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O consentimento informado do paciente em relatos de caso: como está essa prática em nosso meio?

EDITORIAL A CONVITE

O consentimento informado do paciente em relatos de caso: como está essa prática em nosso meio?* * Relatório apresentado no Fórum de Publicações – Ciência e Ética em Publicações em Psiquiatria, XXVI Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Brasília, realizado em outubro de 2008.

Paulo Oscar Teitelbaum

Psiquiatra, psicanalista. Editor, Rev Psiquiatr RS

A comunicação de relatos de caso é, reconhecidamente, um importante instrumento de divulgação e debate de situações encontradas por psiquiatras em sua prática cotidiana. Compartilhar a experiência profissional vivida no atendimento de um paciente ou grupo de pacientes, através da descrição detalhada de situações clínicas enfrentadas e das decisões ou soluções encontradas, permite a multiplicação de reflexões teóricas e/ou técnicas, raciocínios diagnósticos, aplicações terapêuticas, além de fomentar o surgimento de novas hipóteses de investigação e pesquisa.

Porém, a publicação de um relato de caso implica, a partir do marco da bioética, necessidade de reflexão sobre questões que dizem respeito, entre outros, aos princípios do sigilo profissional, da confidencialidade e da privacidade, o que justifica amplamente sua inserção nesse fórum.

Trata-se de tema sujeito a controvérsias e interpretações marcadas pela subjetividade, dependente de contextos socioculturais próprios de cada época, como, aliás, todos os que se inserem no campo da ética.

Nesse sentido, ao propormos a discussão do atual estado do tema em nosso meio editorial, parece importante revisar sucintamente alguns conceitos éticos envolvidos.

Um primeiro princípio a ser considerado é o da confidencialidade. Familiar a todos nós, médicos, pode ser definido como a garantia do resguardo das informações dadas pessoalmente em confiança e a proteção contra a sua revelação não autorizada. Em outras palavras, trata-se do dever ético de respeitar a privacidade do paciente em todos os seus níveis. A quebra da confidencialidade configura-se como "a ação de revelar ou deixar revelar informações fornecidas pessoalmente em confiança" e ocorre "quando se usam informações ou se observa um paciente sem a sua devida autorização"1.

O dever ético quanto ao respeito à confidencialidade está claramente explicitado no Código de Ética Médica, no capítulo que trata do sigilo profissional. É importante sublinhar que os pacientes valorizam tais princípios e esperam seu cumprimento por parte de seus médicos. Por exemplo, Jones2, em estudo recente realizado com 29 pacientes ingleses voluntários, maiores de 16 anos, atendidos por generalistas, procurou avaliar a importância conferida por eles à confidencialidade das informações prestadas aos seus médicos. Para isso, foram apresentadas diversas situações clínicas e foi solicitado aos pacientes que opinassem sobre sua condução e desfecho.

Um resultado chamativo foi que, apesar de 100% dos sujeitos valorizarem o respeito à confidencialidade como fundamental, apenas 72% revelaram acreditar que ela seja, de fato, respeitada. A relatividade e subjetividade desse princípio ético, no entanto, ficou bem caracterizada (à medida que novas situações clínicas iam sendo apresentadas) pelo achado de que, enquanto 83% dos sujeitos consideravam que a confidencialidade deve ser respeitada sem exceções, 80% admitiram ponderar sobre a revelação de algumas informações com o consentimento expresso do paciente e 37% consideraram aceitável o rompimento da confidencialidade em situações especiais, mesmo sem o consentimento. Tais situações especiais envolviam a presença de doença sexualmente transmissível e maus-tratos a crianças.

Como dito antes, porém, o dever da confidencialidade não é absoluto. Admite-se, eticamente, a sua quebra em circunstâncias específicas, resumidas em quatro situações prototípicas, das quais uma nos interessa diretamente neste momento: quando um benefício real pode resultar desta quebra de confidencialidade.

O conceito de benefício real ou provável que pode advir da quebra de confidencialidade define-se como a probabilidade de que um indivíduo ou grupo de indivíduos possa se beneficiar do procedimento adotado. Pode, ainda, ser diferenciado em benefício individual ou pessoal (quando tem repercussão direta sobre o próprio sujeito da pesquisa) ou benefício difuso (quando não possui repercussão direta sobre o sujeito, mas pode trazer benefícios para um outro grupo ou coletividade).

A consideração desses conceitos e deveres éticos parece deixar claro que a manutenção da confidencialidade das informações e da privacidade do paciente deverá refletir um balanço responsável entre interesses individuais e públicos, uma ponderação entre riscos individuais e benefícios da coletividade. Ou seja, se por um lado a proteção à privacidade do paciente é um dever sempre presente, sua dimensão ética pode e deve ser relativizada ao considerarmos o benefício potencial que a divulgação de material científico possivelmente trará à coletividade de pacientes, tomados os cuidados devidos.

Ainda que as consagradas técnicas de distorção de alguns dados, visando à proteção da identidade do paciente, sejam rotineiramente utilizadas como forma de atender aos princípios citados, não há garantia de que impossibilitem a identificação, tendo em vista o crescimento da publicação em meio eletrônico, de acesso praticamente universal.

Com esses conceitos em mente, aproximamo-nos da questão específica da obtenção de consentimento informado, ou, mais precisamente, de consentimento livre e esclarecido dos pacientes em relatos de caso submetidos a publicação.

