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Lugares e objetos de memória no batuque gaúcho

Places and objects of memory in the Batuque, an afro-brazilian religion

Resumo

O artigo aborda a mediação de objetos e lugares para o aprendizado da hierarquia religiosa e como fonte de registro de memória na tradição oral do batuque gaúcho. Apresento relato etnográfico sobre os antepassados na Nação Oyó, demonstrando como a geografia porto-alegrense faz memorá-los e saudá-los em seu sentido mais genérico, como orixás e escravos da África. Em sentido específico, são os objetos, sagrados ou não, que remetem aos parentes de santo mais “antigos”, vivos ou mortos. Os ensinamentos transmitidos por pais de santo a seus filhos são mediados por passeios em pontos específicos da cidade e pela utilização desses objetos, fazendo com que a memória conecte corpo e mente e também objetos e lugares.

Palavras-chave
religiões afro-brasileiras; objetos; lugares; memória

Abstract

The article discusses the mediation of objects and places for learning the religious hierarchy as well as they act as memory source in the oral tradition of the batuque gaucho. I present an ethnographic account on ancestors of the Nation Oyo, demonstrating how geography of Porto Alegre city makes one remember and hail them in its most generic sense, as deities and slaves from Africa. In a specific sense, they are objects, sacred or not, referring to older saint’s relatives – dead or alive. The teachings transmitted by priests to their ritual sons and daughters are mediated by tours at specific places of the city and the use of these objects. Therefore, memory connects body and mind, and objects and places, too.

Keywords
afro-brazilian religions; objects; places; memory

Introdução

Com base nos relatos etnográficos analisados em minha pesquisa de mestrado (Machado 2013aMACHADO, Cauê F. (2013a), Desfazer laços e obrigações: sobre a morte e a transformação das relações no batuque de Oyó/RS. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, PPGAS/MN/UFRJ.), busco apresentar reflexão sobre objetos ou coisas1 1 Entendo objeto principalmente na acepção de Silveira e Lima Filho (2005), para os quais “há uma simbólica do objeto cuja dinâmica está relacionada a uma ecologia específica, envolvendo um universo mental implicado em certos mapeamentos, atribuições de sentidos mais ou menos subjetivos e fluxos de imagens, que ‘situam’ a coisa em si pelo que significa para os sujeitos, desde o seu estar-no-mundo em relação à própria presença aurática do objeto enquanto ícone, ou mesmo como expressão e desejo de estabelecer vias de comunicação relacionadas a determinadas experiências culturais” (Silveira e Lima Filho 2005:38). Já coisa, expressão sinônima, se interpretada à luz de Ingold (2012) pode ser diferenciada pela ideia de vida que traz consigo, diferente do objeto que seria estático. Para o autor, as coisas são trazidas à vida por meio de imersão em circulações diversas; a coisa é um processo. Objeto e coisa, aqui, são pensados como os processos e acontecimentos em que estão envolvidos e descrevem, referindo-se ao que comumente chamamos de “material”. e lugares ou espaços-tempos no batuque gaúcho, religião afro-brasileira de culto aos orixás. Voltando o olhar para aquilo que objetos e lugares desempenham na religião e seguindo suas trajetórias, vislumbramos um mundo no qual essas materialidades fazem falar – para utilizar expressão de Bruno Latour (2002)LATOUR, Bruno. (2002), Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru/SP: EDUSC. 2 2 Para Latour, “o fetiche é um fazer falar” (2002:17). – e sentir. Participam, portanto, de experiências de aprendizado e comunicação mediadas pela matéria que se torna mágica, porque atua. A própria história pode ser tomada como objeto material, transmissível através de sua circulação. Entretanto, seguindo as pistas de Rabelo (2011)RABELO, Miriam C. (2011), “Estudar a religião a partir do corpo: algumas questões teórico-metodológicas”. Caderno CRH, v. 24, nº 61: 15-28., o interessante é voltarmos o olhar para o engajamento mútuo entre objetos, corpos e lugares, não caindo em análises que tomam o material como representação do ritual ou do simbólico, nem a mente (intelecto) como separada de sua expressão encarnada (embodied), de seu corpo. Assim, seguindo os relatos com ênfase na descrição de coisas e lugares, buscarei apresentar uma teoria nativa sobre tempo-espaço e sobre memória, envolvida nos passeios por Porto Alegre e nos objetos manipulados por religiosos para contar histórias que falam sobre hierarquia e posição na genealogia do santo. Nesta, não apenas corpo e mente estão imbricados, mas também objetos e lugares.

Não pretendo, contudo, realizar discussão sobre teoria de memória; os objetos e lugares é que serão discutidos. Porém, é interessante notar o caráter “inventivo/criativo” da memória, tal como formulado por Mello (2012)MELLO, Marcelo Moura. (2012), Reminiscências dos Quilombos: território da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome., no qual a Comunidade Quilombola de Cambará/RS, fora do tempo cronológico da escravidão, vive na atualidade o tempo da memória dessa experiência. De modo semelhante a memória ou as lembranças serão tratadas aqui, como acontecimentos presentes. Passo agora à etnografia.

