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A AGÊNCIA DOS MORTOS SANTIFICADOS NOS CEMITÉRIOS URBANOS DA COLÔMBIA: O RITUAL, O NARRADO E O ESCRITO

THE SANCTIFIED DEAD'S AGENCY IN COLOMBIAN URBAN GRAVEYARDS: RITUAL, ORAL AND WRITTEN NARRATIVES

Resumo

Na Colômbia, as condições históricas e políticas das muitas formas assumidas pela violência armada, a ritualização das ações fúnebres e as representações sociais dos conflitos subjacentes a essas ações geraram análises cada vez mais sensíveis aos contextos locais e regionais. Este texto baseia-se na etnografia das práticas populares devocionais dedicadas a certos mortos, as quais vêm ocorrendo intensa e continuamente nos últimos cinquenta anos. Esses rituais não são promovidos por nenhuma instituição ou por qualquer celebrante especializado. Realizados por indivíduos ou famílias, por meio deles certos tipos de mortos, anônimos ou famosos, transformam-se em personagens santificados dotados de agência contra o infortúnio. A análise argumenta que estas atividades ritualizam a experiência do terror e do luto ao mesmo tempo em que configuram uma contra-memória popular da violência através da ritualização informal.

Palavras-chave
Mortos santificados; Ritualização; Violência armada; Cemitérios urbanos; Colômbia

Abstract

In Colombia, historical and political conditions of the many forms assumed by armed violence, the ritualization of mortuary actions and the social representations of the conflicts underlying these actions have given rise to analyses increasingly sensitive to local and regional contexts. This text is based on the ethnography of popular devotional practices dedicated to certain dead, which have occurred intensely and continuously in Colombian urban graveyards for the last fifty years. These rituals are not promoted by any institution nor by any special minister. Held by individuals or families, they transform certain types of recent dead, anonymous or famous, into sanctified figures endowed with agency against misfortune. The analysis argues that these activities ritualize the experience of terror and mourning and at the same time configures a popular counter-memory of violence through informal ritualization.

Keywords
Sanctified dead; Ritualization; Armed violence; Urban graveyards; Colombia

Na vida cotidiana do campo e das cidades colombianas a violência constitui uma experiência tangível1 1 A atual pesquisa foi iniciada em 1997 no Cemitério Central, no Cemitério Sul e no Cemitério do Chapinero, de Bogotá. Pela observação, dia após dia, das práticas rituais do cemitério: eu mesma depositava oferendas. Muitas pessoas conhecidas neste âmbito foram minhas interlocutoras e guias, mas também realizei paralelamente longas entrevistas com as pessoas do cemitério e vendedores ambulantes (ver Losonczy, 1998). Em 2001 o trabalho de campo se estendeu aos cemitérios de Cali, Cartagena e Santa Marta, e em janeiro de 2002 passei mais de um mês nos de Bello, El Universal, San Pedro e Jardines de Montesacro, na cidade de Medelín, acompanhando, de dia e às vezes à noite, os adolescentes sicários que se reuniam ao redor do túmulo de amigos mortos. Visitava alguns deles em suas casas, entrevistando os familiares, participava como convidada em vários enterros e assisti no necrotério municipal o levantamento e identificação de vários corpos. com a redução das possibilidades de trânsito e da circulação, dos deslocamentos e fugas forçadas, dos rumores sobre massacres passados ou futuros e das histórias familiares de desaparecimentos e mortes violentas. A multiplicação e a disseminação dos atores armados, com objetivos cada vez menos formulados verbalmente, o desaparecimento de limites claros entre criminalidade comum e insurreição ideológica, a fragmentação crescente de poderes armados, de alianças cambiantes, a perda de legitimidade, por fraqueza estatal, dos meios institucionais não violentos de resolução dos conflitos são fatores que transformaram progressivamente a situação sociopolítica de violência armada partidária recorrente. Anteriormente seletiva e setorial, com autores identificados e etiquetados, a violência transformou-se em um estado de terror que ofusca qualquer marco identitário, territorial e ético. Impõe à sociedade a morte precoce e violenta, a um só tempo como um horizonte comum da existência e como dispositivo privilegiado de interpretação para decifrar e dotar de sentido os eventos e personagens da vida social.

