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Feitiçaria, modernidade e o imaginário constitutivo: continuidades hibridizantes1 1 Artigo originalmente publicado em Social Analysis, v. 46, n. 3 (2002).

Sorcery, modernity and the constitutive imaginary: hybridising continuities

Resumo

As cosmologias implicadas na prática da feitiçaria são humano-centradas. Dentro delas, seres humanos estão no coração de processos que são integrais na formação dos seus universos físicos, sociais e políticos. A feitiçaria fetichiza, frequentemente acentuando-a magicamente, a agência humana como o fator mediador chave afetando o curso ou direção das ocorrências de vida humanas. O caráter fabuloso de boa parte da prática feiticeira, suas dimensões transgressivas e ilimitadas, o rico simbolismo que parece pressionar e ultrapassar os limites da imaginação humana, está evidentemente conectado ao ímpeto avassalador e totalizante que a feitiçaria reconhece na agência e capacidade humanas. A feitiçaria é aquela força mágica adicional que se alia à direção intencional dos seres humanos nas suas realidades – uma direcionalidade criativa e destrutiva. Tal feitiçaria precisa afetar as vidas dos outros por causa da sua co-presença, seu envolvimento contínuo nas circunstâncias de vida de todos implicados.

Palavras-chave
feitiçaria; modernidade; imaginário constitutivo

Abstract

The cosmologies implicated in sorcery practice are human-centric. Within them, human beings are at the heart of processes that are integral in the formation of their psychical, social and political universes. Sorcery fetishises human agency, often one which it magically enhances, as the key mediating factor affecting the course or direction of human life-chances. The fabulous character of so much sorcery practice, its transgressive and unbounded dimensions, a rich symbolism that appears to press towards and beyond the limits of the human imagination, is surely connected to the overpowering and totalising impetus that sorcery recognises in human agency and capacities. Sorcery is that magical additional force that unites with the intentional direction of human beings into their realities – a creative and destructive directionality. Such sorcery must needs affect the lives of others because of their co-presence, their ongoing involvement in each other’s life circumstances.

Keywords
Sorcery; modernity; constitutive imaginary

… o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo.

– Karl Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel2 2 Citado em Sahlins (1976:113).

As cosmologias implicadas na prática de feitiçaria são centradas no ser humano. Dentro delas, os seres humanos estão no centro dos processos integrantes da formação de seus universos político, social e físico. A feitiçaria fetichiza a ação humana, especialmente aquela que faz com que ela seja melhorada, e a considera o fator mediador chave que afeta o curso ou a direção das mudanças na vida dos homens. O caráter fabuloso de tamanha prática de feitiçaria, suas dimensões transgressivas e ilimitadas, um simbolismo rico que parece pressionar em direção e além dos limites da imaginação humana, está, com certeza, ligado ao ímpeto avassalador e totalizante que a feitiçaria reconhece na ação e nas capacidades humanas. A feitiçaria é aquela força mágica adicional que se une à direção intencional dos seres humanos nas suas realidades – tendo direções ao mesmo tempo criativas e destrutivas. Tal feitiçaria afeta de maneira inevitável a vida das pessoas por conta de suas presenças coexistentes, seus envolvimentos contínuos nas circunstâncias da vida uns dos outros.

A preocupação primordial da feitiçaria com as problemáticas das ações humanas significa que ela é uma prática extremamente diferenciada, originada de uma grande diversidade de circunstâncias e muitas vezes assumindo a forma das várias situações e problemáticas de que ela trata. A feitiçaria possui a capacidade de se reinventar constantemente, transformando-se em algo novo. No Sri Lanka, lugar onde foi feita a etnografia deste ensaio, a feitiçaria destrutiva mais poderosa não é apenas aquela oculta, secreta, mas também aquela que envolve práticas altamente originais. Existe uma tensão sobre o caráter híbrido da feitiçaria, no sentido de ser uma mistura de procedimentos muitas vezes mantidos separados e, também, no sentido de empréstimo. Os feitiços mais poderosos são, normalmente, aqueles vindos de outros lugares. A magia alheia é particularmente valorizada.

A seguinte discussão explora algumas das observações mencionadas acima3 3 A pesquisa na qual este artigo foi baseado recebeu ajuda para sua realização através de verba da H.F. Guggenheim Foundation e da Lauritz Meltzer Foundation. . Mais especificamente, refiro-me à cosmologia da feitiçaria que está subjacente à sua densidade simbólica ou, como eu prefiro chamar, imagética. É isto (a cosmologia de seu imaginário) que pode levar a explicar por que a feitiçaria é mantida como um importante modo de discurso político e social em diversas situações no mundo inteiro e por que é continuamente reinventada. No Sri Lanka, as cosmologias da feitiçaria estão ligadas às amplas preocupações ontológicas e existenciais que, dizem, podem esgotar o significado, isto é, podem atrair para dentro do seu campo uma miríade de preocupações e problemáticas. Cosmologicamente, a feitiçaria é tida como uma potencialidade presente e duradoura que faz parte da existência desde o começo. Ela se torna ativa através de sua conexão íntima com a motivação dos seres humanos de formar e reformar as suas realidades. Como consequência, qualquer ação ou resultado de uma ação reconhecida como feitiçaria (sendo ela manifesta em grande parte como efeito) pode não ser nunca uma mera feitiçaria ou, como é frequentemente afirmado, uma mera metáfora. Sendo tão vitalmente inerente no esquema das coisas, a feitiçaria pode ser qualquer coisa, menos uma força normal, sempre presente e lugar-comum na existência social. Isto não exclui o terror que a feitiçaria provoca em suas possibilidades destrutivas. Então ela pode aumentar seu espectro terrível como uma cosmologia completamente negativa, algo cuja enormidade é capaz de despedaçar todo o padrão de vida da qual a existência depende. Assim, é claro, é como a feitiçaria destrutiva é frequentemente objetivada no Sri Lanka e em outros lugares.

Talvez uma preocupação constante com a feitiçaria (especialmente aquela conhecida como efeito negativo, mais do que o positivo) seja esperada em contextos ideológicos onde ordens sociopolíticas de criação humana sejam inerentemente falhas e onde tais falhas sejam relacionadas com a feitiçaria como sendo tanto uma força generativa quanto destrutiva. Noto que a maioria das cosmologias associadas à feitiçaria no Sri Lanka, que envolvem histórias populares de formação social e do Estado, descrevem esta falha (dosa) como sendo vital no mesmo âmbito em que as formações e deformações sociais brotaram. Além disso, a expectativa comum da presença da feitiçaria na existência social pode ser excitada em contextos como o Sri Lanka, onde ideologias kármicas, que acentuam a interconexão de todas as ações (ações como efeito), recebem uma importância considerável.

Orientações tais como as supracitadas podem ganhar relevância renovada em momentos de aparente transição e transformação social e política – em outras palavras, em momentos intensos de formação social –, quando novos padrões de diferenciação e divisão sociais estão em evidência. O que estou dizendo é que se pode esperar que as dinâmicas da modernidade acumulem impulso através dos tipos de orientações cosmológicas/ontológicas às quais me refiro. Como tal, a modernidade age conforme tais orientações, trazendo à tona objetificações originais dos feiticeiros e expandindo a relevância de ações e entendimentos conectados com a feitiçaria para uma gama cada vez mais diversificada de contextos e problemáticas. Concluirei esta discussão dando uma breve atenção para estes tipos de processos.

No entanto, meu principal objetivo é explorar uma cosmologia da feitiçaria no Sri Lanka que é muito ligada a práticas do budismo popular e, especialmente, com curas e outros ritos direcionados a doenças e sofrimentos diários (duka) da vida normal. A maioria das doenças e sofrimentos tratados por tradições populares curativas nos vilarejos e cidades do Sri Lanka (particularmente nas partes mais povoadas do país no sul e no oeste) envolvem alguma noção de que elas são efeito da ação de outro ser humano. Os principais ritos de exorcismo de demônios (yaktovil) e outros ritos menores (pidenna, telmatirima,kapuma) envolvem práticas para compensar a possibilidade de feitiçaria (veja em Kapferer 1991_____________. (1991) [1983], A Celebration of Demons. Bloomington: Berg Publishers.). A continuidade de tais práticas, que possuem longas histórias (muitas datando de séculos atrás), assim como a invenção contínua de novas, mantém uma consciência das principais cosmologias que têm relação com a prática de feitiçaria. Muitas das práticas religiosas que ocorrem nos templos, que não são imediatamente relacionadas à feitiçaria, rituais para as divindades e também o recente nacionalismo político, que tem reavivado mitologias relacionadas à cosmologia da feitiçaria, têm preparado o terreno continuamente, nutrindo uma consciência das forças dos feiticeiros e impelindo pessoas a se envolverem com as potências que a feitiçaria abrange.

Enquanto forças sociais e políticas trabalham continuamente fazendo o “tradicional” ser moderno, muitas vezes através de reinvenção, um dos pontos principais em que trabalharei será o de que algumas práticas ligadas à feitiçaria são duradouras e inerentemente modernas. Esta é uma propriedade interna das dinâmicas das cosmologias, que aparecem apenas ao longo de suas práticas. Realço a importância das dinâmicas da prática de feitiçaria além de suas dimensões representacionais, ou daquelas características que a prendem aos contextos históricos e sociopolíticos que a rodeiam. A força simbólica da prática de feitiçaria está em suas dinâmicas, que atribuem durabilidade temporal e que as pessoas, agindo em contextos históricos cambiantes, podem pegar e desenvolver intuitivamente, envolvendo-se em prática de feitiçaria para um efeito situacional relevante.

Obeyesekere (1981_____________. (1981), Medusa’s Hair. Chicago: University of Chicago Press.) explorou de maneira brilhante o valor de uma perspectiva psicanalítica para revelar como fatores pessoalmente inconscientes estão envolvidos em inovações dos rituais, especialmente na esfera da feitiçaria, que tem um espaço maior para invenções. Mas minha preocupação aqui é com a dimensão “inconsciente” de práticas já disponíveis (certamente não negligenciadas no trabalho de Obeyeskere) no complexo e altamente diversificado campo histórico-cultural do Sri Lanka. O que eu sugiro é que na contínua criação de práticas, inovadores compreendem intuitivamente a importância de estruturas dinâmicas disponíveis e as elaboram. Eles fazem isso extraindo inconscientemente (irrefletidamente, por exemplo) a significância de processos sociais e políticos através das elaborações que constroem. Em outras palavras, eles alcançam o que já está implícito em realidades mais amplas, confeccionando formas até certo ponto originais com efeitos inovadores. Um ponto que irei discutir brevemente é como processos contemporâneos podem revelar potenciais em práticas já testadas. Em outras palavras, a importância das dinâmicas não pode ser reduzida ao ato de interpretação no presente, mas já está sugerida na prática – é,a priori, o ato interpretativo.

Minha discussão começa com considerações sobre conceitos comuns de feitiçaria no Sri Lanka e então se encaminha para considerações sobre uma cosmologia que se desenrola em um dos principais ritos antifeitiçaria. Amplamente conhecido como Suniyama, este ritual, relacionado com um deus da feitiçaria chamado Suniyam, é muito significativo para o desenvolvimento de formas originais de feitiçaria. Suniyam e seus templos surgiram em condições de modernidade e parecem estar ganhando popularidade. O ensaio será encerrado com considerações sobre este fenômeno.

