Resumos
Resumo: Abster-se de alimentos específicos e observar rituais culinários é como religiosos alimentam corpo e alma, diz Abu Salem (2015). Este artigo aborda experiências entre muçulmanos xiitas e sunitas do Rio de Janeiro em escolhas alimentares, contemplando conceitos de halal (lícito) e haram (impuro). Líderes do Islã têm prescrições para evitação de comidas impuras, como porco e bebidas alcoólicas. Encontrar carnes halal no Brasil não é fácil: pressupõe abate bastante específico, contudo, o país é um exportador significativo. Comunidades diaspóricas podem optar por ressignificar seus hábitos em prol de uma religiosidade minoritária, como é com o Islã no Brasil. Por vezes, é preciso dar conta de dilemas cotidianos, entre desejos individuais e normas ligadas ao grupo, com cargas simbólicas compartilhadas e particulares.
Palavras-chave:
Islã; halal; haram; alimentação
Abstract: To abstain from specific foods and observe food rituals are ways in which believers feed the body and soul (Abu Salem 2015). This article addresses experiences among Shia and Sunni Muslims in Rio de Janeiro and their food choices, contemplating the concepts of halal (licit) and haram (impure). Leaders have prescriptions to avoid impure food (pork and alcoholic beverages). Finding halal meat in Brazil is difficult: it presupposes a fairly specific slaughter; however, the country is a large exporter. Diasporic communities may opt to ressignify habits in favor of a minority religiosity, such as Islam in Brazil. Oftentimes, it is necessary to account for daily dilemmas, between individual desires and norms attached to the group, with both shared and particular symbolism.
Keywords:
Islam; halal; haram; food
Escolhas alimentares são baseadas em sabores, texturas, cheiros, disponibilidade e aparência. Quando aliadas à religiosidade e à ritualística, constroem uma ponte com o divino: é possível por ela passar, rejeitá-la ou contorná-la. Afirma Abu Salem (2015) que: “A abstenção de comer alimentos específicos e observar rituais de culinária é como as pessoas religiosas alimentam o corpo e a alma, permitindo que se sintam parte de uma comunidade mais ampla, mas ao mesmo tempo diferenciada” (Abu Salem 2015ABU SALEM, Miriam. (2015), “Religious dietary rules and the protection of religious freedom. Some evidence from practice in Italy”. Religion and Food, Âbo (Finlândia), nº 26: 181-200.:182).
Nesse entendimento, comer pode ir além de satisfazer apenas aos imperativos fisiológicos ou demonstrar livre opção, mostrando-se uma expressão de pertencimento a uma comunidade e a uma rotina religiosa. A comida e a bebida, conectadas intrinsecamente às necessidades do corpo, possuiriam tanta significação quanto as demandas da mente e do coração, os chamados “bens espirituais”, segundo Douglas e Isherwood (2004DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. (2004), O mundo dos bens. Rio de Janeiro: UFRJ.). Logo, esses autores propõem tornar irrelevante uma severa “dicotomia cartesiana” entre o físico e o psíquico, em direção a uma ideia unívoca (Douglas; Isherwood 2004:120) e maleável. Ao observar práticas alimentares de muçulmanos do Rio de Janeiro torna-se possível compreender como as atitudes de eleger um alimento e preterir outros são uma ligação com o sagrado. Respeitar preceitos, desdobrar-se para manter-se em licitude ou afastar-se do impuro em relação à comida carrega uma simbologia profunda para além do item em si, intermediada pela experiência, cingindo cultura e prática, conforme aprendemos com Sahlins (2003SAHLINS, Marshall. (2003), Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.:147-153).
Tendo como ponto de partida estudos realizados durante cerca de sete anos junto a comunidades muçulmanas em diferentes estados brasileiros,1 1 As “vozes” que trazem os leitores deste texto um pouco mais para perto de suas vivências diárias a respeito do lícito ou ilícito são preponderantemente de interlocutores do Rio de Janeiro, convertidos. Os principais locais de pesquisa foram a Mesquita da Luz/SBMRJ e o Centro Cultural Imam Hussein (sunita e xiita, respectivamente, no Rio de Janeiro). O destaque para a comida Kaak Al-Abbas foi percebido na Mesquita xiita do Brás, em São Paulo, e envolveu entrevistados libaneses e seus descendentes. este trabalho se dedica especialmente ao Rio de Janeiro, pois tal localidade possui uma característica bastante reveladora do quão dessemelhantes podem ser norma e prática cotidiana, visto que os grupos focalizados se constituem predominante de convertidos, seguindo uma religião capaz de ser considerada minoritária e cujas primeiras referências costumam ser “orientalistas” (Said 2008SAID, Edward. (2008), Orientalismo. Barcelona: Debolsillo.).2 2 Said (2008) argumenta que o viés orientalista com que povos árabes (e outros, “exóticos” em relação à Europa) foram fixados no imaginário do dito “Mundo Ocidental” parte de estereótipos e promove construções fantasiosas, propaladas pelas artes, literatura e cinema (Said 2008:19-23). Cabem nisso muito bem, em relação às minhas experiências de campo no Rio de Janeiro, expectativas de uma provável consonância com dança do ventre, comida típica de regiões árabe-islâmicas e o marido apaixonado acima de tudo, como em uma famosa novela, O Clone, de 2001, atualmente sendo reprisada. Aprofundam-se nestas linhas reflexões sobre o papel de destaque que a alimentação demonstra ter para muçulmanos sunitas e xiitas do Rio de Janeiro, Brasil, conforme suas interpretações do Islã. Sunitas e xiitas são as duas maiores correntes sectárias dessa religião. Os primeiros estão em peso por todo o mundo, e os segundos são muito expressivos no Irã, por exemplo, e no Líbano. No Brasil, podemos dizer que essas proporções se mantêm inclusive no campo de pesquisa: comunidades sunitas, mais presentes, sobressaem nos estudos e são mais conhecidas, enquanto as xiitas estão em menor número.
O alimento considerado halal 3 3 Todas as transliterações que envolvem a língua árabe neste texto são de responsabilidade da autora. é fulcral no Islã. A semântica da palavra, expandida para conceito, é vasta: significa que pode ser considerado halal o que é bom, lícito, puro, apropriado, permitido. Portanto, há regras muito específicas para o consumo de diversos itens e para o abate animal. Um muçulmano dedicado a observar preceitos religiosos alimentares que sejam caros ao grupo com que se relaciona ou chancelados por lideranças religiosas de sua consideração se preocupa com o que ingere e na maneira como o faz. Seu corpo e seu agir são uma extensão da sua experiência religiosa. Assim, a busca pela licitude torna-se parte do cotidiano.
