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Apresentação

DOSSIÊ CIDADE E PODER

Apresentação

Nelson Rosário de Souza

A Revista de Sociologia e Política e o Grupo de Estudos Cidade, Poder e Sociedade, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais (DECISO) da Universidade Federal do Paraná, promoveram com sucesso, em fins de abril de 2001, o Simpósio "Cidade e Poder". O evento científico propiciou o encontro de diferentes pesquisadores que revelaram afinidade na abordagem crítica do fenômeno urbano. O debate de idéias e a avaliação mútua dos resultados das pesquisas apresentadas no Simpósio contribuíram para a organização do dossiê "Cidade e Poder" que a Revista de Sociologia e Política tem agora a satisfação de apresentar aos seus leitores.

Ao longo do processo de construção da sociedade moderna, a cidade apresentou-se como o lugar fundamental da realização do novo "projeto" social e da emergência das suas ambigüidades. Só recentemente, entretanto, o pensamento social crítico mobilizou suas forças no sentido de superar a concepção do urbano como mero cenário das disputas políticas ou como simples máquina reprodutora das contradições econômicas fundamentais. Pesquisadores inquietos passaram a valorizar a dimensão positiva, isto é, constitutiva do espaço urbano. A forma assumida pelo espaço, as representações construídas sobre os lugares, as disputas materiais e simbólicas dos diferentes agentes sociais pela hegemonia no desenho urbano revelaram, para o olhar crítico, uma cidade também produtora de sujeitos, comportamentos, estratégias; enfim, resistências.

Valorizar o espaço não significa, contudo, ignorar o papel das instituições tradicionais na formação do jogo urbano e da dimensão social. As novas abordagens do pensamento social crítico permitem, por exemplo, pensar a ação horizontal de diferentes atores urbanos diante da verticalidade do poder do Estado. O controvertido fenômeno da globalização, ao afrontar a capacidade política do Estado nacional, parece, contraditoriamente, conferir um papel renovado aos poderes localizados na cidade. Os fluxos liberados pela globalização buscam uma codificação no espaço urbano, o que solicita a padronização de lugares e sujeitos urbanos. Urbanistas e gestores urbanos em geral experimentam novas ondas de ressignificação da cidade. O recente surgimento de temas como "planejamento estratégico", "gestão urbana", "governabilidade" e "governança urbana" evidenciam o novo valor conferido ao espaço e ao poder local. É nessa cidade, forçada a dialogar com a economia global, que emergem também novos atores, novas estratégias de resistência e uma reacomodação de forças sociais. Esses acontecimentos recentes, difíceis de serem tematizados na sua generalidade, solicitam pesquisas empíricas capazes de alimentar o debate sobre os caminhos explicativos da experiência urbana atual. Daí a oportunidade e o interesse do dossiê "Cidade e Poder".

Dentro dos limites do formato editorial proposto, os autores deste dossiê abordam com profundidade, a partir dos resultados concretos de pesquisas recentes, a temática da cidade associada à globalização, ao papel do Estado e ao lugar dos agentes urbanos.

A economia capitalista em sua fase globalizada não promove apenas transformações econômicas em cadeia. Articula-se também a uma rede de poderes locais que, sob a influência de agências multilaterais, competem entre si num mercado mundial de cidades. Os efeitos desse processo podem ser percebidos na produção do espaço urbano: seja na (de)formação política dos habitantes da cidade, seja na elaboração de novas estratégias — técnicas e científicas — de enfrentamento da questão urbana pelos gestores das cidades.

Os sinais de uma crescente hegemonia do mercado global ficam evidentes na padronização do discurso sobre o urbano e das intervenções no espaço da cidade. A palavra de ordem é moldar a cidade, realçando suas diferenças positivas diante de outros centros urbanos. O desenho urbano obedece, no contexto de globalização, às estratégias de competição por capitais capazes de integrar a cidade ao mercado mundial.

É interessante observar a penetração desses "princípios" até mesmo no processo eleitoral. Momento fundamental da democracia representativa moderna, as eleições municipais (elas também um fenômeno urbano) testemunham a contaminação de diferentes candidaturas pelo discurso hegemônico sobre a cidade. No entanto, ao menos no caso das eleições para Prefeito em Curitiba, no ano 2000, foi possível surpreender certas fissuras no discurso hegemônico e a emergência de vozes alternativas sobre a cidade e seus problemas.

Para ficar na mesma cidade: como a construção do espaço e dos habitantes pelo planejamento passado pode explicar os caminhos recentes da gestão urbana em Curitiba? Essa é uma entre outras questões presentes no diálogo travado pelas abordagens dos diferentes autores neste dossiê.

Discute-se aqui a procedência da gestão urbana planificada na cidade de Curitiba. Sustenta-se que observar historicamente a construção discursiva que, articulada às intervenções urbanas, constituíram, no passado recente, Curitiba como cidade modelo de planejamento técnico é um procedimento que pode fazer compreender os movimentos atuais dos mesmos agentes técnicos e políticos que se perpetuaram à frente da administração municipal.

Ainda na chave do discurso técnico dos urbanistas curitibanos, outro artigo investiga as contradições da construção da imagem de Curitiba como cidade ecológica racionalmente concebida. Os motivos para construção dos parques urbanos, em Curitiba, não são aqueles defendidos pelo urbanismo ecológico: o discurso ecológico dos urbanistas curitibanos é posterior à obra. O investimento em marketing na produção da imagem da cidade é uma das explicações para o descompasso entre discurso e realidade.

Como diferentes grupos se organizam na luta concreta pela construção de lugares hegemônicos na cidade? Como se relacionam com o Estado na busca de reconhecimento para suas demandas? Qual a eficácia desses grupos para transformar suas reivindicações em políticas públicas? Quais os efeitos distributivos dessas políticas urbanas e como os habitantes da cidade vivem essas experiências? Como o Estado efetivamente atua na construção do espaço urbano? São questões enfrentadas em dois artigos que têm como foco a cidade de São Paulo.

Ao contrário do que afirma parte da bibliografia especializada sobre o tema, não é possível estabelecer uma relação direta e imediata entre os gastos do Estado e os interesses de classe. Um conjunto complexo de elementos constróem, a cada tempo, a política urbana. O que não impede, entretanto, a identificação de padrões de atuação opostos para diferentes grupos político-ideológicos.

Do processo de conquista ou confirmação de uma hegemonia que é também espacial, é possível perceber o funcionamento de um rico jogo político no qual mercado, cidadania, poder e resistência estão presentes. A análise dos desdobramentos recentes dessa luta de grupos sociais organizados em disputa pela "centralidade" em São Paulo oferece explicações persuasivas sobre a drenagem dos recursos da cidade para determinados locais, sobre os efeitos desse processo na população e sobre as estratégias de ação política de cada interesse coletivo organizado. A investigação completa-se ao ressaltar a oportunidade de uma ação política que reverta as tendências atuais de radicalização da segregação espacial paulistana.

A apresentação de uma obra não deve adiantar todos os resultados e desfazer todas as surpresas. Assim como a cidade possui suas sombras e luzes, o dossiê aqui apresentado tem uma variedade de caminhos e paisagens teóricas que só poderão ser elucidados com a visita do leitor.

A Revista de Sociologia e Política e seus editores esperam que o público possa usufruir deste dossiê neste importante momento, quando transformações legais no ordenamento urbano estão efetivando-se em meio a múltiplas indagações.

Nelson Rosário de Souza (nrdesouza@uol.com.br) é Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2002
  • Data do Fascículo
    Jun 2001
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