Concepções de feitiçaria e o rito Suniyama antifeitiçaria

Existem duas palavras de uso comum relacionadas à grande, e sempre em expansão, diversidade de práticas e experiências descritas como feitiçaria no Sri Lanka:huniyam e kodivina. A primeira,huniyam, indica a muito ambivalente força humana, que pode ser destrutiva ou geradora, que está no coração da feitiçaria e é personificada tanto por um demônio (Huniyam) quanto por uma divindade. A palavra é relacionável também a materializações, objetos e rituais que constituem a dinâmica e a força da feitiçaria. Já a segunda, kodivina, se refere à atividade (vinaya) – normalmente consciente, mas ela também pode cobrir atos inconscientes – que traz dor, ferimentos e morte a outros seres humanos. Devo frisar que termos de feitiçaria podem estar relacionados a uma grande variedade de dispositivos protetores e outras práticas que auxiliam as pessoas ao longo da vida, especialmente durante os momentos chamados de passagens perigosas. Eles são encontrados comumente na forma de amuletos e vários tipos de talismãs, normalmente usados junto ao corpo, mas que também podem estar na soleira das portas ou em outros lugares vulneráveis. São frequentemente enterrados nos terrenos das casas (principalmente quando recém-construídas) para protegerem os moradores. Considera-se que os talismãs, normalmente aqueles escondidos, possuem potencial para feitiçaria porque sua função é machucar e impedir aqueles que tentem violar os limites protegidos por eles. A compreensão de tal fato encoraja um estado de alerta sobre os efeitos mágicos destes objetos como uma precaução normal e sensata. Se uma família passa por alguma desgraça, um especialista frequentemente será chamado para procurar por talismãs enterrados que podem ter sidos colocados lá por antigos moradores da casa. Objetos mágicos e maldições são comumente usados contra outras pessoas, e especialistas em feitiçaria admitem a existência de uma grande variedade de práticas que ferem e até mesmo matam.

A principal palavra para feitiçaria – huniyam ousuniyam, na etimologia de ritualistas cingaleses – deriva do sânscrito sunya ou “vazio”. Huniyam carrega um sentido de esterilidade, vazio – uma condição desprovida de capacidade generativa ou regenerativa. Ter passado pela vivência da feitiçaria expande tais noções. Um especialista em rituais compara esta vivência com a experiência de um recém-nascido sendo estrangulado pelo cordão umbilical enquanto luta para respirar pela primeira vez. Estar nas garras da feitiçaria é estar fortemente amarrado, apertado e imobilizado em laços e amarras controlados por outros. Metáforas do casamento (comohira bandana), indicativas de um laço virtualmente próximo, íntimo e inquebrável, são usadas para transmitir a ideia do confinamento imobilizador da feitiçaria, que tem a paralisia física e a recusa a interagir como sintomas habituais. Os eventos de feitiçaria que algumas vítimas relatam transmitem a sensação de um mundo familiar e seguro que foi transformado em hostilidade e raiva em relação a elas. Pedras arremessadas contra a casa de alguém indicam o começo de alguma feitiçaria. Encontrei um grande número de homens e mulheres que dizem ter passado por experiências que parecem ser relacionadas a umpoltergeist, como serem inexplicavelmente atacados por objetos utilizados em suas tarefas diárias. Uma mulher descreveu como seus utensílios de cozinha voaram em sua direção. As motivações por trás da feitiçaria, como amplamente relatado em outros estudos etnográficos, são a inveja e o ciúme (irisiyava). Em outras palavras, vítimas concebem a si mesmas como sendo o centro do desejo destrutivo e interesse de um mundo malignamente orientado que as oprime como que para excluí-las ou rejeitá-las. Huniyam, sendo a feitiçaria do demônio, é a formação heterogênea coagulada de angústia causada pelo ser humano que priva-os de suas capacidades para ação social e consciência. As representações de Huniyam, principalmente nas tradições de vilas cingalesas, são extraordinariamente grotescas, como se expressassem a impossibilidade de representar o inimaginável ou a impossibilidade de construir a forma significativa de algo que escapa ou não tem significado. Huniyam é a figuração do ser humano em risco, lançado para fora dos limites da existência social significativa e ameaçado pela negação da continuidade existencial. Sendo forma simbólica do sem-sentido e a perda de todo o potencial para dar a vida, Huniyam condensa a significação da feitiçaria do jeito como ela é diversamente realizada no Sri Lanka, e sua forma ressoa com muito daquilo que os antropologistas descrevem como feitiçaria ao redor do mundo. É dehuniyam que deriva o nome do principal ritual de exorcismo praticado para superar os efeitos da feitiçaria: o Suniyama4 4 Em cingalês, as letras “s” e “h” podem ser transpostas, com “s” indicando uma forma mais elevada, mais honorífica. Neste contexto, o título do rito, sem dúvida o mais magnífico do repertório dos especialistas de rituais que o realizam, descreve seu objetivo: o de reverter a malevolência destrutiva de ataques por feitiçaria. .

Como será discutido mais adiante, o ritual Suniyama é realizado sob o signo de Suniyam, o arquissacrificador, o feiticeiro supremo, um ser de ambiguidade monstruosa que é ao mesmo tempo um destruidor e um (re)criador. Ele é a figuração da ambivalência da feitiçaria, uma característica reconhecida quase universalmente e que reconhece a volatilidade da feitiçaria como uma prática da qual os efeitos malignos podem voltar e atingir aqueles que desejaram causá-los para outras pessoas. O Suniyam articula este perigo, este risco, controla-o e, com efeito, afasta estes efeitos mágicos da vítima e os direciona de volta para o perpetrador.

O Suniyama, tido como o rito principal na prática do exorcismo, é realizado nas áreas costeiras sul e oeste do Sri Lanka. Ele é considerado o mais alto na hierarquia de ritos demoníacos (yak tovil) (Wirz 1954WIRZ, P. (1954), Exorcism and the Art of Healing in Ceylon. Leiden: E. J. Brill.) e é comandado por especialistas da casta bereva(tocador de tambor), que realiza seus rituais para membros de todas as outras comunidades da região. Um motivo comum apontado por alguns para explicar a preeminência do Suniyama é a dominância de temas e efeitos de “resfriamento” budistas (santi karma). Sendo assim, ele é visto como um rito relativamente “puro”, embora seja classificado como pertencente à categoria de rituais demoníacos frequentemente considerados antibudistas. Em minha opinião, o mais importante, como apontado pelos especialistas dos bereva, é que este é o rito a que pertence o conhecimento-fonte nos quais os outros exorcismos são baseados. Este é o ritual inventado pelo exorcista original Prince Oddisa, que, muitos dizem, conferiu aos bereva seus conhecimentos como arquirritualista, arquissacrificador e arquifeiticeiro. Minha breve discussão acerca da mitopráxis do ritual frisará mais adiante por que ele é um rito tido em alta consideração e com certa dose de admiração.

O Suniyama não é um ritual comum, embora eu tenha sido capaz de presenciar duas ou mais performances por mês na pequena região sudoeste do Sri Lanka (durante a década de 1980 e desde então). Ele é um rito caro que é normalmente realizado para os ricos, uma vez que são eles, claro, os que possuem mais medo da inveja de outras pessoas. Em inúmeros aspectos, o ritual é uma exibição magnífica de riqueza e, em um ponto central, pode ser concebido como uma destruição dessa riqueza, a fonte do desejo e da inveja que produzem as bases nas quais a feitiçaria maligna se desenvolve (Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.). As pessoas que realizam o ritual são muitas vezes migrantes que regressaram do Oriente Médio preocupados com a possível inveja dos vizinhos. Uma crise repentina nos negócios pode resultar na realização do ritual. Frequentemente, ele é realizado depois de uma série prolongada de acidentes e doenças que se abateu inexplicavelmente sobre membros de uma família e porque outras medidas não deram resultado.

O rito como um todo, tal como acontece em outros grandes exorcismos, possui a forma de um ritual composto – isto é, ele estrutura sistematicamente em seus esquemas gerais de realização um conjunto de ritos de maior e menor escala conectados através de feitiçaria (benéfica, protetora e maligna), que podem também ser realizados de forma independente. O poder do rito está neste fato, pois ele tem como objetivo fechar todas as possibilidades e procura anular todas as técnicas que possam ter sido usadas para causar mal. Saliento aqui um ponto para futura referência: embora o rito seja ele mesmo raramente realizado, algumas das práticas diferenciadas que ele coordena são praticadas com mais frequência, muitas delas aparecendo como elementos de outros ritos. Portanto, partes do rito – dimensões do conhecimento do qual ele é composto – estarão na área da apreensão cultural de muitas pessoas. Isto aconteceria mesmo que o rito Suniyama nunca tivesse sido testemunhado.

Apresentarei inicialmente alguns dos principais acontecimentos do ritual e o esquema narrativo chave do rito. Um alcança seus significados e sua lógica através do outro. Assim, enquanto a prática dos rituais alcança a sua importância através de mitos chaves, aquilo que os mitos têm de mais importante é revelado através da realização de rituais. Minha apresentação irá, com certeza, incluir aspectos entendidos através de minha própria interpretação do rito, baseada em minhas próprias experiências com o ritual e em discussões feitas com especialistas e participantes leigos. Nenhuma descrição se sustenta fora da interpretação, e a que eu começo utilizando aqui é necessariamente restrita (Kapferer 2000b_____________. (2000b). “The Sorcery of Consciousness: Sinhala Buddhist Ritual Discourse on the Dynamics of Consciousness”.Communication and Cognition, v. 33, n. 1/2: 97-120.,1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.). Falarei sobre outras interpretações mais adiante, mas tenho consciência de que inúmeras outras são possíveis. Esta noção é parte do meu conceito central de que a feitiçaria, ou aquilo que é tido como feitiçaria, dá origem a uma grande variedade de preocupações existenciais que são envolvidas pela imaginação cosmológica do rito Suniyama. Se as implicações da feitiçaria em que tal cosmologia baseia-se não são compreendidas, é provável que um entendimento das ansiedades e dos medos que o termo “feitiçaria” pode envolver, e o ataque extraordinário que ele pode implicar mesmo nos casos mais externamente triviais de dano e distúrbio, sejam imensamente empobrecidos.

O Suniyama: uma prática anti anti-anticosmológica

Normalmente, o Suniyama é realizado durante um período de aproximadamente doze horas, começando ao anoitecer (18h) e avançando quase continuamente até o amanhecer (06h), mas por vezes não está terminado até o meio-dia. Em vários estágios do rito, normalmente durante a principal sequência de dança e especialmente perto do amanhecer, quando as passagens mais teatrais ocorrem (incluindo uma cômica, sobre curandeiros brâmanes fracassados, e uma consideravelmente tensa, quando o grande feiticeiro ou Vasavarti Maraya, o Grande Envenenador do Mundo, aparece), uma multidão de espectadores, muitas vezes chegando a mais de 200, se reúne. Normalmente a performance acontece no pátio da frente da casa da vítima de feitiçaria. O rito começa com a vítima se acomodando dentro do perímetro de um espaço ritualmente demarcado. Ela confronta uma estrutura grande e magnificamente enfeitada, situada a mais ou menos seis metros de distância. Este é o palácio do primeiro Rei Mahasammata e da Rainha Manikpala.

