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Febre crônica associada a abscesso esplênico causado por Staphylococcus epidermidis

Chronic fever associated with splenic abscess due to Staphylococcus epidermidis

Resumos

Abscessos ocultos são causa freqüente de febre crônica. Os abscessos esplênicos são entidades raras, usualmente associadas a quadros subjacentes de cirurgia abdominal, endocardite ou imunodepressão. Apresenta-se um caso de paciente com febre prolongada causada por um abscesso esplênico, cujo principal diagnóstico diferencial era leishmaniose visceral, que provavelmente esteve associado a traumatismo abdominal. O tratamento consistiu em antibioticoterapia seguida de esplenectomia.

Abscesso esplênico; Staphylococcus epidermidis; Febre prolongada; Traumatismo abdominal


Occult abscesses are frequent causes of chronic fever. Splenic abscesses are rare entities that are usually associated with underlying conditions such as abdominal surgery, endocarditis or immunodepression. We report on the case of a patient with prolonged fever caused by a splenic abscess, whose main differential diagnosis was visceral leishmaniasis. However, this condition was probably related to abdominal trauma. The treatment consisted of antibiotics followed by splenectomy.

Splenic abscess; Staphylococcus epidermidis; Prolonged fever; Abdominal trauma


RELATO DE CASO CASE REPORT

Febre crônica associada a abscesso esplênico causado por Staphylococcus epidermidis

Chronic fever associated with splenic abscess due to Staphylococcus epidermidis

Juliana Salles de CarvalhoI, II; César Omar Carranza-TamayoI, II; Gustavo Adolfo Sierra RomeroI, II

INúcleo de Medicina Tropical, Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília, DF

IIHospital Universitário de Brasília, Brasília, DF

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Dr. Gustavo Romero Núcleo de Medicina Tropical, Caixa Postal 04517 Campus Universitário, Asa Norte, 70904-970 Brasília, DF Tel: 55 61 3273-5008. e-mail: gromero@unb.br

RESUMO

Abscessos ocultos são causa freqüente de febre crônica. Os abscessos esplênicos são entidades raras, usualmente associadas a quadros subjacentes de cirurgia abdominal, endocardite ou imunodepressão. Apresenta-se um caso de paciente com febre prolongada causada por um abscesso esplênico, cujo principal diagnóstico diferencial era leishmaniose visceral, que provavelmente esteve associado a traumatismo abdominal. O tratamento consistiu em antibioticoterapia seguida de esplenectomia.

Palavras-chaves: Abscesso esplênico. Staphylococcus epidermidis. Febre prolongada. Traumatismo abdominal.

ABSTRACT

Occult abscesses are frequent causes of chronic fever. Splenic abscesses are rare entities that are usually associated with underlying conditions such as abdominal surgery, endocarditis or immunodepression. We report on the case of a patient with prolonged fever caused by a splenic abscess, whose main differential diagnosis was visceral leishmaniasis. However, this condition was probably related to abdominal trauma. The treatment consisted of antibiotics followed by splenectomy.

Key-words: Splenic abscess. Staphylococcus epidermidis. Prolonged fever. Abdominal trauma.

Os abscessos constituem uma clássica resposta do hospedeiro à infecção causada por uma variedade de bactérias patogênicas14. O abscesso esplênico geralmente ocorre como conseqüência de uma bacteriemia secundária a endocardite infecciosa ou a dano esplênico por infarto ou trauma7 11.

Na literatura mundial, foram reportados menos de mil casos de essa afecção. Mesmo sendo esse órgão exposto constantemente a agentes infecciosos, pela sua própria função no organismo, abscessos em seu parênquima são raros1 2 11. Nas últimas décadas, alterações no estilo de vida têm resultado em acréscimo de prevalência de diabete melito, doenças malignas e imunodepressão associada a infecção pelo HIV ou uso de drogas imunossupressoras, com maior predisposição para o desenvolvimento de complicações tais como o abscesso esplênico2. Os abscessos esplênicos são considerados condição de risco para a vida dos pacientes, pois, se não tratados evoluem com letalidade de aproximadamente 100%11. O presente relato tem como objetivo descrever um caso de febre crônica causada por abscesso esplênico, cujo principal diagnóstico diferencial era leishmaniose visceral (LV).