A particularidade atual da violência multiforme colombiana em relação a outras situações passadas ou atuais de terror, como na Argélia e no Afeganistão, ou no Iraque, por exemplo, reside na falta de dispositivos de transnacionalização e globalização do antagonismo que estruturem o discurso e os espaços de ação dos atores violentos. Efetivamente, na Colômbia, as práticas violentas não afetam nações limítrofes ou distantes, nem vítimas pertencentes a outros países. Do mesmo modo, atualmente, nenhum dos raros discursos legitimadores do terror exercido remete a referências religiosas ou políticas transnacionais para construir a identidade subversiva, como o islã, a ideologia comunista ou o antiamericanismo. Paralelamente, nem os discursos, nem as práticas constroem imagem alguma de inimigos ou aliados para além das fronteiras ou no estrangeiro, tampouco inscrevem o conflito em um contexto de antagonismo supralocal, político ou religioso. Esta ausência de uma dimensão globalizante constitui a singularidade do estado de terror colombiano e difunde um sentimento de solidão coletiva, representada como estigma de um particularismo que excluiria os colombianos do mundo extranacional.

Os estudos históricos e sociológicos recentes sobre este país propõem constantemente um entendimento da recente experiência social de transformação da violência - de setorial, seletiva, dotada de um discurso legitimador e reivindicado por atores identificados - em terror. Os mecanismos identificados desta transformação são a desterritorialização e a ubiquidade dos atores violentos, sua difusão em redes móveis impossíveis de identificar e localizar, que estendem a representação da vulnerabilidade a todos os territórios naturais e sociais, incluindo a família e a vizinhança (Pécaut, 2000). A percepção social do terror se inscreve em temporalidades contraditórias, sobrepondo a representação da violência como irrupção e como rotina reiterativa. Alimenta a precariedade e a mobilidade sob a forma de fuga do campo para as cidades.

Essa ubiquidade espacial e identitária dos verdugos impossibilita sua designação e assim a atribuição de sentido à sua violência. O discurso comum (Ortiz, 1991Ortiz, Carlos M. (1991). El sicariato en Medellin: entre la violencia politica y el crimen organizado. Analisis Politico, 14, p. 60-73.) designa então o responsável como "a Violência", demiúrgica, impessoal, que desindividualiza tanto os verdugos como as vítimas. Desta forma, a narração do conflito, como trama de interpretação das mortes, se torna impossível; em seu lugar emerge uma narrativa descontínua, de vítimas e de massacres, inscrita em uma trama rotineira, sem princípio nem fim, na circularidade do eterno retorno, tempo mítico imemorial. Na falta de uma narrativa unificada, pública e legitimada sobre a violência que emane de uma autoridade englobante como o Estado ou os partidos políticos, o terror não se cristaliza em história: irriga uma confluência de memórias individuais e grupais que evocam um caleidoscópio.

Outros trabalhos se dedicam à análise dos tratamentos ritualizados dos cadáveres pelos assassinos (Uribe, 1990Uribe, Maria-Victoria. (1990). Matar, rematar y contramatar. Las masacres de la violencia en el Tolima, 1948-1964. Bogota: Cinep (Serie Controversia).), tratamentos cuja constância notável depois da guerra civil entre os partidos dos anos 1950 é ilustrada hoje pela ação de todos os grupos violentos existentes. Estes tratamentos parecem pôr em cena a destruição da unicidade e humanidade dos corpos para além da morte, como se quisessem arrebatar dos mortos seu estatuto e sua forma de cadáver. As mutilações, os cortes e o rearranjo dos órgãos, a dispersão das partes desmembradas dos corpos são interpretados pela autora como dispositivos de naturalização e de animalização das vítimas. No entanto, a emergência e o reforço de diferentes práticas complementares de terror permitem compreender essa ritualização da destruição em outro registro. De fato, se desde os anos 1950, rios, córregos, penhascos, grutas e bosques servem geralmente como depósitos de cadáveres, hoje o seu enterro constitui um ato que designa seu ator como próxima vítima, em numerosas regiões do país. Esta ameaça suplementar serve para realimentar o terror que produzem os mortos deslocalizados, fragmentados, dispersos. Enuncia também uma proibição da atribuição identitária territorializada e ritualizada, do enterro e da sepultura, ancoragens tradicionais do trabalho do luto e da memória genealógica dos grupos. Estas práticas dificultam os processos sociais do luto, ao convertê-los em algo tão fragmentário, difuso, sem fim e despersonalizados como a própria violência.

