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Morbidade por tuberculose e desempenho do programa de controle em municípios brasileiros, 2001-2003

Resumos

OBJETIVO: Analisar os municípios brasileiros segundo morbidade e desempenho do controle da vigilância epidemiológica de tuberculose e Aids. MÉTODOS: Análise exploratória de dois grupos de clusters não hierárquicos de dados de vigilância epidemiológica de tuberculose e Aids, e indicadores operacionais do Programa Nacional de Controle de Tuberculose, período de 2001 a 2003. A distribuição foi estratificada nas regiões metropolitanas e municípios prioritários, segundo o tamanho da população. A associação entre clusters de morbidade e desempenho foi avaliada pelo qui-quadrado, com análise de resíduos para identificar associações significantes. RESULTADOS: Dos cinco clusters de morbidade, a situação epidemiológica preocupante ocorre nos municípios com alta incidência de Aids, com alta ou baixa incidência de tuberculose, predominantes no Sudeste e Sul do Brasil, e nos grandes municípios. Dos seis clusters de desempenho do programa, desempenhos moderado e regular estão significantemente associados aos municípios prioritários, de regiões metropolitanas e com mais de 80 mil habitantes. Clusters regular e fraco concentram 10% dos municípios com abandono de tratamento elevado e baixa taxa de cura. O cluster "sem dados" está associado ao cluster de incidência muito baixa de tuberculose e Aids. CONCLUSÕES: Os achados refletem inadequação da vigilância à realidade epidemiológica do Brasil: precários fatores sociais associados à tuberculose e Aids e desempenho insuficiente do programa de controle.

Tuberculose; Avaliação de programas e projetos de saúde; Indicadores básicos de saúde; Vigilância epidemiológica; Brasil


OBJECTIVE: To analyze Brazilian municipalities according to morbidity and effectiveness of epidemiological inspection control of tuberculosis and AIDS. METHODS: Exploratory analysis of two non-hierarchical data clusters of epidemiological inspection data on tuberculosis and AIDS, and operational indicators of the Programa Nacional de Controle de Tuberculose (National Tuberculosis Control Program), from 2001 to 2003. The distribution was stratified in metropolitan areas and priority municipalities, according to the size of the population. The association between morbidity clusters and effectiveness was evaluated by the Chi-square test, with analysis of residues in order to identify significant associations. RESULTS: Out of the five morbidity clusters, the concerning epidemiological situation occurs in municipalities with high incidence of Aids, with high or low incidence of tuberculosis, prevailing in the Southeast and South of Brazil and larger cities. Out of the six program effectiveness clusters, moderate and average effectiveness are significantly associated to priority municipalities, in metropolitan areas with more than 80 thousand inhabitants. Clusters with average and poor effectiveness represent 10% of municipalities with elevated treatment drop out and low rates of cure. The "no data" cluster is associated with the very low incidence of tuberculosis and AIDS cluster. CONCLUSIONS: The findings reflect inadequacy of inspection concerning the epidemiological reality in Brazil: precarious social factors associated with tuberculosis and AIDS and insufficient effectiveness of the control program.

Tuberculosis; Program evaluation; Health status indicators; Epidemiologic surveillance; Brazil


ARTIGOS ORIGINAIS

Morbidade por tuberculose e desempenho do programa de controle em municípios brasileiros, 2001-2003

Maria Jacirema Ferreira GonçalvesI; Maria Lúcia Fernandes PennaII

IEscola de Enfermagem de Manaus. Universidade Federal do Amazonas. Manaus, AM, Brasil

IIInstituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Correspondência | Correspondence Correspondência | Correspondence: Maria Jacirema Ferreira Gonçalves Universidade Federal do Amazonas Escola de Enfermagem de Manaus R.Teresina, 495 – Adrianópolis 69057-070 Manaus, AM, Brasil E-mail: jaciremagoncalves@ufam.edu.br

RESUMO

OBJETIVO: Analisar os municípios brasileiros segundo morbidade e desempenho do controle da vigilância epidemiológica de tuberculose e Aids.

