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Surto de reações hemolíticas associado a residuais de cloro e cloraminas na água de hemodiálise

Outbreak of hemolytic reactions associated with chlorine and chloramine residuals in hemodialysis water

Resumos

OBJETIVO: Relatar o processo de investigação da contaminação da água e a conseqüente avaliação do surto ocorrido no serviço de hemodiálise. MÉTODOS: Em setembro de 2000, 16 pacientes sob terapia de hemodiálise de um hospital em Minas Gerais apresentaram reações hemolíticas compatíveis a sintomas de intoxicação por cloro e cloramina em água. Foi feita a medição das concentrações de cloro e cloramina em amostras coletadas em diversos pontos do sistema de tratamento e distribuição de água do serviço inspecionado. A identificação dos casos ocorridos durante o período de estudo foi feita pela revisão das anotações de prontuários dos pacientes. Foi feita a revisão dos procedimentos da equipe técnica, médica e de enfermagem por meio de entrevistas. RESULTADOS: A taxa de sintomas foi significativamente alta (p<0,028) durante o período epidêmico em relação ao período pré-epidêmico. Os pacientes afetados fizeram hemodiálise com água tratada por osmose reversa e usaram capilares dialisadores reprocessados manualmente. A água e os capilares apresentaram, durante o período epidêmico, concentrações residuais acima dos padrões desejáveis impostos pela Portaria 82 do Ministério da Saúde/GM, que exige o máximo de 0,5 mg/l para cloro e 0,1 mg/l para cloramina. Risco relativo de 2,58 (1,06 a 6,28) caracteriza elevadas concentrações de cloro livre e cloramina quanto à apresentação dos sintomas nos expostos. CONCLUSÃO: A vigilância dos procedimentos é necessária para que a água utilizada no processo de hemodiálise atenda aos padrões mínimos recomendados.

Hemodiálise; Vigilância sanitária; Análise da água; Cloro; Cloraminas; Tratamento de água; Reações hemolíticas


OBJECTIVE: To investigate the process of water contamination and to assess the subsequent outbreak in the hemodialysis center. METHODS: In September 2000, sixteen patients undergoing chronic hemodialysis at a dialysis center in Minas Gerais, Brazil, experienced hemolytic reactions compatible with toxic symptoms due to chlorine and chloramine water contamination. Chlorine and chloramine concentrations in samples obtained from various sites of the dialysis center's water treatment and distribution system were measured. Case-patients were identified by reviewing medical records and nursing notes for all dialysis sessions carried out during the study period. Interviews with technicians, nursing and medical staff members were conducted. RESULTS: Reaction rate was significantly higher (p<0.028) during the outbreak period (September 25 to 27, 2000) than the pre-outbreak period (September 18 to 20, 2000). All patients with toxic symptoms had been under dialysis with water treated by reverse osmosis equipment and had used dialysers manually reprocessed. Chlorine and chloramine residuals concentrations found in the dialysis water as well as in the dialysers were at levels higher than regulations, <FONT FACE=Symbol>£</FONT>0.5 mg/L for chlorine and <FONT FACE=Symbol>£</FONT> 0.1 mg/L for chloramine. Individuals exposed to high chlorine and chloramine concentrations presented a relative risk of 2.58 (1.0-6.28) of having hemolytic reactions. CONCLUSION: There is a need to observe surveillance procedures to secure that the maximum allowable concentrations of regulated substances in the water used in the hemodialysis process are not exceeded.

Hemodialysis; Health surveillance; Water analysis; Chlorine; Chloramine; Water treatment; Hemolytic reactions


Surto de reações hemolíticas associado a residuais de cloro e cloraminas na água de hemodiálise

Outbreak of hemolytic reactions associated with chlorine and chloramine residuals in hemodialysis water

Rachel VV Calderaroa* * Aluna de pós- graduação da Escola de Engenharia da UFMG. e Léo Hellerb

aSecretaria de Estado da Saúde do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil. bDepartamento de Engenharia Sanitária e Ambiental, Escola de Engenharia, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil

DESCRITORES

Hemodiálise.# Vigilância sanitária.# Análise da água.# Cloro, análise.# Cloraminas, análise. ¾ Tratamento de água. Reações hemolíticas.

RESUMO

OBJETIVO:

Relatar o processo de investigação da contaminação da água e a conseqüente avaliação do surto ocorrido no serviço de hemodiálise.

