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Considerações sobre a epidemiologia dos primeiros casos autóctones de doença de Chagas registrados em Belém, Pará, Brasil

Observations on the epidemiology of the first autochthonous cases of Chagas' disease in Belém, State of Pará, Brazil

Resumos

Quatro casos de doença de Chagas são registrados numa família em Belém, Pará, Brasil. Acredita-se que a infecção foi adquirida em Belém. Como não foram encontrados triatomíneos na casa dos doentes, nem nas residências vizinhas, sugere-se que outros meios de transmissão devem ser considerados, por exemplo a transmissão "per os".


Four cases of Chagas' Disease are recorded in a single family from Belém, Pará, Brazil. The authors feel that these infections were acquired in Belém. However, the were unable to find any reduviid bugs in the house and surrounding dwelling places and suggested that other methods of transmission might be considered, for instance per os.


ARTIGO ORIGINAL

Considerações sobre a epidemiologia dos primeiros casos autóctones de doença de Chagas registrados em Belém, Pará, Brasil

Observations on the epidemiology of the first autochthonous cases of Chagas' disease in Belem, State of Pará, Brazil

Jeffrey ShawI; Ralph LainsonI; Habid FraihaII

IDa Wellcome Parasitology Unit, Belém, Pará, Brasil

IIDo Instituto Evandro Chagas, Fundação SESP, Belém, Pará, Brasil

RESUMO

Quatro casos de doença de Chagas são registrados numa família em Belém, Pará, Brasil. Acredita-se que a infecção foi adquirida em Belém.

Como não foram encontrados triatomíneos na casa dos doentes, nem nas residências vizinhas, sugere-se que outros meios de transmissão devem ser considerados, por exemplo a transmissão "per os".

SUMMARY

Four cases of Chagas' Disease are recorded in a single family from Belém, Pará, Brazil. The authors feel that these infections were acquired in Belém. However, the were unable to find any reduviid bugs in the house and surrounding dwelling places and suggested that other methods of transmission might be considered, for instance per os.

INTRODUÇÃO

Até 1968 não haviam referências a casos autóctones de doença de Chagas na Amazônia. RODRIGUES & MELO 6 (1940) realizaram estudo na região do Aurá, localidade distante cêrca de 10 km de Belém, oportunidade em que os 117 habitantes daquela área foram todos submetidos a exame de sangue e xenodiagnóstico, não tendo sido encontrada nenhuma infecção humana por T. cruzi. Um cão, dentre os 6 animais domésticos então examinados, apresentou xenodiagnóstico positivo, e os autores sugerem a hipótese de o mesmo ter-se infetado pela ingestão de vísceras de animais silvestres contaminados, a despeito do encontro de triatomíneos infetados, nas casas do povoado. Num inquérito de tripanosomíase realizado em Cachoeira do Arari, Ilha do Marajó, Pará, DEANE et al.3 (1964) fizeram a reação de Guerreiro e Machado (R.F.C.) em 334 pessoas, tendo encontrado um resultado positivo, mas a eletrocardiografia e o xenodiagnóstico não lograram confirmar a infecção chagásica. Foram negativos os xenodiagnósticos efetuados com triatomíneos em 180 moradores. Anteriormente, em outro inquérito, realizado no Amapá por DEANE et al.2 (1963), foram feitos 353 exames sorológicos e 116 xenodiagnósticos, não tendo sido evidenciada a existência da moléstia naquela região.

A 1.° de fevereiro de 1968, o laboratório da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) enviou pedido à Seção de Parasitologia do Instituto Evandro Chagas, para identificar tripanosomas encontrados em gôtas espêssas do sangue de três pessoas de uma família residente no bairro de Canudos, Belém. Êsses casos eram originalmente suspeitos de malária, e durante a pesquisa de Plasmódio foram encontrados os tripanosomas.

A morfologia dos parasitas que vimos nas gôtas espêssas era típica de Trypanosoma cruzi.

MATERIAL E MÉTODOS

Como casos de doença de Chagas eram até então desconhecidos na Amazônia, efetuamos uma série de exames para confirmar êsse diagnóstico:

1.°) Exame direto, a fresco; esfregaço e gôta espêssa, do sangue periférico.

2.°) Xenodiagnóstico, utilizando 5 exemplares de Rhodnius prolixus e 5 de Panstrongylus megistus para cada paciente.

3.°) Semeadura do sangue periférico em meio de N.N.N., para cultura de flagelados.

4.°) Inoculação do sangue periférico em camundongos, por via intraperitonial (0,5 ml para cada camundongo).