Relato aqui algumas experiências etnográficas durante o trabalho de campo, tanto na Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro (SBMRJ)/Mesquita da Luz, que se reconhece como a entidade que representa os muçulmanos sunitas no estado, como no Centro Cultural Imam Hussein (CCIH), espaço xiita na mesma cidade.4 4 A referência xiita no Rio de Janeiro é o Centro Cultural Imam Hussein, que funcionava em uma sala de oração (mussala) no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, os contatos e o aprendizado são feitos por mídias sociais, revistas e livros disponíveis on-line e aplicativos de trocas de mensagem. Não são esquecidas vivências fora desses locais, porque se ligam a seus frequentadores, em prolongamentos relacionais, profissionais e também pessoais.
Nessa religião diaspórica, a alimentação pode refletir a manifestação de uma lembrança para o muçulmano; um compartilhamento material e simbólico da fé professada frente a um convidado cuja crença seja outra; ou uma forma de transmitir ensinamentos. Assim se dá também no Brasil, com convertidos, pessoas nascidas em famílias muçulmanas e originárias de países de maioria islâmica.
Um pouco mais sobre o Islã em movimento
O Islã é apontado como a segunda maior religião mundial, com tendência a projetar-se. Apenas o cristianismo vem à sua frente (Pinto 2010PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010b), Islã: religião e civilização. Uma abordagem antropológica. São Paulo: Editora Santuário.b: 21). Seus adeptos transitam e se fixam pelo globo por inúmeras motivações. Deixam para trás conflitos como o da Síria, sem data para trégua; são forçados a deslocar-se; seguem oportunidades de trabalho e estudo; vão ao encontro de entes queridos e de contatos mediados por tecnologias de comunicação, como a internet; casam-se; buscam atender aos pilares da fé e deter experiências com o sagrado; peregrinam a locais como Meca, performam o Hajj, frequentam santuários, como o do Imam Hussein,5 5 Enquanto o Hajj é uma peregrinação a ser feita por todo muçulmano em condições para tal (considerando-se as de saúde e econômicas, por exemplo), as visitações a santuários como os dos ahlulbayt, família do Profeta, são mais aproximadas da fé xiita. Há ainda quem procure locais considerados especiais pela tradição popular (associados a presenças ou saberes “místicos”). neto do Profeta Muhammad, no Iraque; viajam; e buscam melhores condições de vida.
Diz Hannerz (1997HANNERZ, Ulf. (1997), “Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional”. Mana, vol. 3, nº 1: 7-39, 04/1997. ): “Para manter a cultura em movimento, as pessoas, [como] atores e redes de atores, têm de [...] recordá-la (ou armazená-la de alguma outra maneira), discuti-la e transmiti-la” (Hannerz 1997). A ruptura das fronteiras do mundo, fluidas ou forçadas, permite rearranjos dos hábitos dos muçulmanos, incluindo múltiplas maneiras de entender o Islã e suas práticas.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE, no censo de 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. (2010), Censo 2010. Disponível em: Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Religiao_Deficiencia/tab1_4.pdf . Acesso em: 18/08/2013.
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, afirmava haver pouco mais de 35 mil pessoas autodeclaradas praticantes do Islã no país. Para contas um tanto mais atuais, fruto de etnografias, estima-se um quantitativo de 100 mil a 200 mil muçulmanos (Pinto 2015PINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2015), “Conversion, revivalism and tradition: the religious dynamics of muslim communities in Brazil”. In: M. del M. L. Narbona; P. G. Pinto; J. T. Karam. Crescent Over another horizon: Islam in Latin America, the Caribbean, and Latino USA. Austin: University of Texas Press.:135). Como as organizações islâmicas brasileiras não mantêm registros atualizados e muitas vezes a categoria de pesquisa “outros” é aplicada aos muçulmanos durante iniciativas como a censitária, buscar parâmetros responsivos a uma pretendida exatidão é desafiador. Além disso, no presente, o Brasil reafirma ser um pouso de solicitantes de refúgio e imigração. Vale ressaltar que o novo Censo foi adiado para 2022 por conta da pandemia da Covid-19.
As comunidades sunita e xiita no Rio de Janeiro
Análises sobre as comunidades muçulmanas brasileiras já foram realizadas por diversos pesquisadores em São Paulo, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, para citar algumas (Barbosa-Ferreira 2007BARBOSA-FERREIRA, Francirosy C. (2007), Entre arabescos, luas e tâmaras. Performances islâmicas em São Paulo. São Paulo: Tese de Doutorado em Antropologia Social, Universidade de São Paulo.; Marques 2008MARQUES, Vera Lúcia Maia. (2011), “Os muçulmanos no Brasil”. Revista Etnográfica, vol. 15, nº 1, 2011: 31-50. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.oces.mctes.pt/pdf/etn/v15n1/v15n1a02.pdf . Acesso em: 29/03/2014.
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). No Rio de Janeiro, os olhares comumente se focam na SBMRJ6
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Como se deu com Montenegro (2000), Pinto (2010a; 2010b; 2015), Chagas (2006; 2012; 2015), Cavalcante Jr. (2008); Barros (2012) e Ferraz (2015).
/Mesquita da Luz, pois essa entidade, fundada em 1950, figura tradicionalmente como representativa dos muçulmanos no estado. Seu público atual é de sunitas brasileiros convertidos (majoritariamente), imigrantes de muitas origens e convidados/curiosos. Investe na divulgação do Islã e busca o reconhecimento de outras entidades-pares. Daí a presença constante de jornalistas, estudantes, pesquisadores e outras pessoas que queiram saber mais da religião nessa sede, situada no movimentado bairro da Tijuca. Hoje, o prédio se destaca na geografia da cidade, pois ganhou características de uma mesquita, próximas àquelas vistas em muitos países do Oriente Médio, como minaretes e um domo com o crescente islâmico. Anteriormente, o prédio era assemelhado a uma casa ou ponto comercial.
O Centro Cultural Imam Hussein (CCIH) foi inaugurado em 2014. De base xiita, trata como missão em relação aos muçulmanos educar, construir identidades e promover o que chama de “serviço comprometido com a comunidade”, com a observação de preceitos religiosos do Islã. Seu público assistente é difuso: são estrangeiros, descendentes de iranianos, convertidos brasileiros e alguns (ex-) membros da SBMRJ. O que acaba por ocorrer atualmente é a aproximação com fiéis de outros estados, como São Paulo, por meio das trocas comunicativas. Em minha última visita ao espaço, uma sala comercial, percebia-se que este era diminuto, decorado com tapetes e pôsteres que remetem ao martírio do Imam Hussein e à época da Ashura, evento mais bem explicado mais adiante neste texto.
No Islã, há duas comunidades sectárias de peso: sunita e xiita, como aqui já exposto. Os sunitas (prevalentes no Brasil e no mundo) têm como base de suas rotinas e rituais o Alcorão e a sunna, que são tradições e exemplos ligados à vida de Muhammad. Especialistas religiosos - como os shaykhs - guiam a prática doutrinal. Os xiitas (reunidos em comunidades menores em nosso país) são norteados pelo texto corânico e por orientações esotéricas dos imams, que seriam descendentes do Profeta. Dentre estes, há os que têm funções jurídicas e religiosas, detendo o título de ayatollah (Chagas 2006CHAGAS, Gisele Fonseca. (2006), Conhecimento, identidade e poder na comunidade muçulmana sunita do Rio de Janeiro. Niterói: Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.:2).