RELATO DE CASO

RSB, 40 anos, casado, pardo, trabalhador rural, residente e procedente de área rural de Niquelândia, GO. Relatava queixa principal de perda de peso de 25kg durante os 4 meses antes da internação, associado a calafrios, náuseas e mialgia. Um mês antes da internação apresentava febre vespertina diária de 40°C, associada a sudorese intensa, dor em hipocôndrio esquerdo e plenitude pós-prandial.

Era usuário de drogas e alcoolista inveterado de fermentados. Apresentou dois episódios prévios de calazar tratados com Glucantime® em 2000 e 2001 e um episódio de malária aos 20 anos de idade. Referia condições de risco para adquirir doença de Chagas. Utilizava fossa séptica e água corrente.

Ao exame clínico apresentava regular estado geral, palidez, taquipnéia, abdome plano e tenso, doloroso à palpação de hipocôndrio e flanco esquerdos. Espaço de Traube ocupado e baço palpável a 9cm da borda costal esquerda. Demais sistemas sem alterações.

Dados laboratoriais revelaram anemia normocítica - normocrômica (Hb=10,4g/dL), leucócitos de 12.400/mm3 com 2% de bastões, 74% de segmentados, 1% de eosinófilos, 20% de linfócitos e 3% de monócitos. Plaquetas de 218.000/mm3. O exame sumário de urina mostrou 12 piócitos por campo.

Os testes sorológicos para Brucella, citomegalovírus, doença de Chagas, hepatites virais, mononucleose, Salmonella, sífilis, Toxoplasma, e HIV apresentaram resultados negativos. A avaliação da medula óssea por meio de exame direto, PCR com alvo de amplificação de k-DNA3 e cultura de Leishmania spp resultaram negativos. A gota espessa era negativa. As culturas de escarro, de medula óssea e de sangue mostraram-se negativos.

A doença evoluiu com febre diária até o décimo dia de internação, quando a tomografia computadorizada revelou coleção esplênica de 16 x 13 x 20cm, sugestiva de hematoma (Figuras 1 e 2). Nova anamnese revelou traumatismo abdominal fechado antes do início do quadro.



Devido à anemia o paciente recebeu hemotransfusão e iniciou tratamento antibiótico com ciprofloxacina e metronidazol, sendo submetido a esplenectomia, sem intercorrências. Havia abscesso esplênico com cultura positiva para Staphylococcus epidermidis sensível à oxacilina e vancomicina. Ele recebeu alta quatro dias após a operação em bom estado geral e não retornou para o acompanhamento.

DISCUSSÃO

Os abscessos esplênicos são encontrados com maior freqüência no sexo masculino, com idade variando entre 35 e 45 anos17. Na literatura, a maioria dos abscessos esplênicos são solitários e uniloculares, com diâmetro entre 1-18cm, e os patógenos implicados variam15. O abscesso esplênico ocorre geralmente em indivíduos com fatores predisponentes como hemoglobinopatias, endocardite e imunossupressão7 11. Esse relato demonstra o desenvolvimento de coleção supurativa em baço de um paciente sem a síndrome de imunodeficiência adquirida, no entanto, os antecedentes de abuso crônico de álcool e outras substâncias impediram categorizá-lo como completamente imunocompetente. O achado que mais chamou a atenção foi a cronicidade do quadro que se prolongou por quatro meses.

Estudo de Lambertucci cols9 sugere relação entre parasitoses e abscessos piogênicos. As parasitoses levariam a mudança no padrão de resposta imune (Th1 para Th2), conferindo maior suscetibilidade para o desenvolvimento deste tipo de infecções. Outros estudos, como o de Wang e Chadee16, associam infecções parasitárias, como a causada por Entamoeba histolytica com um estado de supressão transitória da imunidade celular, com alterações em metabolismos específicos como na formação do ácido araquidônico em macrófagos. Esse mecanismo, à semelhança do citado anteriormente poderia contribuir e explicar o desenvolvimento de acometimentos mais observados em sujeitos conhecidamente imunossuprimidos do que naqueles imunocompetentes.

