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Prevalência da violência contra a mulher usuária de serviço de saúde

Resumos

OBJETIVO: A violência contra a mulher cometida por parceiro íntimo é fenômeno complexo e um problema de saúde pública, e o serviço de saúde é um dos locais mais procurados por mulheres nessa situação. O objetivo do estudo foi determinar a prevalência desse tipo de violência entre as usuárias de um centro de saúde distrital. MÉTODOS: O estudo foi realizado em Ribeirão Preto, SP, em 2003. Uma amostra de 265 mulheres, de 18 a 49 anos, foi entrevistada utilizando-se um questionário aplicado face a face. A violência foi classificada em psicológica, física, sexual e geral. As análises estatísticas utilizadas foram regressão logística exata e o teste exato de Fisher. RESULTADOS: A violência psicológica ocorreu pelo menos uma vez na vida para 41,5%, violência física para 26,4% e violência sexual para 9,8%; 45,3% referiram ocorrência de qualquer um dos tipos de violência, das quais 20,3% em até 12 meses antecedendo a entrevista; 22,3% afirmaram ter sofrido violência alguma vez na vida. A análise multivariada mostrou os fatores de risco detectados para cada tipo de violência: violência psicológica e geral - uso de drogas pelo companheiro, condição socioeconômica e violência na família; violência física - uso de drogas pelo companheiro, escolaridade e violência na família; violência sexual - condição socioeconômica e violência na família. CONCLUSÕES: Os resultados mostraram que a prevalência da violência entre as usuárias de centro de saúde foi alta e compatível com os resultados encontrados em outras investigações e sugere também sua invisibilidade para o serviço de saúde.

Violência; Mulheres maltratadas; Maus-tratos conjugais; Fatores de risco; Prevalência


OBJECTIVE: Intimate partner abuse is a complex phenomenon and a public health problem and health care services are one of the places sought by women in this situation. The objective of this study was to assess the prevalence of violence against women attending a health care center. METHODS: This study was carried out in a municipality of Southeastern Brazil, in 2003. A sample of 265 women, aged 18 to 49 years old, was interviewed using a questionnaire administered face-to-face. Violence was classified as psychological, physical, sexual and general. Statistical analyses utilized were exact logistic regression and Fisher's exact test. RESULTS: Psychological violence, at least once in life, was reported by 41.5%, physical violence by 26.4%, and 9.8% reported sexual violence. “General violence”, which refers to anyone of the above mentioned types of violence, was reported by 45.3% of the women, and, in 20.3% of the cases, they stated it had occurred during the last 12 months before the interview. However, when asked whether they had suffered any kind of violence in life, only 22.3% answered affirmatively. The multivariate analysis indicated that the risk factors for each type of violence were: drug use by the partner, socioeconomic status and family history of violence for both psychological and general violence; drug use by the partner, schooling and family history of violence for physical violence; and, socioeconomic status and family history of violence for sexual violence. CONCLUSIONS: This study indicates that the prevalence of violence among women attending the health center is high and consistent with the results of other investigations. It also suggests that most of the violence is invisible to the health center.

Violence; Battered women; Spouse abuse; Risk factors; Prevalence


Prevalência da violência contra a mulher usuária de serviço de saúde

André Luis Valentini Marinheiro; Elisabeth Meloni Vieira; Luiz de Souza

Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Elisabeth Meloni Vieira Departamento de Medicina Social Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP Av. dos Bandeirantes, 3900 2 º andar 14049-900 Ribeirão Preto, SP, Brasil E-mail: bmeloni@fmrp.usp.br

RESUMO

OBJETIVO: A violência contra a mulher cometida por parceiro íntimo é fenômeno complexo e um problema de saúde pública, e o serviço de saúde é um dos locais mais procurados por mulheres nessa situação. O objetivo do estudo foi determinar a prevalência desse tipo de violência entre as usuárias de um centro de saúde distrital.

MÉTODOS: O estudo foi realizado em Ribeirão Preto, SP, em 2003. Uma amostra de 265 mulheres, de 18 a 49 anos, foi entrevistada utilizando-se um questionário aplicado face a face. A violência foi classificada em psicológica, física, sexual e geral. As análises estatísticas utilizadas foram regressão logística exata e o teste exato de Fisher.