A convivência com esses grupos de muçulmanos, acompanhando sua busca pelo halal (lícito) e o desejo de afastamento do que pode ser considerado haram (impuro), sobretudo em uma perspectiva alimentar, resultou nas análises presentificadas aqui. Sendo o Islã uma religião minoritária no Brasil, observar seus preceitos pode gerar dilemas nos cotidianos dessas pessoas e fazer com que um muçulmano precise escolher muitas vezes a trilha “intermediária” - especialmente os convertidos.
Halal, haram e a ponte a ser contornada
Halal significa “permitido”, e o conceito vai além de cuidados alimentares, pois se conecta à ideia de integridade, e esta deve estar presente em atos e intenções, valendo também para a política, justiça e finanças. Já o haram seria a oposição a tudo isso, o ilícito (em traduções extremas, “pecado”). Nas duas comunidades pesquisadas em destaque, a Mesquita da Luz e o CCIH, quando há desconhecimento sobre o tema, como no caso de muçulmanos recém-convertidos, existe uma dose extra de tolerância, pela falta de intimidade com o assunto. Os líderes religiosos, apesar de ensinarem as normas que consideram pertinentes (e isso pode advir desde experiências pessoais, passando por ramos de escolas doutrinais e chegando até reproduções do que se considera corriqueiro em países de maioria islâmica), costumam ser compreensivos com “erros” ou atitudes previamente ignoradas. Uma grande parcela de meus interlocutores opta por ressignificar seus hábitos em prol da prática da fé.
Muitos desses líderes destacam prescrições em relação ao vestir, evitação de certos alimentos impuros, como a carne de porco e bebidas alcoólicas, além dos jogos de azar (Weber 2009WEBER, Max. (2009), Sociologia das religiões: tipos de relações comunitárias religiosas. Economia e sociedade. Brasília: UNB.:413). Na surata 6 do Alcorão,7 7 O Alcorão tem 114 capítulos, as “suras” ou “suratas”. Tais capítulos são divididos em versículos, ou ayas. por exemplo, há prescrições sobre a comida. Esta sobre o porco: “Diga: ‘Não encontro no que me foi revelado [nada] proibido para quem o comesse, a menos que fosse um animal morto ou sangue derramado ou carne de porco - pois, de fato, é impuro [...]’” (versículo 145). Mesmo que a lavagem dada ao porco seja considerada limpa, ele é visto como necrófago e consumidor de toxinas (CCIH [s.d.]).
Vale lembrar um pouco das outras duas mais conhecidas religiões “do livro” (monoteístas, com escrituras canônicas), judaísmo e cristianismo: nas leis judaicas alimentares, o porco é uma das proibições levíticas, animal de casco fendido, mas que não rumina, sendo vedado. Católicos podem ingerir porco porque não seguem a lei judaica, porém há dias e períodos específicos, como a Quaresma (os quarenta dias em que se relembra o jejum sacrificial do Cristo, no deserto, sendo tentado pelo demônio) e a Sexta-Feira Santa (em que Jesus morreu crucificado, antes do domingo de Páscoa, sua ressureição), nos quais a carne é preterida. “Saber diferenciar” o permitido do proibido faz com que a religião seja vista como um sistema de conhecimento, capaz de classificar o mundo entre sagrado e profano, apregoa Durkheim (2009DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2009. :22-24). Ademais, podemos enxergar como parte desses tabus a ideia de diferenciar-se como comunidade entre outras (Bourdieu 2007BOURDIEU, Pierre. (2007), A distinção. Crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk.).
É difícil encontrar no Brasil comidas, roupas e até locais próprios para rezar cinco vezes por dia de acordo com as exigências religiosas - imagine-se uma pessoa que trabalha em tempo integral. Ela não pode rezar no banheiro da empresa, pois é um local impuro. O comum, para tais convertidos, é chegar ao lar e compensar “por esforço”, orando “em bloco”. Logo, em algumas ocasiões, a prática acaba por diferir da norma, satisfazendo um equilíbrio entre o que deve ser feito, o que precisa ser dispensado e o que é viável.
Em tal paradoxo e para suprir necessidades da vida social e religiosa, no Rio de Janeiro, os muçulmanos costumam recorrer a importações e opiniões de líderes. Recomendações e tabus alimentares são interpretados por meio de esclarecimentos sobre versículos do Alcorão. Os hadith e a sunna,8 8 Sem pretender um alargamento de discussões, uma compreensão simplificada a respeito da sunna e dos hadith (ou ahadit) pode ser a seguinte: a primeira seriam vivências do Profeta em sua abrangência, o seu caminho trilhado, sua trajetória. Os segundos corresponderiam a interpretações de aprovações, desaprovações e ensinamentos de Muhammad sobre atos e comportamentos de terceiros. relatos narrativos da vida do Profeta, cuja exemplaridade traz norte a muçulmanos em quaisquer tempos, também são valiosos. No xiismo, há espaço para as teorias dos imames.
O que não é halal costuma ser alijado como haram, conforme discursos de meus interlocutores. Tal determinismo pode advir do desejo muito premente, em especial de convertidos recentes, de manter-se em licitude. A internet se torna, assim, uma arena imediatista para verificar como outras localidades procedem, mormente países de maioria muçulmana, realizando comparações e ressignificações para a realidade brasileira ademais das perspectivas individuais (Ferraz 2016FERRAZ, Thaís Chaves. (2016), “A rede imprescindível: o papel da Internet na busca do alimento halal para muçulmanos do Rio de Janeiro”. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS DO CONSUMO, 8., 2016. Anais... Niterói: ENEC/UFF.). Também é possível encomendar certas qualidades de comidas e pesquisar elementos tidos como ilícitos que podem estar sendo ingenuamente consumidos - como corantes provenientes de insetos (um famoso refrigerante possui um corante derivado da cochonilha. Logo, deveria ser descartado, embora eu recorrentemente o veja presente em diversas comemorações). Importa dizer que, às vistas de todos, vale muito a compreensão de “lícito” compartilhada nos ambientes religiosos frequentados, o que pode não alcançar a prática particularizada em todos os momentos do cotidiano.
O conhecimento circulado, seja ensinado de forma presencial ou até apreendido no ciberespaço, do mítico e do mistério, é possibilidade operadora de itens, bens, discursos e símbolos. Lévi-Strauss (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. (1975), Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.) nos legou a ideia de que itens, como os alimentos, além do saber, a crença e o rito, como comemorações, promovem eficácia simbólica e pertença social. Aproveito assim para abrir um parêntesis, mesmo prometendo manter dedicação, dali em diante, às experiências em terras cariocas: reconto um episódio que se passou não no Rio, mas em São Paulo entre 2018 e 2019, durante os rituais da Ashura, para ilustrar essa afirmação especificamente.
