considerado fora da “ordem natural”. Por isso, um sistema de cuidados centrado na família deve beneficiar tanto o paciente quanto seus parentes.1010. Gilmer MJ. Pediatric palliative care: a family-centered model for critical care. Crit Care Nurs Clin North Am. 2002;14:207-14.

Nesse embate, evidenciam-se seis prioridades que pais buscam encontrar nos cuidados com o fim da vida de seus filhos: informações honestas e completas, acesso rápido à equipe médica, coordenação da comunicação e dos cuidados, poder expressar suas emoções e receber suporte por parte da equipe médica, preservação da integridade da relação pais e filhos e apoio na religiosidade por meio da fé em Deus.1111. Meyer EC, Ritholz MD, Burns JP, Truog RD. Improving the quality of end-of-life care in the pediatric intensive care unit: parents' priorities and recommendations. Pediatrics. 2006;117:649-57.

Estudiosos notaram que pais e crianças que receberam cuidados paliativos de maneira integral tiveram a fé como um importante auxílio durante o processo de morte, ajudando a entender as situações e a aceitar procedimentos que não prolongassem o tempo de vida de maneira desnecessária.1212. Wiener L, McConnell DG, Latella L, Ludi E. Cultural and religious considerations in pediatric palliative care. Palliat Support Care. 2013;11:47-67.

Em nossa pesquisa, ao analisar a religião mais prevalente da amostra, a maioria dos médicos (93%) disse conhecer o significado da morte de acordo com o catolicismo, no entanto esse número é reduzido a 84% quando questionados se se sentem preparados para lidar com essa informação com um paciente e sua família em processo de morte. O mesmo se repetiu com as outras religiões menos prevalentes, com índices maiores do conhecimento sobre o significado da morte para essa religião em comparação ao seu preparo para abordá-lo, sugerindo insegurança e conhecimento insuficiente dos médicos a respeito das visões religiosas.

Um dos dados mais relevantes do presente estudo é que, entre os 116 entrevistados, 91% relataram não saber a religião dos pacientes que acompanham, mostrando como, desde a anamnese inicial e identificação, pouco interesse é dado a esse aspecto na prática clínica e no ensino médico. Além disso, 91% dos entrevistados têm a opinião de que os médicos pediatras e residentes de pediatria em geral não estão aptos a lidar com o aspecto religioso de seus pacientes.

Sendo assim, apesar de o nosso estudo não analisar subjetivamente o conhecimento de cada participante, sendo limitado ao autojulgamento por meio do formulário aplicado, questionamos sobre a importância da existência de um curso direcionado ao ensino das diversas religiões na graduação médica e a como abordá-las, o que poderia expandir o olhar dos médicos sobre os pacientes e aumentar a aderência desses profissionais de saúde aos cuidados espirituais dos enfermos. A maioria dos participantes (75,9%) disse que é a favor, com mais apoio entre os médicos já religiosos. Nesse âmbito, nota-se que a Academia Americana de Pediatria (American Academy of Pediatrics - AAP) propõe diretrizes com o objetivo de incluir na prática dos alunos de medicina e residentes medidas que os ajudem a entender a importância do preparo dos profissionais envolvidos com cuidados paliativos, inclusive em relação ao aspecto religioso, que, embora seja relevante ao consolar os pacientes e seus familiares e estreite laços entre familiares e cuidadores, frequentemente é esquecido pelos profissionais de saúde.1313. Serwint JR, Bostwick S, Burke AE, Church A, Gogo A, Hofkosh D, et al. The AAP resilience in the face of grief and loss curriculum. Pediatrics. 2016;138:e20160791.

Ressalta-se também que apenas 18% dos participantes já acionaram o serviço de capelania de seus hospitais, sendo essa ação ainda menos provável entre os residentes e médicos religiosos, talvez por menos tempo de atuação e menos oportunidades no primeiro grupo e por uma segurança maior em relação ao seu próprio conhecimento no segundo. Todavia, nossos dados não permitem aprofundar essa discussão.

Em uma pesquisa feita com adultos internados,1414. King DE, Bushwick B. Beliefs and attitudes of hospital inpatients about faith healing and prayer. J Fam Pract. 1994;39:349-52. foi visto que 77% dos participantes relataram que os médicos deveriam considerar os aspectos espirituais de seus pacientes e pelo menos um terço (37%) dos pacientes queria que suas crenças fossem discutidas mais frequentemente, ao mesmo tempo em que 68% relataram nunca ter tido essa oportunidade. Em outro estudo feito com pacientes adultos em acompanhamento ambulatorial,1515. Ehman JW, Ott BB, Short TH, Ciampa RC, Hansen-Flaschen J. Do patients want physicians to inquire about their spiritual or religious beliefs if they become gravely ill? Arch Intern Med. 1999;159:1803-6. a maioria disse acreditar que as orações podem por vezes influenciar na cura de suas enfermidades e que gostaria de ser questionada por seus médicos a respeito de suas crenças; uma ínfima minoria havia sido.

