Professor de Antropologia do Museu Nacional - UFRJ. Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
Cabe a mim como orientador de Clara Mafra no seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) fazer um breve depoimento sobre ela como aluna. Embora na verdade seja difícil (ou quase impossível) esse exercício de ascese, já que Clara era também uma amiga. Duplamente amiga, aliás, já que colega da minha mulher, a etnóloga Stela Abreu desde os tempos de graduação na Unicamp, o reencontro das duas no Rio seria mais um motivo de aproximação entre nós.
Mas posso afirmar que Clara foi para mim uma aluna e orientanda ideal, pois combinava a capacidade de aprender com os seus professores a uma capacidade igualmente notável de a partir daí buscar caminhos próprios, atuando com autonomia e espírito de iniciativa. E isso sempre com grande disposição para articular o seu trabalho ao de outros(as), não só (no caso) ao do seu orientador, mas também ao de colegas e outros parceiros(as) que foi acrescentando a sua rede (inclusive mais tarde e com destaque os seus próprios alunos na UERJ). Acrescente-se que a sua capacidade de trabalho vinha combinada a grande nobreza de caráter, que por vezes se confundia com certa ingenuidade cativante. E a uma generosidade intelectual de que o orientador foi um beneficiário confesso.
Durante o seu trabalho de campo inicialmente visitei-a no Morro Dona (ou Santa) Marta. E mais tarde em Lisboa onde um período meu como professor-visitante junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa coincidiu em parte com a sua estadia por lá. E foi muito gratificante fora dos limites estreitos da sala de aula observar essa observadora exemplar e a qualidade humana das relações que estabelecia, dialogando com ela a partir desse conhecimento in loco.
Um exemplo marcante dessa sua capacidade de aprender e reelaborar foi justamente o seu trabalho de campo em Portugal, que dadas as nossas articulações acadêmicas acabou por levar à publicação naquele país da versão em livro da sua tese1 1 MAFRA, Clara. (2002), Na posse da palavra - religião, conversão e liberdade pessoal em dois contextos nacionais. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. , sendo para isso crucial o empenho de João Pina Cabral. E é marcante porque respondeu ao meu apelo por uma internacionalização da antropologia brasileira, não só na forma de estudos pós-graduados, mas também na realização de pesquisas fora do nosso país num momento em que esses esforços se contavam nos dedos. Assim como posteriormente ela responderia de modo ativo e criativo ao novo apelo por mais uma volta do parafuso por via de uma versão não-eurocêntrica dessa internacionalização através da sua pesquisa em Angola.
Após o seu doutorado continuamos a manter a nossa interlocução acadêmica e como colegas freqüentamos projetos e reuniões juntos. Mas cada vez mais ela seguia o seu caminho de um modo a que o velho orientador não podia responder muito mais do que observando e estimulando. Como quando do seu interesse por um diálogo com os dados censitários onde demonstrou rara e pioneira sensibilidade antropológica no trato com esse tipo de material, que ficará como exemplo a ser seguido. Mas também na maneira pela qual prosseguiu contatos acadêmicos meus ao realizar estágios de pós-doutorado com Tom Csordas e Tim Ingold, aproveitando o que de melhor cada um tinha a lhe oferecer e sendo por esses colegas reconhecida. E particularmente nesse último caso seguindo como que um desejo de aproximação com a biologia que desconfio ter tido a ver com o desejo de proximidade com o irmão entomólogo. Assim como os seus marcantes estudos sobre os espaços sagrados, sobretudo os das igrejas, terão tido a ver com os seus dois irmãos arquitetos. Assim era Clara, sempre tecendo a sua vida juntando num trabalho de imaginação que não conhecia fronteiras as afetações e os afetos. Trabalho de imaginação que Tim Ingold reconheceria na conferência de abertura do extraordinário seminário internacional organizado por Clara em novembro de 2012 justamente sobre "O Trabalho do Imaginário na Textura do Presente" como tendo sido um estímulo para si próprio.
Por tudo isso é difícil separar a aluna e colega da amiga. Ela certamente continuará viva não só através da sua inspiradora obra, mas também através dos seus inesquecíveis gestos e traços de toda ordem, aí incluídos os da amizade e da dedicação. Dentre esses traços que ela nos legou destaque-se o conhecimento maior que nos uniu nesses últimos meses a seus familiares, a outros(as) amigos(as) e a alguns de seus diletos alunos(as), jovens competentes, promissores e, enfim, boas pessoas. Através deles e como que por obra dela nos sentimos mais próximos de Clara.
Nota
Depoimento sobre Clara Mafra
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Jan 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013