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Biopsicanálise

CARTA AOS EDITORES

Biopsicanálise

Mario Gurvitez Cardoni

Médico Clínico e Intensivista

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mario Gurvitez Cardoni E-mail: cardoni@terra.com.br

O artigo de Eric R. Kandel, publicado na Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul vol. 25, N.1, JAN/ABR. 2003, A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado, tem o mérito de evidenciar o que o autor julga negligente, precário e sem rigor científico na psicanálise. Kandel é suficientemente respeitoso com o legado cultural fornecido pela visão de mundo psicanalítica, sua weltanschauung, mas deixa explícita sua posição, i.e., sua inconformidade com a falta de verificabilidade e reprodutibilidade desta técnica, considerando-a, por vezes, um exercício intelectual fascinante, porém esgotado na sua evolução. A tentativa de preservar o caráter revolucionário dos paradigmas analíticos e adaptá-los às demandas da neuropsiquiatria, por intervenções biológicas sobre o sofrimento humano e o desamparo faz do texto de Kandel um libelo otimista, porém sem necessidades reais. A aproximação da expressão da subjetividade com determinantes genéticos e bioquímicos não traz nada de novo, podendo eventualmente explicar pontualmente este ou aquele comportamento ou um ou outro aspecto aparente da dor de existir, mas ainda insuficientes para estabelecer um modelo vivencial ou um suporte intelectual que se pretenda amplo, mesmo que incompleto, para dar conta das vicissitudes complexas da relação terapêutica. Kandel propõe implicitamente que devemos avançar na compreensão dos substratos e mecanismos dos insights analíticos. Sem ironia, o título destas descobertas poderia ser, por exemplo, as bases neuroquímicas do complexo de Édipo ou ainda a influência do cromossomo 17 na expressão dos receptores gabaérgicos do striatum sobre os lapsos de linguagem. Acredito que evidências fornecidas por pesquisas como estas serão possíveis no futuro, e isto é altamente desejável, mas não tornará a causa, o fundamento último de que algo surge, mais elevada do que seu efeito. A psicanálise continuará, de qualquer modo, objetivando o fenômeno no sentido kantiano da expressão.

Mesmo se os conceitos analíticos fossem simulações, e esta não é uma acusação do artigo, produzidas ou inventadas para suprir uma carência epistemológica, ainda assim o seu pretenso desmascaramento pela neurociência não atingiria suficiente desenvolvimento para se colocar no seu lugar. Intuímos desta forma que em psicanálise a percepção do todo não deve ser a compreensão da soma das partes.

Seguindo os passos de Karl Popper, poderíamos dizer que o conhecimento avança pela refutação de teorias, criando-se conjecturas que substituam as anteriores até que estas, mais recentes, não resistam aos ataques de novas evidências e, assim, indefinidamente.

Abstraindo-se os argumentos políticos em defesa ou contra a psicanálise, podemos provisoriamente aceitar o argumento de que a psicanálise não foi superada. Aceitar a idéia de sua fragilidade quando confrontada com o método científico é uma atitude prudente; considerar o princípio da incerteza como orientação permanente também.

O ponto de maior significação quando se pretende abordar o tema da validação da análise como conhecimento empírico é o de sua aproximação com a filosofia ou, se quisermos, com a metafísica. Freud sabidamente não desejava que suas descobertas fossem "reduzidas" a meras especulações filosóficas; procurou de todas as maneiras fundamentar a teoria das neuroses, das pulsões e dos sonhos, com demonstrações reprodutíveis, universais, com aplicações terapêuticas irrefutáveis. A distância a que os psicanalistas em geral desejam permanecer da filosofia não deve ser, portanto, subestimada.

Por outro lado, esta é também, oportunamente, a acusação que fazem os detratores da psicanálise: a de se comportar como filosofia ou metafísica quanto à resistência ao rigor metodológico.

Tanto Freud quanto seus detratores cometem, penso eu, uma injustiça com a filosofia. A tradução do que existe, do que é verdadeiro, em categorias estanques do conhecimento contradiz veementemente todas as tentativas honestas de compreender o dilema existencial.

A filosofia tem muito a dizer sobre o pensar, o querer e o julgar, como tentou Hannah Arendt em suas especulações sobre a vida do espírito. Se o pensar é o ponto de confluência de toda psicanálise e de toda neurobiologia da mente, não se pode pretender alijar a filosofia desse desafio. O pensar como tal depende e influi na memória e na memória é que se apóia nossa relação com o mundo, com as coisas, com o sofrimento e a satisfação. A memória, segundo Yerushalmi, não é um arquivo. Um arquivo é estanque, imutável; podemos retirar o arquivo e voltar a colocá-lo em repouso, e ele sempre será o mesmo. A memória não. Ao retirá-la do seu lugar, de seu tempo e espaço, o pensar nestes registros modifica indelevelmente sua natureza original, sua estrutura. O pensamento modifica a memória e é para sempre e, a cada vez que é pensada, novamente modificada. Nesta movimentação da memória, é que reside a tensão da incerteza e o fascínio em descobrir a mudança contínua. Trabalhar com esta incerteza imperativa traz um sentido da coisa em-si, mas que não é mais: o não mais e o não ainda, que transforma a pretensão totalizante da neurobiologia e de suas asserções indiscutíveis em quimeras.

Mas as exigências de Kandel são sérias e implicam um chamamento à ordem, um esforço genuíno para avaliar criticamente a psicanálise e depurá-la no que ela possui unicamente para suprir uma necessidade no mundo das aparências.

Ao contrário, outro autor, Richard Webster, publicou recentemente um amontoado de panfletos sob o título Porque Freud Errou,em que procura, nos detalhes biográficos do fundador da psicanálise, toda uma ordem de falhas de caráter e comportamento fraudulento para refutar suas teorias. À primeira vista, a redação jornalística do texto parece atraente às pessoas com conhecimento superficial do tema e que não possuam nenhuma experiência terapêutica. Porém, com um pouco mais de atenção, verificamos que Webster utiliza os instrumentos da psicanálise, sua técnica e paradigmas, para dissecar as motivações encobertas, inconscientes, de Freud nos relacionamentos com Charcot, Fliess, Jung e Anna, sua filha. Este aparente paradoxo, isto é, argumentar sobre a nulidade de algo confirmando sua existência, não é abandonado sequer quando ele simplifica o caráter messiânico da psicanálise e a roupagem de profeta do seu descobridor. Melhor e com mais erudição, este assunto já foi trabalhado por Yerushalmi e Jacques Derrida, confirmando a assertiva de Freud de que os instintos mais primitivos do homem estão por trás de toda motivação: os estados-da-alma da psicanálise perpassam tudo que cria ou destrói.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Kandel ER: A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual para a psiquiatria revisitado. R. Psiquiatr. RS, 25(1): 139-165, jan/abr.2003

2. Popper KR. A sociedade aberta e seus inimigos. 3nd ed. tomo 2. São Paulo: Editora USP; 1987.

3. Arendt H. A vida do espírito. 5nd ed. Rio de Janeiro. Relume-Dumará; 2002.

4. Derrida J. Mal de arquivo. Uma impressão freudiana. Rio de Janeiro. Relume-Dumará; 2001.

5. Webster R. Por que Freud errou. Rio de Janeiro. Record; 1999.

6. Kant I. Crítica da razão pura. São Paulo. Ed. Martin-Claret. 2001.

7. Freud S. Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro. Imago Editora LTDA. 1969.

  • Endereço para correspondência:
    Mario Gurvitez Cardoni
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2003
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