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A saúde pública no século XX

Public health in the 20th century

Editorial

Editorial

A saúde pública no século XX

Public health in the 20th century

Ao apagar as luzes do século XX, será de todo oportuno passar em revista as conquistas da saúde pública nesses passados cem anos. No entanto, a multiplicidade delas impede que possam ser reunidas no âmbito de simples Editorial. Claro está que foram também múltiplos os campos do conhecimento que revelaram desenvolvimento notável. Principalmente os tecnológicos. E a tal ponto, que passaram a ser aplicados proveitosamente na solução de problemas de saúde pública. Como exemplos marcantes, pode-se mencionar a descoberta da estrutura química do DNA, a utilização crescente dos modelos matemáticos e, de maneira mais recente, a metodologia do sensoriamento remoto nos estudos ecológicos.

Não obstante, o acesso aos benefícios resultantes cresceu muito em desigualdade. Na verdade, o incremento da globalização e da economia neoliberal cada vez mais tem aumentado a parte da humanidade tida como excluída. E isso em escala mundial. Não há como comparar as conquistas alcançadas no primeiro mundo (Fielding,3 l999) com as obtidas no chamado terceiro mundo. Em que pesem os esforços da Organização Mundial da Saúde (OMS), com seus programas de erradicação, as populações humanas nesse último vêem-se ainda a braços com endemias infecciosas.

Entretanto, sempre existe a possibilidade de se lançar olhar, ainda que panorâmico, sobre o que ocorreu nesse período. Por ocasião do alvorecer do século, pode-se dizer que havia condições propícias para minorar os problemas de saúde pública, mediante a manipulação do ambiente. Era a época na qual as atenções se voltavam primordialmente para as doenças infecciosas. Ao longo dos primeiros cinqüenta anos, a humanidade teve de suportar o suceder de várias epidemias dessas afecções. É possível referir os casos da malária e da varíola. A primeira, embora objeto de ulterior campanha de erradicação, ou talvez por isso mesmo, acabou por se tornar endêmica. A segunda é tida como erradicada na face do planeta. A partir dessa época, desenvolveu-se a preocupação com as doenças crônicas, ou seja, as denominadas de "não transmissíveis", juntamente com os supostos fatores de risco ocorrentes no ambiente. A guisa de exemplo, é de se mencionar o desenvolvimento da saúde ocupacional (Cullen,2 l999).

Partindo-se do princípio de que as atividades de saúde pública nada mais são do que esforços, visando ao bem-estar da população, torna-se necessário entender as vias pelas quais agem os diversos fatores. São os que dizem respeito aos ambientes, biológico, físico e social. Há de se conhecer as maneiras pelas quais eles poderiam representar riscos, traduzíveis em ameaças à saúde e à qualidade de vida. Na segunda metade do século foram dados importantes passos nesse sentido. Daí o surgimento de várias especialidades. Reconhecem-se hoje dentro do campo da saúde pública visões e objetivos cada vez mais específicos, de acordo com os supramencionados fatores. Todavia, sempre é preciso encará-los à luz da própria atividade populacional humana.

No que concerne ao âmbito biológico, foram alcançados feitos significantes graças ao advento de vacinas eficazes, de inseticidas com poder residual e do aperfeiçoamento administrativo ao se executar as campanhas de prevenção. Devido a esse, surgiu o conceito de "erradicação", cujo pródomo residiu no combate a vetor africano de malária que se estabelecera na região nordeste do Brasil. Em seqüência, chegou-se à erradicação da doença resultante do relacionamento entre a população humana e a do poxvírus variólico. Da mesma forma estão em andamento erradicações análogas em relação aos vírus da poliomielite e do sarampo, bem como o do parasito da dracunculíase.

O século assistiu à aplicação de tecnologia mais desenvolvida no controle do ambiente físico, mediante a ampliação do saneamento ambiental. Maior número de pessoas teve acesso ao fornecimento de água potável e ao tratamento adequado de esgotos. Em decorrência assistiu-se ao decréscimo das infecções gastrointestinais. Contudo, as atividades humanas têm ameaçado e alterado o meio físico, em boa parte responsabilizadas pelas mudanças climáticas regionais e mesmo globais.