Também foi realizada xenodiagnóstico de outras quatro pessoas da mesma família.

RESULTADOS

Todos os exames do sangue do paciente F.S.C.F. foram positivos para T. cru zi. Só a gôta espêssa do sangue da paciente M.D.C.F. foi positiva. Apesar da positividade do exame da gôta espêssa do sangue da paciente M.F.C.F. realizada pela CEM, todos os exames de sangue que executamos dessa paciente foram negativos.

Os barbeiros utilizados no xenodiagnóstico dos três pacientes foram examinados depois de um mês, tendo sido encontrados nas fezes tripomastigotos (tripanossomas) metacíclicos e epimastigotos (critídias).

As culturas obtidas a partir do sangue de F.S.C.F., realizadas no dia 1.° de fevereiro, já eram positivas para flagelados a 8 de fevereiro. As de M.D.C.F. só foram positivas ao exame realizado a 20 do mesmo mês. As de M.F.C.F. foram perdidas por contaminação bacteriana.

Flagelados de culturas muito ricas obtidas a partir do sangue de F.S.C.F., foram inoculados por via intraperitonial em 4 camundongos brancos jovens. Formas típicas de T. cruzi foram encontradas ocasionalmente no sangue dêsses animais, mas a infecção não foi fatal, e a parasitemia foi inconstante e efêmera. Não houve, também, evidência de multiplicação do parasita ao nível dos tecidos.

Os camundongos inoculados com o sangue periférico dos pacientes, foram examinados durante 4 semanas, não tendo sido encontrados parasitas nas preparações a fresco realizadas nesse período, e nem observados sinais de doença. O xenodiagnóstico dêsses camundongos, realizado 3 semanas após a inoculação, também foi negativo.

Das outras 4 pessoas da família, apenas uma (M. C. C. F.) teve o xenodiagnóstico positivo.

Os resultados dêsses exames encontram-se resumidos na Tabela 1.

DISCUSSÃO

Não há dúvida de que os casos de Belém são de doença de Chagas. O problema é como e onde foi adquirida a infecção.

Interrogamos cuidadosamente todos os membros da família, e concluímos que só a mãe (M.C.C.F.) havia morado em área endêmica de doença de Chagas – Belo Horizonte. Mas já reside em Belém há aproximadamente 20 anos, sem ter voltado, ao menos uma vez, àquela região. Todos os filhos nasceram em Belém, e só estiveram fora desta capital em pequenas viagens para o interior do Estado. Poucos meses antes de adoecer estiveram no município de Primavera. Tudo, entretanto, em nossa opinião, é sugestivo de que foram mesmo infetados em Belém.

A transmissão por hemíptero hematófagos foi a primeira hipótese considerada. DEANE 4 (1947) confirmou a existência, já referida desde 1910, de Triatoma rubrofasciata em Belém e, recentemente, observamos a sua larga distribuição nesta cidade. É o único triatomíneo domiciliário comumente encontrado em Belém. Mas, até agora, não foi encontrado infetado por T. cruzi no Pará e, ainda segundo DEANE4 (1947), é uma espécie sugadora de sangue de ratos domésticos, raramente procurando o homem para picar.

Com a colaboração de guardas sanitários do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), foram examinados os 409 prédios incluídos na área de 100 metros de raio em tôrno da residência dos doentes, à procura de barbeiros. Resultaram infrutíferas tôdas as buscas de transmissores então realizadas, inclusive aquelas feitas durante 5 noites consecutivas no interior da casa dos doentes.

DEANE & DAMASCENO5 (1949) encontraram exemplares de Panstrongylus lignarius naturalmente infetados por T. cruzi, na mata do Utinga, em Belém. Na mesma área, DEANE1 (1964) encontrou tatus, mucuras (gambás) e ratos d'água, também naturalmente infetados.

No bairro de Jabatiteua, vizinho ao de Canudos, capturamos ocasionalmente espécies silvestres de barbeiros com infecção natural, no interior de domicílios. Temos também encontrado mucuras infetadas, nos quintais das mesmas residências. Existem, portanto, nessa área da cidade, reservatórios em potencial de T. cruzi.

Pelo menos 3 dos casos observados estavam, comprovadamente na fase aguda da doença, sendo provável que o 4.° caso (M. C. C. F.) também estivesse. Os sintomas e sinais observados foram, em linhas gerais:

1. Paciente F.S.C,F., febre, calefrios, cefaléia, vômitos, diarréia, dôr nos membros inferiores, às vêzes muito intensa, tosse com expectoração sanguinolenta, hepatomegalia, sôpro holossistólico panfocal e galope protodiastólico. Faleceu sùbitamente, na tarde de 2 de março (1968), acusando violenta dor epigástrica e retro-esternal. Não foi submetido a autópsia.