Um alimento para o luto
Ashura é a celebração do martírio de Hussein, neto do Profeta Muhammad e figura central na ideia de linhagem sucessória para os xiitas. O evento tem elementos como a lamentação teatralizada da morte daquele líder na batalha da cidade de Karbala,9 9 Nesse episódio da escatologia xiita, Hussein e seus companheiros foram assassinados na batalha de Karbala, durante um cerco criado pelo califa Yazid, em 680 d.C. A história contada é marcada pela deslealdade aos acordos de guerra e crueldade para com os guerreiros e sobreviventes. A virtude mostrada pela família do Profeta nesse acontecimento é celebrada com grande intensidade, sendo fundamental na vicinalidade com o sagrado. atual Iraque, e uma representação do sofrimento enlutado, com pessoas performando batidas cadenciadas no peito e na cabeça (Meneses 2014MENESES, Karina Arroyo Cruz Gomes de. (2014), “Ashura: o ritual de construção do luto e encenação na cidade de São Paulo”. CaderNAU-Cadernos do Núcleo de Análises Urbanas, vol.7, nº 1: 149-161.:153). É uma grande celebração “entristecida”, pois a família do Profeta, ou os ahlulbayt, “povo da casa”, são de extrema importância na continuação do aprendizado simbólico (de preceitos como fé, coragem e empatia) e esperança. A data conta com doação de alimentos, inclusive em memória de pessoas que já partiram desta vida, e distribuição de água (elemento com enorme peso simbólico nessa época do calendário islâmico, que conta com narrativas pedagógicas de sede e privação enfrentadas pelos mártires na guerra de Karbala). Um item alimentício bastante específico desse intervalo temporal do calendário islâmico é o chamado Kaak Al-Abbas.
O biscoito Kaak Al-Abbas, distribuído na Ashura, remete ao heroico guerreiro Abbas, filho de Ali (Quarto Califa Sábio, para os sunitas, e o primeiro sucessor legítimo do Profeta, conforme xiitas), irmão de Imam Hussein e Imam Hassan. Também chamado de “Pai da Virtude”. Sua persona é fortemente ligada ao conceito de lealdade e misericórdia, mas também ao fato de ser bastante destemido, feroz e belo, o que permanece destacado nas elegias xiitas sobre Karbala. Ao buscar água para crianças e mulheres cercadas na batalha, foi flechado e teve uma morte intranquila e impiedosa.
Esse biscoito ou bolinho é bastante conhecido na culinária libanesa, feito com especiarias, como anis, que remeteriam a um sabor específico ligado à data. Também é cunhado em uma fôrma singular, geralmente de madeira, resultando em uma “impressão” que termina aplicada à massa, remetendo a um (ou mais) círculo(s), porém mais comumente a um “sol”, com raios fulgurantes. Meneses (2017MENESES, Karina Arroyo Cruz Gomes de. (2017), “Kaak Al Abbas: o alimento religioso na construção de territorialidades”. Finisterra, LII, 105: 79-92.) propõe que tal simbolismo se ligue a uma força que nunca se extingue, como a do astro-rei. Assim descreve a autora: “O alimento encerra em si a glória de uma batalha histórica, o luto pela perda do homem religioso de linhagem profética, um signo de agrupamento identitário e a conexão com a terra dos mártires” (Meneses 2017:85-87).
Eu pude experimentar o biscoito nas vezes em que fui realizar trabalho de campo na Mesquita do Brás, xiita, em São Paulo. Observei que podia pegá-lo direto de uma caixa, enquanto membros da instituição o recebiam em mãos. Talvez seja essa uma forma de demarcar que eu, não muçulmana, provavelmente não compreendesse a relevância desse alimento e da data, ou seja, não acessasse os significados ritualísticos ou a simbologia necessária.
Conforme Çaglar (2011ÇAGLAR, A. S. (2011), “Mc Kebap: Döner Kebap and the social positioning struggle of german turks”. In: J. Costa; G. Bamossy (ed.).Marketing in a Multicultural World. Nova York: Routlege. ), a comida e seu consumo têm funções simbólicas e constitutivas nas interconexões de um grupo. Os alimentos são sinalizadores: exprimem relações sociais, étnicas e identitárias de determinados coletivos, tanto para seus membros como para outrem (Çaglar 2011:415).
Esse exemplo foi dado por ser algo diferente das ressignificações que saltam aos olhos nas pesquisas que realizei, especialmente aquelas com interlocutores convertidos no Rio de Janeiro - pareceu-me mais “tradicional”. O alimento deteve uma “permanência” e não ganhou contornos explicitamente ressignificados apenas porque foi consumido no Brasil. O Kaak Al-Abbas foi preparado por imigrantes e descendentes de libaneses que fazem questão de preservar, inclusive de modo bastante privado, sua origem e identidade, um “eu-libanês” muito vívido naquela mesquita. “Não é porque a gente substitui um condimento por outro que acaba [o simbolismo]; está no coração. E a gente tenta não substituir, manda alguém trazer [a especiaria de outro país ou localidade] se não acha”, disse-me uma das minhas interlocutoras em São Paulo, demonstrando, em seu discurso, que a comida ritual subsiste, mesmo com uma eventual “pequena alteração” de condimentos, na narrativa sugerida por ela. Percebem-se nisso aspectos ligados a pertencimentos étnico-nacionais, preferências, distinção e capital social (foi uma tarefa árdua descobrir onde poderia ser vendida a fôrma para a elaboração dessa comida, por exemplo. A informação, diga-se, veio de uma pessoa recém-convertida - não foi acessada por mim com facilidade).
A iguaria é percebida como tradicional ou legítima na totalidade da combinação de elementos que a compõem. Contudo, é fácil encontrar na internet readaptações low carb, sem farinha, sem glúten, além de tabela de contagem de calorias sobre esse alimento, a fim de orientar quem pretende não se desviar de certas pretensões dietético-nutricionais.
O Kaak Al-Abbas servido na Ashura explicitou, para as minhas pesquisas, que existe uma significação para que esteja reiteradamente presente: remeter à persona religiosa que lhe empresta o nome, às atitudes valorosas atribuídas a esse mártir e a uma expressão materializada do evento ou data, acionando e mantendo memórias ligadas ao Islã xiita e, ainda, ao Líbano.
Alimentos halal e haram para simbolizar
A respeito de uma alimentação halal, considero o exemplo mais simbólico a carne assim categorizada. Para muçulmanos, é desaconselhável seu consumo caso não seja lícita, permitida. A carne halal pressupõe determinada forma de abate do animal, que deve ser feita por um muçulmano e envolve desde a repetição de bênçãos até a forma de golpeá-lo. É feito por um expert, com ritualística própria, extinguindo o máximo de sangue possível, de preferência sem sofrimento do animal, com preces a Deus e ferramental próprio, sob fiscalização de entidades certificadoras muçulmanas.
