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POR UMA POLÍTICA IMPRÓPRIA

Devenney, Mark. . (2020). Towards an improper politics.Edinburgh: Edinburgh University Press, 224 p.

Em seu novo livro, Mark Devenney (2020Devenney, Mark. (2020). Towards an improper politics. Edinburgh: Edinburgh University Press.), filósofo e teórico político inglês, apresenta uma contribuição relevante para os esforços de retomada da crítica da propriedade na teoria política contemporânea. Devenney escreve imerso nos debates pós-marxistas e pós-fundacionalistas e tem como pressuposto fundamental a necessidade de um retorno à crítica das políticas da propriedade, em busca de um pensamento impróprio tanto da propriedade quanto do apropriado. O esforço principal é, portanto, o desenvolvimento de uma reflexão acerca das relações entre as noções de propriedade, apropriado, hegemonia, impróprio e democracia, permitindo uma crítica original da desigualdade na contemporaneidade.

A estratégia expositiva de Devenney é trazer para o diálogo autores relevantes para as questões que ele aborda em um trabalho duplo de apropriação e crítica. Contribui para a sua exposição o esforço de retomada e reiteração dos argumentos apresentados, algo que o autor se preocupa em realizar ao longo de todo o livro. A escrita exige do leitor atenção para as nuances dos argumentos, mas sem abrir mão da fluidez. É particularmente prazeroso ler as passagens em que percebemos o humor cáustico que o escritor mobiliza para tecer alguns de seus argumentos.

A estrutura geral do livro é dividida em oito capítulos. Após a introdução, dois capítulos apresentam os aspectos mais importantes de sua teoria sobre o impróprio e a propriedade. Um é dedicado à discussão acerca da propriedade, do apropriado e do próprio, enquanto o outro esboça as proposições principais acerca da política do impróprio. Nos capítulos seguintes, Devenney desenvolve sua teoria apresentando as contribuições para conceitos-chave da teoria política crítica contemporânea: performatividade, hegemonia, equivalência e democracia. Antes da breve conclusão, o penúltimo capítulo, como o próprio autor pontua, tem um caráter mais especulativo e apresenta uma reconsideração, diante do proposto no livro, das políticas populistas e democráticas em um contexto transnacional. Apesar da densidade teórica dos argumentos, há um esforço constante de demonstrar o quanto as formulações estão ancoradas em relações antagônicas que ocorrem em distintos processos históricos. O início de cada capítulo apresenta uma breve narrativa sobre temas diversos, como processos econômicos, peças, trabalhos de arte ou atos políticos. Essas narrativas não são, porém, meras ilustrações dos argumentos, pois estão intrinsecamente articuladas com as discussões teóricas de cada capítulo.

Levando em consideração que Devenney afirma que não propõe definições simples acerca de seus conceitos, vale apresentar algumas de suas proposições principais. Ao contrário dos muitos esforços teóricos da justificação moral e ontológica da propriedade, o autor explicita sua percepção de que toda propriedade é contingente e política. É, portanto, sempre um processo de disputa, pois qualquer tipo de propriedade requer justificações que são alvo de contestações. As propriedades são históricas e, como tal, assumem distintas formas em diferentes contextos. Como seu enfoque pós-fundacional já anuncia, Devenney não defende uma forma apropriada da propriedade, pois entende que sua manifestação sempre é fruto de relações sociopolíticas contingentes. Dessa maneira, a propriedade não é entendida como um objeto ou uma coisa possuída por uma pessoa legal, mas como uma série de relações sobredeterminadas - que incluem articulações políticas, econômicas e legais - que demarcam e ordenam o espaço, o tempo e a subjetividade por meio de cercamentos, isto é, pelo estabelecimento de limites entre o que está excluído e o que está incluído. Estamos, portanto, necessariamente lidando com processos de formação de hegemonias, em meio aos quais as propriedades estabelecem uma série de relações e contribuem para definir aquilo que é próprio e o que é impróprio.

Como a propriedade e a determinação daquilo que seria “próprio” ao ser estão intimamente articuladas, há um processo de subjetivação em jogo que vai além das identidades e está relacionado às relações de inclusão e exclusão dos sujeitos. Há, portanto, uma articulação entre os aspectos mais estritamente econômicos e a definição de formas apropriadas do comportamento e da subjetividade. Essa articulação entre propriedade e apropriado se dá com a conformação de desigualdades, visto que as propriedades existem a partir de exclusões que implicam um recurso explícito ou implícito à violência. Ao insistir nesses vínculos, Devenney enfatiza o quão violenta é qualquer forma de propriedade, fornecendo assim uma importante contribuição para a crítica das formas de opressão contemporâneas.

Talvez o esforço teórico mais relevante do livro seja a discussão acerca do impróprio. As políticas impróprias, para Devenney, seriam aquelas que rompem com os limites e desestabilizam o regime de propriedade. É uma “impossibilidade que perturba”, mas que, concomitantemente, dá coerência ao apropriado. Se uma política imprópria busca questionar aquilo definido politicamente como apropriado, não é porque esteja baseada a priori em alguma concepção que define o que a propriedade deva realmente ser - como as noções caras à esquerda sobre a propriedade comunal ou coletiva. A noção de impróprio está baseada, portanto, na defesa de que a ética está sempre implicada nas lutas hegemônicas. Ademais, de modo positivo, as políticas impróprias buscam instituir relações de igualdade por meio de demandas e de práticas. Como um excesso, a política imprópria perturba o estabelecido, ao mesmo tempo que projeta outros possíveis. Assim, o impróprio não implica definições ontológicas, mas sim o exame de como a exclusão faz parte das formas dominantes de ser. A noção coloca, portanto, a importante questão de como as formas apropriadas de ser são aceitas como tal e quais são os seus efeitos.