2. M.F. C.F. febre, calefrios, cefaléia e vômitos.

3. M. D. C. F. : febre, calefrios, cefaléia, vômitos, diarréia, dor abdominal difusa e discreta hepatomegalia.

4. M.C.C.F. pequenas elevações de temperatura, calefrios, cefaléia e dôres articulares (sintomas sempre bem mais brandos que nos demais casos).

Detalhes sôbre aspectos clínicos serão apresentados em trabalho especial pela equipe da Universidade.

Isto é muito sugestivo de que todos tenham sido infetados na mesma época.

Não foi esquecida a possibilidade da transmissão por triatomíneos importados por meio dos veículos vindos do sul do país pela Rodovia Bernardo Sayão, especialmente por ser um tanto freqüente o seu estacionamento e pernoite em frente à residência dos doentes. A ocorrência simultânea de vários casos agudos, num mesmo domicílio, sugeria que iríamos encontrar uma alta infestação local por triatomíneos de acentuada antropofilia, diferentes, portanto das espécies regionais. Mas, ao contrário, as buscas foram tôdas negativas. Surpreendeu-nos também o tipo de habitação, uma construção sólida, de alvenaria, bem acabada, sem muitas condições para a colonização de triatomíneos.

Essa ausência de vetores domiciliários lembra-nos SILVA et al.7 (1968), que sugerem a transmissão "per os" para explicar uma epidemia de doença de Chagas ocorrida no Rio Grande do Sul, com ausência aparente de triatomíneos.

CONCLUSÃO

O que podemos sugerir, com base nos dados decorrentes de nossas observações, é tão sòmente que a infecção dêsses pacientes foi adquirida possìvelmente por uma transmissão mecânica qualquer, talvez "per os", tendo por origem uma fonte local de infecção.

Pretendemos ainda realizar futuramente um inquérito sorológico naquela área, para avaliar a amplitude da infecção humana local por T. cruzi.

AGRADECIMENTOS

A todos que colaboram para a realização deste trabalho, muito especialmente à Campanha de Erradicação da Malária, que nos confiou os 3 primeiros casos; ao Dr. Luiz Scaff e aos guardas do DNERu; e ao Serviço de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Pará, pelo estudo clínico e tratamento dos pacientes.

Recebido para publicação em 3-7-1969

Realizado no Instituto Evandro Chagas, sob os auspícios da Fundação SESP e do Wellcome Trust. Apresentado à IV Jornada Médica Paraense e I Congresso Médico Bragantino, Bragança, Pará, Brasil, dezembro de 1968

  • 1. DEANE, L. M. Tripanosomídeos de mamíferos da Região Amazônica; III. Hemoscopia e xenodiagnóstico de animais silvestres dos arredores de Belém, Pará. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo, 6:225-232, set./out. 1964.
  • 2. DEANE, L. M. et al. Inquérito de toxoplasmose e de tripanossomíase realizado no Território do Amapá, pela III Bandeira Científica do Centro Acadêmico "Oswaldo Cruz" da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev. Med., S. Paulo, 47:1-12, fev. 1963.
  • 3. DEANE, L. M. et al. Inquérito de toxoplasmose e de tripanossomíase realizado em Cachoeira do Arari, Ilha do Marajó, Pará, pela V Bandeira Científica do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev. Med., S. Paulo, 48: 107-116, agô. 1964.
  • 4. DEANE, M. P. Ocorrência do trypanosoma conorrhini em "barbeiros" e em rato na cidade de Belém, Pará, e seu cultivo em meio de NNN. Rev. Serv. Saúde públ., Rio de Janeiro, 1:433-442, jul. 1947.
  • 5. DEANE, M. P. & DAMASCENO, R. M. G. Encontro de Panstrongtylus lignarius naturalmente infectado por tripanosoma do tipo cruzi e algumas notas sôbre a biologia. Rev. Serv. Saúde públ., Rio de Janeiro, 2:809-814, jul. 1949.
  • 6. RODRIGUES, B. A. & MELO, G. B. Contribuição ao estudo de Tripanosomiase Americana. Mem. Inst. Oswaldo Cruz, 37:77-90, 1942.
  • 7. SILVA, N. N. da et al. Surto epidêmico de doença de Chagas com provável contaminação oral. Rev. Inst. Med. trop. S. Paulo, 10:265-276, set./out. 1968.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 1969

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 1969
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