As condições históricas e políticas da violência, a ritualização dos atos mortuários e as representações sociais do conflito em que se baseiam, suscitaram análises cada vez mais atentas aos contextos locais e regionais e às experiências e mudanças sociais de que derivam (Ortiz, 1991Ortiz, Carlos M. (1991). El sicariato en Medellin: entre la violencia politica y el crimen organizado. Analisis Politico, 14, p. 60-73.; Pécaut, 2000; Uribe, 1990Uribe, Maria-Victoria. (1990). Matar, rematar y contramatar. Las masacres de la violencia en el Tolima, 1948-1964. Bogota: Cinep (Serie Controversia).). Por outro lado, alguns trabalhos recentes (Peláez, 1994Pelaez, Gloria I. (1994). Magia, religion y mito en el cementerio central de Santafe de Bogota. In: Arturo, Julián et al. (orgs.). Pobladores urbanos. Bogota: TM Editores, p. 147-160.; Villa, 1993Villa, Eugenia. (1993). Muerte. Cultos y cementerios. Las masacres en Colombia,1980-1993. Bogota: Disloque.; Losonczy, 1998Losonczy, Anne-Marie. (1998). Le saint et le citoyen au bord des tombes. Sanctification populaire de morts dans les cimetières urbains colombiens. Religiologiques, 18, p. 149-175.) descrevem e analisam a devoção popular, intensa e contínua nos cemitérios urbanos colombianos, em torno de certos mortos, há aproximadamente cinquenta anos.

Da leitura conjunta destes trabalhos surge uma interrogação sobre estas ações rituais espontâneas, entendidas como modos de ritualização da experiência do terror e do luto, e uma hipótese sobre a construção de uma memória popular da violência por meio do ritual.

DA MORTE À SANTIDADE: O MILAGRE NOMEADO

Estes rituais ocorrem continuamente, não apenas às segundas-feiras, consideradas como dia das almas, e no 2 de novembro, Dia dos Mortos; são promovidos por indivíduos ou famílias sem que tenha emergido qualquer institucionalização, nem mesmo celebrantes especializados. A prática cultural se concentra na transformação ritual de certas categorias de mortos recentes, anônimos ou célebres, em figuras santificadas (Losonczy, 1998Losonczy, Anne-Marie. (1998). Le saint et le citoyen au bord des tombes. Sanctification populaire de morts dans les cimetières urbains colombiens. Religiologiques, 18, p. 149-175.). A extensão progressiva destes cultos à imensa maioria dos cemitérios urbanos do país e a multiplicação constante de mortos santificados foi tamanha que atualmente os jornais e a televisão dedicam espaços significativos à sua descrição no 2 de novembro (Dia dos Mortos no calendário litúrgico da Igreja Católica).

Os mortos santificados formam parte de várias categorias. Em primeiro lugar, oferendas, pedidos, orações e agradecimentos depositados ao pé dos muros dos cemitérios, ou nos nichos vazios de galerias periféricas e covas comuns, se dirigem a uma nebulosa de mortos anônimos: cadáveres agrupados sem identificação, mortos não reivindicados, sem descendência, cujo número se incrementa pela violência multiforme e permanente. Seu conjunto é representado na efígie da "anima sola" ("alma solitária", conglomerado de mortos anônimos, o correspondente das "almas do purgatório" do catolicismo oficial). Esses mortos constituem a figura mesma da dissolução da identidade: sem sepultura individual, sem nome, sem narrativa sobre sua vida que os situe em uma individualidade. A esta figura do esquecimento e do abandono post mortem os vivos podem acudir com seus pedidos em contrapartida de oferendas e orações, "para aliviar sua penitência".

A partir deste fervor ritual dedicado à anima sola, do anonimato coletivo dos mortos em penitência e de seu espaço periférico no Cemitério Central de Bogotá, se desprende, há cerca de quarenta anos, uma "alma milagrosa". A presença periódica de flores, de círios e de agradecimentos escritos em torno de uma sepultura anônima, junto ao testemunho de um homem sobre os milagres de uma alma, atraem os devotos cada vez mais. Após alguns anos, aparece uma mulher que afirma ser a filha desta morta, conhecida como "A milagrosa", a quem ela atribui o nome de Salomé. Começa a vender a foto da defunta, com o texto de "sua" oração. Ao lhe dar um nome, uma iconografia, ao estabelecer palavras rituais para invocá-la, os elementos biográficos e milagrosos post mortem fazem emergir os contornos de uma hagiografia. As oferendas, a narrativa dos milagres, a palavra escrita e difundida de suas rezas e seu nome afluem juntos para transformar a alma anônima em santa popular.