MÉTODOS: Análise exploratória de dois grupos de clusters não hierárquicos de dados de vigilância epidemiológica de tuberculose e Aids, e indicadores operacionais do Programa Nacional de Controle de Tuberculose, período de 2001 a 2003. A distribuição foi estratificada nas regiões metropolitanas e municípios prioritários, segundo o tamanho da população. A associação entre clusters de morbidade e desempenho foi avaliada pelo qui-quadrado, com análise de resíduos para identificar associações significantes.

RESULTADOS: Dos cinco clusters de morbidade, a situação epidemiológica preocupante ocorre nos municípios com alta incidência de Aids, com alta ou baixa incidência de tuberculose, predominantes no Sudeste e Sul do Brasil, e nos grandes municípios. Dos seis clusters de desempenho do programa, desempenhos moderado e regular estão significantemente associados aos municípios prioritários, de regiões metropolitanas e com mais de 80 mil habitantes. Clusters regular e fraco concentram 10% dos municípios com abandono de tratamento elevado e baixa taxa de cura. O cluster "sem dados" está associado ao cluster de incidência muito baixa de tuberculose e Aids.

CONCLUSÕES: Os achados refletem inadequação da vigilância à realidade epidemiológica do Brasil: precários fatores sociais associados à tuberculose e Aids e desempenho insuficiente do programa de controle.

Descritores: Tuberculose, epidemiologia. Avaliação de programas e projetos de saúde. Indicadores básicos de saúde. Vigilância epidemiológica. Brasil.

INTRODUÇÃO

A tuberculose (TB) tem elevada incidência no Brasil, constituindo-se em carga social e econômica para saúde por danos individuais e coletivos. São notificados de 80.000 a 90.000 casos por ano, no Brasil, desde 1980, correspondendo à taxa de incidência média de 45,2 casos por 100.000 habitantes em 2003.* * Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2005: uma análise da situação de saúde no Brasil. Brasília; 2005. Não há perspectiva de eliminação da TB devido ao impacto causado pela pandemia da Aids,7 que já se manifesta no Brasil como importante preditora da TB.

O Brasil possui 5.561 municípios, dos quais 387 estão em regiões metropolitanas e 312 têm mais de 80.000 habitantes. Portanto, há necessidade de analisar esse grande número de municípios quanto à situação epidemiológica da TB e seu desempenho da vigilância do Programa Nacional de Controle da Tuberculose (PNCT).

Na década de 1980, o PNCT iniciou o processo de descentralização do nível federal para o nível estadual, estendendo-se ao nível municipal a partir de 1990. Em 1993, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou estado de emergência da tuberculose24 e o Ministério da Saúde (MS) definiu o plano de controle da doença, cujo alvo seria o fortalecimento do PNCT nos municípios. Em 1996 foram selecionados 230 municípios prioritários para o programa, que concentravam 75% dos casos de TB estimados para o Brasil. A partir do ano 2000 foram detalhados critérios de seleção e redimensionados para 315 municípios, visando melhor efetividade do programa. A escolha dos municípios prioritários baseou-se em critérios de magnitude epidemiológica da TB e da Aids, tamanho da população e informações operacionais de vigilância dos casos.20 O PNCT direcionou a política de controle para esses municípios, um subconjunto de cerca de 5,7% dos municípios brasileiros que concentram 53% da população.

Embora existam estudos de avaliação do controle da TB no mundo,17,18 há carência de informações para o Brasil19 e seus municípios3,8 sobre o desempenho no PNCT. A própria organização do Sistema Único de Saúde (SUS) exige uma avaliação por município. Esse conhecimento nacional e local pode ser utilizado para orientar e contribuir para tomada de decisão na política de controle da TB, direcionar os esforços para os municípios com mais risco à coletividade ou onde a situação operacional do programa esteja aquém das metas estabelecidas.

A análise do desempenho dos municípios no PNCT é necessária, pois a mensuração por meio de indicadores exprime, por aproximação, a situação do programa. Tal método de abordagem pode ser incorporado na avaliação de programa de saúde com o objetivo de contribuir para a tomada de decisão,2 a qual consiste de um julgamento de valor sobre uma intervenção envolvendo informações sobre as características, atividades, processos e resultados4 a respeito do PNCT.