RESULTADOS: A violência psicológica ocorreu pelo menos uma vez na vida para 41,5%, violência física para 26,4% e violência sexual para 9,8%; 45,3% referiram ocorrência de qualquer um dos tipos de violência, das quais 20,3% em até 12 meses antecedendo a entrevista; 22,3% afirmaram ter sofrido violência alguma vez na vida. A análise multivariada mostrou os fatores de risco detectados para cada tipo de violência: violência psicológica e geral - uso de drogas pelo companheiro, condição socioeconômica e violência na família; violência física - uso de drogas pelo companheiro, escolaridade e violência na família; violência sexual - condição socioeconômica e violência na família.

CONCLUSÕES: Os resultados mostraram que a prevalência da violência entre as usuárias de centro de saúde foi alta e compatível com os resultados encontrados em outras investigações e sugere também sua invisibilidade para o serviço de saúde.

Descritores: Violência, classificação. Mulheres maltratadas. Maus-tratos conjugais. Fatores de risco. Prevalência, estatística e dados numéricos.

INTRODUÇÃO

A violência praticada contra as mulheres é conhecida como violência de gênero porque se relaciona à condição de subordinação da mulher na sociedade. Incluem-se a agressão física, sexual, psicológica e econômica.2 A desigualdade de poder entre gêneros estaria na gênese de situações de disputa e de ocorrência de violência.

Vários autores afirmam que a violência de gênero sofre influência de fatores sociais, tais como escolaridade, desemprego, uso de álcool ou drogas.1,2,8,14

A violência contra a mulher apresenta sob muitas formas, como estupros, assassinatos, crimes de guerra, prostituição forçada, abuso de meninas, tráfico de mulheres, mutilação genital e outros. Quando ocorre em ambiente doméstico, apresenta características específicas, sendo, na maioria das vezes, perpetrada pelo parceiro, ex-parceiro, familiares, conhecidos e se repetindo em ciclos (Heise apud Schraiber et al10).

A violência contra a mulher cometida por parceiro íntimo é um fenômeno complexo que vem sendo encarado como problema de saúde pública, não somente devido às suas complicações, mas também ao fato de o serviço de saúde ser um dos locais mais procurados por mulheres nessa situação.9 Porém, fatores como a insensibilidade e a falta de capacitação dos profissionais de saúde, a tendência à medicalização dos casos e a pouca articulação entre os diferentes setores da sociedade, tornam o problema ainda mais complexo e de difícil abordagem.

Entre 10 a 50% das mulheres em todo o mundo sofreram alguma forma de violência física, perpetrada por seus parceiros íntimos em algum momento de suas vidas.2 Comparativamente, o risco de uma mulher ser agredida por seu companheiro, dentro de seu lar, é quase nove vezes o risco de ser vítima de violência na rua.5 Pesquisas4 mostram altas prevalências de violência de gênero entre as usuárias dos serviços de saúde. MacCauley et al (apud Schraiber et al10) encontraram freqüência de 21,4% das mulheres relatando violência doméstica a partir dos 18 anos. Em serviços de emergência, as ocorrências variam de 22 a 35% durante a vida da mulher.10

Estudo11 de prevalência de violência contra a mulher na Grande São Paulo mostrou que 40% das usuárias de 19 serviços de saúde relataram ocorrência de algum tipo de violência, pelo menos uma vez na vida.

Apesar de freqüente, apresentando prevalência mais alta do que muitas patologias, a violência de gênero sofre uma invisibilidade de origem social. Destaca-se nessa invisibilidade a difusão da idéia de que a violência entre parceiros íntimos é um problema privado, que só pode ser resolvido pelos envolvidos. As normas e leis da sociedade, até recentemente, permitiam ou não puniam a violência de gênero, como nos casos de assassinatos de mulheres em que se alegava a defesa da honra. As escolas formadoras de profissionais da saúde não preparam para o manejo de casos de violência, o que pode contribuir para sua não detecção.