A implantação hematogênica do processo infeccioso é o mecanismo patológico habitual, geralmente em 75% dos casos, embora possam originar-se da disseminação de uma infecção adjacente, de traumatismo direto do baço e em pacientes imunossuprimidos10 17. Segundo Goins cols8 em estudo relacionando trauma abdominal fechado e abscesso intra-abdominal foi verificado que a maioria dos traumas ocorriam em abdome superior, evoluindo para abscesso principalmente em baço e fígado numa população de 325 pacientes.

O processo de formação dos abscessos intra-abdominais parece envolver os linfócitos T, mas o mecanismo desse envolvimento permanece incerto. Estudo de Tzianabos cols15, a tentativa de esclarecer mais esses mecanismos, demonstrou que os patógenos promovem a resposta do hospedeiro na formação dos abscessos via ativação de linfócitos T CD4+, requerendo um segundo sinal das células apresentadoras de antígenos14.

Os sinais e sintomas mais freqüentes do abscesso esplênico são a esplenomegalia, febre e dor abdominal7 11 17. As bactérias mais comumente associadas a esse quadro incluem Staphylococcus aureus, Pseudomonas spp, e a família Enterobacteriaceae, apesar de publicações demonstrarem outras etiologias, como abscessos causados por Salmonella e por espécies de Brucella7 9 13. Patógenos não comumente encontrados como causa dessa patologia, assim como a flora normal do indivíduo, devem ser considerados na investigação dos abscessos esplênicos, como demonstrado por García cols6 onde a causa do abscesso fora Streptococcus bovis.

O dado laboratorial mais freqüente é a leucocitose com desvio à esquerda17, sendo encontrados com alterações discretas. Cultura para anaeróbios e aeróbios deve ser solicitada rotineiramente para esses casos4.

O diagnóstico é realizado com o apoio de exames de imagem como ultra-sonografia ou tomografia computadorizada de abdome, com sensibilidade diagnóstica de 80 a 90% e 95 a 100%, respectivamente5 17. A ressonância magnética constitui uma boa alternativa para diagnóstico diferencial5.

O tratamento de escolha é a esplenectomia associada à antibioticoterapia com espectro para aeróbios e anaeróbios, como a reportada por esse trabalho. Em casos selecionados, como nos imunossuprimidos com abscesso único sem septações, a drenagem percutânea se mostra como alternativa viável, sendo relatada na literatura com taxas importantes de sucesso11. No caso relatado no presente trabalho, o paciente possuía suspeita de conteúdo hemorrágico, o que é relacionado ao mau prognóstico com a drenagem percutânea.

Nas últimas décadas, grandes alterações têm ocorrido no tratamento de lesões esplênicas. Isso devido ao conhecimento de que a susceptibilidade às infecções é maior em indivíduos esplenectomizados. Cada vez mais o manejo não-cirúrgico do traumatismo esplênico vem substituindo a esplenectomia como método mais comum de preservação do baço, em indivíduos que cumprem alguns critérios nos exames radiológicos e se mantém hemodinamicamente estáveis12.

Dentro do diagnóstico diferencial de síndrome febril e esplenomegalia de várias semanas de duração, como no presente caso, devem ser pesquisadas doenças mieloproliferativas, sarcoidose, doenças de depósito, brucelose, mononucleose infecciosa, citomegalovirose aguda, doença de Chagas aguda, hepatites virais, salmoneloses, sífilis, toxoplasmose, leishmaniose visceral, esquistossomose com enterobacteriose prolongada, HIV, endocardite, tuberculose e malária.

O relevante do presente caso é chamar a atenção para a possibilidade da negligência no diagnóstico de um abscesso esplênico em paciente com antecedentes de dois episódios de leishmaniose visceral que continuava morando em área endêmica e que apresentava quadro crônico de febre e perda de peso; e a necessidade de valorização adequada de antecedentes de traumatismo que poderiam constituir risco para desenvolver o abscesso.

Recebido para publicação em: 28/05/2007

Aceito em: 24/08/2007

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  • Endereço para correspondência:
    Dr. Gustavo Romero
    Núcleo de Medicina Tropical, Caixa Postal 04517
    Campus Universitário, Asa Norte, 70904-970 Brasília, DF
    Tel: 55 61 3273-5008.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Aceito
      24 Ago 2007
    • Recebido
      28 Maio 2007
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