O objetivo do rito é levar a vítima para dentro do palácio (rastejando através de uma pequena porta), onde ela será acomodada em um espaço conhecido como a câmara nupcial de Mahasammata e sua rainha. É o lugar mais auspicioso (atamagala) – o centro do mundo. O movimento que a vítima faz das margens do espaço do ritual (que demarca o espaço da cidade-estado de Mahasammata) para o quarto de dormir traça o progresso de uma posição preparada para a aurora do ser até o limite da inexistência, o ponto definitivo onde o que está além é o nada ou o infinito. Este espaço é, também, um ligar de reunificação – do Rei Mahasammata com sua Rainha Manikpala, da recriação do corpo e do mundo, da ordem da hierarquia cósmica e de muitas outras coisas. Mais importante ainda, este é o espaço do Buda, um lugar de iluminação, e, conceitualmente, o ponto mais alto da consciência. Tais entendimentos são revelados progressivamente ao longo da passagem da vítima pelas várias etapas do ritual.

A vítima (ou paciente, aturaya) começa o rito na posição de Rainha Manikpala, a primeira pessoa a ser derrubada por feitiçaria. Todas as vítimas, independente do sexo, estão cientes de que se encontram na mesma situação de Manikpala e devem usar um xale igual ao seu na cabeça (omottakkili). Uma das ideias fundamentais do rito e que motiva a sua dinâmica interna é a de que é o “poder” do palácio que irá atrair a vítima para ele. Este poder está “entranhado” no palácio, na verdade dos ensinamentos de Buda, na consciência elevada, na razão de Buda. Isto está escondido lá dentro (o chamado atamagala, um espaço vazio onde a vítima se sentará) e é obscurecido pelo brilho exterior e pela riqueza esplendorosa do palácio. O que o palácio apresenta é o objeto de desejo e a fonte da inveja que o paciente irá atravessar. Em outras palavras, conforme avança para dentro doatamagala, a vítima é purificada, afastando todos esses pensamentos de desejo e a poluição que eles trazem. O fim do rito é marcado pela destruição dessa apresentação exterior do palácio, que representa simbolicamente a destruição das bases para a produção de feitiçaria. Significativamente, essa destruição é conduzida pelo grande ser da feitiçaria, Vasavarti Maraya (o Envenenador do Mundo), que destrói também a si mesmo contra a edificação do desejo.

O acima mencionado é a maravilhosa simplicidade da ideia que rege e guia uma complexidade interior do ritual e de suas cosmologias de prática. Um pouco desta complexidade – o que pode ser considerado o maquinário do rito (se analisarmos o ritual como uma máquina) – é aparente na história da origem, da destruição e da renovação (loka upattiya) do mundo e também, acima de tudo, na história dos acontecimentos do primeiro ataque por feitiçaria e como eles foram superados. A história é contada para a vítima e para a plateia no momento em que o rito é iniciado e tem partes importantes que se repetem e são trabalhadas em forma de poemas, canções e outras ações dramáticas ao longo das várias etapas do ritual. Em um sentido estruturalista isso pode ser considerado algo paradigmático de todo o rito, cujo sentido completo emerge no processo sintagmático dos acontecimentos ritualísticos. Mas pensando por outro ângulo, a história também esconde, assim como o palácio, o verdadeiro paradigma, ou princípio fundamental, que está em seu interior e é revelado de maneira apoteótica apenas na ação ritualística que ocorre no final do rito. Entretanto, a narrativa da origem do mundo que apresento agora deveria mostrar um pouco da densidade cosmológica e da complexidade existencial que é parte do potencial do rito e do evento de feitiçaria a que se refere.

Na recitação da Loka Upattiya, a vítima e a plateia são brevemente lembradas que os humanos surgiram do corpo de Maha Brahma (veja em Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press., capítulo 3). É Maha Brahma que desce à Terra através do caule de uma flor de lótus, seguindo uma grande chuva de destruição que reduziu o mundo a um barro primordial. Maha Brahma é um ser andrógino no qual tudo é imanente. Ao comer o barro primitivo, Maha Brahma começa a se transformar em um ser humano, dividindo-se em masculino e feminino que, então, multiplicam-se, ocorrendo a multiplicação dos seres humanos, que se manifestam como uma edificação do desejo e da ganância e, por consequência, do seu sofrimento.

O sofrimento incita as pessoas à autorrealização como seres humanos. Esta autorrealização, que é também o nascimento da consciência, é fundada na diferença, no reconhecimento dos seres humanos como sendo distintos de outros seres – as criaturas da água, da terra e do ar. Além disso, agora, já como criaturas de consciência desperta, os seres humanos refletem sobre seus problemas e observam que todas as outras criaturas, que não parecem sofrer assim como eles, possuem ordens hierárquicas encabeçadas por reis.

Os seres humanos não só se dão conta de que sua natureza é diferente da de outros seres como percebem que devem constituir a sua própria ordem hierárquica. Ela é uma cópia daquilo que os cerca, não uma replicação platônica, mas uma cópia original. Suas ações também não são uma reinstituição de uma ordem essencial ou de uma harmonia dos seres da qual o ser humano saiu, como no mito adâmico das tradições judaicas e cristãs.

Os seres humanos escolhem o Rei Mahasammata de dentro do seu meio. Ele constitui a ordem da cidade-estado e a estrutura hierárquica interna dos diferentes estados humanos (castas), os vários deveres e ofícios definido para o estado, e as fronteiras e os exércitos de sua proteção. A conclusão deste processo constitutivo é marcado por Mahasammata escolhendo a sua rainha, a bela Manikpala, irmã de Vishnu. O erotismo da relação dos dois é forte, e o seu jogo amoroso, uma característica da poética das canções do rito Suniyama, é o poder de sua harmonia e o poder da força unificadora da cidade-estado que Mahasammata constitui. Tal erotismo é também uma característica potente da estética da realização do ritual como um todo (veja emKapferer 2005_____________. (2005), “Sorcery and the Beautiful: A Discourse on the Aesthetics of Ritual”. In: A. Hobart e B. Kapferer (eds.).Aesthetics in Performance. Formations of Symbolic Construction and Experience. Oxford e Nova Iorque: Berghahn Books., 2000a_____________. (2000a), “Sexuality and the Art of Seduction in Sinhalese Exorcism”. Ethnos, v. 65, n. 1: 5-32., 2000b_____________. (2000b). “The Sorcery of Consciousness: Sinhala Buddhist Ritual Discourse on the Dynamics of Consciousness”.Communication and Cognition, v. 33, n. 1/2: 97-120.). Entretanto, Mahasammata quer expandir a sua ordem. Ele deixa Manikpala para declarar guerra contra os Asuras, quebrando a poderosa união erótica que ele havia estabelecido com sua rainha. Neste ponto, Vasavarti Maraya, o Envenenador do Mundo, espiona Manikpala, cobiça-a e se aproxima dela assumindo a forma de Mahasammata. Existe aí a implicação de que ele é um duplo, talvez criação de Mahasammata, e certamente a força da ilusão, o efeito do desejo, que inicialmente confunde a mente de Manikpala. Ela bloqueia a aproximação de Vasavarti, mas apenas quando já é tarde demais. Vasavarti, furioso com a rejeição de Manikpala, transforma-se em uma serpente de fogo, formada de sua própria essência, seu sêmen, e a energia do calor sexual, e entra estourando os portões do palácio para alojar-se e crescer no ventre de Manikpala. A rainha cai inconsciente, coberta de feridas, e o perturbado Mahasammata não tem poderes para revivê-la, assim como os vários yogins ou Brahmins que são chamados para ajudá-la. Por último, com a ajuda de Vishnu, o Príncipe Oddisa é convocado. Ele é descrito como um temido feiticeiro e sacrificador (ele possui uma boca enorme na qual tudo é consumido) perante o qual até os deuses estremecem. É Oddisa – um metamorfo xamânico capaz de assumir a forma da fúria destrutiva da feitiçaria e que pode entrar no corpo do feiticeiro – quem fornece a cura para Manikpala. Assim ele inventa o Suniyama.

Oddisa pede a Visvakarma, o Arquiteto Divino, que construa a principal estrutura do ritual, o palácio de Mahasammata. Ele é a representação da ordem cósmica que os seres humanos trouxeram para a existência através da ação do Rei Mahasammata, a representação coletiva da autorrealização consciente desses seres humanos. Oddisa estabelece os eventos-chave e procedimentos do Suniyama através do qual as pessoas podem recobrar a consciência e a capacidade de formar suas ordens sociais. O trabalho de construção que Oddisa contrata e as etapas do ritual que ele estabelece manifestam o poder do ritualista de trabalhar com aquilo que já havia sido criado pelo homem e de restaurá-lo.

As etapas do rito são organizadas em 16 atos5 5 Os exorcistas (adura) que realizam o Suniyama dizem que existe uma etapa para cada um dos 16 anos em que Manikpala passou casada. O número 16 é simbólico do processo em que ela atingiu uma maturidade consciente. Estas etapas são conhecidas como um único conjunto, as solos tinduva. Umatinduva é um ato de término, de corte. Ela também é entendida como um ato de julgamento. de ruptura, julgamento e sacrifício dos quais as capacidades humanas de consciência e autorrecriação são formadas. O processo estrutural do rito envolve a reunificação da vítima enquanto Manikpala e Mahasammata, no centro da cidade-estado. Isto é causado por meio da dinâmica de sacrifício do rito, uma força que impulsiona a vítima de feitiçaria para dento do palácio de Mahasammata.

Visto como um todo, o ritual de Oddisa para curar o sofrimento de Manikpala causado por feitiçaria é concebido como um sacrifício (yagaya). As 16 etapas principais do sacrifício envolvem intensos atos de doação, a formação de relações entre diversos seres (fantasmas, demônios, deuses) na hierarquia cósmica, e também o corte ou a afirmação de relações com estes seres – sendo todos atos hierarquizantes e diferenciadores; a destruição de frutos inteiros (normalmente substitutos humanos); atos extensos de comédia dramática; a amarração da vítima nos laços da feitiçaria e a posterior quebra destas amarras; e a destruição final do palácio – a imagem da totalidade cósmica de Mahasammata (veja em Kapferer 1997:139-184_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.). Todas estas etapas de sacrifício – de ruptura, de formar e destruir relações, e de julgamento (punição, como, por exemplo, atos de afirmação moral) – são fundamentais para a que a vítima volte à consciência e volte ao mundo social ou às realidades partilhadas com outros seres humanos. Consciência e mundo surgem em conjunto. Através de todo este processo, a vítima também compreende que recuperou a fala e a capacidade de constituir realidades através dela (vac), capacidades que foram destruídas pela ação da feitiçaria6 6 O movimento da vítima através dos chakras é também um cruzamento e uma personificação das vogais da fala. Os eventos cômicos se seguem a partir disso. A comédia manifesta o poder da fala como sendo o poder da consciência. Na comédia, a consciência da fala é feita de maneira constitutiva; além disso, ao longo da encenação da comédia, a consciência é transformada em um objeto de si mesma. Este é o prazer dado às vítimas e ao público pela comédia (Kapferer 1997:158-67). .