O passar do tempo dá lugar à multiplicação de figuras de recurso, pela transformação ritual de mortos em santos. Essa proliferação significa também a emergência de novos tipos de santos populares cuja morte violenta se aproxima da figura de Salomé, mas que se diferenciam dela por sua vida pública, sua sensibilidade social e sua ação muitas vezes violenta nos conflitos do espaço nacional. Enterrados no setor central "nacionalizado" do cemitério, estas figuras de "violentos violentados" foram progressivamente santificados, através das mesmas práticas rituais, combinadas com testemunhos orais e escritos de sua intervenção post mortem milagrosa em favor dos devotos, especialmente de proteção em situações de violência. São exemplos deste caso, Jaime Pardo Leal, dirigente de um movimento político de esquerda, assassinado em 1987 por grupos paramilitares; Luis Carlos Galán, jovem candidato liberal à presidência da República, assassinado em 1989 em Bogotá, vítima de narcotraficantes; Carlos Pizarro Leongómez, descendente de uma dinastia de militares de alta patente, dirigente guerrilheiro de esquerda, anistiado pelo Estado e depois assassinado por paramilitares em 1990.

Este tipo de santos populares não cessa de emergir nos cemitérios urbanos do país. Guerrilheiros assassinados pelo Exército, paramilitares fulminados pelos guerrilheiros, bandidos generosos com os pobres, esse panteão masculino se alargou há alguns anos com uma ex-ministra da Cultura, mecenas da música e das artes populares em sua região. Consuelo Araujo Noguera, cacique política regional, autoritária, mas dotada de sentido social, foi sequestrada e assassinada por um grupo guerrilheiro em 2000. Seu túmulo na cidade de Valledupar se converteu rapidamente em um lugar de peregrinação: círios, suas flores e perfumes preferidos e oferendas musicais sustentam os pedidos de cura de uma doença, de liberdade para um sequestrado, de sucesso em um exame, de obtenção de um trabalho ou de um empréstimo.

Subjaz a esses cultos uma representação da morte violenta e da violência infligida, que constitui o núcleo da eficácia ritual desses mortos santificados. Uma crença difusa, com raízes nas tradições orais criollas e mestiças da época colonial, representa as vítimas de morte súbita ou violenta como não tendo tido tempo suficiente para o arrependimento, para que pudessem, então, com a consciência da agonia e da morte próxima, verem pacificados os conflitos suscitados ou sofridos ao longo da vida. Este trabalho de "luto de si mesmo" (Losonczy, 1992), reconhecido como a "boa morte", é condição do cumprimento do bom destino post mortem: o desapego rápido do mundo terrestre e a chegada ao mundo dos mortos. Na falta disto, as vítimas de morte repentina ou violenta ficam bloqueadas em uma esfera liminar entre o mundo terrestre e o mundo dos mortos, apegados aos vivos por sua necessidade de rezas e oferendas que ajudam sua "penitência" para que tenham acesso ao mundo dos mortos. O motor da eficácia milagrosa para seus devotos é seu status liminar, ligado a esta necessidade que os faz tributários da atenção ritual dos humanos. Por conseguinte, o processo de santificação popular faz com que os mortos anônimos da violência passem do esquecimento traumático à sobrevivência póstuma ritualizada e convertida em positiva.

Segundo uma representação popular difusa da transgressão das regras sociais ordinárias, a violência infligida constitui um excedente identitário, um signo de potência que se acredita sobreviver à existência terrena. Esta potência de ação, que ultrapassa o limite entre a vida e a morte, se junta ao status liminar derivado da morte violenta para converter estes mortos tributários de ações rituais dos vivos em figuras de proteção e benfeitores particularmente eficazes. Além disto, para que a violência infligida durante a vida terrena possa se transformar em fonte de ação positiva depois da morte, o violento deve ter experimentado, através de sua própria morte violenta, a vulnerabilidade dos mortos pela violência.

Um dos componentes do terror disseminado pela violência dos assassinos é precisamente sua ubiquidade: fugidios, golpeando de maneira inesperada, jamais sancionados, estiveram em toda parte e ao mesmo tempo em parte alguma durante as suas vidas, tal e qual dizem seus devotos. Mas suas mortes violentas e seus enterros põem fim à sua ubiquidade e fixam-nos ritualmente no cemitério. A força mortífera que possuíram em vida se torna controlável e acessível às súplicas e oferendas dos vivos, e pode transmutar-se, então, em força milagrosa.