A Academia Americana de Medicina da Família (American Academy of Family Physicians - AAFP), visando melhorar e estimular o conhecimento dos médicos a respeito da abordagem correta sobre os quesitos espirituais, estabelece estratégias voltadas aos pacientes adultos que, em nossa opinião, podem ser adaptadas aos familiares e aos pacientes adolescentes na pediatria. Relata-se, primeiramente, que a filosofia pessoal do médico deve ser sempre respeitada, para que não haja grandes conflitos internos. Com isso em mente, são propostos três questionários:

  • O FICA Spiritual Tool, que leva o médico a conhecer a espiritualidade do seu paciente e o quanto ela pode afetar a sua vida.

  • O HOPE, que contém questões específicas, como suas fontes de esperança e seu significado de vida, se ele pertence a alguma religião e o possível efeito desta em seus cuidados médicos e decisões no fim da vida.

  • O Open Invite Mnemonic, que aborda o paciente de maneira a induzi-lo a conversar mais sobre sua espiritualidade.1616. Saguil A, Phelps A. The spiritual assessment. Am Fam Physician. 2012;86:546-50.

Negar o uso da religião em conjunto aos cuidados dos pacientes implica tanto negligência médica, por privar o paciente de um cuidado benéfico ao seu tratamento, quanto a possibilidade de impor barreiras no relacionamento médico-paciente, pois inadvertidamente, por ignorância, se pode falar ou agir de forma que gere desconforto e conflitos espirituais.99. Sloan RP, Bagiella E, VandeCreek L, Hover M, Casalone C, Jinpu Hirsch T, et al. Should physicians prescribe religious activities? N Engl J Med. 2000;342:1913-16.

No que tange à aceitação do processo de morte e à sua influência positiva sobre o tratamento paliativo, nota-se que o fato de o participante ser religioso aumenta sua chance de considerar esse aspecto como vantajoso ao seu paciente. Apesar disso, 95% do total de participantes acredita que ter uma religião ajuda o paciente a aceitar o processo de morte e 99% que a religião gera alívio ao paciente e a seus familiares, o que está de acordo com as evidências atuais, que mostram que a religiosidade está relacionada a uma melhora global da saúde dos pacientes e à diminuição da ansiedade causada pela morte.1717. Cartwright A. Is religion a help around the time of death? Public Health. 1991;105:79-87.,1818. Koenig HG. MSJAMA: religion, spirituality, and medicine: application to clinical practice. JAMA. 2000;284:1708.,1919. Mueller PS, Plevak DJ, Rummans TA. Religious involvement, spirituality, and medicine: implications for clinical practice. Mayo Clin Proc. 2001;76:1225-35.

Nosso estudo tem diversas limitações. Ele foi feito com base em autoavaliações, não sendo possível determinar o conhecimento de cada participante sobre as religiões. Fora isso, informações como nível socioeconômico, naturalidade e origem cultural não foram analisadas. O questionário foi elaborado pelos próprios autores da pesquisa, sem validação ou avaliação psicométrica.

Como pontos positivos, consideramos a abordagem tanto de residentes como assistentes e o fato de a pesquisa ter sido realizada em um hospital escola, levando-nos a observar de maneira indireta o quanto os médicos residentes de pediatria, ainda em formação na área médica, conhecem e valorizam o cuidado espiritual.

Em conclusão, notamos que, apesar de a maioria dos médicos pediatras e residentes de pediatria se dizer apta a lidar com as religiões mais prevalentes no Brasil, afirmar que a espiritualidade é benéfica durante o processo de morte e que um curso sobre religiões deveria ser instituído na graduação médica brasileira, pouca importância é dada às identidades espirituais de seus pacientes, o que pode dificultar uma abordagem adequada ao seu processo de morte.

Enfatizamos, por fim, o entendimento de que as funções do médico são “curar às vezes, aliviar muito frequentemente, e confortar sempre” (autor desconhecido). Para isso, devemos nos preparar para lidar com nossos pacientes de forma holística, e não apenas com suas doenças físicas.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a todos os assistentes e residentes que voluntariamente nos ajudaram em nossa pesquisa. Agradecemos ao Professor Doutor Ivarne Tersariol, a disposição e o auxílio durante a análise dos dados coletados.

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Financiamento

  • O estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2017
  • Aceito
    26 Maio 2018
  • Publicado
    04 Jun 2019
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