Pode-se notar aqui que a linha de orientação entre o palácio e a vítima se apresenta na forma de uma serpente com a cabeça apontada para os órgãos genitais da vítima. Esta é a víbora da feitiçaria, que marcou, em intervalos, por seu corpo as barreiras de ordem protetora que foram erguidas, mas que depois foram violadas de maneira transgressiva pelo feiticeiro. Paradoxalmente, elas foram percebidas novamente como os bloqueios e obstáculos da feitiçaria que agora barram a vítima, para que o agente de desejo e inveja, Vasavarti, tenha causado de fato a rejeição de Manikpala do espaço de hierarquia divina, ordem e harmonia serena no centro da cidade-estado (atamagala). As barreiras (sete no total) devem ser cruzadas pela vítima em um processo no qual elas são definidas como os sete pontos de recriação cakra. A víbora de Vasavarti é transformada na coluna vertebral do corpo e do mundo (em um de seus múltiplos significados, ela é o caule da flor de lótus pelo qual Maha Brahma desceu à Terra).

A etapa que acontece juntamente com a do corpo da serpente, talvez a etapa chave de todo o ritual Suniyama, é conhedida como hatadiya (o rito dos sete passos7 7 De acordo com as influências tântricas claras do rito (importantes nas formações históricas do budismo cingalês), a flor de lótus ou os pontos dechakra são os plexos vitais presentes ao longo da passagem espinhal (susumma) do corpo humano, os pontos de sentidos críticos para a renovação. Eles também são revelados (em canções que os acompanham) como os primeiros sete passos do Buda, do Príncipe Sidarta. Também a víbora se transforma na sombra protetora de Muchalinda, cuja naja protege o Buda e, para os exorcistas realizadores do rito, é uma forma de Maha Kela Nada, a grande cobra do tempo. Hatadiya é uma reconfiguração vital do tempo e do espaço destruídos pelo ataque de feitiçaria. ). Ela acontece por mais ou menos quatro horas nas quais a vítima passa adiante sete flores de lótus (que simbolizam centros vitais de recriação durante esta passagem), sob as quais estão inscritas no chão as vogais principais do alfabeto cingalês, os elementos que devolverão a capacidade de fala da vítima (silenciada por conta da feitiçaria). Conforme a vítima vai cruzando as barreiras, a figura da víbora (e das barreiras) é removida, e um caminho limpo e claro se revela mostrando o seu progresso. Ohatadiya acaba quando a vítima rasteja para o interior do palácio e se acomoda dentro dele.

Aqui a vítima é reorientada, virada e direcionada reconstitutivamente de volta ao mundo no qual estava no momento da partida. Simbolicamente, a vítima está no espaço ocupado por Buda, no ponto contemplativo de iluminação, na beira da inexistência. Efetivamente, ela está pronta para repetir o ato de Mahasammata da recriação da ordem do mundo, que será alcançado através de uma série de sacrifícios. Entretanto, antes que isso seja realizado (os atos que finalmente completam o Suniyama), os laços aprisionadores do feiticeiro, as forças do desejo e da inveja e da raiva (colocados como amarras no corpo da vítima) são cortados pelo exorcista. O ato é definido como sendo uma irrupção do próprio corpo da vítima, um ato de autogênese em que as vítimas provocam os próprios renascimentos saindo de seus próprios corpos8 8 Uma comparação útil pode ser feita entre este e outros eventos do rito Suniyama e a discussão fascinante de Davis (1991) sobre o ritual medieval indiano de saiva. .

Neste momento de reconstituição do mundo – aquele em que não só a vítima é restaurada, mas também a sua casa, a sua família e sua comunidade são restauradas através de seu corpo – o grande ser da feitiçaria, Vasavarti Maraya (concebido também como uma encarnação de Devadatta, um parente do Buda que desertou do seu caminho e dos seus ensinamentos), faz sua aparição. Ele destrói o palácio, e na verdade age como uma espécie de parteira no renascimento da vítima, que sai ilesa do casulo protetor que o palácio formou ao seu redor. Apesar de Vasavarti conseguir destruir o palácio, ele é impotente para qualquer outra coisa. Entretanto, sua aparição indica uma presença iminente duradoura que vai exigir repetição do rito, se não para a vítima em questão, certamente para alguma outra pessoa. A força aniquiladora de Vasavarti é uma presença contínua que fica espreitando, às margens da ordem mundial.

Um comentário interpretativo comum que pode ser feito sobre o mito central do Suniyama e, na verdade, sobre o ritual como um todo, é que ele descreve um processo que vai da condição de não reconhecer a si mesmo até a condição de autorreconhecimento (que ainda é minimamente assertiva). A vítima é passiva ao longo de todo o rito, ela é intimada a ser assim, e não deveria proferir nenhuma palavra, o que seria uma forma de autoafirmação (e contradiria os ensinamentos de Buda). No entanto, a autoafirmação é evidente e, portanto, as forças destrutivas da existência não podem ser evitadas. Isto é reconhecido no rito e está implícito na aparição de Vasavarti e em sua ameaça contínua.

A história de Mahasammata e a narração e prática das etapas do ritual revelam o paradoxo no coração da autorregeneração e na ação de reconstituir o mundo. Nas dinâmicas de mito e rito, através do processo de autorreconhecimento, os humanos são reinventados como seres humanos, e não de modo redutível. Isto é, eles se tornam seres que criam significados, que acabam encontrando novamente o seu lugar dentro das relações hierárquicas de ordem cósmica, social e política. Eles se tornam sujeitos das ilusões da consciência, como fica claro no erro de Manikpala ao confundir Vasavarti com Mahasammata. As ordens nas quais os seres humanos vivem – inclusive o tempo e o espaço destas ordens (nas canções do ritual, é contado como os seres humanos trazem a luz do sol e da lua, e também as casas astrológicas que governam o curso de suas vidas) – são constituídas pela atividade de suas consciências (orações). Mais importantes ainda são seus atos construtivos que manifestam, de maneira paradoxal, as maiores potências para a sua destruição.

Os atos construtivos dos seres humanos, as ordens de suas invenções de si mesmos que devem envolver exclusão, são o que fazem o feiticeiro manifestar e objetivar sua potência. O feiticeiro é uma criação humana tanto quanto qualquer outra coisa que o ser humano forme ao redor de si mesmo. Vasavarti é a dinâmica anticosmológica da formação cosmológica humana. Ele é contra a hierarquia e, em última análise, incapaz de diferenciação, reduzindo tudo o que está em seu caminho a uma massa congelada, transformando a diferença em algo uniforme. Quando o Príncipe Oddisa assume a forma do corpo de feitiçaria, é descrito que ele canibaliza seres humanos, quebrando suas cidades e mastigando-as. A feitiçaria nega completamente a humanidade dos seres humanos, sua capacidade de transcender a si mesmos através de suas ações cheias de significado e socialmente diferenciadoras. A feitiçaria é constitutiva do ser humano e uma potência constitutiva que se vira contra a própria humanidade. Este é, finalmente, o maior terror da feitiçaria, seu paradoxo fundamental no coração da existência, paradoxo este que é articulado por meio da prática do Suniyama.

Virtualidade e o imaginário constitutivo

O Suniyama é uma das muitas práticas de feitiçaria no Sri Lanka contemporâneo, uma das múltiplas formas de modernidade. Ele é propositalmente definido por alguns como uma expressão da modernidade. Assim, o ritual será realizado para membros importantes das elites locais por representar temas mitológicos e budistas relevantes para a classe moderna e para os discursos nacionalistas. A realização do Suniyama varia de acordo com a tradição específica seguida pelos seus especialistas e, mais ainda, de acordo com a posição social da vítima e da família pela qual ele é solicitado. Sempre funcionou desta maneira9 9 No passado, a estrutura do palácio (como, por exemplo, o número de pináculos) tinha relação com a casta e o status da vítima e sua família. Era importante que o rito apropriado fosse realizado para o status apropriado. Realizar um rito inadequado negava a eficácia do ritual e intensificava a força da feitiçaria. Até hoje circulam histórias no sul do Sri Lanka de famílias que ainda sofrem com os danos causados por um Suniyama realizado de forma inadequada. . Os especialistas no ritual aderem com prazer aos pedidos de seus clientes em relação ao estilo da decoração e até mesmo em como um determinado ritual deve ser praticado. O fato de que a performancedeve representar um estado mundano é um dos significados mais importantes de um ritual Suniyama e faz com que ele se preserve moderno. Mas esta observação não deve negligenciar ou reduzir aspectos cruciais da maioria dasperformances.

O Suniyama é quase sempre realizado para superar eventos de feitiçaria, um interesse, é claro, que está diretamente conectado com a preocupação de que ele deve representar uma posição social. Além disso, a modernidade do ritual e os eventos de feitiçaria aos quais ele visa são conectados de maneira central com o que já é intrínseco e dinâmico no rito.

O Sri Lanka possui uma sociedade de classe moderna, e uma característica importante do discurso sobre esta classe (e também sobre casta e distinção étnica), especialmente ao longo do último século ou mais, é o comprometimento com as práticas budistas na diferenciação e na produção de status e poder de classe. As ideias e práticas budistas de maior importância para que isto ocorresse eram aquelas que ganharam forma através do trabalho ideológico da revitalização budista. Isto expressou um forte nacionalismo científico influenciado pelos teosofistas, especialmente o movimento teosófico de Annie Bezant e de Coronel Olcott (que celebremente observou sil em um templo na capital do sul de Galle). Os primeiros nacionalistas cingaleses foram decisivos no desenvolvimento do racionalismo modernista do renascimento budista, entre os quais o mais famoso foi, provavelmente, Anagarika Dharmapala (Gombrich e Obeyesekere 1988GOMBRICH, R.; OBEYESEKERE, G. (1988), Buddhism Transformed: Religious Change in Sri Lanka. Princeton: Princeton University Press.; Kapferer 1983_____________. (1991) [1983], A Celebration of Demons. Bloomington: Berg Publishers.;Seneviratne 1978SENEVIRATNE, H.L. (1978), Rituals of the Kandyan State. Cambridge: Cambridge University Press.; Obeyesekere 1970OBEYESEKERE, G. (1970), “Religious Symbolism and Political Change in Ceylon”. Modern Ceylon Studies, n. 1: 43–63.). O movimento de revitalização budista se esforçou para descobrir no pensamento e na prática budista uma racionalidade que fosse equivalente, ou até mesmo superior, àqueles racionalismos ligados à dominação estrangeira. Esforços foram colocados para que as práticas budistas fossem purificadas, para que os elementos “irracionais” geralmente identificados como não sendo relevantes ao budismo fossem eliminados, uma vez que ele estava sendo redefinido na modernidade. Em outras palavras, o objetivo era reverter os processos de hibridação que ocorrem na raiz das práticas culturais do Sri Lanka, entre elas o Suniyama. Além disso, nas práticas em que o budismo era evidente, como no Suniyama, ele foi ainda mais intensificado.

O rito Suniyama foi influenciado por estes processos. Assim, as ideias e sentimentos explícitos do budismo que estão relacionados com o ritual atraíram, sem dúvida, uma classe com interesse nacionalista, e foram ainda mais elaborados conforme isto acontecia (os especialistas no ritual ainda permanecem sendo parte da classe contemporânea e dos processos étnicos).

Mas ressalto que o Suniyama já era sua possiblidade de modernidade antes mesmo de ser reconhecido como tal. Digo isso por conta dos processos que ficam de fora dos discursos contemporâneos de modernidade e suas racionalidades. Refiro-me especialmente ao movimento de desmistificação feito pela modernidade de despojar as práticas de suas dimensões místicas e ocultistas. Digo que isto já é uma característica do Suniyama, e é aquela alcançada através de sua origem híbrida, independente de influências modernistas. Como uma distinta prática desmistificadora, entretanto, ele possui certa congruência com aqueles conceitos de um racionalismo surgido de diferentes circunstâncias históricas e além daqueles que informaram a estruturação da dinâmica interna do Suniyama.