MÉTODOS:

Em setembro de 2000, 16 pacientes sob terapia de hemodiálise de um hospital em Minas Gerais apresentaram reações hemolíticas compatíveis a sintomas de intoxicação por cloro e cloramina em água. Foi feita a medição das concentrações de cloro e cloramina em amostras coletadas em diversos pontos do sistema de tratamento e distribuição de água do serviço inspecionado. A identificação dos casos ocorridos durante o período de estudo foi feita pela revisão das anotações de prontuários dos pacientes. Foi feita a revisão dos procedimentos da equipe técnica, médica e de enfermagem por meio de entrevistas.

RESULTADOS:

A taxa de sintomas foi significativamente alta (p<0,028) durante o período epidêmico em relação ao período pré-epidêmico. Os pacientes afetados fizeram hemodiálise com água tratada por osmose reversa e usaram capilares dialisadores reprocessados manualmente. A água e os capilares apresentaram, durante o período epidêmico, concentrações residuais acima dos padrões desejáveis impostos pela Portaria 82 do Ministério da Saúde/GM, que exige o máximo de 0,5 mg/l para cloro e 0,1 mg/l para cloramina. Risco relativo de 2,58 (1,06 a 6,28) caracteriza elevadas concentrações de cloro livre e cloramina quanto à apresentação dos sintomas nos expostos.

CONCLUSÃO:

A vigilância dos procedimentos é necessária para que a água utilizada no processo de hemodiálise atenda aos padrões mínimos recomendados.

KEYWORDS

Hemodialysis.# Health surveillance.# Water analysis.# Chlorine, analysis.# Chloramine, analysis.#¾ Water treatment. Hemolytic reactions.

ABSTRACT

OBJECTIVE:

To investigate the process of water contamination and to assess the subsequent outbreak in the hemodialysis center.

METHODS:

In September 2000, sixteen patients undergoing chronic hemodialysis at a dialysis center in Minas Gerais, Brazil, experienced hemolytic reactions compatible with toxic symptoms due to chlorine and chloramine water contamination. Chlorine and chloramine concentrations in samples obtained from various sites of the dialysis center's water treatment and distribution system were measured. Case-patients were identified by reviewing medical records and nursing notes for all dialysis sessions carried out during the study period. Interviews with technicians, nursing and medical staff members were conducted.

RESULTS:

Reaction rate was significantly higher (p<0.028) during the outbreak period (September 25 to 27, 2000) than the pre-outbreak period (September 18 to 20, 2000). All patients with toxic symptoms had been under dialysis with water treated by reverse osmosis equipment and had used dialysers manually reprocessed. Chlorine and chloramine residuals concentrations found in the dialysis water as well as in the dialysers were at levels higher than regulations, £ 0.5 mg/L for chlorine and £ 0.1 mg/L for chloramine. Individuals exposed to high chlorine and chloramine concentrations presented a relative risk of 2.58 (1.0-6.28) of having hemolytic reactions.

CONCLUSION:

There is a need to observe surveillance procedures to secure that the maximum allowable concentrations of regulated substances in the water used in the hemodialysis process are not exceeded.

INTRODUÇÃO

Em Minas Gerais, dados da Secretaria de Estado da Saúde atestam que aproximadamente 70 centros oferecem terapia de hemodiálise para 5.000 pacientes com insuficiência renal crônica.10 A água utilizada para esse tipo de terapia deve apresentar qualidade em obediência ao recomendado pela legislação federal vigente3 (Portaria 82 do Ministério da Saúde/GM/de 3 de janeiro de 2000) e deve sofrer constante vigilância para manter respeitados os níveis máximos de contaminantes, garantindo a saúde do paciente. A água afluente ao sistema de tratamento de água adotado nos serviços deve ser, no mínimo, potável; as técnicas de osmose reversa e/ou deionização são as mais utilizadas para atingir a qualidade recomendada. São utilizadas práticas de desinfecção e manutenção dos circuitos de água, assim como medição das concentrações físico-químicas e bacteriológicas periódicas, devendo ser cloro e pH diariamente controlados. Nos citados centros, é usual a reutilização do capilar dialisador em um mesmo paciente, adotado após enxágüe para retirada do sangue restante, seguido de limpeza química e de desinfecção. Reações em pacientes decorrentes de inadequada manutenção dos sistemas de água e reutilização dos capilares são fartamente descritas pela literatura científica.8,11 Várias investigações sobre a possibilidade de contaminação dos suprimentos de água de hemodiálise por cloro e cloramina2 relatam os diversos efeitos indesejáveis em pacientes quando concentrações desses contaminantes se encontram elevadas, sobretudo por falha humana.5

No presente estudo, estão relatados os efeitos contra a saúde de pacientes com insuficiência renal crônica por contaminação acidental pela água utilizada na hemodiálise e no reprocessamento de capilares por cloro, em um serviço de hemodiálise do Estado.