Carnes desse tipo no Brasil não são facilmente acessíveis - meus interlocutores já afirmaram simplesmente não existir tal coisa em nosso país. Em São Paulo, há açougues halal e, ao sul do país, muitos matadouros certificados, mas o Rio de Janeiro é extremamente carente dessa qualidade de alimento. Assim, dizer “Bismillah”,10 10 Bismillah, literalmente, quer dizer “em nome de Deus”, e deriva da expressão “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”, repetida em variados contextos ligados ao Islã, pois traz licitude àquilo a que é dirigida, um alimento ou uma ação. É o primeiro verso da surata Al-Fatiha, abertura do Alcorão. Costuma ser proferida por muçulmanos no sentido de “abençoar” suas práticas cotidianas, como iniciar o dia, o estudo ou trabalho, entrar em casa e até comer. “em nome de Deus”, antes de comerem carnes bovinas, de aves e ovinos, abençoando a refeição é a saída para alguns. As palavras servem para abençoar o que se come. “Não comais aquilo (concernente a carnes) sobre o qual não tenha sido invocado o nome de Deus, porque isso é uma profanação e porque os demônios inspiram os seus asseclas a disputarem convosco; porém, se os obedecerdes, sereis idólatras” (Alcorão, surata 6, versículo 121).
“Como a língua, a cozinha [...] é o repositório de tradições e identidade de grupo; é, portanto, um instrumento privilegiado de autorrepresentação e comunicação intercultural”, associa Guigoni (2009GUIGONI, Alessandra. (2009), “Prefácio”. Antropologia del mangiare e del bere. Disponível em: Disponível em: https://www.edizionialtravista.com/media/pdf/anteprima-11.pdf . Acesso em: 24/01/2018.
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). Os peixes são considerados “neutros”, desde que não intoxicados por alguma substância proibida. Frutas, legumes e verduras são permitidos, pois vêm “da terra”, uma associação com a criação de todas as coisas geradas por Allah.
Juliana, pesquisadora, convertida e casada com muçulmano “de nascimento”,11 11 Note-se que há quem prefira a nomenclatura “revertido”, porque, segundo alguns discursos, todos nasceriam muçulmanos e ao Islã voltariam no momento da conversão. Pessoalmente, utilizo “convertidos”. Adoto a categoria “muçulmanos de nascimento” para aqueles oriundos de família muçulmana. Muçulmanos “de nascimento” são de família oriunda de países árabes ou de maioria muçulmana. Convertidos são brasileiros que adotam o Islã. Ainda: referências para expressões como “revertido” e “muçulmano de nascimento” podem ser vistas nos escritos de Barbosa-Ferreira (2007:86). se expressou da seguinte forma a tal respeito: “Já é tão difícil viver a minha fé aqui [no Rio de Janeiro e no Brasil, apontando para sua própria vestimenta e seu hijab] que eu não vou perder mais tempo me preocupando com o que como. Eu rezo antes de comer. Allah abençoa, e eu então eu me alimento.”
A ironia resta no fato de que o Brasil, contudo, é um dos maiores exportadores de carnes halal para o mundo. O foco dirigido aos países estrangeiros faz com que o mercado nacional fique em segundo plano, esquecido ou desvalorizado. Grandes marcas produzem separadamente o alimento halal, que chega até mercados muito ricos e exigentes. A dajaja (galinha, frango) da empresa que seja talvez mais famosa do ramo no Brasil está há muito nas prateleiras dos príncipes da Arábia Saudita. Idealmente, a comida halal não é estocada ou transportada com outras, além de exigir a exclusividade de objetos utilizados em seu cozimento ou limpeza, como facas e colheres (Ferraz 2015FERRAZ, Thaís Chaves. (2015), Halal, Haram e o possível: senso moral e razão prática entre muçulmanos sunitas no Rio de Janeiro. Niterói: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia. ).
Recentemente, perguntei a um líder religioso do Rio de Janeiro onde foi encontrada carne halal de cordeiro para uma festa, ao que ele afirmou: “Não existe no Rio. Ou eu trago de São Paulo, eu mesmo, ou eu faço o abate”. Preciosa informação, visto que este é um dos fundadores da Mesquita da Luz e sua palavra final é extremamente relevante para os frequentadores do espaço. Ele me (re)ensinou a prática de abençoar o alimento antes de ingeri-lo e insistiu que eu provasse sorvete de pistache, feito sem gordura hidrogenada. O mais significante era poder compartilhar “sem medo” alimentos oferecidos e trazidos pelos fiéis.
Essas comidas serviam para celebrar o desjejum do Ramadan, nono mês do calendário islâmico cujas datas são móveis. É um período de reflexão e aproximação com o sagrado, em que os muçulmanos sunitas e xiitas devem praticar o jejum do nascer ao pôr do sol. O encerramento é uma grande comemoração religiosa, o Eid Al-Fitr, Festa do Desjejum, tempo de compartir diversos alimentos.
No CCIH, quando este ainda operava fisicamente, em 2017, uma oração formal foi realizada pelo shaykh antes de nos alimentarmos, no evento de Mawlid, ou aniversário do Profeta Muhammad. Mais do que recitar uma fórmula, a diminuta congregação rezou em conjunto e abençoou a ceia simples. Refrigerante, suco e dois bolos pequenos e industrializados serviram a sete adultos e uma criança. Sem uma mesa para apoiar os alimentos, estes foram colocados no centro da tapeçaria, onde todos podiam alcançá-los. Naquele momento, não houve preocupação com qualquer tipo de verificação dos ingredientes antes do consumo. Os participantes estavam confortáveis com a presença tão próxima do líder religioso (que garantiria a palavra final sobre o que era halal) e pela convivialidade. Símbolos e onde são colocados significam pontos de referência, localizam no espaço, criam um lugar e um acesso (Espírito Santo 2015ESPÍRITO SANTO, Diana. (2015), “Desagregando o espiritual: a fabricação de pessoas e de complexos espírito-matéria em práticas mediúnicas afro-cubanas”. Religião e Sociedade, vol. 35, nº 1: 216-236. ).
O simbolismo está não apenas na comida “comemorativa”, mas em isentar-se do ilícito, e fazê-lo em companhia do grupo, com aceitação coletiva, crendo que aquelas qualidades de comidas funcionam como próprias para a ritualística que envolve o evento de uma quebra de jejum, um sopro de aceitação e liberdade. Turner (2005TURNER, Victor. (2005), Floresta de símbolos. Niterói: EdUFF. ) afirma que objetos, palavras, gestos e períodos de tempo são símbolos sistematizáveis hierarquicamente no âmbito ritual, capazes de promover ordem e estruturação nas sociedades.