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De acordo com Pai Odacir do Ogum, o lado3 3 Para uma discussão detalhada sobre a noção de “lado” no batuque, ver Barbosa Neto (2012). (ou Nação) de Oyó é uma das mais antigas e, ao mesmo tempo, menores nações do Batuque. Ele conta que o pequeno número de casas se deve ao fato de terem mantido a tradição de não frequentar batuques dos outros lados – à exceção dos de amigos, mas em companhia de pessoas mais antigas no santo, “prontas” há mais tempo, algo equivalente à feitura no Candomblé baiano. Pais e mães de santo proíbem seus filhos de participarem de festas ou outros rituais em qualquer casa que não seja da família. Já as festas dos parentes de santo são “obrigatórias”, sobretudo quando nas casas dos titios e titias mais antigos – o coletivo de seniores da nação. São essas figuras que asseguram a tão primada pureza que evocam constantemente: “somos de Oyó puro”; “são os titios [os mais antigos] que fazem com que a coisa não se perca”. Contida na ideia de “obrigatório” está a noção de “obrigação”, conceito nativo que engloba tanto o que traduzimos por objetos rituais, quanto por algumas ações e pelos próprios orixás em seus assentamentos. “Obrigação” designa o fazer, o cuidar, mas também as ferramentas e armas dos orixás e, principalmente, os ocutás, pedras-assentamentos. Trata, ainda, de momentos, como os cortes (sacrifícios), festas e outros eventos. É o que traduzimos por material e por imaterial, unidos sob um único conceito – “obrigação” –, que não confunde ingenuamente o que tendemos a dividir, mas coloca numa mesma movimentação diferentes séries de acontecimentos4 4 Acontecimentos podem ser entendidos “como outro nome para fe(i)tiche”, a “coisa” que sempre supera aquele que a faz (Latour 2002:103). Esta é a aproximação que faço entre “obrigação” e o “fe(i)tiche” de Bruno Latour: acontecimentos que conquistam sua autonomia logo após serem fabricados, não divorciando a ação do homem sobre o objeto e vice-versa, nem mesmo dividindo o material do imaterial, como já aludido. .

Na casa5 5 Bastide (1959) constata fraqueza econômica no batuque de Porto Alegre, principalmente pelo fato de o espaço destinado ao culto aos orixás (as casas) ser de pequeno porte, não havendo casas separadas na rua para Omulu, Ossang e Oxossi (Bastide 1959:241), salvo Bará. Aqui não podemos saber se, de fato, é a pobreza ou outras maneiras de cultuar que estão em jogo. No mesmo texto, por exemplo, o autor espanta-se com o número de casas e cabeças consagradas a Bará, o que demonstra a importância que esse orixá tem para o batuque gaúcho, não como mensageiro ou escravo de outros orixás, mas como dono de casas e cabeças, como dizem: “cabeça grande”. “Em todas as casas visitadas, o pegi [quarto de santo] é contíguo à sala de festas e, curiosamente, a porta que lhe dá acesso é aberta no curso das cerimônias, de modo que a participação do divino e do humano possa fazer-se facilmente” (Bastide 1959:242-3). As casas que conheci apresentam características semelhantes, sendo possível, contudo, fechar o quarto de santo com uma cortina ou porta de tela. Importa a ideia para a qual o autor chama atenção, a respeito da facilidade com que o princípio de participação entre os filhos terrenos e seus orixás se dá, como é o caso de ir diretamente ao quarto de santo bater cabeça quando se chega a uma casa religiosa, para somente então poder cumprimentar outras pessoas ou orixás. de Pai Odacir podemos notar a importância dos antigos logo ao entrar, nos deparando com um salão à esquerda, um corredor à frente e a sala de búzios6 6 Na casa de Odacir, trata-se de uma pequena sala com uma estante, armários aéreos, prateleiras com imagens e uma mesa com duas cadeiras em lados opostos, na qual, sobre uma toalha especial, estão dispostas as guias (colares de conta) do babalaô, formando um círculo, dentro do qual estão os búzios, moedas e uma pedra negra consagrada a Bará, além da sineta (adejá) para a chamada dos orixás. do lado direito. É no salão que as festas ocorrem. Nele e no corredor, em prateleiras no alto das paredes, orixás em imagens “católicas” e suas ferramentas estão por todos os cantos, exceto Iemanjá, que fica na parede esquerda do salão, Xangô, localizado em uma parede em frente à porta de entrada, e Obá, que fica na parede do corredor.

Seguindo-se pelo salão, logo após um arco – no qual cortinas com as cores do orixá no momento homenageado são colocadas –, encontramos o quarto de santo, parte mais importante de uma casa de religião. É o local onde moram todos os orixás da casa – com exceção de Lôde (Bará de Rua), que é assentado em uma casinha separada, geralmente vermelha, no quintal em frente à casa principal. Depois do arco, na parede esquerda, do alto até aproximadamente 1 metro do chão, estão dispostas em fotografias emolduradas, por ordem de tempo e importância no santo, babalaus (pais) e babalaoas (mães de santo, conforme terminologia nativa).

No topo, a foto de Mãe Emília, em retrato preto e branco esmaecido pelo tempo. Abaixo, Tio Paulinho do Aganjú, Mãe Bidú e Pai Januário, Mãe Neuza do Bará Lanã e Tia Erondina da Iemanjá, em quatro molduras diferentes. Abaixo, Tia Neneca do Xangô e uma fotografia com Odacir e Odilon do Ogum (todos parentes de santo importantes). Essa é uma fotografia de apronte que segue um padrão: pai/mãe de santo ou padrinho/madrinha de santo em pé com os filhos ou afilhados de joelhos em primeiro plano. Na parte inferior, fotografias emolduradas com os primeiros filhos que Odacir aprontou. No salão, sobre uma estante, porta-retratos com filhos de santo de Odacir, fotos com Tia Neneca (tia de santo de Odacir e babalaoa viva mais antiga da nação) e uma de sua avó de sangue (consanguínea viva mais velha).