O objetivo da presente pesquisa foi analisar os municípios brasileiros segundo dados de vigilância epidemiológica de TB e Aids e do desempenho operacional do Programa Nacional de Controle de Tuberculose.

MÉTODOS

Formaram-se dois grupos de clusters não hierárquicos, morbidade e desempenho, cujo número foi estabelecido pelo clustergrama a partir de dados de vigilância epidemiológica de TB e Aids e indicadores operacionais do PNCT.

A análise de cluster é exploratória6 e visa à descrição das unidades de observação segundo uma classificação gerada a partir do próprio comportamento dos dados e não definida a priori.

O número de clusters foi determinado pela inspeção do clustergrama,21 onde os conjuntos de indicadores de morbidade e de desempenho foram agrupados de um a dez clusters e diagramados no clustergrama. O ponto de corte foi definido no ponto onde os grupos passam a mostrar instabilidade na partição, misturando-se uns aos outros. O julgamento ocorreu a partir da geração de clusters classificáveis e epidemiologicamente interpretáveis.

Foram utilizados indicadores operacionais de municípios prioritários e não prioritários, regiões metropolitanas e não metropolitanas e o tamanho da população (municípios com mais de 80.000 habitantes ou não), no período de 2001 a 2003. Os dados de TB foram obtidos na base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan-MS). As notificações de Aids e a estimativa populacional foram compiladas do Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus).

As variáveis utilizadas no primeiro grupo de clusters (morbidade) foram as taxas médias de incidência de TB e de Aids por 100.000 habitantes. A inclusão da Aids nesta classificação justifica-se por sua reconhecida associação com TB,5 e por ser um dos critérios do PNCT para classificação de municípios prioritários.20

No segundo grupo (desempenho), as variáveis foram: proporção de abandono de tratamento entre os casos novos encerrados; proporção de casos notificados pelo município de residência; proporção de cura entre os casos novos com informação de desfecho; proporção de casos com informação de desfecho, entre os casos novos; proporção de casos em tratamento supervisionado (Directly Observed Treatment Strategy – DOTS) entre os casos novos; e proporção de casos pulmonares entre os casos novos que fizeram baciloscopia de escarro no início do tratamento. Essas são as variáveis tradicionalmente usadas para a avaliação do PNCT, tendo valores estimados para os estados desde a década de 1980.13 O programa como um todo não pode ser avaliado com base em um único indicador, vários devem ser analisados em conjunto.16 Dessa forma, admite-se ser possível captar a realidade do funcionamento do programa com a classificação a posteriori fornecida pela análise de clusters.

A análise de cluster foi realizada no programa Stata, com emprego de método não hierárquico de médias (kmeans). Os clusters foram definidos com base na similaridade entre os municípios, medida pela distância euclidiana entre as variáveis, discriminando os municípios mais similares nos grupos e mais heterogêneos entre os grupos.1

O primeiro agrupamento teve seu processo iniciado a partir de unidades municipais definidas aleatoriamente como centróide (krandom), mais adequado para dados com grande variabilidade, como a incidência de TB e Aids. O segundo utilizou partições aleatórias no conjunto de municípios (prandom), considerando-se que as variáveis possuem a mesma dimensão e só podem variar de zero a cem, os agrupamentos produzem menor discrepância. Para os dois casos foi determinada uma semente a fim de permitir a reprodutibilidade do processo aleatório. Houve 2.256 municípios não participantes do segundo agrupamento por falta de dados e por isso foram classificados no grupo de dados faltantes.

Os valores dos indicadores foram tratados como uma população de números em um espaço multidimensional. O algoritmo para definição de cluster buscou maximizar a distância entre os clusters neste espaço. A análise considera a distribuição desses valores para classificar cada município no grupo mais próximo no espaço multidimensional definido pelas variáveis utilizadas.

Os clusters dos municípios foram apresentados em mapas temáticos.