Nem sempre o consumo de um produto que receba a chancela de halal é sinônimo de unanimidade. Há alguns anos, um jovem de família árabe, reconhecido por seu conhecimento religioso entre seus pares, principalmente por ter estudado em uma escola islâmica fora do país, disse-me que não come carne no Brasil “de jeito nenhum”, só peixe. Sua atitude era uma mensagem exemplar para o grupo, à época. Nesse caso, as restrições alimentícias particulares do líder foram largamente mencionadas em sermões, o que deu a essa comunidade, ainda que por força da interpretação, as marcações ou balizamentos do que seria haram. Alimentar-se de peixes era uma sinalização segura.
Certamente, os parâmetros podem ser construídos ou até manejados. Certa vez, em conversa com atletas australianas que vieram ao Rio de Janeiro para as Olimpíadas, vi a firmeza de quem não negocia vedações porque tem o halal a seu alcance, comumente, em seu país. Elas perguntaram às mulheres muçulmanas com as quais eu estava onde poderiam comer carne halal. Informadas de que tal não havia, recusaram a ressignificação da benção: “We rather go vegan” (“Preferimos nos manter com a comida vegetariana”), disseram.
O apreço que as sociedades vêm mostrando pela comida vegana e vegetariana, como estilo de vida ou preferência alimentar, trouxe uma novidade para a mesa brasileira. O faláfel, bolinho condimentado e frito de grão de bico, tornou-se um elemento mais recorrente nos grandes centros urbanos. É uma comida que remete ao Oriente Médio - referência que se aproxima ainda mais dos saberes sobre Islã, práticas lícitas e alimentação de meus interlocutores.
Annelise, uma interlocutora que em breve deveria mudar-se para o país de seu marido, na Europa, falou-me da saudade que sentiria do acarajé, comida típica da Bahia, local que guardava relação com parte de sua família e amigos. “Sempre que passo no Largo da Carioca, no Centro do Rio, sinto no ar aquele cheirinho de azeite de dendê... Não resisto e paro: como um acarajé!” A conversa seguia sobre temas muito comuns entre as amigas ali até que surgiu uma dúvida: “Vera”, perguntou ela à amiga mais íntima, “comida da Bahia é comida ‘de santo’?”.
Dizem Vogel, Mello e Barros (2005VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da S.; BARROS, Jose Flavio P. de. (2005), Galinha d’Angola. Iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas.), a respeito de “comidas de santo” dos cultos afro-brasileiros: “Os próprios santos se distinguem e identificam por meio de suas preferências [...]. Uma divindade privilegia [...] certos sabores e aromas nas suas comidas; determinados paladares em suas bebidas” (Vogel; Mello; Barros 2005:8). Nesse sentido, algumas dimensões dos cultos afro-brasileiros estão conectadas à comida, o que inclui também o aspecto festivo.
Dependendo do contexto ou propósito, são colocadas intenções na feitura, apresentação e repartição dos pratos, ou seja, existe um fim religioso e ritual que permeia as questões alimentares. Alimentar-se de algo dedicado a uma entidade espiritual que não Allah, portanto, não seria compatível com os preceitos religiosos de quem decidiu seguir ao se converter. Outra divindade não ocupará o lugar de Deus na vida do fiel. No momento da conversão, o muçulmano se volta somente a ele, afirmando: “La ilaha illah Allah”, “Não há outra divindade senão Allah”, frase reiterada no Alcorão incansavelmente.
Vera, uma professora da rede pública do Rio de Janeiro, que, antes de ser muçulmana, dedicava-se religiosamente a um culto afro-brasileiro, explicou: “Toda comida baiana é comida votiva, é comida de santo”. A afirmação causou grande inquietação à amiga. Conversamos então sobre a ideia de que um acarajé talvez pudesse ser lido apenas “culturalmente” entre os brasileiros. Vera explicou que não é problema um muçulmano comer uma pipoca - desde que não uma pipoca sabidamente conectada a uma divindade, feita como parte de um ritual ou com “o pensamento” voltado para o santo. Para simplificar a ideia, Vera esclareceu: “Você já comeu faláfel? É quase a mesma coisa! Muito parecido!”. Enquanto a massa do acarajé é de feijão fradinho pilado, o faláfel, de grão-de-bico, também pode ser frito, apimentado e recheado etc. O alimento seria uma ressignificação do conhecido, com a chancela do halal. Mais: seria um prato legitimamente “árabe”, o que aproximaria essas novas muçulmanas ainda mais das práticas alimentares de países islâmicos - algo bastante desejável conforme o imaginário das comunidades pesquisadas. “Quando estive no Oriente Médio, comia faláfel todo dia!”, disse Vera.
O que não poderia ocorrer é o faláfel ser frito na banha do porco, que é um ingrediente “problemático”: ele se “oculta”. Está presente no cozimento de vários alimentos, desde os mais industrializados até o pão “francês” comprado cotidianamente (Douglas [1966DOUGLAS, Mary. [1966], Pureza e perigo. Ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Lisboa: Edições 70.]). Meus interlocutores passavam momentos infinitos em filas de restaurantes e quiosques de shopping examinando os conteúdos descritos em pacotes de salgadinhos e doces, por exemplo. A ideia era checar traços de carne suína, além de, com isso, exercerem uma intenção pedagógica: demonstravam a mim, pesquisadora, o que deveria ser feito, por meio de suas ações que privilegiavam afastar-se do haram.
Na ocasião de um almoço em um shopping, uma dessas pessoas, aquela há mais tempo em contato com a religião no grupo reunido (não por sua idade, mas por anos de conversão), figura de grande carisma e influência, comprou esfihas de linguiça calabresa numa famosa rede de fast-food. Talvez esse detalhe passasse despercebido para mim, mas ela destacou o fato. Disse com riso e ironia: “Hoje estou ousada: comprei esfihas de calabresa”, ou seja, de carne de porco. Acreditou que coubesse uma justificativa desse aparente desvio de todo o discurso prescritivo que já havia feito para mim anteriormente. A questão é que hábitos antigos são difíceis de esquecer, ou, em alguns momentos, sentindo-se à vontade com determinadas companhias, um convertido pode simplesmente optar por não abrir mão deles, comprovando que a prática diária não é engessada, mas uma ponte religiosa pela qual se deseja passar, evitar ou circundar.
A estudante Rosa, sunita, relata que, assim que se converteu, por sua família não aceitar imediatamente sua nova escolha, a carne de porco era servida frita sempre que possível, demonstrando claramente o estranhamento dos parentes. Rosa era muito jovem e dependia financeiramente da mãe, que cozinhava, então, comia o que lhe era dado. Já Lorena, inicialmente convertida ao sunismo, com passagem pelo xiismo e hoje autodefinida “espiritualizada”, era beneficiada: “Minha mãe é incrível. Ela faz dois tipos de feijoada. Uma com carnes, outra sem, para mim!”
Ressignificações alimentares para chegar ao halal
Em um evento fora dos espaços da Mesquita da Luz ou CCIH, com a presença de muçulmanos convertidos e “de nascimento”, um tema de debate foi o vinho. Uma mulher comemorava: “Viajei para as vinícolas no Rio Grande do Sul e comprei bastante suco de uva. Uma delícia, parece vinho.” Como o álcool é vedado a quem segue o Islã, o suco de uva concentrado produzido no sul do país seria uma alternativa para os saudosos em relação à bebida, mais uma ressignificação possível. A descoberta gerou muitos comentários de satisfação entre os presentes.