O espaço do cemitério, lugar ritual de territorialização dos mortos, opera, pelos enterros, uma reindividualização da massa anônima e dispersa dos mortos, e uma domesticação da violência dos mortos assassinos pelos rituais que os transformam em fonte de benefícios. A legitimidade e a aura religiosa deste território contribuem para a eficácia da substituição dos corpos ausentes pelas oferendas, a atribuição de nomes aos corpos presentes, mesmo que anônimos, assim como para o rearranjo e o prolongamento póstumo das biografias de personagens conhecidos da vida nacional.

Assim, oferendas e milagres constituem os dois polos interdependentes de um intercâmbio ritual contínuo entre os vivos e esses mortos tornados emblemas que servem de ancoradouro a um trabalho cultural de rememoração. Este substitui a continuidade rompida de uma memória familiar e comunitária dos mortos próximos, destroçada pelo desmembramento dos cadáveres e pela dispersão arbitrária e degradante dos restos (Pabón, 2002Pabon, Wilson Q. (2002). La mort et les morts. Rites mortuaires et violence politique en Colombie. Mémoire de DEA. EPHE-Sciences Religieuses, Paris, outubro.), bem como pela fuga dos sobreviventes para as cidades. Assim, esses mortos familiares, despedaçados, desaparecidos e convertidos em anônimos encontram um suporte identitário e memorial no destino emblemático destes mortos santificados nomeados e territorializados nos cemitérios. Esta circulação ritual entre oferenda e milagre dota os santos populares de uma biografia póstuma construída pelos benefícios concedidos.

A produção contínua de figuras santificadas parece constituir uma tentativa tanto individual quanto coletiva de reparar os efeitos sociais do terror. Mediante a reterritorialização e a fixação identitária dos mortos se instaura um vínculo de troca ritual com os mortos emblemáticos. Este trabalho ritual desemboca na criação paradoxal de um regime popular de "contra-memória" nacional. O paradoxal desta última é que está situada fora da temporalidade histórica da violência. Se a ação ritual retira os mortos do esquecimento e da obliteração, ela o faz fora de toda cronologia coletiva e ordenada que os integraria em uma história. Este regime de rememoração converte tanto a violência exercida quanto a sofrida em intemporal e a-histórica, pois ritualiza a ambas como fonte póstuma de potência benfeitora, de dom e de proteção.

Descentrado da experiência direta da violência, o trabalho ritual de emblematização e de santificação de mortos permite a emergência deste regime coletivo de rememoração. No entanto, este descentramento, condição da conversão da violência em poder positivo post mortem mediante o ritual dificulta o acesso à formalização ritualizada do luto como dor e sentimento de perda para os mais próximos.

VIOLENTOS VIOLENTADOS: OS SICÁRIOS E O CRUZAMENTO DE LUTOS

A cidade de Medelín ocupa, há cerca de quinze anos, um lugar particular na topografia da violência colombiana. Nos anos 1990, a média anual de homicídios nesta cidade era de 381/100.000, em comparação com a média nacional de 77. O aumento brutal de mortes violentas é o resultado da consolidação econômica e política da rede de traficantes de droga chamada "Cartel de Medelín" e da transformação paralela de grupos jovens provenientes de bairros periféricos e favelas em provedores de serviços armados para os traficantes. Ao mesmo tempo, guerras por vingança territorial opõem esses grupos de jovens armados e suscitam a emergência, como reação, de milícias - mescla entre células de guerrilha e gangues de bairro - consagradas à "limpeza social" através de assassinatos. Os anos 1990 são também os da criação contínua de grupos de autodefesa de bairro e de grupos paramilitares regionais (Jaramillo, Ceballos & Villa, 1998Jaramillo, Ana M.; Ceballos, Ramiro & Villa, Marta. (1998). En la encrucijada. Conflicto y cultura politica en el Medellin de los noventa. Medelín: Corporacion Region.). A multiplicidade e ubiquidade dos grupos armados urbanos, frequentemente mesclados à delinquência comum, caminha junto com a extensão do sicariato de jovens assassinos remunerados, recrutados por todos os grupos e rapidamente executados por eles. A prática e o medo dessas violências mortais marcam as ruas de Medelín e modelam os itinerários, as condutas públicas e o imaginário de toda a população urbana.