Para melhor compreender a classificação dos municípios em cada cluster, também se comparou: a distribuição por clusters dos municípios pertencentes ou não a regiões metropolitanas, se municípios prioritários ou não, e de acordo com o tamanho da população, se eram municípios com mais de 80.000 habitantes ou não. O teste do qui-quadrado (c2) foi utilizado para identificar associação entre essas categorias de municípios e a sua distribuição por cluster, assim como a associação entre os clusters de morbidade e de desempenho. Em seguida, os resíduos padronizados da tabela de contingência foram utilizados conforme Pereira;15 o qui-quadrado geral indica se a distribuição dos clusters é dependente, e os resíduos padronizados revelam os padrões característicos de cada categoria de cada variável segundo o excesso ou falta de ocorrências de sua combinação com cada categoria da outra variável, permitindo concluir a respeito da significância das associações.

O nível de significância adotado foi de 5% para a associação entre as variáveis no teste do c2 e na análise de resíduos. Esse nível de significância para o excesso de ocorrências corresponde ao resíduo com valor positivo superior a 1,96.

RESULTADOS

A média da taxa de incidência de TB entre todos os municípios foi de 19,19/100.000 habitantes, e a taxa média de incidência de Aids, 4,61/100.000.

Foram definidos cinco clusters de municípios para os indicadores de morbidade de TB e Aids, apresentados na Tabela 1. Essa tabela apresenta as distribuições de todos os municípios em clusters e a sua estratificação por municípios prioritários, regiões metropolitanas e tamanho da população. Houve associação entre a classificação por cluster e as variáveis municípios prioritários (c2 = 856,70; p<0,001), região metropolitana (c2 = 163,10; p<0,001) e tamanho da população (c2 = 515,11; p<0,001). Os resíduos padronizados mostram os excessos concentrados nos clusters 1, 2 e 3.

A Figura 1-A apresenta a distribuição espacial dos municípios segundo os clusters de morbidade. Observa-se maior prevalência do cluster 1 nas regiões Sudeste, principalmente em São Paulo, e Sul, com predomínio em Santa Catarina; o cluster 2 é mais expressivo nas regiões Norte e Centro-Oeste; o cluster 3 destaca-se nas regiões Norte (Amazonas e Pará), e Centro-Oeste (Mato Grosso e Mato Grosso do Sul); o cluster 4 predomina no Nordeste (Ceará, Pernambuco e Sergipe); e, o cluster 5, na região Sul, mas apresenta-se também em vários municípios do Nordeste.


No segundo agrupamento foram definidos cinco clusters, além de um imputado ad hoc devido à predominância de dados faltantes, totalizando seis grupos. A Tabela 2 mostra o número de municípios por cluster, médias e erro-padrão (EP) dos percentuais dos indicadores de desempenho. Os clusters foram classificados segundo suas características epidemiológicas e médias apresentadas nos indicadores de desempenho; cluster 1 – bom, apresentando baixa proporção de abandono elevada cura, elevada informação de desfecho, elevada baciloscopia e elevado DOTS; cluster 2 – bom, com baixo DOTS: difere do cluster 1 por apresentar a menor proporção média de DOTS entre todos os clusters; cluster 3 – moderado, com baixa proporção de abandono, elevada cura, baixa informação de desfecho, baixa baciloscopia, e moderado DOTS; cluster 4 – regular, com elevada proporção de abandono, baixa cura, baixa informação de desfecho, baixa baciloscopia, e moderado DOTS; cluster 5 – fraco, apresentando proporção de abandono muito elevada, cura muito baixa, baixa informação de desfecho, baixa baciloscopia, e razoável DOTS; cluster 6 – sem dados devido à falta de dados em todos os indicadores de desempenho, ou somente nos indicadores de resultado do tratamento.

O contingenciamento entre os clusters de desempenho e os municípios prioritários, regiões metropolitanas e municípios com mais de 80.000 habitantes (Tabela 1) mostra que essas variáveis não são independentes (p<0,001). De 315 municípios prioritários, a maioria (216) tem classificação de desempenho moderado, seguido de regular (52 municípios). Nas regiões metropolitanas, 159 estão no moderado e 59 estão no cluster regular. E dos 312 municípios com população de mais de 80 mil habitantes também há maior número de municípios no cluster moderado (212 municípios), seguido do cluster regular, com 50 municípios. A análise dos resíduos padronizados (Tabela 1) caracteriza os clusters moderado e regular como significantes; o cluster de desempenho moderado foi o de maior importância na associação.