Durante todo o Ramadan, antes da oração do crepúsculo, ou Maghrib (entre 17h e 18h, geralmente), a recomendação é assinalar o momento comendo tâmaras e bebendo água, como se diz que fez o Profeta Muhammad. As tâmaras são doces, têm carga proteica e vitaminas, além de serem de fácil digestão. De acordo com o capítulo do Alcorão dedicado a Maria, mãe de Jesus, prestes a dar à luz, a fruta e a água serviriam para trazer amparo e demarcar alívio ao sofrimento: “E sacode o tronco da tamareira, de onde cairão sobre ti tâmaras maduras e frescas. Come, pois, bebe e consola-te” (Alcorão, surata 19, versículos 25 e 26).
Em um dos episódios mais relevantes que concatenam simbolismo e prescrições alimentares que já presenciei, uma convertida não achou tâmaras para comprar em seu bairro. Para substituí-las, usou bananas. “Era fruta, era doce e tinha vitaminas. Você acha que eu ia encontrar tâmara onde? Comi as bananas”. Essa muçulmana se apropriou dos elementos fundamentais (ter um líquido, uma fruta, algo doce, considerado estimulante depois de um dia em que o corpo físico foi fatigado pelo objetivo espiritual) e recriou o momento ritual, utilizando itens dos quais dispunha (Ferraz 2015FERRAZ, Thaís Chaves. (2015), Halal, Haram e o possível: senso moral e razão prática entre muçulmanos sunitas no Rio de Janeiro. Niterói: Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Antropologia. ). A matéria, conformada em alimento, (res)significou a intenção de carga religiosa.
Já em 2018, um dos mais respeitados apoiadores do xiismo na Região Sudeste enviou mensagem por um aplicativo de celular avisando a quem desejasse participar do Eid Al-Fitr no CCIH que poderia levar doces e salgados “sem porco-presunto, bacon, calabresa ou similares”, além de bebidas (“só lembrando - sem álcool”). Outro membro ressaltou: “Devem ser halal”, ao que o primeiro completou: “Deem preferência a doces, visto que não conseguirão salgados halal na cidade”. Uma terceira pessoa envolvida na conversa respondeu: “Há doces que levam gelatina em sua composição. Em grande parte, essa gelatina tem origem bovina sem ser halal.”
Anos antes, na Mesquita da Luz, foi “descoberto” que na composição das gelatinas havia vestígios de boi e/ou porco, não halal. A comida saiu da dieta das muçulmanas sunitas, com lamentações, porque era considerada boa para ajudar a “entrar em forma”. Outro alimento banido foi determinada marca de bombom. Havia licor na massa. Mesmo em quantidade ínfima, foi compreendido como haram. Teixeira (2014TEIXEIRA, Jacqueline Moraes. (2014), “Mídia e performances de gênero na Igreja Universal: o desafio Godllywood”. Religião e Sociedade , vol. 34, nº 2: 232-256.) nos lembra: uma perspectiva desafiadora (nesse caso, a abstenção) que remeta ao entendimento do sagrado pode gradualmente garantir a relação com o divino (Teixeira 2014:246).
Em 2018, muitos pratos “de comida árabe”, não necessariamente halal ou ritual, foram oferecidos no Ramadan. Esfihas de fast-food, arroz com lentilhas, muitos vegetais (lícitos), produtos industrializados e até canjica. Meus esforços de pesquisa não deram conta de descobrir se é apenas uma tradição cultural dessa época do ano em que ocorrem festas juninas, visto que a canjica não só é reconhecida como comida votiva nos cultos de matriz afro como festas juninas e julinas são comumente dedicadas a santos católicos. Fico com a explicação de uma amiga muçulmana, convertida e casada com um muçulmano “de nascimento”: “Tem porque eu fiz e está chegando meu aniversário. Adoro festa junina e adoro canjica no frio.”
Entrelaçando símbolos para caminhar em licitude
Geertz (2008GEERTZ, Clifford. (2008). A religião como sistema cultural. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.) analisa a cultura como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, aos quais ele também chama de “símbolos”, pertencentes a um contexto (Geertz 2008:10). Os símbolos articulam o pensamento e fazem parte da tessitura do homem e suas sociedades de inscrição, colocando um “significado na experiência”.
A ressignificação é uma negociação sempre presente entre meus interlocutores convertidos. Por conta disso, trocam acarajé por faláfel, vinho por suco de uva concentrado e rezam a carne antes de ingeri-la, aproximando de seus cotidianos o halal da melhor maneira possível, reinterpretando os alimentos de que gostam ou tornando-os acessíveis de alguma forma. A comida ingerida, preparada, comprada e ofertada compõe o simbólico religioso e dele não dissocia a externalização de práticas, identidades, pertencimentos e preferências.
Para Geertz (2008GEERTZ, Clifford. (2008). A religião como sistema cultural. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.), o uso de símbolos é espontâneo e orienta o indivíduo nas suas vivências (Geertz 2008:33). Como parte do ethos de um povo, permeiam escolhas morais, percepções e interesses, sedimentando-os internamente. Moldam o complexo simbólico que é a religião. “O homem tem uma dependência tão grande em relação aos símbolos e sistemas simbólicos a ponto de serem eles decisivos para sua viabilidade como criatura” (Geertz 2008:75).
Os símbolos religiosos “formulam uma congruência básica entre um estilo de vida particular e uma metafísica específica” (Geertz 2008GEERTZ, Clifford. (2008). A religião como sistema cultural. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC.:67). São modelos e sinalizações compartilhadas e ao mesmo tempo íntimas.
Em As formas elementares da vida religiosa, Durkheim afirma que um contato “excepcionalmente íntimo é o que resulta da absorção de um alimento” (Durkheim 2009:321-322). Isso traria ao indivíduo a possibilidade de se orientar no mundo, com suas ações e percepções. A religião permite que seu praticante caminhe até o discernimento do lícito e do ilícito, incluindo nisso escolhas morais do coletivo religioso no qual está inscrito. A ideia de halal e haram permeia os dias tanto de sunitas como de xiitas, com tantas variabilidades quanto permitem a sua noção individual de licitude, a disponibilidade no Brasil do alimento que se enquadraria nessas categorias e o sentido apreendido conforme os discursos dos líderes dos locais frequentados para a prática religiosa. A intenção principal é manter-se na senda halal, mesmo quando desafios cotidianos se interpõem durante a jornada e as práticas dessas pessoas se flexibilizam - estas demonstram, assim, estar imbuídas do desejo de corresponder ao que percebem como um cumprimento prescritivo do Islã e de conciliação com o que seria bom, ideal, profícuo em suas percepções de espiritualidade e religiosidade.