A publicação de relatos de caso está, em tese, sujeita às Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos (Resolução nº196/1996, CNS), que determinam que qualquer pesquisa deverá ter autorização prévia e formal do(s) paciente(s) participante(s). Essa mesma Resolução, no entanto, admite a existência de "situações excepcionais" em que o consentimento informado poderá ser dispensado. O cuidado com a referência a situações excepcionais reafirma que o princípio da confidencialidade não tem características absolutas e deve ser sempre ponderado.

Em âmbito internacional, o International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), no documento Uniform Requirements for Manuscripts Submitted to Biomedical Journals, em relação à privacidade e confidencialidade dos pacientes e sujeitos de pesquisas, orienta que: "Pacientes têm direito à privacidade, o qual não deve ser infringido sem seu consentimento informado. Informações de identificação, incluindo nome, iniciais ou número de prontuário não devem ser publicadas em nenhum meio, a menos que essenciais para fins científicos e que o paciente ou responsável legal dê seu consentimento informado por escrito"3. O ICMJE vai mais adiante e orienta que o paciente potencialmente identificável tenha acesso ao manuscrito a ser submetido para publicação, para que possa dar seu consentimento informado.

Ainda assim, dentro desses rígidos padrões de tratamento ético quanto à proteção da privacidade dos pacientes, o ICMJE conclui tal apartado afirmando: "O completo anonimato é difícil de alcançar e o consentimento informado deve ser obtido se restar qualquer dúvida"3.

"Se restar qualquer dúvida" é a expressão que admite a exceção e que consagra a relatividade ponderada dos princípios envolvidos sob o ponto de vista ético e bioético.

Uma questão incontroversa para o ICMJE, entretanto, é que a necessidade de obtenção do consentimento informado dos pacientes citados deve ser incluída nas instruções aos autores, bem como a existência deste consentimento deve ser indicada no artigo publicado3.

Revisamos, com relação a esse quesito, quatro revistas científicas da área publicadas no Brasil: Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul), Jornal Brasileiro de Psiquiatria (Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro), Revista de Psiquiatria Clínica (Departamento e Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e Revista Brasileira de Psiquatria (Associação Brasileira de Psiquiatria).

A Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (base: v. 30, nº 1/2008) menciona, no item específico sobre relatos de caso das instruções aos autores, que: "Deve ser feita menção explícita à existência de consentimento livre e esclarecido do paciente para a publicação dos dados (em meio impresso e eletrônico) ou justificativa do autor para a ausência do consentimento".

O Jornal Brasileiro de Psiquiatria (base: v. 57, nº 2/2008) apresenta nas instruções um apartado com o título "Termos de Consentimento", no qual consta: "Os artigos devem citar que os pacientes incluídos nos estudos assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme a regulamentação de pesquisa clínica no país".

A Revista de Psiquiatria Clínica (base: http://www.scielo.br/revistas/rpc/iinstruc.htm)4 possui um apartado específico com instruções para a submissão de relato de casos, porém não faz referência à necessidade ou exigência de consentimento livre e esclarecido dos pacientes. Encontra-se, tão-somente, referência específica à publicação de fotografias de pacientes no apartado sobre estrutura de artigos originais, com o seguinte texto: "A Revista de Psiquiatria Clínica não encoraja a publicação de fotografias de pacientes. Quando isso for imprescindível para o entendimento do texto, a fotografia deverá ter uma tarja que não permita a identificação do paciente e mesmo assim deverá vir acompanhada de uma autorização por escrito do paciente e/ou de seus responsáveis legais".

A Revista Brasileira de Psiquiatria (base: v. 30, nº 1, mar/2008) não aceita a submissão de artigos no formato "Relato de Caso", conforme as instruções aos autores sobre formatos aceitos pela linha editorial. No entanto, sob o formato "Cartas", é admitido o "relato de casos peculiares", porém não se encontra referência à necessidade de consentimento informado dos pacientes cujos casos são submetidos. Mais adiante, nas instruções aos autores, remete-se o interessado às normas do ICMJE, através do artigo já citado acima, disponibilizando o endereço do web site.

Portanto, das quatro revistas brasileiras analisadas com relação à exigência aos autores da apresentação de consentimento informado em relatos de casos, vemos que duas, a Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul e o Jornal Brasileiro de Psiquiatria, cumprem explicitamente com o quesito, enquanto que outras duas, a Revista de Psiquiatria Clínica e a Revista Brasileira de Psiquiatria não o fazem.

Para concluir, é impositivo destacar a importância de que se abram espaços para o debate desse tema, pois seus resultados apontarão, inevitavelmente, para um aprimoramento das publicações na área da Psiquiatria em nosso país em uma dimensão bioética, aliada às suas já reconhecidas qualidades científicas.

  • 1. Goldim JR. Bioética e ética na ciência. http://www.bioetica.ufrgs.br Acessado em 05/ Ago/2008.
  • 2. Jones C. The utilitarian argument for medical confidentiality: a pilot study of patients' views. J Med Ethics. 2003; 29(6): 348-52.
  • 3
    International Committe of Medical Journal Editors (ICMJE). Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals. http://www.icmje.org Acessado em 05/Ago/2008.
  • 4. Revista de Psiquiatria Clínica. http://www.scielo.br/revistas/rpc/iinstruc.htm Acessado em 05/Ago/2008.
  • *
    Relatório apresentado no Fórum de Publicações – Ciência e Ética em Publicações em Psiquiatria, XXVI Congresso Brasileiro de Psiquiatria, Brasília, realizado em outubro de 2008.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Mar 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
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