As fotos raramente são comentadas, sem haver alguma explicação sobre quem são as pessoas nelas ou o porquê de estarem ali. Importante mencionar que as fotos são sempre de pessoas, nunca de orixás. Estes não podem ser fotografados, pois constituem segredo máximo do batuque. Dizem que, se souber de tal fato, aquele que se ocupa de seu orixá pode enlouquecer, diferentemente do rodante do candomblé que cedo já sabe e se prepara para receber seu orixá, “virar no santo”. Para um novo afiliado tudo é mais difícil, pois pode não conhecer as pessoas, seus nomes e hierarquia no santo, nem mesmo saber que Mãe Emília da Oyá Ladjá é a matriarca da nação. Sua participação intensa no cotidiano da casa é que proverá o contexto para esse aprendizado. Vez ou outra o pai de santo conta para alguém quem são as pessoas nas fotos, e os outros filhos apressam-se para escutar e observar, aprendendo um pouco, pois não devem largar por muito tempo seus afazeres na casa. Irmãos de santo mais antigos falam com maior frequência sobre as pessoas das fotografias para os irmãos mais novos. Explicam por que Mãe Emília está no topo, que ali se encontra uma ordem hierárquica de pessoas e orixás e, ao mesmo tempo, como se forma a genealogia no santo. As fotos são como um diagrama de parentesco, representado fotograficamente e carregado de axé, pois elas trazem a presença daquele que foi fotografado, carregando axé e proporcionando aprendizado fundamental para traçar a genealogia no santo de cada um e saber o lugar que se ocupa nesse grande mapa de parentesco ritual. Nesse e em outros contextos, o axé pode ser entendido como uma potência vital a qual pode ser transmitida. Essa força talvez seja mais bem descrita como um movimento, “um monismo que compreende em diferentes porções e modulações tudo no universo” (Goldman 2012GOLDMAN, Marcio. (2012), “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana, v. 18, nº 2: 269-288.)7 7 Nas palavras do autor: “[A]final, sabemos bem que os centros de culto das religiões de matriz africana no Brasil poderiam perfeitamente ser compreendidos como enormes máquinas destinadas à captação, à distribuição e à circulação da força única que, em suas cosmologias, constitui tudo o que existe e pode existir no universo. Como escrevi em outro lugar, essa força – o axé, dos candomblés ketu, ngunzo, dos angola, ou simplesmente força, energia, em inúmeras outras religiões deste tipo – ‘constitui tudo o que existe e pode existir no universo, seguindo um processo de diferenciação e individuação’, sua unidade garantindo ‘que tudo participa de tudo’ e suas modulações fazendo ‘com que haja graus de participação’” (Goldman 2012:279). .

Além das fotografias, retratos pintados dos donos das casas são exibidos em local de destaque, com muito orgulho. São, geralmente, presentes dados por algum cliente, filho ou conjunto de filhos. Neles, pais e mães de santo podem estar retratados vestindo axós (roupas religiosas de festa) ou roupas comuns, o que dependerá daquele que dá o presente; quando dado por clientes, normalmente os sacerdotes aparecem em roupas não religiosas. O vestuário, por sinal, é algo que as fotografias ensinam. Observa-se o modo como os mais antigos se vestiam, o que inspira novas roupas que são encomendadas a costureiras através dos relatos sobre as fotografias.

Pela localização das fotografias nota-se a importância e a necessidade de repetidas vezes passar por elas e observá-las. Isso antes mesmo de chegar ao quarto de santo, onde se encontram os orixás assentados e onde se bate cabeça como deferência e saudação aos deuses. Em alguns quartos de santo, cartazes ou, como na casa de Odacir, um quadro branco na sala, contêm avisos de datas de obrigações e informações para cada filho/a, com palavras escritas, desenhos, convites para festas e listas com tarefas; através da observação e da repetição, não é necessário que pais e mães de santo peçam nada diretamente aos filhos. Estes devem, desde sempre, aprender por meio da observação repetida de todos os detalhes da casa e das ações dos pais e dos mais antigos no santo.

Depois de passar pelas fotos dos mais velhos, chegamos ao quarto de santo, no qual encontramos orixás em imagens tridimensionais “católicas”, bonecas (Iemanjá, Oxum, Iansã e Obá) vestidas como mães de santo, com suas cores respectivas, um boneco (Bará) vestido de vermelho e uma Iansã na estátua de Joana d’Arc. Atrás deles, localizam-se prateleiras que vão do chão até o teto, cobertas por cortinas, onde ficam guardadas as obrigações (quartinhas, assentamentos, ferramentas, vultos, imagens etc.).

Em outras casas da nação, pode-se observar semelhante estilo de se organizar o espaço: quadros espalhados pelas salas ou quartos de santo com fotos dos antigos (parentes de santo). Além disso, álbuns de fotografia circulam com grande frequência, para que sejam lembradas as festas, pessoas e orixás do “tempo antigo”. São raros os momentos em que se explica alguma coisa, em uma religião na qual a observação de coisas e atos é o que deve ensinar; por isso a importância de fazer circular esses objetos que fazem falar sobre a história da Nação Oyó. Certificados da AFROBRAS (Federação das Religiões Afro-Brasileiras) dos pais ou mães de santo também são guardados como relíquias em armários, baús, caixinhas, malas antigas, ou nas prateleiras onde as obrigações dos orixás (incluindo seus assentamentos) residem, tamanha sua importância. Alguns são emoldurados para que possam ser expostos. São verdadeiros tesouros, atestando veracidade do tempo de feitura e qualidade do axé da casa. Móveis, louças, castiçais, alguidares, imagens e diversos utensílios, herdados, ganhados ou comprados, também proporcionam lembranças, orgulho e axé. Como disse Odacir a respeito de imagens católicas antigas herdadas ou presenteadas, “elas [imagens] já comem há tanto tempo” (entrevista Pai Odacir do Ogum, 15/12/2010), em referência à quantidade de anos e obrigações que tais objetos receberam desde os tempos em que moravam noutras casas. É importante lembrar que o sentido de comer aqui está relacionado a toda sorte de oferendas que são colocadas no chão do quarto de santo, na frente dessas imagens, as quais, na acepção batuqueira, comem o que lhes é ofertado, sejam doces, velas, sejam outros pratos preparados para os orixás. Imagens, assim como outros objetos (conforme ficará claro a seguir), apresentam tanto mais potência quanto mais tempo possuírem. Essa é uma das explicações para a importância de não se desfazer, continuando a utilizar, das imagens “católicas” e de louças e outros utensílios por muitos considerados velhos e/ou, por isso mesmo, feios.