Nestes escritos a respeito do Islã, o propósito foi abordar tal religião em aspectos gerais ou prescritivos, tanto quanto apresentar um pouco mais das subjetividades que permeiam as vidas sociais dos muçulmanos sunitas e xiitas do Rio de Janeiro. Em ambas as vertentes de pensamento, as práticas alimentares diárias os unem ao sagrado, os endividam em relação ao mesmo ou geram novas possibilidades. Afinal, comidas podem presentificar fé, comunhão e sociabilidade, seja atravessando, evitando ou contornando as pontes com o divino.
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1
As “vozes” que trazem os leitores deste texto um pouco mais para perto de suas vivências diárias a respeito do lícito ou ilícito são preponderantemente de interlocutores do Rio de Janeiro, convertidos. Os principais locais de pesquisa foram a Mesquita da Luz/SBMRJ e o Centro Cultural Imam Hussein (sunita e xiita, respectivamente, no Rio de Janeiro). O destaque para a comida Kaak Al-Abbas foi percebido na Mesquita xiita do Brás, em São Paulo, e envolveu entrevistados libaneses e seus descendentes.
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2
Said (2008) argumenta que o viés orientalista com que povos árabes (e outros, “exóticos” em relação à Europa) foram fixados no imaginário do dito “Mundo Ocidental” parte de estereótipos e promove construções fantasiosas, propaladas pelas artes, literatura e cinema (Said 2008:19-23). Cabem nisso muito bem, em relação às minhas experiências de campo no Rio de Janeiro, expectativas de uma provável consonância com dança do ventre, comida típica de regiões árabe-islâmicas e o marido apaixonado acima de tudo, como em uma famosa novela, O Clone, de 2001, atualmente sendo reprisada.
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Todas as transliterações que envolvem a língua árabe neste texto são de responsabilidade da autora.
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A referência xiita no Rio de Janeiro é o Centro Cultural Imam Hussein, que funcionava em uma sala de oração (mussala) no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, os contatos e o aprendizado são feitos por mídias sociaisCENTRO CULTURAL IMAM HUSSEIN. Centro Cultural Imam Hussein. [Facebook]. [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://www.facebook.com/centroimamhussein . Acesso em: 23/08/2014.
https://www.facebook.com/centroimamhusse... , revistas e livros disponíveis on-lineCENTRO CULTURAL IMAM HUSSEIN. Centro Cultural Imam Hussein. “Por que os muçulmanos não podem comer carne de porco?” [s.d.]. Disponível em: Disponível em: https://www.centroimamhussein.com/post/por-que-os-muculmanos-nao-podem-comer-carne-de-porco . Acesso em: 25/10/2021.
https://www.centroimamhussein.com/post/p... e aplicativos de trocas de mensagem. -
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Enquanto o Hajj é uma peregrinação a ser feita por todo muçulmano em condições para tal (considerando-se as de saúde e econômicas, por exemplo), as visitações a santuários como os dos ahlulbayt, família do Profeta, são mais aproximadas da fé xiita. Há ainda quem procure locais considerados especiais pela tradição popular (associados a presenças ou saberes “místicos”).
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Como se deu com Montenegro (2000MONTENEGRO, Silvia. (2000), Dilemas identitários do Islam no Brasil: A comunidade sunita do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Antropologia Cultural, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), Pinto (2010aPINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010a), Árabes no Rio de Janeiro: uma identidade plural. Rio de Janeiro: Cidade Viva.; 2010bPINTO, Paulo Gabriel Hilu da Rocha. (2010b), Islã: religião e civilização. Uma abordagem antropológica. São Paulo: Editora Santuário.; 2015), Chagas (2006; 2012CHAGAS, Gisele Fonseca. (2012), “Preaching for converts: knowledge and power in the Sunni community in Rio de Janeiro”. In: B. Dupret; T. Pierret; P. Pinto; K. Spellman-Poots. Etnographies of Islam. Ritual performances and everyday practices. Edinburgh: Edinburgh University Press.; 2015CHAGAS, Gisele Fonseca. (2016), “Rituais fúnebres no islã: notas sobre as comunidades muçulmanas no Brasil”. Religião & Sociedade, vol. 35, nº 1: 121-138, 06/2015. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872015000100121&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 15/05/2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s... ), Cavalcante Jr. (2008CAVALCANTE JUNIOR, Claudio. (2008), Processos de construção e comunicação das identidades negras e africanas na comunidade muçulmana sunita do Rio de Janeiro. 2008. Niterói: Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.); Barros (2012BARROS, Liza Dumovich. (2012), Ya Habibi: crise de vida, afeto e reconfiguração do self religioso na conversão de mulheres ao islã, na Mesquita da Luz. Niterói: Dissertação de Mestrado em Antropologia, Universidade Federal Fluminense.) e Ferraz (2015). -
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O Alcorão tem 114 capítulos, as “suras” ou “suratas”. Tais capítulos são divididos em versículos, ou ayas.
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Sem pretender um alargamento de discussões, uma compreensão simplificada a respeito da sunna e dos hadith (ou ahadit) pode ser a seguinte: a primeira seriam vivências do Profeta em sua abrangência, o seu caminho trilhado, sua trajetória. Os segundos corresponderiam a interpretações de aprovações, desaprovações e ensinamentos de Muhammad sobre atos e comportamentos de terceiros.
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Nesse episódio da escatologia xiita, Hussein e seus companheiros foram assassinados na batalha de Karbala, durante um cerco criado pelo califa Yazid, em 680 d.C. A história contada é marcada pela deslealdade aos acordos de guerra e crueldade para com os guerreiros e sobreviventes. A virtude mostrada pela família do Profeta nesse acontecimento é celebrada com grande intensidade, sendo fundamental na vicinalidade com o sagrado.
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Bismillah, literalmente, quer dizer “em nome de Deus”, e deriva da expressão “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”, repetida em variados contextos ligados ao Islã, pois traz licitude àquilo a que é dirigida, um alimento ou uma ação. É o primeiro verso da surata Al-Fatiha, abertura do Alcorão. Costuma ser proferida por muçulmanos no sentido de “abençoar” suas práticas cotidianas, como iniciar o dia, o estudo ou trabalho, entrar em casa e até comer.
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Note-se que há quem prefira a nomenclatura “revertido”, porque, segundo alguns discursos, todos nasceriam muçulmanos e ao Islã voltariam no momento da conversão. Pessoalmente, utilizo “convertidos”. Adoto a categoria “muçulmanos de nascimento” para aqueles oriundos de família muçulmana. Muçulmanos “de nascimento” são de família oriunda de países árabes ou de maioria muçulmana. Convertidos são brasileiros que adotam o Islã. Ainda: referências para expressões como “revertido” e “muçulmano de nascimento” podem ser vistas nos escritos de Barbosa-Ferreira (2007:86).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Set 2022 -
Data do Fascículo
May-Aug 2022
Histórico
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Recebido
04 Nov 2021 -
Aceito
20 Jun 2022