A especificidade da violência em Medelín é, além de seu caráter reticular, o perfil de suas vítimas. Na verdade, ela toca majoritariamente a meninos jovens de bairros periféricos ou pobres: os sicários são, ao mesmo tempo, assassinos e vítimas, consumidores e vendedores de droga, e sempre suportes econômicos principais de suas famílias, centradas em torno da mãe.

A produção ritual de figuras santificadas nos cemitérios da cidade se organiza ao redor de vários polos. O cemitério Jardines de Monte Sacro, na periferia de Medelín, constitui uma nova forma de espacialização dos mortos, proveniente dos Estados Unidos, e presente em algumas cidades colombianas há aproximadamente quinze anos. Espaços ajardinados abertos e paisagens rupestres nas quais as tumbas se cobrem de lousas discretas no chão, os novos cemitérios chamados "jardins da paz" formalizam uma representação naturalizada da morte como aprazível dissolução identitária no amável anonimato de uma natureza vegetal domesticada.

A vontade conjunta das autoridades e da família em enterrar Pablo Escobar, o poderoso chefe do Cartel de Medelín, assassinado pela polícia logo depois de ter fugido da prisão em 1993, parece obedecer ao desejo de impedir a emergência de uma santificação post mortem ao separá-lo do centro da cidade e buscar o anonimato de sua sepultura. No entanto, esta se converteu em um lugar de peregrinação para milhares de devotos de todas as idades. Personagem de origem popular que a violência, a riqueza, e astúcia e a generosidade exuberante e agonística de sua conduta converteram ainda em vida em herói da narrativa popular como provedor paternalista de inúmeros benefícios, Pablo Escobar, cujas tribulações e ambições políticas encheram a imprensa, nacional e estrangeira, aparece como a figura emblemática da conversão de potência mortífera em vida em capacidade de proteção e de benefícios milagrosos depois da morte. Assassinado e assassino: o retorno da violência mortífera sobre ele e sua ulterior fixação territorial pelo ritual do enterro convertem sua potência tributária de suas oferendas e orações e, por conseguinte, acessível aos devotos. Estes últimos, sempre bem vestidos, depositam cartas com pedidos, candelabros, flores, aguardentes e cigarros sobre seu túmulo, que limpam regularmente. Os aparelhos de som trazidos tocam suas canções preferidas, placas e cartas de agradecimento, casas em miniatura, carros e telefones dão testemunho dos seus múltiplos benefícios. Entre os visitantes assíduos se encontram numerosos jovens sicários que, antes de um assassinato, rezam ao Patrón Pablo Escobar para que cuide do bem-estar de sua família caso morram.

Este modo de ritualização de um personagem ao mesmo tempo violento e redistribuidor é emblemático do modo de tratamento dos mortos que subjaz às práticas rituais de santificação na maioria dos cemitérios urbanos da Colômbia.

Por outro lado, o belo cemitério central de San Pedro, cheio de mausoléus e de capelas em mármore, bronze e pedra talhada, é o lugar tradicional de sepultura de famílias ricas e estabelecidas e de políticos regionais. Rodeado, no entanto, de galerias com pisos que contêm os nichos destinados aos ataúdes modestos e de vários columbários, este cemitério se converteu há alguns anos no cenário de um projeto de museificação único no país, dirigido pelo Ministro da Cultura. Este último classificou o cemitério como "bem de interesse cultural de caráter nacional", e organiza, uma noite por mês, saraus ["lunadas"]: visitas turísticas guiadas, animações poéticas, musicais e teatrais com artistas locais. Esta reciclagem simbólica recente do cemitério não suspendeu os enterros e as visitas familiares nas galerias periféricas. Mas esta confiscação do cemitério pela lógica patrimonial nacional, que introduz uma versão laica e estetizante da relação entre mortos e vivos, junto à tenaz oposição da Igreja católica à "profanação" das tumbas pelos cultos populares, parece haver despojado o lugar de sua eficácia ritual popular. Os devotos se apropriam, então, de cemitérios socialmente mais periféricos como La Candelaria e El Universal, ambos na vizinhança do necrotério, no bairro popular Bello. Ali emerge um modo original de ritualização dos mortos, cujos destinatários são outra categoria de mortos emblematizados: jovens defuntos próximos, agentes e vítimas de morte violenta.