A procura pelo serviço de saúde decorre da necessidade de cuidado provocada pela violência física, pelas seqüelas psicológicas, além de sintomas vagos e dores inexplicáveis.4 Muitas vezes a mulher não se dispõe a relatar os episódios de violência que sofre, mantendo o problema oculto, dificultando seu diagnóstico. Além disso, a falta de instrumentos de acolhimento e arsenal resolutivo para o problema faz com que os profissionais de saúde compactuem com essa invisibilidade.13

Em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, não existem estudos de prevalência de violência contra a mulher, embora uma pesquisa (Santos, 2003* * Santos LL. A invisibilidade da violência de gênero em dois serviços de Atenção Primária à Saúde [dissertação de mestrado]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2003. ) de levantamento de prontuários de usuárias de um serviço de saúde tenha registrado 3,3% de casos de violência. Nessa pesquisa havia nove registros de violência em prontuários de uma amostra de 273 mulheres.

Considerando o exposto, teve-se por objetivo determinar a prevalência de violência cometida contra mulheres entre usuárias de serviço de saúde. Procurou-se identificar as características dessas mulheres e estudar fatores associados a situações de violência de gênero. O presente artigo enfoca especificamente a violência contra mulheres cometida por parceiro íntimo.

MÉTODOS

O estudo é do tipo quantitativo e transversal, com aplicação de questionário em um grupo de mulheres escolhidas aleatoriamente entre usuárias que procuraram atendimento clínico ou ginecológico, no ano de 2002, em um centro de saúde distrital de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo.

Da lista de usuárias que freqüentaram o serviço em 2002 (N=808) calculou-se uma amostra de 265 mulheres considerando um intervalo de confiança de 95% e um erro de amostragem de 5%, para a proporção de prevalência de violência.

Para obter este número amostral foram realizadas visitas a 564 mulheres, nos endereços que constavam no prontuário médico na referida instituição. Desse total, as perdas foram de 299 mulheres, das quais 278 (49%) não moravam no endereço, 19 (3,3%) se recusaram a participar e 2 (0,3%) haviam falecido anteriormente ao início da pesquisa.

O questionário foi aplicado por meio de entrevistas realizadas no período de primeiro de maio a 30 de junho de 2003. As mulheres foram entrevistadas de forma individualizada, preferencialmente em seu domicílio, ou em outro local seguro, após contato inicial com uma entrevistadora. Esta foi devidamente selecionada e treinada para esse fim. Os critérios de inclusão no estudo foram: ter entre 18 e 49 anos de idade na época da consulta médica e concordar em participar da pesquisa, assinando o termo de consentimento informado. Precedendo a coleta de dados, realizou-se o pré-teste do questionário para verificar a linguagem e compreensão das perguntas.

O questionário compreendeu 52 perguntas, elaborado a partir de outros instrumentos8,11,** ** Pesquisa "Saúde da Mulher, Relações Familiares e Serviços de Saúde", realizada na cidade de São Paulo pela Profa. Lilia Blima Schraiber, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. [Dados inéditos] construídos com base nos questionários Conflict Tactics Scale (CTS), de Straus12 e no Abuse Assessment Screening6 (AAS). O instrumento define a violência em três tipos distintos:

• Violência física - empurrão, tapa, soco, chute ou surra, estrangulamento ou uso de arma de fogo ou branca.

• Violência psicológica - insulto, humilhação, intimidação ou ameaça.

• Violência sexual - ser forçada fisicamente a praticar sexo, praticar sexo por medo ou intimidação, ou praticar sexo de forma degradante.

Para efeito de análise, criou-se uma variável denominada "violência geral" que considerou qualquer uma dessas três manifestações de violência.

Por se tratar de tema no qual os envolvidos estão em situação de vulnerabilidade, foram tomados cuidados especiais na condução das entrevistas. Esses foram: realização em local seguro para a entrevistada e entrevistadora, apoio para a entrevistada e entrevistadora nos casos agudos de violência ou em situações de risco, comunicação às unidades de saúde da área do trabalho de campo sobre a realização da pesquisa para que acolhessem as mulheres que fossem identificadas como vítimas de violência ou em situações de vulnerabilidade, disponibilidade dos pesquisadores para apoio das entrevistadoras em caso de necessidade. Além desses cuidados, preservou-se a privacidade das entrevistadas e manteve-se sob sigilo sua identidade. Não houve nenhum caso de mulheres que necessitasse de atenção ou apoio durante a pesquisa, embora houvesse equipe preparada para tanto.