Quando Odacir solicita a algum filho que traga uma louça antiga, por exemplo, uma história sobre o objeto que inclui a quem ele pertencera é contada: “Isso era de uma titia da Obá” – objetos dos que já morreram são heranças, dadas muitas vezes em vida por aqueles; outras vezes, ficam com a família de sangue que se desfaz desses objetos, oferecendo-os aos parentes de religião como presente ou como mercadoria. Logo ficamos sabendo como eram os batuques na casa dela, como era sua orixá. O mesmo acontece com os álbuns e com os outros objetos. Aquilo que pode ficar “no nosso mundo” se torna relíquia, um bem precioso; é como ter, para sempre, um pouco da presença daquele orixá, seu axé. E os orixás mais antigos eram mais fortes e bonitos, com seus grandes feitos e provas de força e veracidade8 8 Os batuqueiros contam que antigamente os orixás eram submetidos a provas mais severas, como a ingestão de animais peçonhentos, dançar sobre o fogo, bater o pirão de Xangô diretamente com as mãos. Além disso, contam que eram mais belos/desenvoltos em suas danças e postura, transformavam filhas de estatura baixa em gigantes guerreiros. Não se cansavam, podiam trabalhar por dias e noites ocupando os corpos de seus filhos sem lhes deixar cansaço algum quando os desocupavam. . A dinâmica do axé na louça é semelhante à do axé nas imagens. Ela ganha/aumenta seu axé com o tempo, servindo de recipiente para a comida dos orixás por muitas e repetidas vezes. Torna-se, assim, o melhor dos pratos, como se melhorasse, inclusive, o sabor do alimento ali disposto. Isso está de acordo com a estética alimentar batuqueira, baseada em pontos de cozimento e formatos que se completam com os recipientes em que são servidas, compondo uma culinária própria que inclui objetos e alimentos, como tratei em outro momento (Machado 2013b_____________. (2013b), “Quando vivos, orixás e mortos comem”: oferendas e rito fúnebre no batuque de Oyó/RS. Trabalho apresentado no GT 7 – Religião, festa e comida. XVII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina. Porto Alegre: UFRGS.). O destino final de objetos, por ocasião da morte, nos fala da importância da transmissão daquilo que não precisa ser destruído e também de seu valor simbólico e familial, dando a quem os pertence não apenas objetos que não são mais fabricados, mas histórias e, principalmente, axé. A cada foto, prato, taça, etc., histórias da religião e histórias dos antigos são contadas. Muitas delas vividas por aquele que conta, outras ouvidas de alguém que viveu, “que viu com os próprios olhos” e as transmite para que quem não viveu possa contá-las no futuro. Ver ou ouvir de quem viu atesta veracidade, sempre com referência ao portador original da história, que, nesse sentido, circula tal como os objetos. Alguém é dono de uma história ou, ao menos, de um modo de contá-la que constitui uma versão única e, para os batuqueiros, as diferentes versões fazem toda diferença. Neli da Oxum, por exemplo, ao contar a história de quando sua mãe de sangue, Rosinha do Bará, apanhou de seu orixá, enfatiza a diferença no modo como sua mãe e seu pai de santo, Odacir, contam. Na história de Rosinha seu orixá de cabeça aparece na forma de um menino e lhe dá uma surra de varas de marmelo dentro do quarto de santo, devido a uma falta com suas obrigações religiosas. Na versão de Odacir o orixá de sua irmã de santo a ocupa, pede varas de marmelo à sua mãe pequena (Mãe Bidú de Iemanjá) e autoflagela-se. As duas histórias são a mesma, porém diferentes. Elas mostram a importância do lugar de fala daquele que a conta. Rosinha não pode saber, como de praxe no batuque, que foi apossada; desse modo, seu orixá a faz vivenciar, aprender e possuir uma outra história, nesse caso única. Tratam-se de histórias, e não estórias, como Odacir enfatiza; o que ele viu ou ouviu de quem viu é a história do Oyó. E assim seus filhos também contam.

Sobre o tempo e a aprendizagem

Durante meu trabalho de campo, foi possível observar a importância de se tomar como história o que aconteceu com os orixás, pois é isso, aliado ao que já aconteceu com os antigos, que é a verdade da vida. Como adverte Odacir do Ogum, “a história já foi contada desde muito antes de pisarmos na terra, o problema é que os brancos colocaram vírgulas nela” (entrevista Pai Odacir do Ogum, 15/12/2010).

Odacir fala de uma história que aconteceu outrora e que nós dividimos em passado, presente e futuro, noções de tempo que, assim como a de história e a de mito, como usualmente chamamos os diferentes tempos, não dão conta do universo dos batuqueiros e suas divindades. Na religião africana, como diz Odacir, existe apenas tempo e movimento, ou o movimento do tempo, o destino, conceitos que se traduzem na deidade Oludumaré (Dono do Movimento do Destino) e Oroko (Tempo). É por isso, dizem, que um pai ou mãe de santo que promete resultados de um feitiço ou trabalho em número de dias – do tipo “trago seu amor em três dias” – revela o desconhecimento da religião. Conforme vários pais e mães de santo me ensinaram, “o tempo dos orixás é outro”; é a partir dessa temporalidade outra que história tem sentido aqui. O saber afro-religioso deve ser, preferencialmente, aprendido e apreendido apenas através da escuta e da observação. Como já mencionado, não se anota nada e não existe leitura que possa ensinar o que interessa aprender.

O aprendizado em religiões afro-brasileiras foi estudado por Halloy (2005:203-217)HALLOY, Arnaud. (2005), Dans l’Intimité des Orixás. Corps, Rituel et Apprentissage Religieux dans une Famille-de-Saint de Recife, Brésil. Bruxelles/Paris: Thèse de Doctorat en Ethnologie et Anthropologie Sociale, ULB/EHESS., para quem, no Xangô do Recife, a ação ritual engendra dimensões afetivas, sensitivas e intelectuais. Os iniciados aprendem passando por rituais, principalmente o da iniciação, e também assistindo repetidas vezes os rituais do culto, no qual saberes são mobilizados e transmitidos sobre um fundo de referências ontológicas e mitológicas. Aqui, como no caso das fotos-genealogias e dos objetos-histórias, a repetição, o ato de fazer e refazer rituais, aparece como central.