La Candelaria é composta de vários edifícios de galerias que contêm nichos fechados por portões, e rodeados de modestas tumbas no chão. O Universal, ao contrário, carece de galerias: é uma sucessão irregular de túmulos, atravessada por caminhos e um espaço coberto de grama, lugar das covas comuns.

Estes dois cemitérios, assim como o de Bello, bairro pobre da periferia de Medelín, se enchem, desde o começo dos anos 1990, de uma dezena de cadáveres de jovens entre 15 e 24 anos, habitantes dos barracos e favelas que dominam o norte de Medelín: membros de gangues e milícias rivais, sicários, chorados por seus parentes, amigos, amantes.

Seus enterros colocam em cena elementos de uma linguagem ritual que se utilizará depois nos ritos post mortem. Recolhidos por familiares ou pela polícia na rua, no matagal ou em terrenos baldios atrás das casas, seus cadáveres são lavados, vestidos e velados em suas casas ou no necrotério, com as orações da novena. Sua chegada ao cemitério se constitui como um espetáculo: o caixão é transportado por uma imensa limusine branca alugada, coberta de flores; ao redor e atrás, os amigos exibem pistolas e revólveres em motocicletas rutilantes ou em táxis com as portas abertas, por onde escapa uma música estrondosa: rancheras mexicanas popularizadas pelo gosto dos chefes do narcotráfico, particularmente "Amor Eterno", de Rocio Durcal, salsas de Ismael Rivera, de Ismael Miranda e de Rubén Blades falando sobre a morte, ou do desaparecimento, hard rock colombiano, canções de vallenato (música popular originária da região caraíba da Colômbia) cujas letras evocam a separação, o abandono, o perigo e a vingança: a mesma música que acompanha sua vida cotidiana. No portão do cemitério, o ônibus fretado descarrega uma centena de habitantes do bairro da vítima, os amigos carregam o ataúde em seus ombros e o levam ao seu nicho, depositando-o na sua frente.

A mãe, a companheira, frequentemente grávida, e as irmãs se atiram chorando sobre o caixão, o acariciam, rezam e gritam sua dor pelo falecido. Os amigos juram vingança e depois descarregam suas armas no ar em homenagem ao morto. Em seguida, se inclinam um por um sobre o ataúde, golpeando ou acariciando a tampa do caixão e falando com o morto em voz baixa, derramando rum ou uísque no ataúde. Outros depositam cartas dirigidas ao falecido, ou flores.

A entrada do ataúde no nicho e a colocação de uma placa, que não traz mais que o nome e o patronímico, seguido da data de morte, encerra uma cerimônia que não precisa nem da presença de um sacerdote, nem de nenhum discurso que canalize os gestos e as palavras do luto individual.

É ao redor da placa comemorativa que se desprende o trabalho ritual ulterior dos parentes, "parceiros" (amigos-cúmplices), mães, irmãs e amantes. Dela desprende-se, inclusive, a medida de suas visitas - numerosas durante os primeiros meses, quando a placa se enche de cor e se personaliza cada vez mais: fotos do morto rodeadas de fitas azuis, vermelhas e amarelas, que trazem escritas mensagens de amor, círios, adesivos de estrelas, imagens da Virgem de Sabaneta, do Menino Jesus, bandeirinhas de seu time de futebol, composição de flores naturais e artificiais, cartas pedindo proteção e ajuda para familiares e amigos, assinatura reproduzida do morto, monograma dos amigos.

Com o passar do tempo, a placa constitui uma espécie de altar, portador de uma individualidade post mortem reconstruída, ao mesmo tempo em que é apoio das petições de proteção dos mais próximos. A narrativa dessas proteções milagrosas se agrega às de sua morte e de seu enterro para constituir sua biografia póstuma.

Mas a natureza e o desafio desse trabalho ritual só se revelam através das palavras e gestos destes visitantes, para os quais a frequência assídua ao cemitério é parte importante de suas vidas. Na verdade, a mãe, as amantes e as irmãs vêm rezar em silêncio, limpar e trocar as flores da placa. Amigos, irmãos e primos passam horas ao redor da tumba: falam, cantam em voz alta para o morto, suplicam, chamam por ele e dialogam com ele.