O mapeamento dos clusters de desempenho é apresentado na Figura 1-B, onde se observa que o cluster 1 aparece mais no Centro-Oeste, litoral do Nordeste e em Minas Gerais; o cluster 2 é expressivo no Ceará e na região Sudeste, especialmente São Paulo; o cluster 3 é abundante no norte e no Sudeste; os clusters 4 e 5 estão dispersos em todo o mapa; o cluster 6 é expressivo no interior do Nordeste e na região Sul.

A Tabela 3 mostra distribuição dos clusters de morbidade e de desempenho do PNCT, com diferenças estatisticamente significantes (c2 = 1.924, p<0,001), indicando que morbidade e desempenho do PNCT são dependentes. A análise dos resíduos padronizados permitiu caracterizar as associações significantes, onde estão destacados em negrito os resíduos com valor positivo superior a 1,96, que corresponde ao nível de significância para o excesso de ocorrências entre as categorias.

DISCUSSÃO

Os dados foram analisados com a devida cautela, e considerando as limitações de um estudo unicamente ecológico com dados secundários. Os estudos baseados em dados secundários refletem as deficiências dos sistemas de informações que os geram, podendo introduzir vieses e conclusões falsas. No presente estudo, a própria falta de informação foi incorporada sob o aspecto de indicador operacional, cuja interpretação dos resultados levou em conta a possibilidade de sub-registro de casos. Também foi levado em conta que a avaliação apenas com os componentes de processo e resultado exclui o aspecto da estrutura do programa, mas não compromete o julgamento dos resultados da análise.

Do ponto de vista da avaliação epidemiológica e operacional no PNCT, a classificação em clusters interpretáveis permite a detecção de riscos e problemas operacionais em todo o País. Esta estratégia difere da avaliação e atuação restrita a um pequeno subconjunto de municípios, com uma proporção importante do número de casos notificados e da população nacional. A estrutura do SUS com comando municipal impõe estratégias de avaliação às secretarias municipais de saúde no planejamento e avaliação de suas atividades. Quando o SUS, em nível nacional, tem a responsabilidade de dar uma resposta a cada um dos 5.561 municípios brasileiros, a abordagem mais produtiva é o da análise exploratória, a qual não é de natureza estatística nem busca discutir determinações ou causalidade. Assim, essa análise não leva em conta a variância dos indicadores dependentes do tamanho da população municipal, nem a determinação dos fenômenos estudados (associação da morbidade com fatores socioeconômicos ou com a distribuição etária da população).

Os resultados discriminaram bem os municípios brasileiros, permitindo um diagnóstico do PNCT nesses locais e suscitando possíveis explicações para a situação do programa no Brasil.

O primeiro grupo de cluster de morbidade tem o risco de aumento da incidência de TB, pois a Aids é o fator conhecido mais poderoso para o desenvolvimento de TB.5,22 Nos municípios onde as duas doenças têm taxas de incidência elevadas, há gravidade epidemiológica, oferecendo mais risco à população devido à fonte de infecção presente, bem como maior demanda para atuação da vigilância dos serviços de saúde.

Por outro lado, no cluster 5 – muito baixa TB e Aids – aventa-se a possibilidade de que se trate de uma mistura de municípios com vigilância de má qualidade com aqueles que realmente têm baixa TB e Aids, o que leva à suposição de que a taxa identificada pode estar sendo subestimada. Isso é corroborado pela existência de grande proporção de municípios com desempenho fraco e sem dados, e neste último é onde a associação é mais importante.