MÉTODOS** * Aluna de pós- graduação da Escola de Engenharia da UFMG.

Contexto da situação

O serviço de hemodiálise do Estado atende, aproximadamente, a 80 pacientes com insuficiência renal crônica por meio de 13 máquinas individuais de proporção e quatro máquinas duplas de tanque. Os pacientes seguem o esquema de turnos em dias alternados de terapia, sendo três turnos nas segundas, quartas e sextas-feiras e dois nas terças, quintas-feiras e sábados.

O sistema de tratamento de água do serviço utiliza a técnica de osmose reversa para preparação da água de hemodiálise e recebe água de um poço artesiano próprio. Na eventualidade da falta de água vinda desse manancial, o sistema pode receber água da rede pública que abastece a cidade. Por isso, em geral, a água afluente ao sistema de tratamento do serviço não contém o residual de cloro utilizado pelos sistemas públicos das cidades.

No dia 24 de setembro de 2000, foi efetuada, no sistema existente, a instalação de mais um reservatório em polietileno de fundo inclinado, mais apropriado para a segurança do circuito, que passou a abastecer o anel de distribuição de água para máquinas e salas de reprocessamento de capilares. Durante a reforma, entretanto, as instalações para reprocessamento de capilares, vinculadas à sala geral ficaram sendo abastecidas unicamente pelo reservatório antigo, que passou a receber água do novo reservatório recém-instalado (Figura 1). Foram feitas a desinfecção do sistema para reserva e a distribuição com hipoclorito de sódio e posterior enxágüe. O serviço, executado por firma terceirizada, não foi adequadamente acompanhado pelos funcionários do centro de hemodiálise, que não permaneceram presentes durante o enxágüe do circuito e os testes de residual de cloro.


Todos os capilares dialisadores utilizados no centro são de polisulfona e são reprocessados após cada sessão por enxágüe do compartimento de sangue e por ultrafiltração reversa sob pressão, com posterior teste do volume interno das fibras para verificação de adequação e, finalmente, desinfecção por meio do preenchimento dos compartimentos de sangue e do dialisado com ácido peracético. As linhas venosa e arterial dos capilares são desinfectadas com hipoclorito de sódio. Antes da reutilização dos capilares, e posteriormente ao tempo mínimo recomendado para a ação desinfetante, a remoção dos desinfetantes é realizada no compartimento do dialisado por circulação de água proveniente da osmose reversa e com 1,5 litro a 2 litros de soro fisiológico no compartimento sangüíneo. Os níveis residuais do ácido peracético são testados por reagente apropriado, e o teste para cloro não é realizado.

Atualmente, o serviço de hemodiálise faz parte de um estudo multicêntrico coordenado pela UFMG. A equipe de pesquisa, de 15 a 28 de setembro de 2000, estava medindo os teores de cloro e as cloraminas na água das salas de reprocessamento (reuso) de capilares da sala geral e na água afluente ao sistema de tratamento por osmose reversa quando detectou altas concentrações desses contaminantes.

Descrição do surto

Em 25 de setembro de 2000 (segunda-feira), 7/32 (22%) pacientes (6/12 no primeiro turno, 1/12 no segundo turno e nenhum no terceiro turno) apresentaram sintomas intradialíticos compatíveis com intoxicação por cloro. Os sintomas apresentados foram dor torácica, dor lombar, dor abdominal, diarréia, hemólise, coagulação no capilar, calor e rubor, alguns destes ocorrendo simultaneamente em alguns pacientes. Houve necessidade de troca de alguns capilares.