Assim, o ritual reconhece explicitamente a paralisia do corpo e da mente que a experiência, o medo e o reconhecimento da feitiçaria descrevem. Além disso, as fabricações do Suniyama (e os ritualistas mostram claramente a fabricação de seus trabalhos) são direcionadas a romper o domínio da feitiçaria como uma complexidade existencial diversificada, que as dinâmicas cosmológicas do rito abrem e incorporam. O Suniyama é, em muitos aspectos, um ritual “antirritual” que tem como propósito permitir que seus participantes ajam de maneira normal no mundo, livres de temores ritualísticos. Esta é uma das implicações mais importantes da destruição total das edificações do ritual, um processo em que o rito desmorona sobre si mesmo (veja uma discussão mais aprofundada em Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.). Estou ciente de que esta interpretação está sujeita a críticas que digam que ela já está enquadrada em termos racionalistas externos ao rito. Certamente existe um domínio de congruência ou conjunção, mas isto é uma consequência de uma dinâmica que é parte integrante essencial do rito e a sua razão de ser. Isto não empresta autoridade final a nenhuma visão racionalista que venha de fora (aquela que pode rejeitar as dinâmicas cosmologicamente informadas do rito), embora ela possa descobrir sua própria legitimidade dentro do rito. Sugiro que a modernidade contínua do Suniyama é fundada em uma dinâmica interna irredutível.

O ponto que cobrirei agora brevemente é o que fala que existem características relativamente duradouras do rito como algo realizado rotineiramente (incluindo o seu budismo) que são vitais para a modernidade do ritual, para que ele seja sempre algo já moderno. Digo mais, a força de processos externos sociais e políticos agindo sobre o rito para mudá-lo ou reinventá-lo não é tão importante (qualquer ação que ocorre repetidas vezes é uma reinvenção e manifesta uma mudança ou variação). Em vez disso, chamo atenção para a dinâmica interna relativamente “estável” do ritual, que, afirmo, é mais ou menos isolada dos efeitos de mudanças sociais e políticas e trocas que são o contexto mais amplo de qualquer performance. Isso não quer dizer que o que foi descrito por mim como o processo interno do Suniyama é um artefato cultural estático, mas sim que as mudanças que ocorrem são, em grande parte, determinadas dentro da dinâmica cosmologicamente particular que o ritual articula. As mudanças mais evidentes são as variações dentro do mesmo esquema cósmico abrangente que estabelece e orienta a estruturação dos acontecimentos do ritual. Esta ideia recebe impulso com a preocupação dos ritualistas de “repetir” o que eles definem como o rito original de Oddisa. Eles insistem que qualquer ritual Suniyama deve ser exatamente igual nos detalhes de sua prática em todas as realizações do rito. É isso que eles querem dizer com “ser uma repetição do rito original”; se ocorrer algum deslize em qualquer detalhe, ele não funcionará. Os ritualistas são enfáticos nesse ponto, de uma maneira que não é clara quando se trata de outros rituais. A forma exterior do rito pode ser alterada (mas até nisto existem muitas restrições), mas não as práticas e os eventos centrais de seus processos, dos quais transições e transformações chaves dependem. O poder do ritual apresentado por eles está na exatidão com que ele é repetido. Penso que este comprometimento, mesmo quando mudanças ocorrem, direciona os ritualistas a recriar continuamente um rito que, em seus aspectos-chave, não representam realidades externas e se afastam ativamente delas. Seu método de representação é direcionado para a realidade cósmica que articula seu processo e, de fato, habilita sua repetição.

O Suniyama não representa essencialmente as realidades sociais e políticas que são seu contexto mais amplo. De fato, esta não é a direção da organização do rito que, na verdade, está longe de tal direção. Ele abre seu próprio espaço no meio de realidades externas de uma maneira que não busca sua representação no sentido simbolicamente expressivo ainda dominante em grande parte da antropologia. Sugiro que seja através deste processo representativo extremamente não-externalista do rito que o Suniyama alcança seu potencial de superar a feitiçaria. Além disso, é através deste processo que o Suniyama continua a ter força na modernidade. Este, eu digo, tem sido sempre o caso, até mesmo para aqueles contextos históricos que podem ter visto a sua criação e cujas ordens simbólicas podem se revelar mais relevantes para o processo interno do rito.

Existe evidência escrita de performances de ritos como o Suniyama que datam do Sri Lanka pré-histórico (Nevill 1955NEVILL, H. (1955), Sinhala Verse. Vols. 1–2. Colombo: Ed. P. Deraniyagala.). Ele é um rito que partilha muitos elementos em comum com os ritos medievais anuais cingaleses de renovação de reinado e a ordem social cosmicamente ordenada (Seneviratne 1978SENEVIRATNE, H.L. (1978), Rituals of the Kandyan State. Cambridge: Cambridge University Press.). Mas em tais contextos, o Suniyama, se foi realizado em um passado distante, era similarmente não-representacional de realidades externas.

A forma representacional não-externa do Suniyama (que, para alguns modernistas, pode elevar seu valor como um rito “tradicional”) consiste precisamente no cerne de sua modernidade no presente e no passado. Esta é também a força por trás de sua reprodução como uma prática efetiva ao lidar com os problemas da modernidade. Esta forma não-representacional do rito (o que, afinal de contas, aparece imediatamente em sua superfície) deveria forçar a consideração da potência que é inerente à dinâmica interna do rito qua dynamic. Isto é, como eu já havia indicado, um discurso interno de representações e significações que gera significado e importância através da prática do rito. Tal significado e importância são relativos ao posicionamento dos participantes do rito e a experiências e memórias que eles trazem à ação e excitaram e estruturaram através da ação.

O que eu apresentei aqui foi descrito por mim (Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.) como aspectos de uma virtualidade do ritual10 10 Desenvolvi o conceito de “virtual” baseando-me, em grande parte, no uso adotado por Deleuze & Gattari (1994). O virtual, quando usado por mim, não é algo concebido como uma representação da realidade ou uma representação real de aspectos da realidade existencial comum, ou como a criação de uma realidade em que se tem a sensação de estar vivendo. Tudo isso carrega uma noção de modelo, da qual eu também quero distanciar o conceito de virtual. O que discuto é o fato de que o virtual é de forma completa a sua própria realidade, seu próprio mundo, cujas estruturas de significação são relativas apenas a ele mesmo (veja também em Kapferer 2000a, 2000b). . Isto não implica nem que o Suniyama é um modelo de ou para a realidade, como em uma interpretação de geertziana (1973GEERTZ, C. (1973), The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books.), nem que ele é um modelo abstrato da realidade (Handelman 1990HANDELMAN, D. (1990), Models and Mirrors. Cambridge: Berghahn Books.). Tais perspectivas sempre colocam a potência do rito em outros lugares. Eu destaco que o poder do Suniyama está na realidade que ele compõe através de sua prática cosmológica dentro do espaço de sua própria realização. Esta é uma realidade que ele produz e que gera seu próprio campo imagético. Utilizo o termo “imagético” para indicar que a factibilidade e a qualidade vivida deste campo são geradas pelas atividades internas do rito. Afirmo que elas podem nem exigir crença prévia ou ser concebidas como fantasias protetoras dos estados internos psicológicos, embora estes fatores certamente intensificariam a sua potência. De fato, como minha descrição já deixou claro, o Suniyama aparece com frequência para funcionar como uma espécie de tabula rasa, que tem por objetivo apagar a lousa, por assim dizer, e começar de novo. Este é, claro, um dos aspectos do argumento de compreensão do processo cosmológico interno do Suniyama e o simbolismo dominante de renascimento (inerente à mitologia budista do rito, mas que, de outra forma, poderia ser inventado).

O Suniyama pode atrair para dentro do espaço de seus processos fantasmagóricos imagéticos quase qualquer problema tido como feitiçaria na realidade do dia a dia. É isso que faz com que ele seja sempre relevante para as dificuldades identificadas nos contextos de trocas e mudanças da existência comum. Dentro da virtualidade do rito (que ao longo de sua realização não é menos real do que a realidade que está fora dele), as vítimas não só se tornam orientadas e centradas novamente (superando assim a marginalização da feitiçaria), como também se envolvem na prática constitutiva. As vítimas praticam ou realizam ações que são forças vitais na produção e transformações da realidade imagética criada por elas. Elas se envolvem repetidas vezes naquilo que Castoriadis (1997:311-30_____________. (1997), World in Fragments. Stanford: Stanford University Press., 1991CASTORIADIS, C. (1991), Philosophy, Politics, Autonomy. Oxford: Oxford University Press.) chama de “imaginário institutivo” ou constitutivo. É através do imaginário que a realidade, toda ela, é criada. Especialistas do ritual fazem isto ao continuar envolvendo a vítima em práticas constitutivas sacrificiais depois que o Suniyama é formalmente concluído e depois que toda a parafernália principal do ritual foi retirada.

O projeto do Suniyama não tem a intenção de mudar o mundo exterior ao rito, mas de reorientar as vítimas dentro dele, de modo que faça com que elas se tornem capazes de acompanhar este movimento muitas vezes caótico e incerto das realidades externas. O Suniyama acontece dentro de um mundo endemicamente incerto, no qual os seres humanos estão sempre em condição de certa vulnerabilidade. Isto, afirmo, é a circunstância de qualquer realidade humana em qualquer tempo. O argumento aqui não é o de que a incerteza e a vulnerabilidade são as razões de ser do rito Suniyama, seja no passado ou no presente. Se existe uma razão para tal ponto de vista, deve ser apenas uma observação trivial, tão verdadeira que se torna banal. O que foco aqui é a potência do rito para causar a reorientação dos participantes, que os torna aptos a conhecer as diversas contingências da existência. A base para o poder de ritos como o Suniyama, e o que eu considero a causa de sua modernidade duradoura, está nos próprios ritos, e não em algum caráter essencial de realidades externas, para as quais a sua performance é, contudo, significativa.