Na segunda metade do século cresceu o reconhecimento da subordinação dos agravos à saúde a fatores sociais. Em boa medida eles seriam "produtores" de agravos à saúde da população. Viu-se assim o incremento em importância do estudo do ambiente social para melhor entendimento dos fatores que subjazem ou mesmo determinam o caminho que leva à doença, qualidade de vida e saúde.

Diante desse panorama, o que se deveria esperar da saúde pública no próximo século? Para responder a essa pergunta, de maneira satisfatória, dever-se-ia retroceder no tempo. Há cem anos muitos ainda se filiavam à teoria miasmática para entender o mecanismo de propagação de várias infecções. A organização dos serviços de saúde estava no início. Quanto à epidemiologia, vivia na infância da teoria dos germes, seguindo os postulados de Koch para certas doenças. Decorrido um século, a situação geral mostra-se bem diferente. Observando-a de maneira global, logo salta aos olhos a desigualdade, a qual tende a separar, cada vez mais, os assim chamados primeiro e terceiro mundos (Forattini,5 1999). Esse último, embora represente, em termos numéricos, a maior parte da humanidade, está mais próximo à situação acima descrita, do que aquele.

Sem receio de errar, pode-se afirmar que talvez o maior desafio da saúde pública será o de combinar, no modelo da doença ou agravo, a ação dos três fatores já mencionados. Tratar-se-ia de estabelecer a causalidade atribuível a cada tipo e combiná-la de forma a nortear o caminho a ser seguido pelas atividades de saúde pública. Em qualquer caso há de se pesar a participação de cada fator no sentido de identificar qual deles apresentaria viabilidade, em termos de solução do problema dela dependente.

Ao longo do século XX deu-se maior valor aos determinantes biomédicos. Deixou-se de atentar para a influência dos fenômenos sociais e suas variantes como, administrativas, educacionais, econômicas, políticas e outras. Elas poderiam levar a alterações substanciais dos quadros epidemiológicos, nos quais se baseia a saúde pública. As dimensões éticas dessa deverão merecer maior atenção, uma vez que se trata não apenas de indivíduos, mas sim de corpos sociais corporativos. Assim sendo, entende-se que a ética da saúde pública deve diferenciar-se da simples bioética médica. Essa se destina a focalizar os direitos individuais no sentido de se submeterem a tratamentos adequados ou a experiências. À guisa de exemplo, pode-se mencionar as hipóteses levantadas a respeito da origem da Aids. Uma delas é de natureza ecológica e sugere a ocupação de nicho deixado vago pelo vírus da varíola (Forattini,4 l993). A outra é de caráter evolutivo indicando a possibilidade, por parte de vírus de macacos, os quais teriam contaminado as primeiras partidas de vacina antipoliomielítica usada em fins do decênio de 1950, em experimentos populacionais no Congo (Hooper,6 1999).

Assim sendo, enquanto as sociedades do terceiro mundo se vêem ainda a braços com amplos problemas de doenças infecciosas, as mais afluentes enfrentam os decorrentes do próprio desenvolvimento tecnológico. Tais são, as clonagens, os bebês de proveta, os transplantes, o prolongamento da vida, a manipulação genética e muitas outras. Convirá perguntar se existe limite para elas. E, em caso de resposta positiva, quem os estabeleceria? Será que elas representam real progresso para a saúde pública? Tudo dependerá da cultura a se desenvolver nas sociedades do futuro, talvez próximo. Mas, a cultura parece ser tão difícil de definir quanto o é prescindir dela (Burke,1 2000). De qualquer maneira, as respostas a essas perguntas caberão às próximas gerações, certamente no século XXI.

Oswaldo Paulo Forattini

Editor Científico

REFERÊNCIAS

1. Burke P. Variedades de história cultural. Tradução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2000.

2. Cullen MR. Personal reflections on occupational health in the twentieth century: Spiraling to the future. Ann Rev Public Health 1999; 20:1-13.

3. Fielding JE. Public health in the twentieth century: Advances and challenges. Ann Rev Public Health 1999; 20:xiii-xxx.

4. Forattini OP. AIDS e sua origem. Rev Saúde Pública 1993; 27:153-4.

5. Forattini OP. A ciência e a sociedade. Rev Saúde Pública 1999; 33:107-8.

6. Hooper E. The river. A journey to the source of HIV and AIDS. Boston: Little, Brown & Co.; 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Jun 2000
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