Em 26 de setembro de 2000 (terça-feira), 3/26 (12%) pacientes (2/14 no primeiro turno e 1/12 no segundo turno) também apresentaram os mesmos sintomas, tendo existido a necessidade de troca de três capilares de pacientes do primeiro turno. Nesse dia, durante a medição, foi detectada concentração excepcionalmente elevada (>2,75 mg/l) de cloro total na água utilizada no reprocessamento de capilares dos reusos da sala geral, que se constatou ser originária do reservatório antigo, que, depois da reforma, passou a abastecer o local. A medição da concentração de cloro no efluente da osmose reversa apresentou concentração de 0,06 mg/l de cloro livre e de 0,04 mg/l de cloramina, perfeitamente compatíveis com as permitidas pela legislação ¾ concentração máxima de cloro, 0,50 mg/l, e de cloramina, 0,10 mg/l.3 Foi feita medição na água do anel de distribuição, na saída para uma das máquinas, que apresentou concentração de 0,20 mg/l de cloro livre e de 0,10 mg/l de cloramina, dentro dos limites toleráveis para aquele, mas no limite máximo permitido para o cloro combinado. Mediu-se, também, a concentração de cloro no soro fisiológico do compartimento interno de alguns capilares já reprocessados, tendo sido encontrada uma concentração média de 0,21 mg/l de cloro livre e 0,10 mg/l de cloramina, demonstrando que, apesar do enxágüe, ainda se mantiveram as concentrações encontradas na água do anel de distribuição. Foi então determinado pelo médico de plantão que fossem utilizados três litros de soro fisiológico no reprocessamento, para possibilitar um enxágüe mais seguro, com o dobro do volume geralmente utilizado. Simultaneamente, foi feita a drenagem do reservatório antigo, que, depois de ser novamente enchido, apresentou concentração de 0,31 mg/l de cloro livre e de 0,09 mg/l de cloramina ¾ satisfatórias pelas normas.

Em 27 de setembro de 2000 (quarta-feira), 6/32 (19%) pacientes (3/12 no primeiro turno, 1/13 no segundo turno e 2/7 no terceiro turno) ainda apresentavam sintomas intradialíticos similares aos ocorridos nos dias anteriores. Ao ser investigado o motivo da persistência dos sintomas, foi constatado que os capilares dos pacientes do primeiro turno tinham sido enxaguados com o mesmo volume de 1,5 litros de soro fisiológico, por não se observar a nova recomendação feita na passagem do plantão. Com isso, os pacientes desse turno possivelmente receberam dose excessiva de cloro, tendo em vista que, no enxágüe e na ultrafiltração reversa realizados ainda na segunda-feira anterior, quando se ignorava o fato, utilizou-se a água do reservatório antigo, cuja concentração estava excessivamente elevada (>2,75 mg/l).

Definição de caso

Foi definido como caso o paciente que apresentou sintomas de dor torácica, dor lombar, dor abdominal, diarréia, hemólise, coagulação, calor e rubor, ocorrendo simultaneamente ou não, ou o paciente cujo capilar tenha sido trocado e/ou lavado durante a sessão, devido a intercorrências indesejáveis. Os sintomas relatados a seguir foram considerados como sendo possivelmente associados à presença de cloro:4

a) dor torácica e dor lombar ¾ apresentam como uma das causas potenciais a hemólise aguda durante a diálise, invariavelmente devido à solução de diálise estar contaminada com, dentre outros contaminantes, cloro e cloramina;

b) dor abdominal, diarréia, calor e rubor ¾ podem ser causados por reações anafiláticas mais leves, geralmente no início da sessão. As causas podem estar relacionadas à presença de agentes esterilizantes como o cloro;

c) hemólise ¾ sintomas são dor torácica, dor lombar, dispnéia e sinais de coloração sangüínea de vinho do porto na linha venosa. Houve relato de coagulação de capilares, quando ocorreu essa coloração na linha venosa;

d) coagulação no capilar ¾ é atribuído à falta de heparina, anticoagulante utilizado em hemodiálise. O fato da coagulação ter ocorrido em máquinas de proporção, cujo sistema automatizado administrou continuamente essa droga, pôs a equipe em dúvida sobre o fenômeno ocorrido. Pela coloração escura (similar a do vinho do porto) adquirida na linha venosa, o sinal de hemólise foi, então, considerado como tal.

Identificação dos pacientes

Os pacientes-caso e não-casos foram identificados pela revisão, para os dias considerados no período de estudo, das anotações dos prontuários de evolução durante a sessão de hemodiálise feitas pela equipe de enfermagem do serviço.