As variáveis estudadas incluem a caracterização sociodemográfica das usuárias como idade, escolaridade, cor (auto-referida), religião, classificação socioeconômica,*** *** Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (ABEP). Critério de Classificação Econômica Brasil. Disponível em http://www.abep.org/codigosguias/ABEP-CCEB.pdf [acesso em 26 jun 2006] estado marital, número de filhos, idade na primeira relação e a caracterização da violência, uso de álcool e drogas e antecedentes de violência na família de origem. A variável antecedente de violência na família foi criada a partir de duas categorias: ter abandonado a família de origem devido à violência e ter sofrido violência de mãe, pai ou irmãos.

Para a análise estatística utilizou-se a metodologia de regressão logística exata e o teste exato de Fisher. As variáveis selecionadas basearam-se em fatores que poderiam estar associados à violência sugeridos por outros estudos.14,15 As variáveis estudadas foram categorizadas: idade da entrevistada (18 a 29 anos, 30 a 39 anos, 40 a 49 anos), classificação socioeconômica (categorias A e B, categoria C e categoria D e E), escolaridade da entrevistada (menor ou maior que primeiro grau), cor (branca ou não branca), uso ou não de drogas pelo companheiro e antecedente ou não de violência na família. A variável "estado marital" também foi coletada, mas foi descartada como fator de risco porque se referia à situação da entrevistada no momento da pesquisa e não à época de ocorrência de violência.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo e contemplou todos os aspectos éticos previstos na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde.

RESULTADOS

As usuárias tinham, em média, 34,6 anos de idade, sendo a maioria alfabetizada (96,2%), pouco mais da metade freqüentou a escola até o primeiro grau (51,9%), se referiram como sendo de cor branca (58,5%), praticantes da religião católica (55,8%), estavam casadas legalmente (45,4%) ou viviam com o companheiro na época da entrevista (59,2%), estavam desempregadas ou se referiram como do lar (41,9%). Moravam em casa própria (58,5%) e pertenciam à categoria social C (40%), tiveram sua primeira relação sexual entre 15 e 19 anos de idade (57,1%) e têm filhos (71,7%). A maioria não usava ou usava apenas ocasionalmente algum tipo de bebida alcoólica (75,9%).

A violência física ocorreu alguma vez na vida para 26,4% das entrevistadas, das quais 40% relataram que a violência ocorreu nos últimos 12 meses. Das entrevistadas, 41,5% sofreram pelo menos um episódio de violência psicológica alguma vez na vida, sendo que até 44,2% destes episódios ocorreram nos últimos 12 meses anteriores à entrevista. No caso de sofrer violência sexual alguma vez na vida, 9,8% das mulheres entrevistadas referiram afirmativamente, sendo que 72,7% dos episódios ocorreram nos últimos 12 meses.

A "violência geral" ocorreu em 45,3% das mulheres, das quais 20,3% relataram que a violência foi cometida nos 12 meses antes da entrevista.

Quando perguntadas explicitamente se haviam sofrido qualquer tipo de violência alguma vez na vida, 59 (22,3%) das mulheres responderam afirmativamente.

A Tabela 1 mostra as percentagens de cada tipo de violência nos níveis de cada variável e a Tabela 2 mostra as razões de chances estimadas e os seus correspondentes intervalos de confiança obtidos na análise multivariada.

Os resultados das análises univariadas, referentes aos fatores que podem estar associados a cada tipo de violência e à violência geral, são apresentados na Tabela 1. Nessas análises, as variáveis que apresentaram o valor de p<0,20 foram incluídas no modelo de regressão logística multivariado exato. Com esse critério, descartou-se a idade como fator de risco para qualquer tipo de violência.