Continuidades de Transmutação

O Suniyama (e vários outros ritos relacionados a ele) é a principal referência do surgimento de um novo deus no Sri Lanka, conhecido como Suniyam, que vem sendo cada vez mais requisitado em templos e santuários dedicados a ele nos principais centros urbanos, especialmente Colombo. Sua criação está conectada, sem sombra de dúvida, com as forças da modernidade; ele é uma figura que representa “os descontentamentos com a modernidade” (Comaroff e Comaroff 1993COMAROFF, J.; COMAROFF, J. L. (1993), “Introduction”. In: J. Comaroff; J. L. Comaroff (eds.). Modernity and Its Malcontents: Ritual and Power in Postcolonial Africa. Chicago: University of Chicago Press.). Em certos aspectos, ele representa de forma simbólica algumas das principais problemáticas da modernidade. No entanto, ele não é uma invenção única da modernidade a ponto de sua análise dever ignorar seus antecedentes rituais, uma vez que muito de uma potência contemporânea é imanente neles. Na verdade, sua formação atual revela de maneira mais evidente aquilo que já estava presente dentro das estruturas de prática que rodeiam as forças da feitiçaria que ele representa, mas, talvez, precisasse da história recente para sua manifestação. O que quero dizer é que, para entender a potência do novo deus, deve-se levar em conta a forma como a modernidade é capaz de encontrar expressão por meio de determinadas características distintivas dos processos ligados a Suniyam em outros ritos, ritos estes ainda contemporâneos quando relacionados ao novo deus, mas que possuem uma linhagem mais profunda. Mais adiante, sugiro que a força particular do novo e consagrado deus Suniyam está na reedição da lógica da prática nos templos, evidente em ritos como o Suniyama. Noto aqui que isto não implica em qualquer translocação necessária da prática (embora isto seja provável). Em vez disso, o que se sugere é que práticas como o Suniyama podem expandir um entendimento da força da prática em templos direcionada para Suniyam, sua distinção relativa a outros seres e sua popularidade. Friso que a forma das práticas em templos para Suniyam, embora frequentemente inovadoras (Bastin 1996BASTIN, R. (1996), “The Regenerative Power of Kali Worship in Contemporary Sri Lanka”. Social Analysis, v. 40: 59-94.), são relativamente distintas de outras práticas realizadas para os deuses (com exceção de deuses como Kali ou Devol Devivo, outros dos principais seres de feitiçaria e de maldição). Como indicarei mais adiante, a forma das práticas nos santuários de Suniyam pode ser descrita como uma forma comprimida e reduzida, semelhante àquela elaborada em rituais como o Suniyama.

Começo com uma consideração de alguns dos processos subjacentes a esta construção, a concretização desta energia da ação humana como um deus. Esta discussão necessariamente curta (Kapferer 2001_____________. (2001), “Sorcery and the Shape of Globalization”.Journal of the Finnish Anthropological Society, v. 26, n. 1: 4-28., 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.) se encerra com aspectos das dinâmicas de práticas ao redor do deus Suniyam e seu desenvolvimento ou transmutação em padrões cosmológicos envolvidos na força imagética do rito Suniyama.

O deus urbano Suniyam é, assim como o rito que venho descrevendo, uma forma híbrida ou heterônoma, uma bricolagem surgida de uma diversidade de materiais culturais inclusas em práticas de vilarejos, bem como práticas ocorridas em instituições formais de culto do budismo, do hinduísmo e do cristianismo. Isto é incrivelmente facilitado pelo fato de que os criadores do Suniyam e padres não seguem tradições de rituais bem estabelecidas e baseadas no parentesco como aqueles que produzem o Suniyama. Embora todos sejam budistas cingaleses, eles vêm de todas as esferas da vida: professores, funcionários públicos, operários e as fileiras dos desempregados.

Ressalto que os santuários de Suniyam estão localizados nas cidades, os centros de comércio, os pontos de entrada e saída onde as forças da transformação econômica e política, ordenando e desordenando, irradiam através do Sri Lanka. Em Colombo, seus santuários mais potentes estão nas fronteiras políticas e econômicas do espaço urbano ou nas linhas sociais das demarcações dos bairros. Santuários poderosos localizam-se em áreas de misturas étnicas que são habitadas pelos pobres e são reconhecidas pela densidade de crimes violentos. Eles marcam os pontos de cruzamento e fusão social e cultural dentro das ordens inconstantes da cidade. Em certos aspectos, o Suniyam manifesta a velocidade da cidade, uma imagem das energias lábeis de suas formas de vida em sua circunstância transformativa e destino incerto, como os seres humanos que passam por diferentes contextos sociais, comprometem-se em atividades particulares e trocam suas identidades. Este deus urbano é a potência de radiação que consome e despedaça a vida dos seres humanos, suas relações e as bases de seu sustento, e também a dinâmica de sua reconstrução.

Concentro-me adiante em algumas das dimensões simbólicas mais específicas de processos contemporâneos que um ser como Suniyam está suscetível a envolver em sua forma. O deus Suniyam começa a aparecer como uma divindade consagrada independente no final do século XIX, na capital Colombo. É provável que imigrantes do sul da ilha tenham sido os principais responsáveis pelo seu desenvolvimento. O momento da aparição de Suniyam coincide com o auge do poder modernizador britânico sobre sua colônia. O aumento de sua popularidade até o presente está associado com o crescimento urbano e industrial, particularmente no período entre as guerras mundiais e especialmente logo depois delas. O fato da popularidade de Suniyam continuar em ascensão pode ser conectado com os processos de globalização atuais.

O Suniyam pode ser concebido como um ser no âmago do paradoxo do consumo, das divisões sociais que exacerba e do desejo, da cobiça e da inveja que provoca. Ele aumenta o que já está implícito nos ritos e o que já está projetado na ideia ritual da enorme e engolidora boca sacrificial de Oddisa – que pode ser considerada uma imagem radical do consumo. Tais noções permanecem na mitologia moderna dos santuários de Suniyam (Gombrich e Obeyesekere 1988GOMBRICH, R.; OBEYESEKERE, G. (1988), Buddhism Transformed: Religious Change in Sri Lanka. Princeton: Princeton University Press.), nos quais a imagem de Suniyam parece ser uma combinação da força ambivalente da feitiçaria com a força de Oddisa como o sacrificador supremo.

De acordo com a associação da feitiçaria com a ruptura, existe uma ligação entre a história atual de conflito étnico e o deus Suniyam. Este conflito foi originado no contexto das regras coloniais, mas suas chamas se espalharam sob as circunstâncias de pós-colonialidade. O templo de origem de Suniyam (estabelecido nos anos 1920), o lugar de origem ou Mulu Suniyam, está a uma distância de 20 quilômetros de Chilaw, que é a fronteira entre as etnias cingalesa e tâmil. Até mesmo em seu lugar de origem, Suniyam está dividindo, rompendo e segregando. Aqui existem dois santuários muito próximos, cada um buscando o direito de ser reconhecido como o “verdadeiro” lugar de origem.

Todas as dimensões acima associadas com a encarnação moderna de Suniyam podem ser amplamente descritas como se estivessem marcando implicitamente uma crise do Estado e de sua força de inclusão e exclusão sociais. Tal crise é evidente na ocupação colonial e na crise subsequente do Estado pós-colonial que se refletem no aprofundamento da questão de alinhamentos étnicos, de classes e de castas e pobreza crescente. A narrativa mestra do rito Suniyama, a história de Mahasammara, tem como foco central a crise do Estado, que também está presente em outros mitos conhecidos do nacionalismo cingalês moderno. O mito de Vijaya/Kuveni conta a história do fundador do antigo Estado cingalês, que teve a ajuda da feiticeira Kuveni (que massacrou seu próprio povo, os habitantes originais do lugar), de quem Vijaya então se separou, trazendo dor e sofrimento para seu povo. Esta história é importante no rito Suniyama e em outros exorcismos, bem como em templos onde maldições são proferidas com frequência (Kapferer 1988KAPFERER, B. (1988), Legends of People, Myths of State: Violence, Intolerance and Political Culture in Sri Lanka and Australia. Washington, D.C.: Berghahn Books.).

A imagem consagrada de Suniyam é a sua representação como um deus de sacrifício constitutivo que provoca e engaja a potência ordenadora e socialmente geradora do Estado. Amoral em si mesmo como o feiticeiro/sacrificador, o Suniyam é um instrumento das forças de inclusão e exclusão do Estado. Ele recria o Estado que protege e guarda aqueles que são trazidos a seus domínios. Saliento que a dinâmica sacrificial que o Suniyam incorpora e sua conexão radical com a reconstituição política, social e pessoal estão todas unidas em sua ação sacrificial.

A imagem do Suniyam é representada erguendo a espada do julgamento – em algumas interpretações chamada de espada do Estado (kaduva) – que constitui conforme vai cortando, dividindo e separando. No Sri Lanka contemporâneo, a palavrakaduva é utilizada para fazer referência à língua inglesa, o idioma da autoridade colonial e das classes hierárquicas colonialmente favorecidas, de novas barreiras criadas através de uma língua estrangeira que persiste na pós-colonialidade e tem, de fato, ressurgido sob as condições da globalização (Kandiah 1984KANDIAH, T. (1984), “Kaduva’: Power and the English Language Weapon in Sri Lanka”. In: P. Colin-Thorne; A. Halpe (eds.). Honouring E.F.C. Ludowyck: Felicitation Essays. Dehiwala: Tisara Prakasakayo.)11 11 Do fim dos anos 1950 até o fim dos anos 1970, existiu um grande esforço do governo do Sri Lanka em transformar o cingalês (swabasha) no meio linguístico dominante. A questão do idioma foi um fator muito importante no nacionalismo cingalês deste período e fazia parte dos esforços do governo para ganhar a aprovação popular. Mas a partir de 1977, com a chegada do Partido da Nação Unida ao poder, o inglês voltou a ganhar importância. Ele era o idioma das elites do Sri Lanka, e o movimento a favor do cingalês forneceu desvantagens a esta elite. De fato, ela viu que o movimento cingalês na educação estava afetando seriamente sua reprodução social e política. O inglês agora foi reafirmado mais do que nunca como o idioma das elites e demarcou com ainda mais clareza as barreiras e divisões de classe. . A espada, é claro, também é o instrumento sacrificial de Oddissa, com o qual ele regenera a ordem humana. Mas, em oposição, ela também é a arma de destruição de Vasavarti, usada por ele para destruir a totalidade imaginada da ordem do Estado de Mahasammata no rito Suniyama. Em sua mão esquerda, a imagem de Suniyam carrega um vaso quebrado (kabala) em chamas, símbolo intenso da destruição pela feitiçaria e do sofrimento nascido da exclusão – um símbolo de um útero partido da vida que é interrompida no meio de sua fruição. Ele está montado em um cavalo azul claro (às vezes branco), que representa a poderosa energia geradora de sakti.

As pessoas vão a santuários de feitiçaria por qualquer motivo possível: procurando proteção em momentos de perigo, quando a continuidade de suas vidas é interrompida ou naqueles momentos em que se sentem pessoalmente diminuídas; antes de uma operação cirúrgica; quando viajam para o exterior; para serem aprovadas em exames; para atacar um cônjuge que está querendo se separar; conseguir ajuda nos negócios; para acabar com o sucesso de outras pessoas e, talvez, para elevar-se socialmente; para exigir vingança por ataques a pessoas e familiares que envolvam assassinato; para dobrar a vontade de um político ou burocrata do governo; para conseguir um veredito favorável em um julgamento; impedir uma iminente detenção policial; ou até mesmo para punir o senhorio. A lista é infinita. Em 1989 e 1990, no auge da insurreição ativista da juventude cingalesa contra o governo do Sri Lanka (na qual, de acordo com estimativas do governo, aproximadamente 60.000 jovens perderam a vida e mais milhares acabaram presos), os santuários ficavam lotados de pais angustiados implorando a Suniyam para que ele interviesse em seu favor seja para matar os culpados pelas traições ou mortes de seus filhos, seja para que seus filhos fossem libertados da prisão.