Caracterização dos procedimentos

Foi inspecionado o sistema de tratamento e distribuição de água; foram observados os procedimentos durante as sessões de hemodiálise e de reprocessamento de capilares; e, foram conduzidas entrevistas com os técnicos que acompanharam a reforma e com as equipes de reprocessamento, de enfermagem e médica.

Medição de cloro

O reagente para medição de cloro e cloraminas foi o DPD em pó, manipulado de acordo com as recomendações do Standard METHODS: of Water and Wastewater Examination, 19ª ed. (APHA/WEF/AWWA)1 e formulado pela Companhia de Saneamento do Estado de Minas Gerais ¾ Copasa. As medições utilizaram clorímetro HI 93701 do Hanna Instruments.

Investigação epidemiológica

Foram comparadas as intercorrências em hemodiálise nos dias 18, 19 e 20 de setembro, anteriores ao dia da troca do reservatório, com as ocorridas nos dias 25, 26 e 27 de setembro.

Para a análise do risco relativo para os casos, foram comparados os grupos de expostos e não expostos à água com teores excessivos de cloro e cloraminas, identificando-se pacientes que apresentaram sintomas compatíveis com intoxicação, dentre o total de pacientes dos turnos de hemodiálise considerados.

Os dados coletados foram analisados pelo programa Epi Info (Epidemiology Program Office, Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, GA, USA),6 por meio do qual foram calculados o risco relativo e o respectivo intervalo de confiança em um nível de 95%.

RESULTADOS

Características da água

Exceto para os dias 18, 23 e 25 do mês referido, foram medidos os níveis de cloro em água de reuso (Tabela) durante o primeiro turno. Apenas no dia 19, por falta de água do poço artesiano do hospital, houve necessidade de uso da água da rede pública para alimentar o sistema de tratamento de água (ETA HD), cujas concentrações medidas foram de 0,67 mg/l e de 0,06 mg/l para cloro livre e cloraminas, respectivamente. Nos demais dias, a água de alimentação do sistema não foi clorada.

Casos encontrados

Enquadraram-se na definição de caso 22 pacientes: 16 no período epidêmico e seis no pré-epidêmico. As Figuras 2, 3 e 4 ilustram a situação dos dias 25, 26 e 27, comparada com a dos dias 18, 19 e 20, respectivamente. Nota-se que, de forma geral, o número de pacientes sintomáticos dos dias posteriores ao acidente foi maior do que o dos dias anteriores, quando não houve exposição ao cloro.




A taxa de pacientes sintomáticos durante o período epidêmico foi significativamente maior do que a ocorrida durante o período pré-epidêmico (16 sintomáticos/90 sessões de hemodiálise vs. seis sintomáticos/87 sessões de hemodiálise; RR=2,58; IC a 95%=1,06 a 6,28; p=0,028). Nenhuma diferença significativa foi detectada entre os grupos expostos e não expostos (idade, sexo, etiologia da insuficiência renal, tipo de máquina utilizada, local de reprocessamento de capilar ou procedimentos técnicos de suporte), tendo em vista ser o grupo constituído pelos mesmos pacientes. Exceto por três pacientes (um que faltou no dia 19, outro no dia 20 e outro no dia 26), o grupo foi constante nos dias estudados.

DISCUSSÃO

Os primeiros turnos de segunda-feira, dia 25, e quarta-feira, dia 27, foram os que apresentaram maior número de pacientes sintomáticos.

Na manhã do dia 25, segunda-feira, não houve medição das concentrações de cloro, mas, pela concentração elevada encontrada no dia 26 seguinte, supõe-se que essa contaminação já deveria estar, também, presente no dia anterior, já que a instalação do novo reservatório e a desinfecção do sistema, único fato ocorrido fora da rotina, haviam sido realizadas no domingo. Provavelmente quando houve medição das concentrações na terça-feira, dia 26, toda a água que circulava no anel de distribuição, no dia anterior, já havia sido consumida, causando o elevado número de intercorrências durante o primeiro turno. No segundo e no terceiro turnos desse dia, assim como no dia 26 seguinte, as intercorrências diminuíram, não parecendo apresentar grandes diferenças em relação à semana anterior. Na manhã de quarta-feira, dia 27, nota-se recrudescimento do surto, provavelmente devido ao erro de comunicação na troca do plantão, fazendo com que o enxágüe dos capilares com maior volume de soro fisiológico não fosse executado. Tendo em vista que a água utilizada em seu reprocessamento havia sido a que apresentou concentração >2,75 mg/l de cloro total, o enxágüe executado não parece ter sido suficiente para remover o cloro em excesso.