Da mesma maneira, Rabelo & Brito (2011)Rabelo, Miriam C. M. & Brito, Rita M.S. (2011), “Notas sobre o aprendizado no Candomblé”. Revista FAEEBA, v. 20, nº 35: 187-200., estudando o candomblé angola na Bahia, descrevem o aprendizado a partir da noção de skills de Tim Ingold (2000)INGOLD, Tim. (2000), The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and Skill. London and New York: Routledge. 9 9 Comumente traduzida por habilidades, as skills de Ingold estão no lugar de cultura para o autor, ou melhor, são variações culturais ou variações de skills. Por isso a opção de não traduzir seu conceito. “São faculdades de ação e percepção em um ambiente” (Ingold 2000:5). . Criticam a noção de transmissão, pois para Ingold pode-se dizer que um novato aprendendo a perceber o mundo recebe chaves para o significado (keys to meaning). A “chave” pode ser entendida como uma cifra de código (cipher), alternativa cognitivista criticada por Ingold, ou uma pista (clue), perspectiva adotada pelo autor dentro de sua “ecologia do sensível”. É esse conhecimento embasado na percepção que é considerado a “ecologia do sensível” (sentient ecology) (Ingold 2000:9INGOLD, Tim. (2000), The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and Skill. London and New York: Routledge.). O aprendizado é, portanto, o treino da atenção (Ingold 2000INGOLD, Tim. (2000), The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and Skill. London and New York: Routledge.; Rabelo & Brito 2011Rabelo, Miriam C. M. & Brito, Rita M.S. (2011), “Notas sobre o aprendizado no Candomblé”. Revista FAEEBA, v. 20, nº 35: 187-200.). Além disso, Rabelo & Brito (2011:190-191)Rabelo, Miriam C. M. & Brito, Rita M.S. (2011), “Notas sobre o aprendizado no Candomblé”. Revista FAEEBA, v. 20, nº 35: 187-200. enfatizam o aprendizado corporal, através da possessão, em comparação à memória, que pode ser falha. Os dois trabalhos sobre religiões afro-brasileiras citados mobilizam noções que gostaria de articular ao que vem sendo descrito, pois, antes de transmissão, o aprendizado trata de ação ritual, na qual além de treino da atenção, iniciação e participação em rituais estritamente religiosos, a promoção de contextos para o aprendiz desenvolver proficiência passa pela mediação de objetos, conforme venho demonstrando, que, ao serem manipulados, promovem espaços-tempos de conhecimento corporal-intelectual sobre a trama de parentesco especialmente, mas também sobre noções como a de tempo e de belo – por exemplo, ao lembrar o modo como algum orixá dançava com desenvoltura e beleza. Outros espaços-tempos importantes são/estão inscritos na “geografia sagrada” (Anjos & Oro 2009ANJOS, José Carlos Gomes dos & ORO, Ari Pedro. (2009), Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: sincretismo entre Maria e Iemanjá. Porto Alegre: SMC.) porto-alegrense. Pedreiras, rios, cachoeiras, mata, encruzilhadas, rotatórias, estradas, cemitérios, mar, beira de rio, etc. são, também, espaços-tempos sagrados, destinados a rituais que sempre evocam aprendizado, não necessariamente sobre os antepassados ou sobre hierarquia religiosa.

Dos objetos aos lugares, do parentesco à hierarquia

Odacir diz que os brancos nem sempre dividiram tudo; o problema foi quando deixaram de acreditar. O livro As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, figura entre suas leituras preferidas, sobretudo a passagem na qual aqueles que acreditam chegam a Avalon, ao passo que os que não acreditam enxergam o Mosteiro, nunca chegando à terra mágica. É ao descer do barco e olhar para as brumas com os diferentes olhares que uma cisão (vírgula) se realiza no mundo dos brancos, cisão esta semelhante à que insiste em acabar com uma história na qual se chega a Orum após a morte, enquanto que os deuses chegam à terra para dançar.

Contar as histórias dos antigos e dos orixás é, portanto, uma das formas rituais de aprendizado não apenas religioso – que complementa outros rituais –, mas, principalmente, sobre o mundo. Por isso que não apenas divindades e pessoas já existem antes de serem feitas, mas toda e qualquer situação, a própria história do mundo – e o mundo é o religioso. A história, nesse sentido, trata dos orixás e dos antigos e é formada por essas duas classes existentes que devem ser cultuadas, cada qual a seu modo. A formulação de Goldman (2009)GOLDMAN, Marcio. (2009), “Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica”. Análise Social, vol. XLIV, nº 190: 105-137. articulando devir e lapidação exprime bem essa ideia de uma pré-existência ou virtualidade que precisa ser atualizada ou feita, lapidada. Orixás são vivos, a vida em sua forma mais expressiva, pois nunca morrem, apenas deixam de ocupar objetos rituais e os corpos de seus filhos quando esses morrem. Já os antigos se dividem entre os vivos e os mortos. Diferentes formas de cultuá-los acompanham suas duas classificações. Suas histórias e cultos contam a história dos humanos e influem no movimento de seus destinos.

Entre aqueles titios e titias vivos, o culto não está apenas em imagens fotográficas ou mesmo em telas nas quais estão pintados, mas no respeito a um princípio de senioridade, de hierarquia no santo10 10 Ver os trabalhos de Bastide (1978, 1985), Lima (2003) e Rabelo & Brito (2011) sobre a senioridade e a hierarquia em religiões afro-brasileiras. e de validação das práticas que estrutura posições dentro do culto. A participação dos mais velhos no santo – geralmente em idade cronológica também – em cortes (cerimônias privadas nas quais ocorre o sacrifício de animais), festas e erus (ritos mortuários) confere legitimidade ao ritual. Dona Eloci da Oxum vem da nação Jêje, lado no qual se aprontou, mas atualmente acompanha o calendário de festas do Oyó11 11 As festas são feitas de modo que não haja colisão, os antigos da nação e os pais de santo é que dão a data em que se realizam as festas nas casas novas, isso na nação oyó. , pois sua filha de sangue é pronta por esse lado. Ela conta que:

Só no Oyó os mais velhos são respeitados desse jeito. Não importa a casa que a gente vai, o pai de santo faz os filhos baterem cabeça pra gente. No Tio Paulinho, lá na Cleusa... Porque eu sou mais velha, né. Tem muita casa que se diz de Oyó por aí, mas não respeita isso. A gente vai nos batuques e os mais novos passam como se a gente não fosse ninguém (entrevista Dona Eloci da Oxum, 25/04/2012).