Aqueles que suplicam a Suniyam dizem que suas vidas estão em risco, que, de algum modo, eles se sentem diminuídos, bloqueados em suas atividades em andamento, incapazes de seguir com suas relações sociais normais, e que estão em uma situação de disjunção ou ruptura. Eles dizem que foram postos para fora de seus mundos sociais por forças sociais e políticas. Isto está implícito, ao menos – e, mais frequentemente, está explícito – em seus angustiados apelos diante dos santuários (veja em Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press., capítulo 7). A localização dos santuários de Suniyam e a maneira com que os suplicantes são orientados dentro deles acabam enfatizando isto mais adiante. Os apelos e maldições diante da imagem de Suniyam e a violência de outras práticas ritualísticas que são centradas nele utilizam da destruição para que ocorra a geração. Através de ações violentas realizadas nos santuários, através da violência sacrificial de Suniyam, os suplicantes regeneram a eles mesmos. Eles preenchem lacunas e buracos em suas vidas, atravessam barreiras e limitações, e estendem suas relações sociais e influência até regiões onde não possuem nenhuma. Através do poder sacrificial de punição de Suniyam, eles conseguem mudar as vontades de burocratas ou funcionários do governo, cujo acesso seria social ou politicamente impossível, fazendo com que eles tomem decisões favoráveis aos suplicantes.

Em geral, então, o fato de Suniyam ter sido elevado a um grau de preeminência entre os vários seres cingaleses ligados pela feitiçaria (e a sua crescente importância no panteão cingalês) é associado com sua poderosa figuração como o sacrificador, especialmente por ele estar ligado às forças ambivalentes do Estado. Tal ambivalência nasceu da crise do Estado e da força de destruição liberada por ela.

Enquanto os santuários urbanos são nada menos do que formações originais da modernidade, eles prolongam e metamorfoseiam processos presentes em ritos como o Suniyama. As ações realizadas nos santuários são condensações destas ações aparentes nos ritos. Locais não menos fantasmagóricos que os do rito, os santuários abrem espaço no meio da existência social, capacitando as pessoas a se reorientarem radicalmente de volta ao mundo e a recuperarem a compostura.

A violência nos santuários se diferencia do senso de não-violência e de equilíbrio estético que permeia ritos como o Suniyama, que contribuem tanto em modernidade para o seu apelo quanto, talvez, a violência o faça nos santuários. Mas eles podem ser vistos, em suas diferenças, para expandir dimensões que, de outro modo, seriam suprimidas no Suniyama, por exemplo, e vice-versa. Assim, apesar de toda a filosofia budista de não-violência que é expressa no Suniyama, seu processo repousa na lógica do sacrifício reconstitutivo que possui efeito destruidor, um paradoxo do rito. Isto é manifestado tanto na violência de Vasavarti quanto, como acontece muito, na destruição de um boneco de palha que representa o feiticeiro humano agente do sofrimento. Pode parecer que a presença do Buda em lugares tão violentos como os santuários de feitiçaria fere os valores do budismo, especialmente quando clientes em suas maldições destrutivas expressam o desejo de que o Suniyama seja o futuro Buda (Gombrich e Obeyesekere 1998; Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.). Mas eu sugiro que isto seja um prosseguimento do aspecto do poder do Buda no rito. A orientação em direção ao Buda assegura a direção positiva da força do Suniyam e controla as suas possibilidades negativas. Tanto no rito quanto no santuário, o Buda tem a função de decidir a direção da força. Santuário e rito carregam traços um do outro, talvez se baseando um no outro, mas, principalmente, revelando seus paradoxos. Isto realça o fato de que as lógicas de suas dinâmicas têm muito em comum, embora eles sejam uma fonte de seus diferentes, e até contraditórios, apelos.

A falha no Estado

Existe uma observação que direcionará esta discussão para uma conclusão. Dentro do rito Suniyama há uma crítica implícita ao Estado, embora seja um Estado imaginário. O apelo à feitiçaria e ao sacrificador serve para corrigir um defeito no Estado. Este defeito surge do esforço de Mahasammata de totalizar seu poder, para ultrapassar o limite e abranger tudo em seus domínios. Fazendo isso, ele quebra a sua unidade sólida com Manikpala. Isto também é uma característica do tratamento dado à feiticeira Kuveni pelo herói cingalês Vijaya, considerado por muitos o fundador do Estado real, empírico do Sri Lanka (Kapferer 1997_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press., 1988KAPFERER, B. (1988), Legends of People, Myths of State: Violence, Intolerance and Political Culture in Sri Lanka and Australia. Washington, D.C.: Berghahn Books.). O resultado é que Manikpala é efetivamente arremessada para as margens, onde ela assume uma identidade associada ao feiticeiro destrutivo, uma criatura do lado de fora. No rito, a vítima começa o progresso no ritual paralelamente a uma estrutura que é a manifestação de toda força cósmica destrutiva. Ela própria é um ser abjeto de poluição, e incorpora a força que a extinguirá e ameaçará os demais. Esta é uma potência que a incita a se colocar em movimento, o que termina com ela sendo recolocada no centro do estado e a ordem social que ela reinstitui como o imaginário do rito. Figurativamente, Manikpala, a vítima universal com a qual o “enfeitiçado” se identifica, forma o Estado novamente, reestabelecendo sua condicionalidade dentro da ordem moral dos ensinamentos de Buda. Ao longo do progresso da vítima, forças destrutivas que se fundiram ao seu corpo são removidas, para que permaneçam sendo os restos fragmentados e fragmentadores que elas são, enquanto a vítima recupera o controle do corpo e da mente.

Algo como o descrito acima é recriado nos santuários, embora aconteça mais de maneira inconsciente do que consciente, onde vira uma expressão mais completa do corpo e onde motivações individuais, suprimidas e silenciadas no Suniyama, por exemplo, podem ter mais voz aberta. Nos santuários, as vítimas aproximam-se de Suniyam em uma condição de fúria desgrenhada e envolvem matéria apodrecida e em decomposição em seus trabalhos. Sua raiva e sua imundície, sua condição de feitiçaria, são forças de destruição, mas também de regeneração. Os santuários são sujos por tais elementos que são, com efeito, os restos da feitiçaria das quais as vítimas foram libertadas. Entretanto, no meio de toda a destruição e fúria dos santuários, existe um senso moralizante. Pode-se dizer que as vítimas que se envolvem mimeticamente em atos de sacrifício perante o deus Suniyam também se envolvem em ações para corrigir o Estado, como está implícito na cura de Manikpala realizada por Oddisa. Como tal, elas também geram a condicionalidade de tal correção, a potência abrangente do Buda e sua panóplia de divindades de apoio.

Sugiro que o defeito do Estado é expresso na abjeção de muitas das vítimas, em seu próprio senso de marginalização e sofrimento em face da força de ruptura dos poderes que as excluem ou as colocam em risco. Os próprios santuários parecem estar no processo. Em constante construção, são acrescidos a eles cada vez mais deuses do panteão cingalês e mais imagens magníficas do Buda.

O entorno progressivo dos santuários de Suniyam com uma quantidade crescente de imagens cada vez mais magníficas do Buda, e também com imagens das principais divindades que apoiavam os seus ensinamentos, está aberto a várias interpretações. Elas variam do materialístico, que indica a crescente riqueza dos santuários de Suniyam, à ideia de que o processo é o de fazer de Suniyam um deus budista central. Tal processo é visto por alguns como um desrespeito aos ensinamentos do Buda e como indicativo do declínio secularizado do budismo nas circunstâncias da modernidade (Gombrich e Obeyesekere 1988GOMBRICH, R.; OBEYESEKERE, G. (1988), Buddhism Transformed: Religious Change in Sri Lanka. Princeton: Princeton University Press.). No entanto, os suplicantes perante Suniyam geralmente o veem como sendo extraordinariamente perigoso e reconhecem que as suas práticas em torno dele são, muitas vezes, vis, repugnantes e, de fato, inapropriadas para os ideais do budismo. Muitas das potências do Suniyam continuam a ser valorizadas, em parte por causa de sua capacidade de ameaçar e até de profanar os deuses. Em um grande santuário em Colombo, o Buda e as divindades colocadas ao seu lado estão protegidas por redomas de vidro. O novo deus Suniyam, em minha interpretação, é muito mais consistente com Odissa e o Suniyam do rito Suniyama; ele cresceu para além deles, mas ao longo da mesma trajetória. Nos santuários, ele tem a sua amoralidade e a sua potência sacrificial expandidas. É isto que ressalta, por um lado, a riqueza em expansão dos santuários e, por outro lado, a vinda à tona dos poderes do Buda e das divindades que, através da intervenção de Suniyam, geram a condição definitiva para a correção da falha do Estado12 12 Gombrich & Obeyesekere (1988) rotulam claramente Suniyam como uma criatura da modernidade. Mais precisamente, eles o veem como um produto das desorganizações da vida moderna, e como expressão da sua violência e declínio moral (veja também Obeyesekere 1975). Neste contexto, eles concebem o apelo ao Buda, à luz dos sacrifícios violentos a Suniyam, como sendo um desenvolvimento moderno associado à comum desvalorização contemporânea dos ensinamentos do Buda. No entanto, olhar para tais práticas no contexto do rito Suniyama, que rejeita tais associações com sendo consistentes com os valores morais do budismo, promove uma modificação da visão expressa por Gombrich e Obseyesekere. Acrescento, ainda, que a abordagem feita por eles, de uma sociologia que universaliza a disfunção, é equilibrada em outro texto por Obeyesekere (1984:64-70) em uma espécie de histórico cultural. O Suniyama não é nada mais que uma manifestação particular de um ciclo histórico, guiado pela cultura budista cingalesa. É esperado que a apoteose de Suniyam e sua grande popularidade sigam a mesma ascensão e queda de muitos outros deuses da história do Sri Lanka, como Ozymandias, cujos restos bagunçam o terreno do Sri Lanka. É previsto que Suniyam também caia por conta do progresso de um ancinho divino similar. Este historicismo cultural reconhece um pragmatismo fundamental como a chave de Obeyesekere para entender como a história costuma repetir a si mesma. Suniyam, como Obeyesekere explica, assim como outros antigos deuses poderosos também muito ligados à feitiçaria, é intensamente pragmático. Este pragmatismo no contexto cultural do budismo cingalês é uma pista da sua queda iminente. Assim, quanto mais boas-ações o Suniyama fizer, mais méritos budistas (pin) ele irá adquirir, méritos estes que, assim como com outros deuses do passado, farão com que ele suba na hierarquia divina, tornando-o mais e mais um objeto remoto de piedade reduzido a valores práticos mundanos, forçando o declínio de sua popularidade. Em outras palavras, Suniyama é sujeito de uma espécie de lei do rendimento decrescente, uma economia universal de racionalidade tratada como o motor de um efeito cultural geral. O argumento, é claro, não é suficiente para permitir as várias formações históricas diferentes que surgiram no curso da longa história do Sri Lanka, e as estruturações culturais bem distintas de potência e economia que têm surgido e cruzado entre si no decorrer desta história. A extraordinária profusão de deuses e outros tipos de seres, muitos dos quais, de fato, caíram em desuso, é uma consequência da diferenciação e dos processos disjuntivos da cultura e da história. Suniyam é um ser de uma conjuntura peculiar e é, também, de uma forma específica e uma dinâmica interna que não permite uma fácil categorização com outros deuses do panteão cingalês, como mostrarei adiante. De fato, uma atenção à natureza de sua constituição e dinâmica específicas podem inverter a hipótese de Obeyesekere. Assim, em vez de diminuir em apelo ou até mesmo em potência, o Suniyam pode acabar tendo seu poder expandido quanto mais ele for utilizado. .