Os potenciais fatores de confusão, relacionados a características individuais dos pacientes, foram controlados à medida que, excluindo-se três indivíduos, a amostra de pacientes, de antes e depois do surto, foi composta pelo mesmo grupo de pessoas. Entretanto, em relação a confundidores associados a outros parâmetros de qualidade da água, o manancial é um poço profundo, sendo que as análises químicas de suas águas, após a osmose reversa, realizada no dia 21/9/2000, demonstraram concentrações inferiores às determinadas pela Portaria 82 MS/GM3 para alumínio, bário, cálcio, cobre, fluoreto, magnésio, nitrato, potássio, selênio, sódio, sulfato e zinco. Não há quaisquer indícios de que esses parâmetros ou outros parâmetros de importância (cádmio, cromo, chumbo, mercúrio e prata) tenham tido alterações em suas concentrações no período, seja pela eficiência demonstrada pelo sistema de osmose reversa, seja pela ausência de eventos operacionais ou meteorológicos notáveis que pudessem perturbar a estabilidade da água empregada nas sessões.

Existem vários relatos da literatura sobre danos à saúde ou morte de pacientes submetidos a concentrações elevadas de cloro e cloramina, e, dentre estes, pode ser citado o alerta de segurança do FDA (Food and Drug Administration), (1988 apud AAMI2), 1995. Mais recentemente, os estudos de coorte de Fluck et al7 (1999) e Richardson et al9 (1999) relatam o aumento da anemia em centros de hemodiálise, causado por hemólise em pacientes expostos a teores elevados de cloramina, em decorrência do aumento das concentrações de cloro nos respectivos sistemas públicos de abastecimento de água não absorvidos por suas ETA HD.

A recente investigação indica que concentrações acidentalmente elevadas de cloro e cloraminas em águas de hemodiálise podem provocar graves reações hemolíticas em pacientes com insuficiência renal crônica, com possíveis danos à saúde. Essa constatação realça a importância da efetiva vigilância dos sistemas; procedimento nem sempre observado, único instrumento com eficácia para evitar um grande conjunto de agravos à saúde dos pacientes. A identificação do surto relatado chama a atenção para a necessidade de se manter responsáveis técnicos, devidamente capacitados, nas ETA HD.

AGRADECIMENTOS

À Companhia de Saneamento do Estado de Minas Gerais (Copasa), pelo apoio laboratorial.

Correspondência para/Correspondence to:

Rachel V. V. Calderaro

Rua Bambuí, 808/504

30310-320 Belo Horizonte, MG, Brasil.

E-mail: rachelvv@net.em.com.br

Recebido em 20/2/2001. Reapresentado em 9/7/2001. Aprovado em 31/7/2001.

**O Comitê de Ética em pesquisa da UFMG, segundo o parecer Etic 090/98, aprovou o estudo multicêntrico do qual faz parte o presente trabalho, estando os procedimentos utilizados de acordo com os padrões éticos do comitê responsável por experimentos humanos e de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, revisada em 1983.

  • 1
    American Public Health Association (APHA). Standard METHODS: of water and wastewater examination 19ª ed. Washington; 1995.
  • 2. Association for the Advancement of Medical Instrumentation (AAMI). Standards and recommended practices 4th ed. Arlington (Vir.): AAMI; 1995. v 3: Dialysis.
  • 3. Brasil. Leis Decretos, etc. Portaria MS/GM 82 ž 03/01/2000. Regulamento técnico para o funcionamento dos serviços de diálise e as normas para cadastramento destes junto ao Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília (DF), 8 fev. 2000. Seção 1, p. 13.
  • 4. Bregman H, Daugirdas JT, Ing TS. Complicações durante a hemodiálise. In: Daurgidas JT, Ing TS, editors. Manual de diálise 2ª ed. Rio de Janeiro: MEDSI; 1996. p. 139-55.
  • 5. Calderaro R, Bischofberger C. Tratamento e vigilância da qualidade das águas de hemodiálise. Eng Sanit Amb 1998;3:118-27.
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  • *
    Aluna de pós- graduação da Escola de Engenharia da UFMG.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2001
    • Data do Fascículo
      Out 2001

    Histórico

    • Aceito
      31 Jul 2001
    • Revisado
      09 Jul 2001
    • Recebido
      20 Fev 2001
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