No preparo de uma festa, entre as despesas previstas, inclui-se convidar pessoalmente esses pais e mães de santo, além de cuidar do seu transporte e acomodações. Quando há necessidade de dormirem na casa de religião de quem oferece a festa, as melhores acomodações lhes devem ser oferecidas. Além disso, cadeiras especiais são colocadas no salão para que eles sentem durante as festas; são servidos em bandejas com a melhor louça da casa e suas bebidas devem ser servidas em taças, nunca em copos. Ante os mais antigos, a postura corporal deve ser diferenciada: a cabeça sempre mais baixa que a deles (deve-se andar curvado ante os mais velhos) e o ato de bater cabeça em qualquer lugar da casa são sinais de respeito e submissão esperados. Para aqueles que são prontos há mais tempo, mas não se enquadram na categoria dos antigos, os adeptos batem cabeça apenas no salão ou no quarto de santo e em determinadas ocasiões somente lhes beijam as mãos. Com os titios é diferente; na rua, na cozinha, onde for, devem-se prostrar, ainda que muitas vezes eles tentem impedir os mais novos de fazê-lo. Ser antigo não é algo fácil, precisam-se de muitos anos de religião, muitas alianças com os outros antigos para se angariar a respeitabilidade necessária. Ademais, o apadrinhamento no santo ajuda a obter o respeito de quem não é seu próprio filho de santo.

Para com os antigos mortos, as homenagens lembram-se dos nomes de seus orixás de cabeça, quando da chamada12 12 Quando, no início dos batuques ou antes de começar a jogar os búzios, o pai de santo toca a sineta e chama todos os orixás, saudando-os. . Ao se fazer uma festa grande, devem ser entregues no mato ou na praia13 13 Os orixás de praia são Oxalá, Iemanjá e Oxum, também chamados de povo do mel. presentes para seus orixás. Além disso, uma missa católica por suas almas deve ser encomendada antes de qualquer homenagem aos orixás. Aqui, a diferença entre orixá e pessoa é necessária, pois presentes e homenagens somente os orixás podem receber. A evocação dos nomes das pessoas serve para se direcionar ao orixá (“que o Oxalá da Vovó Rola nos ajude” etc.) e às almas (eguns), referendadas pela evocação dos nomes, que são entregues à Igreja Católica, para que por elas se reze em missas encomendadas, devendo esta ser a forma máxima de culto aos que já faleceram, transferindo, assim, o culto aos eguns para o ritual católico. A igreja mais importante será aquela ligada ao santo católico que corresponde ao orixá do dono/a da casa, com exceção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário no centro de Porto Alegre, que figura como espaço-tempo sagrado para toda a população batuqueira. Lá se encontram ossadas de escravos; lá os negros sempre rezaram.

Afora a transformação de objetos em relíquias, das missas e das histórias, outra forma de prestar homenagens aos antigos – aqui como antepassados não singularizados – é por ocasião dos passeios14 14 Corrêa (2006) apresenta relato alternativo e complementar sobre os passeios, sua etnografia consistindo, ainda hoje, no relato mais completo sobre o batuque gaúcho. . Os passeios consistem em visitas às casas daqueles mais velhos que estiveram presentes, auxiliando por todo o período do chão – reclusão no quarto de santo com a finalidade de dar de comer aos orixás (Anjos 1995ANJOS, José Carlos Gomes dos. (1995), “O corpo nos rituais de batuque”. In: O. F. Leal (org.). Corpo e significado: ensaios de antropologia social. Porto Alegre: UFRGS.), sendo a cabeça do adepto a mesa, por excelência, daqueles –, assistindo às matanças (sacrifícios) e participando das festas, vez ou outra preparando a canjica branca destinada a Oxalá, como forma de deixar seu axé na comida. Os mais velhos não faziam atividades mais laboriosas que essa, pois o preparo da canjica é tido como uma das atividades mais fáceis do batuque, não requerendo muito esforço físico, o que não se deve, por respeito, exigir dos mais velhos. Além disso, quando alguém experiente e antigo na religião mexe a canjica confere a ela quantidade grande de axé.

Além dessas casas, mais importante e obrigatório é o primeiro passeio, ou seja, o primeiro dia em que os ebós (aqueles que estavam “de obrigação” no chão) saem da reclusão, acompanhados de seu pai ou mãe de santo para visitar locais importantes, já sacralizados, em Porto Alegre. Esses passeios rituais são cercados de cuidados para com os ebós e repletos de ensinamentos que acontecem ao praticar, por uma quase mimese, ao se “promover contextos” para o aprendizado.

Através de ônibus ou indo no carro de alguém que se oferece para levar seu pai ou mãe de santo, a fim de que esse não tenha de se deslocar em transporte coletivo, forma-se uma comitiva, com babalaus e babalaoas sempre à frente, seguidos pelos ebós e outros parentes de santo que os acompanham por serem aqueles que dirigem os carros ou por vontade de passear. Algumas pessoas separam para este dia ao menos uma peça de roupa nova, outros vestem apenas roupas recém-compradas. “É uma saída para nova vida, por isso roupas novas”, comenta Odacir (entrevista Pai Odacir do Ogum, 15/12/2010). Ele, por ocasião de se deitar para seu orixá, Ogum, passeia até com calçados novos. Para o pai de santo tudo deve ser novo nesse dia.