As variáveis escolaridade, classificação socioeconômica e violência na família foram incluídas nos quatro modelos multivariados para as violências. Além delas, foram incluídas o uso de drogas pelo companheiro (com exceção do modelo para violência sexual) e a cor (com exceção do modelo para violência psicológica).

Em nenhum dos modelos multivariados, a cor apresentou-se como fator de risco significante e, em praticamente todos, a violência na família, cuja razão de chances estimada oscilou em torno de 2,6, foi significante. A chance estimada de mulheres com antecedentes de violência na família sofrerem qualquer tipo de violência é 2,6 vezes a chance de mulheres sem antecedentes (Tabela 2). Observa-se que 65,1% das mulheres com antecedentes de violência na família sofreram algum tipo de violência (violência geral), contra 41,4% das mulheres sem esse precedente (Tabela 1).

O uso de drogas pelo companheiro só não foi significante no modelo para violência sexual; para as violências psicológica, física e geral, as razões de chance foram 7,8, 9,9 e 6,4, respectivamente. Das mulheres cujos companheiros usam drogas, 80% foram vítimas de algum tipo de violência, contra 44,6% das mulheres de companheiros que não usam drogas.

A categoria socioeconômica só não foi significante no modelo para violência física; as razões de chances para as violências psicológica, sexual e geral foram 2,3, 3,4 e 2,3, respectivamente. Das mulheres das categorias D e E, 54,6% sofreram algum tipo de violência, contra 35,0% das mulheres da categoria C.

A escolaridade só teve significância para violência física, em que substituiu a condição socioeconômica, e teve a razão de chances estimada em 2,2. Mulheres com menor escolaridade (até o primeiro grau) sofrem mais violência física (32,4%) do que mulheres mais instruídas (19,8%).

Resumindo, os fatores de risco detectados para cada tipo de violência são: uso de drogas pelo companheiro, condição socioeconômica e violência na família (violência psicológica); uso de drogas pelo companheiro, escolaridade e violência na família (violência física); condição socioeconômica e violência na família (violência sexual); uso de drogas pelo companheiro, condição socioeconômica e violência na família (violência geral).

DISCUSSÃO

O presente estudo mostrou que a prevalência da violência entre as usuárias do serviço estudado é alta e compatível com a prevalência de violência de gênero encontrada em outras investigações,3,7,10,14 mostrando semelhanças com os resultados encontrados.

Em pesquisa realizada com mulheres sul-africanas, entrevistadas no próprio domicílio, entre 19,1 e 28,4% referiram algum episódio de violência física cometida pelo companheiro ou ex-companheiro, alguma vez na vida.3 Estudo desenvolvido em um bairro da cidade de Barranquilla, Colômbia, que entrevistou no domicílio 275 mulheres em idade reprodutiva, encontrou 22,9% de relatos de violência doméstica alguma vez na vida.14 Outra pesquisa, realizada em Guadalajara, México, mostrou que 46% das entrevistadas referiram algum tipo de violência cometida pelo companheiro ou ex-companheiro; 33% referiram algum tipo de violência psicológica, 19% violência física e 12% algum episódio de violência sexual.7 No Município de São Paulo,10 uma investigação com usuárias de uma unidade básica de saúde com idade entre 15 e 49 anos, encontrou 44,4% das usuárias relatando ocorrência de episódio de violência física e 11,5% de violência sexual, alguma vez na vida. Esses resultados foram semelhantes aos do presente estudo, que encontrou respectivamente 45,3% e 9,8% para as mesmas categorias de violência.

Pode-se afirmar que existe invisibilidade da violência. Em outro estudo,* * Santos LL. A invisibilidade da violência de gênero em dois serviços de Atenção Primária à Saúde [dissertação de mestrado]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2003. baseado em levantamento de prontuários de população moradora na mesma localidade do presente estudo, o registro de ocorrência de violência (3,3%) contrasta com a prevalência encontrada (45,3%). Isso sugere que apenas pequena parte das usuárias se identifica ou é identificada pelo serviço como vivendo em situação de violência.