Como desenvolve no quarto capítulo, essas formulações apresentam contribuições importantes para repensar a questão da performatividade, enfatizando os momentos em que ela se relaciona com o apropriado. É estabelecido um diálogo com Butler (1997Butler, Judith. (1997). Excitable speech: a politics of the performative. Abingdon: Routledge.), pois ambos convergem no questionamento do estabelecido e na ausência de garantias ontológicas. Porém, Devenney critica a falta de uma teorização mais profunda sobre propriedade em Butler. Sem isso, a autora não daria conta de questões importantes acerca da articulação sobredeterminada entre a performatividade do corpo e da linguagem e as condições infraestruturais. O autor contribuiu ao dar a devida atenção ao fato de o corpo só poder ser entendido em relação com uma ordem proprietária que tenha uma existência histórica contingente e particular, ao mesmo tempo que a propriedade só se constitui a partir do policiamento de performances reiteradas.

De Laclau e Mouffe (1985Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal. (1985). Hegemony and socialist strategy. London: Verso .), Devenney retoma, no quinto capítulo, a noção de hegemonia no sentido de uma articulação provisória e parcial das relações sociais entendidas como antagônicas. Porém, o autor vai além ao criticar o caráter quase de exclusividade que eles atribuem às identidades políticas nesse processo, preferindo retomar a importância da propriedade para as disputas hegemônicas. Dessa maneira, para uma crítica da hegemonia em um capitalismo financeirizado, é necessário transpassar as “cadeias de equivalência” de identificações políticas e das articulações de demandas que Laclau e Mouffe colocam como centrais. É preciso, logo, estar alinhado a outras equivalências: a do dinheiro, da dívida e das lógicas infraestruturais. A hegemonia é entendida, portanto, também por formas de equivalência que escapam às lógicas da identificação e do antagonismo e que não estão relacionadas com a formação de uma vontade comum.

Ao debater a noção de democracia no sexto capítulo percebemos que esse debate é central para a sua concepção do impróprio. Em diálogo com Rancière (1995Rancière, Jacques. (1995). La mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée.), Devenney defende que a democracia está baseada no desentendimento e na falta de fundamento para a definição daqueles que governam. É, portanto, um princípio anárquico que coloca em questão os regimes políticos, não devendo ser concebida como mais um tipo de regime que define limites. As demandas e práticas democráticas são antagônicas e não se constituem como uma ordem, mas como o questionamento das ordens em nome da igualdade. Se a propriedade tem relação intrínseca com o governo, ou seja, com impor limites, a democracia definida e defendida é concebida impropriamente.

Por fim, é preciso ressaltar que essa crítica da propriedade tem sempre no campo de visão as possibilidades de desestabilização das ordens proprietárias. Pode-se dizer, portanto, que a sua proposta de intervenção é esperançosa, mesmo que esteja atenta ao caráter reiteradamente violento da propriedade. Dessa maneira, fica clara a importância política e teórica de Towards an Improper Politics diante do vivido atualmente. É assim que o sexto e penúltimo capítulo apresenta a defesa por uma política transnacional populista e democrática. Depois de retomar algumas experiências populistas, o autor defende que o povo que protagoniza a política imprópria não pode ser delimitado, o que demarca bem como a concepção de populismo de Devenney se distancia daquela formulada por Laclau (2005Laclau, Ernesto. (2005). On populist reason. London: Verso.). O populismo defendido perde a pretensão ontológica de completude de uma universalidade impossível, por isso é possível articulá-lo - não igualá-lo - com uma democracia que perturba o sedimentado nas formas institucionais. Esse aspecto aponta para o seu necessário caráter transnacional, pois o trans aqui, em diálogo com as teorias queer, aponta para a aposta fundamental, nos dias atuais, de um “estado do vir a ser”.

Apesar do termo “conhecimento impróprio” aparecer apenas duas vezes ao longo de todo o livro, é possível concebê-lo como uma síntese do pretendido pelo autor. Mesmo que continue preso no ordenamento proprietário do conhecimento, no sentido de que está sujeito às normas da propriedade intelectual e do mercado editorial, é possível dizer que Devenney consegue tornar a leitura do livro a partilha de um conhecimento que busca dar conta das demandas por “igualdade, dignidade e reconhecimento”.

REFERÊNCIAS

  • Butler, Judith. (1997). Excitable speech: a politics of the performative. Abingdon: Routledge.
  • Devenney, Mark. (2020). Towards an improper politics. Edinburgh: Edinburgh University Press.
  • Laclau, Ernesto. (2005). On populist reason. London: Verso.
  • Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal. (1985). Hegemony and socialist strategy. London: Verso .
  • Rancière, Jacques. (1995). La mésentente: politique et philosophie. Paris: Galilée.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2020
  • Aceito
    14 Jan 2021
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