O primeiro destino é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no centro da capital gaúcha, onde os negros puderam rezar quando a Igreja Católica ainda os proibia e onde ossos dos antepassados africanos se encontram enterrados. Entra-se pelo lado direito, faz-se o sinal da cruz e segue-se a via-sacra esculpida nas paredes laterais. Com Nossa Senhora do Rosário no altar, santos também estão dispostos pelos lados da igreja. Ao passar na frente de cada imagem tridimensional, saúda-se o orixá que corresponde, ou melhor, que se faz presente em cada imagem em princípio católica, mas afro-brasileira para meus nativos. Quando há flores colocadas para algum santo, é de praxe “roubar” alguma, assim se carrega grande axé para casa. Durante o percurso, o pai ou mãe de santo conta histórias sobre os escravos e sobre os antigos batuqueiros que por ali passearam. Ao sair da igreja, pelo lado oposto ao que se entrou, joga-se moedas no chão. Moradores de rua as recolhem, o que garante grande axé do povo de rua (Exu Lôde, em especial), trazendo proteção e abrindo caminhos.

O segundo local é o Mercado Público Municipal, onde um Bará assentado no centro da construção é motivo de orgulho dos afro-religiosos gaúchos. O mercado é dividido em quatro quadras, separadas por dois corredores principais que se cruzam, formando uma encruzilhada ou cruzeiro, justamente no ponto onde um assentamento de Bará, segundo os religiosos, está enterrado. É importante saudar o centro e as quatro saídas principais, pedindo abertura de caminhos, pelo meio, norte, sul, leste e oeste. Pede-se a Bará. Em bancas de frutas e cereais é bom “roubar” grãos de milho, ligadas ao orixá Bará, e frutas relacionadas aos demais orixás, para carregar axé de fortuna. Note-se que a abertura de caminhos e as questões financeiras são de responsabilidade de Bará. É ele quem dá e tira empregos, quem cuida ou descuida do andar pelas ruas.

Finalmente, compra-se flores em bancas na Rua Dr. Flores, para ir ao cais do porto jogá-las no Rio Guaíba, não apenas como homenagem à Oxum e à Iemanjá (mães das águas), mas como lembrança dos negros que chegaram ao estado, por motivo da escravidão, via porto. Seguem-se saudações aos orixás das águas, aos orixás de cabeça dos ebós e à costa da África, quando o espaço (lugar) conecta a Porto Alegre atual com a África do passado e com as divindades do panteão da Nação, numa profusão de tempo e espaço que não podem ser tomados separadamente para compreender os ritos finais do passeio.

Considerações finais: espaço-tempo, objetos-memória

Neste artigo busquei apresentar relato etnográfico sobre a Nação Oyó, focando na relacionalidade/engajamento entre objetos, lugares e pessoas para a promoção do aprendizado religioso, especialmente no que tange ao pertencimento a uma hierarquia religiosa e rede de parentesco no santo, além da criação de espaços-tempos de comunicação entre pessoas, ancestrais e deidades. O Rio Guaíba, por exemplo, comunica o tempo presente com o passado não datado, mítico, porém histórico no sentido batuqueiro, em que a própria história pode ser um objeto. Objetos medeiam ensinamentos baseados na oralidade, proporcionando contextos de aprendizagem, nos quais a linguagem está estendida ao objeto, que comunica e faz memorar. Desse modo, o objeto não apenas guarda lembranças, como um livro ou caderno de notas, mas ele mesmo lembra e participa da performance da fala. Os objetos, ainda, proporcionam a lembrança do não vivido tal como ele acontecera; eles são um acontecimento. Assim, as fotos expostas umas abaixo das outras ensinam, fazendo acontecer, a hierarquia religiosa. Elas proporcionam o contato com ancestrais e pessoas mais velhas no santo, já enquadradas (emolduradas) em um sistema hierárquico. Igualmente, utensílios como pratos, taças e jarras fazem os pais ou mães de santo falarem, trazendo contextos em que se vive o contado a partir da manipulação e da atenção a eles dispensada. Nesse sentido, é possível pensar em uma teoria batuqueira sobre memória e história e sobre tempo e espaço distribuída não apenas do intelecto para o corpo, mas do corpo para lugares e objetos.

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  • Entrevistas

    Dona Eloci da Oxum, 25 de abril de 2012.
    Pai Odacir do Ogum, 15 de dezembro de 2010.