Nesta correção, em que o surgimento do Buda e de suas divindades de apoio deve ser implicado, está a capacidade de Suniyam (tanto nos santuários quanto em outros ritos importantes como o Suniyama) de resolver os problemas que os suplicantes trazem para ele. Por trás destes problemas está a falha do Estado, e é este defeito que Suniyam corrige. Este defeito está no centro do desespero da vítima de feitiçaria, o qual, assim como Vasavarti invadindo a morada de Manikpala, está no coração deste mundo sociopolítico do qual a existência e, finalmente, a humanidade das vítimas dependem.

Um lembrete para concluir

Explorei alguns aspectos da modernidade da feitiçaria no Sri Lanka. Dentro do contexto mais amplo de discussão acadêmica do fenômeno, existia uma tendência a dedicar atenção às cosmologias incorporadas a sua prática, a qual pode ser consciente ou inconscientemente reproduzida, e que direciona seu apelo e sua força. A preocupação com estas cosmologias indica que a feitiçaria não é meramente feitiçaria, e é conduzida no coração da condição humana. Foquei na questão do poder das representações, particularmente na força imagética das representações e suas potências como não sendo essencial ou necessariamente um reflexo direto das realidades existenciais que as cercam. O principal argumento subjacente à discussão é o de que a feitiçaria, ou o que antropólogos conceituam como sendo feitiçaria, é sempre algo já moderno. Ela é exterior, e até transcendente, às categorias de uma antropologia que faz distinções entre tradição e modernidade. Paradoxalmente, esta distinção está implícita no trabalho de antropólogos comprometidos a demonstrar a originalidade profunda da feitiçaria em condições pós-modernas e pós-coloniais. Esta implicação mantém um efeito como o da feitiçaria ou o de sua dinâmica sacrificial, que recria os próprios termos do discurso que, de outro modo, recusa. Meu objetivo aqui tem sido o de me afastar da dicotomia tradicional-moderno que ainda se esconde por trás de discussões antropológicas e que pode prejudicar um entendimento mais completo dos fenômenos a que ela se refere.

A feitiçaria destrói o significado e se ergue perante ele. Em seu aspecto mais positivo, ela traz os seres humanos para aquela margem na qual eles podem gerar sentido novamente e estabelecer uma continuidade com as direções em curso e inconstantes dos processos sociais. E aqui se apresenta um dilema para uma antropologia que ainda é legitimamente obcecada com o sentido e com as dinâmicas de sua produção social: forçar a feitiçaria a se encaixar em uma estrutura de sentido pode, paradoxalmente, destruí-la e violentá-la enquanto um fenômeno. É na ausência de sentido que a feitiçaria permanece sendo um veículo poderoso para a agonia humana, pois sua força reside no sempre criativo e inventivo processo de estar em direção ao sentido. Esta pode ser uma dimensão por trás das enormes cosmologias abrangentes que estão implícitas nas ações da feitiçaria ou para as quais elas podem dar origem.

Tradução: Maiara Rosa Viégas e Felipe de Andrade Cortês.

Revisão da tradução: Elizamari Rodrigues e Ruy Blanes.

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Notas

  • 1
    Artigo originalmente publicado em Social Analysis, v. 46, n. 3 (2002).
  • 2
    Citado em Sahlins (1976:113SAHLINS, M. (1976), Culture and Practical Reason. Chicago: University of Chicago Press.).
  • 3
    A pesquisa na qual este artigo foi baseado recebeu ajuda para sua realização através de verba da H.F. Guggenheim Foundation e da Lauritz Meltzer Foundation.
  • 4
    Em cingalês, as letras “s” e “h” podem ser transpostas, com “s” indicando uma forma mais elevada, mais honorífica. Neste contexto, o título do rito, sem dúvida o mais magnífico do repertório dos especialistas de rituais que o realizam, descreve seu objetivo: o de reverter a malevolência destrutiva de ataques por feitiçaria.
  • 5
    Os exorcistas (adura) que realizam o Suniyama dizem que existe uma etapa para cada um dos 16 anos em que Manikpala passou casada. O número 16 é simbólico do processo em que ela atingiu uma maturidade consciente. Estas etapas são conhecidas como um único conjunto, as solos tinduva. Umatinduva é um ato de término, de corte. Ela também é entendida como um ato de julgamento.
  • 6
    O movimento da vítima através dos chakras é também um cruzamento e uma personificação das vogais da fala. Os eventos cômicos se seguem a partir disso. A comédia manifesta o poder da fala como sendo o poder da consciência. Na comédia, a consciência da fala é feita de maneira constitutiva; além disso, ao longo da encenação da comédia, a consciência é transformada em um objeto de si mesma. Este é o prazer dado às vítimas e ao público pela comédia (Kapferer 1997:158-67_____________. (1997), The Feast of the Sorcerer. Chicago: University of Chicago Press.).
  • 7
    De acordo com as influências tântricas claras do rito (importantes nas formações históricas do budismo cingalês), a flor de lótus ou os pontos dechakra são os plexos vitais presentes ao longo da passagem espinhal (susumma) do corpo humano, os pontos de sentidos críticos para a renovação. Eles também são revelados (em canções que os acompanham) como os primeiros sete passos do Buda, do Príncipe Sidarta. Também a víbora se transforma na sombra protetora de Muchalinda, cuja naja protege o Buda e, para os exorcistas realizadores do rito, é uma forma de Maha Kela Nada, a grande cobra do tempo. Hatadiya é uma reconfiguração vital do tempo e do espaço destruídos pelo ataque de feitiçaria.
  • 8
    Uma comparação útil pode ser feita entre este e outros eventos do rito Suniyama e a discussão fascinante de Davis (1991DAVIS, R.H. (1991), Ritual in an Oscillating Universe. Princeton: Princeton University Press.) sobre o ritual medieval indiano de saiva.
  • 9
    No passado, a estrutura do palácio (como, por exemplo, o número de pináculos) tinha relação com a casta e o status da vítima e sua família. Era importante que o rito apropriado fosse realizado para o status apropriado. Realizar um rito inadequado negava a eficácia do ritual e intensificava a força da feitiçaria. Até hoje circulam histórias no sul do Sri Lanka de famílias que ainda sofrem com os danos causados por um Suniyama realizado de forma inadequada.
  • 10
    Desenvolvi o conceito de “virtual” baseando-me, em grande parte, no uso adotado por Deleuze & Gattari (1994DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1994), What is Philosophy? London: Columbia University Press.). O virtual, quando usado por mim, não é algo concebido como uma representação da realidade ou uma representação real de aspectos da realidade existencial comum, ou como a criação de uma realidade em que se tem a sensação de estar vivendo. Tudo isso carrega uma noção de modelo, da qual eu também quero distanciar o conceito de virtual. O que discuto é o fato de que o virtual é de forma completa a sua própria realidade, seu próprio mundo, cujas estruturas de significação são relativas apenas a ele mesmo (veja também em Kapferer 2000a_____________. (2000a), “Sexuality and the Art of Seduction in Sinhalese Exorcism”. Ethnos, v. 65, n. 1: 5-32., 2000b_____________. (2000b). “The Sorcery of Consciousness: Sinhala Buddhist Ritual Discourse on the Dynamics of Consciousness”.Communication and Cognition, v. 33, n. 1/2: 97-120.).
  • 11
    Do fim dos anos 1950 até o fim dos anos 1970, existiu um grande esforço do governo do Sri Lanka em transformar o cingalês (swabasha) no meio linguístico dominante. A questão do idioma foi um fator muito importante no nacionalismo cingalês deste período e fazia parte dos esforços do governo para ganhar a aprovação popular. Mas a partir de 1977, com a chegada do Partido da Nação Unida ao poder, o inglês voltou a ganhar importância. Ele era o idioma das elites do Sri Lanka, e o movimento a favor do cingalês forneceu desvantagens a esta elite. De fato, ela viu que o movimento cingalês na educação estava afetando seriamente sua reprodução social e política. O inglês agora foi reafirmado mais do que nunca como o idioma das elites e demarcou com ainda mais clareza as barreiras e divisões de classe.
  • 12
    Gombrich & Obeyesekere (1988GOMBRICH, R.; OBEYESEKERE, G. (1988), Buddhism Transformed: Religious Change in Sri Lanka. Princeton: Princeton University Press.) rotulam claramente Suniyam como uma criatura da modernidade. Mais precisamente, eles o veem como um produto das desorganizações da vida moderna, e como expressão da sua violência e declínio moral (veja também Obeyesekere 1975_____________. (1975), “Sorcery, Premeditated Murder, and the Canalization of Aggression in Sri Lanka”. Ethnology, 14, no. 1: 1–23.). Neste contexto, eles concebem o apelo ao Buda, à luz dos sacrifícios violentos a Suniyam, como sendo um desenvolvimento moderno associado à comum desvalorização contemporânea dos ensinamentos do Buda. No entanto, olhar para tais práticas no contexto do rito Suniyama, que rejeita tais associações com sendo consistentes com os valores morais do budismo, promove uma modificação da visão expressa por Gombrich e Obseyesekere. Acrescento, ainda, que a abordagem feita por eles, de uma sociologia que universaliza a disfunção, é equilibrada em outro texto por Obeyesekere (1984:64-70_____________. (1984), The Cult of the Goddess Pattini. Chicago: University of Chicago Press.) em uma espécie de histórico cultural. O Suniyama não é nada mais que uma manifestação particular de um ciclo histórico, guiado pela cultura budista cingalesa. É esperado que a apoteose de Suniyam e sua grande popularidade sigam a mesma ascensão e queda de muitos outros deuses da história do Sri Lanka, como Ozymandias, cujos restos bagunçam o terreno do Sri Lanka. É previsto que Suniyam também caia por conta do progresso de um ancinho divino similar. Este historicismo cultural reconhece um pragmatismo fundamental como a chave de Obeyesekere para entender como a história costuma repetir a si mesma. Suniyam, como Obeyesekere explica, assim como outros antigos deuses poderosos também muito ligados à feitiçaria, é intensamente pragmático. Este pragmatismo no contexto cultural do budismo cingalês é uma pista da sua queda iminente. Assim, quanto mais boas-ações o Suniyama fizer, mais méritos budistas (pin) ele irá adquirir, méritos estes que, assim como com outros deuses do passado, farão com que ele suba na hierarquia divina, tornando-o mais e mais um objeto remoto de piedade reduzido a valores práticos mundanos, forçando o declínio de sua popularidade. Em outras palavras, Suniyama é sujeito de uma espécie de lei do rendimento decrescente, uma economia universal de racionalidade tratada como o motor de um efeito cultural geral. O argumento, é claro, não é suficiente para permitir as várias formações históricas diferentes que surgiram no curso da longa história do Sri Lanka, e as estruturações culturais bem distintas de potência e economia que têm surgido e cruzado entre si no decorrer desta história. A extraordinária profusão de deuses e outros tipos de seres, muitos dos quais, de fato, caíram em desuso, é uma consequência da diferenciação e dos processos disjuntivos da cultura e da história. Suniyam é um ser de uma conjuntura peculiar e é, também, de uma forma específica e uma dinâmica interna que não permite uma fácil categorização com outros deuses do panteão cingalês, como mostrarei adiante. De fato, uma atenção à natureza de sua constituição e dinâmica específicas podem inverter a hipótese de Obeyesekere. Assim, em vez de diminuir em apelo ou até mesmo em potência, o Suniyam pode acabar tendo seu poder expandido quanto mais ele for utilizado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2015
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