Observou-se haver municípios com bom desempenho, independente da implantação de DOTS. Ademais, a elevada proporção de pacientes tratados com esta estratégia está presente em municípios pequenos, não prioritários e não pertencentes às regiões metropolitanas. Os municípios classificados como bom com baixo DOTS têm a menor média de proporção de DOTS (8,5%) entre todos os clusters, inclusive inferior à média nacional (19,6%). Sem dúvida, há programa de controle de TB funcionando com bom desempenho, independente da adoção de DOTS. Essa é a única diferença entre os clusters 1 e 2 de desempenho que, exceto a proporção de desfecho, conseguem atingir o mínimo requerido ao bom funcionamento do programa.

Em 1998, a estratégia DOTS foi implantada no PNCT, e em 1999 estava presente em 288 municípios.19 Após cinco anos, era apontado como uma realidade não consolidada no Brasil. A proporção média de DOTS no Brasil é apenas de 20%, instigando a necessidade de se avaliar os motivos de sua adoção restrita, já que em outros países apresenta impacto positivo no controle de TB.10,18 A adoção desta estratégia tem sido recomendada em alguns estudos no Brasil.9,12 Entre as hipóteses explicativas que devem ser avaliadas ressaltam-se: obstáculos de uniformização e direcionamento da política nacional de implantação, utilização e avaliação de DOTS; entraves na operacionalização da estratégia, principalmente em grandes municípios; capacidade dos gestores; dificuldades de recursos para sua implementação. Há que se questionar a exeqüibilidade de DOTS em regiões metropolitanas, onde há longas distâncias e os pacientes não são licenciados do trabalho diariamente para receber o tratamento supervisionado. Portanto, as questões relacionadas ao paciente também devem ser consideradas ao se pensar em DOTS.23

No conjunto de desempenhos moderado, regular e fraco, 37% dos municípios foram classificados nestes clusters, cujo mapeamento não mostra um padrão regional de aglomeração, indicando que o fenômeno ocorre em todo o Brasil indistintamente. Esses municípios correspondem a 59,8% dos casos notificados de TB e a 74% da população brasileira.

Como no desempenho moderado é predominante a proporção de municípios grandes e prioritários, ressalta a relação entre os recursos para o SUS e a prioridade designada a esse grupo de municípios nos últimos dez anos. Observa-se que o principal problema é a informação de desfecho dos casos, sendo menor entre todos os clusters. Além disso, a proporção de casos que fizeram baciloscopia de escarro não chega a 70% e, ao que parece, DOTS não é prioridade nesses locais. Os resíduos padronizados indicam sua importância nos municípios prioritários, regiões metropolitanas e naqueles com mais de 80.000 habitantes.

É possível que a baixa informação de desfecho retrate problemas de completitude dos dados, pois a proporção de cura é elevada. Entretanto, a proporção de baciloscopia indica problemas transcendentes ao sistema de informação. É possível que se esteja tratando os pacientes de TB sem cumprimento das normas do programa. O estudo de outros indicadores, como aqueles referentes à estrutura do programa, poderiam contribuir para discriminar a situação dos municípios com desempenho moderado.

A pior situação do PNCT é evidenciada pelo cluster 6 – sem dados, mais incidente nos municípios pequenos. Esta informação impele a necessidade de atenção para esses municípios, que apresentam menor capacidade operacional do programa e, portanto, precisam ter seu programa reforçado.

O cruzamento de morbidade muito baixa de TB e Aids com desempenho no cluster sem dados (Tabela 3), indica forte associação, de acordo com os resíduos padronizados. Isto aponta tanto problemas de notificação quanto a capacidade dos municípios em acompanhar os casos em tratamento, já que na maior proporção deles concentra-se a situação de dados faltantes.

Observou-se que os clusters de morbidade de maior risco (baixa TB e alta Aids, e alta TB e Aids – clusters 1 e 2) estão fortemente associados aos desempenhos moderado e regular (clusters 3 e 4), retratando inadequação das ações de vigilância à realidade epidemiológica. Para o problema em estudo, menor morbidade não é necessariamente em função do bom desempenho do programa, ao contrário do que ocorre nas doenças imunopreveníveis. Para essas, o resultado de diminuição da morbidade evidencia desempenho adequado na execução da imunização.