Notas

  • 1
    Entendo objeto principalmente na acepção de Silveira e Lima Filho (2005)SILVEIRA, Flávio Leonel & LIMA FILHO, Manuel Ferreira. (2005), “Por uma antropologia do objeto documental: entre a ‘alma nas coisas’ e a coisificação do objeto”. Horizontes Antropológicos, ano 11, nº 23: 37-50., para os quais “há uma simbólica do objeto cuja dinâmica está relacionada a uma ecologia específica, envolvendo um universo mental implicado em certos mapeamentos, atribuições de sentidos mais ou menos subjetivos e fluxos de imagens, que ‘situam’ a coisa em si pelo que significa para os sujeitos, desde o seu estar-no-mundo em relação à própria presença aurática do objeto enquanto ícone, ou mesmo como expressão e desejo de estabelecer vias de comunicação relacionadas a determinadas experiências culturais” (Silveira e Lima Filho 2005:38SILVEIRA, Flávio Leonel & LIMA FILHO, Manuel Ferreira. (2005), “Por uma antropologia do objeto documental: entre a ‘alma nas coisas’ e a coisificação do objeto”. Horizontes Antropológicos, ano 11, nº 23: 37-50.). Já coisa, expressão sinônima, se interpretada à luz de Ingold (2012)_____________. (2012), “Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais”. Horizontes Antropológicos, ano 18, nº 37: 25-44. pode ser diferenciada pela ideia de vida que traz consigo, diferente do objeto que seria estático. Para o autor, as coisas são trazidas à vida por meio de imersão em circulações diversas; a coisa é um processo. Objeto e coisa, aqui, são pensados como os processos e acontecimentos em que estão envolvidos e descrevem, referindo-se ao que comumente chamamos de “material”.
  • 2
    Para Latour, “o fetiche é um fazer falar” (2002:17LATOUR, Bruno. (2002), Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru/SP: EDUSC.).
  • 3
    Para uma discussão detalhada sobre a noção de “lado” no batuque, ver Barbosa Neto (2012)BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues. (2012), A máquina do mundo: variações sobre o politeísmo em coletivos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Tese de Doutorado em Antropologia Social, PPGAS/MN/UFRJ..
  • 4
    Acontecimentos podem ser entendidos “como outro nome para fe(i)tiche”, a “coisa” que sempre supera aquele que a faz (Latour 2002:103LATOUR, Bruno. (2002), Reflexão sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches. Bauru/SP: EDUSC.). Esta é a aproximação que faço entre “obrigação” e o “fe(i)tiche” de Bruno Latour: acontecimentos que conquistam sua autonomia logo após serem fabricados, não divorciando a ação do homem sobre o objeto e vice-versa, nem mesmo dividindo o material do imaterial, como já aludido.
  • 5
    Bastide (1959)BASTIDE, Roger. (1959), Sociologia do folclore brasileiro. São Paulo: Anhambi. constata fraqueza econômica no batuque de Porto Alegre, principalmente pelo fato de o espaço destinado ao culto aos orixás (as casas) ser de pequeno porte, não havendo casas separadas na rua para Omulu, Ossang e Oxossi (Bastide 1959:241BASTIDE, Roger. (1959), Sociologia do folclore brasileiro. São Paulo: Anhambi.), salvo Bará. Aqui não podemos saber se, de fato, é a pobreza ou outras maneiras de cultuar que estão em jogo. No mesmo texto, por exemplo, o autor espanta-se com o número de casas e cabeças consagradas a Bará, o que demonstra a importância que esse orixá tem para o batuque gaúcho, não como mensageiro ou escravo de outros orixás, mas como dono de casas e cabeças, como dizem: “cabeça grande”. “Em todas as casas visitadas, o pegi [quarto de santo] é contíguo à sala de festas e, curiosamente, a porta que lhe dá acesso é aberta no curso das cerimônias, de modo que a participação do divino e do humano possa fazer-se facilmente” (Bastide 1959:242-3BASTIDE, Roger. (1959), Sociologia do folclore brasileiro. São Paulo: Anhambi.). As casas que conheci apresentam características semelhantes, sendo possível, contudo, fechar o quarto de santo com uma cortina ou porta de tela. Importa a ideia para a qual o autor chama atenção, a respeito da facilidade com que o princípio de participação entre os filhos terrenos e seus orixás se dá, como é o caso de ir diretamente ao quarto de santo bater cabeça quando se chega a uma casa religiosa, para somente então poder cumprimentar outras pessoas ou orixás.
  • 6
    Na casa de Odacir, trata-se de uma pequena sala com uma estante, armários aéreos, prateleiras com imagens e uma mesa com duas cadeiras em lados opostos, na qual, sobre uma toalha especial, estão dispostas as guias (colares de conta) do babalaô, formando um círculo, dentro do qual estão os búzios, moedas e uma pedra negra consagrada a Bará, além da sineta (adejá) para a chamada dos orixás.
  • 7
    Nas palavras do autor: “[A]final, sabemos bem que os centros de culto das religiões de matriz africana no Brasil poderiam perfeitamente ser compreendidos como enormes máquinas destinadas à captação, à distribuição e à circulação da força única que, em suas cosmologias, constitui tudo o que existe e pode existir no universo. Como escrevi em outro lugar, essa força – o axé, dos candomblés ketu, ngunzo, dos angola, ou simplesmente forçaenergia, em inúmeras outras religiões deste tipo – ‘constitui tudo o que existe e pode existir no universo, seguindo um processo de diferenciação e individuação’, sua unidade garantindo ‘que tudo participa de tudo’ e suas modulações fazendo ‘com que haja graus de participação’” (Goldman 2012:279GOLDMAN, Marcio. (2012), “O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil”. Mana, v. 18, nº 2: 269-288.).
  • 8
    Os batuqueiros contam que antigamente os orixás eram submetidos a provas mais severas, como a ingestão de animais peçonhentos, dançar sobre o fogo, bater o pirão de Xangô diretamente com as mãos. Além disso, contam que eram mais belos/desenvoltos em suas danças e postura, transformavam filhas de estatura baixa em gigantes guerreiros. Não se cansavam, podiam trabalhar por dias e noites ocupando os corpos de seus filhos sem lhes deixar cansaço algum quando os desocupavam.
  • 9
    Comumente traduzida por habilidades, as skills de Ingold estão no lugar de cultura para o autor, ou melhor, são variações culturais ou variações de skills. Por isso a opção de não traduzir seu conceito. “São faculdades de ação e percepção em um ambiente” (Ingold 2000:5INGOLD, Tim. (2000), The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and Skill. London and New York: Routledge.).
  • 10
    Ver os trabalhos de Bastide (1978_____________. (1978), O candomblé da Bahia (rito Nagô). São Paulo: Brasiliana., 1985_____________. (1985), As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira.), Lima (2003)LIMA, Vivaldo da Costa. (2003), A família de santo nos candomblés jejes-nagôs na Bahia: um estudo de relações intergrupais. Salvador: Corrupio. e Rabelo & Brito (2011)Rabelo, Miriam C. M. & Brito, Rita M.S. (2011), “Notas sobre o aprendizado no Candomblé”. Revista FAEEBA, v. 20, nº 35: 187-200. sobre a senioridade e a hierarquia em religiões afro-brasileiras.
  • 11
    As festas são feitas de modo que não haja colisão, os antigos da nação e os pais de santo é que dão a data em que se realizam as festas nas casas novas, isso na nação oyó.
  • 12
    Quando, no início dos batuques ou antes de começar a jogar os búzios, o pai de santo toca a sineta e chama todos os orixás, saudando-os.
  • 13
    Os orixás de praia são Oxalá, Iemanjá e Oxum, também chamados de povo do mel.
  • 14
    Corrêa (2006)CORRÊA, Norton Figueiredo. (2006), O batuque no Rio Grande do Sul: antropologia de uma religião afro-rio-grandense. São Luís: Cultura e Arte. apresenta relato alternativo e complementar sobre os passeios, sua etnografia consistindo, ainda hoje, no relato mais completo sobre o batuque gaúcho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    Out 2014
  • Aceito
    Mar 2015
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