Apenas uma parcela das mulheres reconhece a violência, sendo invisível para muitas delas. Embora 45,3% tenham relatado ocorrência de violência pelo menos uma vez na vida, apenas a metade (22,3%) reconhece o que lhes ocorreu como violência.

Em relação aos fatores associados à ocorrência de violência, verificaram-se associações entre alguns tipos de violência e menores condições socioeconômicas, menor escolaridade e uso de drogas pelo companheiro e antecedentes de violência na família. Menor escolaridade apresentou-se como fator de risco para violência física e não para outros tipos. Em revisão da literatura realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)4 não há indícios conclusivos de associação entre condição socioeconômica ou escolaridade, indicando que estudos ora apresentam essa associação, ora esta não está presente. Entretanto, os autores desse artigo afirmam que há evidências de maior risco de violência física na presença de pobreza ou desigualdade. Em relação aos antecedentes de violência na família, estudos no mundo todo apontam que os abusos são mais evidentes entre as mulheres cujos maridos apanharam ou viram suas mães apanhar, o que não foi perguntado na presente pesquisa. Entretanto, o antecedente de violência familiar da mulher que sofre violência poderia significar maior tolerância à violência por parte dessa mulher.

Uma observação deve ser feita com relação à associação entre estado marital (ou estado civil) e violência. Estudos4 relatam a sua existência, porém isto não foi investigado, pois em princípio, mulheres divorciadas ou viúvas têm mais chance de serem agredidas do que as casadas, e mais ainda do que as solteiras, pois já foram casadas e também solteiras. Sugere-se para futuras pesquisas que na coleta de informações seja registrado o estado marital (ou civil) da época da ocorrência da violência.

Embora o problema da violência seja complexo, assim como sua resolução, acredita-se que o primeiro passo para abordá-lo é tirá-lo da invisibilidade. Algumas medidas têm sido propostas para diminuir a sua invisibilidade nos serviços de saúde. Reconhecendo a violência de gênero como problema de saúde pública, a OMS16 propõe que haja capacitação de profissionais para reconhecê-la e abordá-la por meio do acolhimento; reconhecer a integridade das mulheres como sujeitos com direitos humanos; informá-las sobre os recursos da sociedade, tais como delegacias de mulheres e casas-abrigo; e reconhecer as situações de risco de vida para proteger a paciente, trabalhando em articulação com os outros setores da sociedade.

Em relação às limitações da presente pesquisa, o tamanho da amostra não permitiu que fosse explorada com profundidade a associação entre o uso de drogas do companheiro e a ocorrência de violência. Além disso, por se restringir à população de usuárias de um único serviço de saúde, a prevalência de violência encontrada não pode ser generalizada para todo o município. Mesmo assim, acredita-se que possa servir como motivação para o desenvolvimento de estudos semelhantes na cidade, de maneira que, caracterizando melhor a violência de gênero, sejam criadas políticas locais para combatê-la.

AGRADECIMENTOS

À Prof. Dra. Lília Blima Schraiber, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pela cessão do questionário utilizado e pelas valiosas sugestões para a realização da pesquisa.

Recebido: 30/3/2005 Revisado: 21/9/2005 Aprovado: 16/2/2006

Financiado pela Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência (FAEPA) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

Baseado em dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, em 2004.

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  • Correspondência | Correspondence:
    Elisabeth Meloni Vieira
    Departamento de Medicina Social
    Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP
    Av. dos Bandeirantes, 3900 2
    º andar
    14049-900 Ribeirão Preto, SP, Brasil
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  • *
    Santos LL. A invisibilidade da violência de gênero em dois serviços de Atenção Primária à Saúde [dissertação de mestrado]. Ribeirão Preto: Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 2003.
  • **
    Pesquisa "Saúde da Mulher, Relações Familiares e Serviços de Saúde", realizada na cidade de São Paulo pela Profa. Lilia Blima Schraiber, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. [Dados inéditos]
  • ***
    Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas (ABEP). Critério de Classificação Econômica Brasil. Disponível em
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2006

    Histórico

    • Aceito
      16 Fev 2006
    • Revisado
      21 Jun 2005
    • Recebido
      30 Mar 2005
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