A vigilância epidemiológica tem o papel de recomendar e implementar ações que levem à prevenção e ao controle da doença. Ela deve levar em conta que a morbidade por doenças transmissíveis sofre vultosas influências do processo operacional dos serviços de saúde.14

O cluster de desempenho regular está associado aos municípios prioritários, de regiões metropolitanas e com mais de 80.000 habitantes, e também a quase todos os clusters de morbidade, exceto muito baixa TB e Aids. Neste, observa-se uma proporção média de abandono elevada (15,2%) e maior que a média nacional (8,16%), porém o Ministério da Saúde considera uma avaliação adequada do programa, quando o abandono está abaixo de 5%.** ** Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose. Cadernos de atenção básica no. 6. Brasília; 2002. (Série A. Normas e Manuais Técnicos, 148). A diminuição do abandono de tratamento é uma meta importante do programa, considerado um dos mais sérios problemas para o controle da TB. Isso porque implica a persistência da fonte de infecção, o aumento da mortalidade e das taxas de recidiva, além de facilitar o desenvolvimento de cepas de bacilos resistentes.11

A presente análise retrata que o PNCT não está adequado aos municípios de pequeno porte e tampouco aos prioritários. Apesar de os prioritários receberem mais insumos, respondem insatisfatoriamente às necessidades de vigilância do programa.

O atendimento aos pacientes de TB por um médico específico inviabiliza a eficiência do programa nos municípios pequenos, o que pode explicar a grande proporção do cluster fraco e sem dados. Contudo, os clusters bom e bom com baixo DOTS são constituídos por municípios pequenos (431 e 787 municípios respectivamente). É possível que a estratégia DOTS nesses locais seja mais efetiva, considerando que pode usar toda a equipe de saúde na sua implementação. Além disso, a melhor integração de todo o programa de TB na atenção primária à saúde possibilita abordar o problema da TB como um todo e melhorar a atuação do programa.

Uma análise aprofundada e com abordagem qualitativa nos clusters 1 e 2 de desempenho, com enfoque em municípios com diferentes tamanhos de população, pode propiciar a identificação dos condicionantes do bom desempenho do PNCT nesses locais. A análise qualitativa permitirá identificar o que faz com que o municípios de cluster 1 e 2 tenham bom desempenho mesmo não fazendo DOTS e vice-versa. Desse modo, recomendações federais podem ser adotadas, contribuindo para melhorar os municípios com desempenho inadequado.

As diferenças regionais expressam a realidade dos estados e municípios. São situações extremamente graves, configuradas por elevadíssima taxa de incidência de TB, explicada por precários fatores sociais associados à TB e Aids e insuficiente intervenção do programa de controle.

Como o padrão TB-Aids difere de região para região, requer abordagens associadas, tanto na notificação quanto na vigilância epidemiológica dos casos. Por isso, sugerem-se estudos adicionais, no sentido de identificar os fatores, causais ou relacionados, que levam muitos municípios a não terem bom desempenho na operacionalização do PNCT. Pois, dentre outros fatores, a elevada morbidade no Brasil reflete o nível de qualidade do programa.

Recebido: 25/10/2006

Revisado: 6/6/2007

Aprovado: 24/7/2007

Artigo baseado na tese de doutorado de MJF Gonçalves, apresentada ao Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2007.

MJF Gonçalves foi apoiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam – Processo 008/2004; bolsa de doutorado).

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  • Correspondência | Correspondence:
    Maria Jacirema Ferreira Gonçalves
    Universidade Federal do Amazonas
    Escola de Enfermagem de Manaus
    R.Teresina, 495 – Adrianópolis
    69057-070 Manaus, AM, Brasil
    E-mail:
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    Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Saúde Brasil 2005: uma análise da situação de saúde no Brasil. Brasília; 2005.
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    Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Departamento de Atenção Básica. Manual técnico para o controle da tuberculose. Cadernos de atenção básica no. 6. Brasília; 2002. (Série A. Normas e Manuais Técnicos, 148).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Nov 2007
    • Data do Fascículo
      Set 2007

    Histórico

    • Aceito
      24 Jul 2007
    • Revisado
      06 Jun 2007
    • Recebido
      25 Out 2006
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