Para muitos deles a placa comemorativa é a primeira ocasião para descobrir o nome e o sobrenome de um amigo de longa data. Normalmente, os jovens dos bairros periféricos ignoram os sobrenomes e não se conhecem senão por apelidos. Se estes - tais como Negro, Gato, Bombillo, Pepino - aparecem nas cartas e nas mensagens inscritas nas paredes das galerias dos cemitérios, os amigos reunidos repetem, sobretudo, o sobrenome, rememorando os laços de parentesco e de afinidade com o morto (irmão de, primo de, sobrinho de, membro do grupo de, amigo de). Evocam incansavelmente as circunstâncias de sua morte e do descobrimento do cadáver, seu velório e enterro, descrevendo sua emoção em termos de sensações corporais (sensação de frio, de paralisia, de temor, de transpiração, mutismo).

Martín Barbero (1995 apud Riaño-Alcalá, 2002Riaño-Alcalá, Pilar. (2002). Las rutas narrativas de los miedos: sujetos, cuerpos y memorias. In: Villa, Marta (org.). El miedo: reflexiones sobre su dimension social y cultural. Medellín: Corporacion Region, p. 85-106.) destaca a importância de imagens na fala das gangues juvenis de Medelín: seu estilo de narrar histórias se parece com o ato de editar imagens (como em uma produção audiovisual, porém com palavras) e tem pouco a ver com uma sintaxe escrita. Martín Barbero chama esta forma de falar de "segunda oralidade". Estão inseridas formas narrativas da tradição oral popular em uma apropriação de linguagens audiovisuais. Desta forma, expressões como "o quebraram" ou "o derrubaram" captam uma imagem visual e móvel da maneira como o indivíduo foi assassinado e constituem uma descrição sensorial do que sucedeu a seu corpo.

Esse discurso circular, narrativa de grupo, diante da placa comemorativa, contribui para a construção de uma individualidade póstuma para o morto, que substitui o anonimato impreciso de sua vida. É como se a morte violenta e o enterro o tivessem simbolicamente separado da massa móvel dos jovens, outorgando-lhe um lugar de estabilidade e um nome individual. A simples menção da data de óbito na placa sugere igualmente que esta última é representada como componente de identidade mais importante que a data de nascimento.

A sepultura do amigo constitui também um dos lugares onde se contam histórias de encontros noturnos fortuitos com figuras fantasmagóricas, como espíritos de mortos, cadáveres, bruxas e aparições errantes que remetem a histórias de regiões rurais da época colonial, como o Cavallo negro ou o Cura sin cabeza (Riaño-Alcalá, 2002Riaño-Alcalá, Pilar. (2002). Las rutas narrativas de los miedos: sujetos, cuerpos y memorias. In: Villa, Marta (org.). El miedo: reflexiones sobre su dimension social y cultural. Medellín: Corporacion Region, p. 85-106.). Outras figuras são explicitamente caracterizadas como avatares do diabo. A narração dessas aparições se nutre também da linguagem e das imagens dos filmes de terror norte-americanos, filtrados pela confusão angustiosa de visões sob o efeito das drogas. Essas narrativas constroem, ao mesmo tempo, uma geografia urbana noturna de terror - sobreposta à realidade diurna dos lugares de ajuste de contas. Constituem um modo de comunicação que dota de uma forma cultural narrativa, e, portanto, comunicável, o medo e o mal-estar (Riaño-Alcalá, 2002Riaño-Alcalá, Pilar. (2002). Las rutas narrativas de los miedos: sujetos, cuerpos y memorias. In: Villa, Marta (org.). El miedo: reflexiones sobre su dimension social y cultural. Medellín: Corporacion Region, p. 85-106.), inscrevendo a falta de sentido da violência real do presente na matriz sobrenatural, de origem colonial, que habita ainda a memória das populações urbanas. Histórias de encontros noturnos, esses relatos contados entre humor e pavor manifestam uma culpabilidade difusa através do enunciado repetitivo "me apareceu porque sou mau, arrogante". Mas paralelamente, a relação intempestiva estabelecida com um avatar do diabo parece permitir uma transferência da responsabilidade da ação violenta para a figura diabólica: esta última aparece frequentemente como o incitador da violência e guia do narrador.

No quadro ritual do cemitério e da sepultura do amigo morto, estes relatos sustentam uma identificação entre os vivos e o morto na ambiguidade do violento violentado, e associam essa identidade compartilhada à figura sobrenatural multiplicada do diabo, que reatualiza representações coletivas de origem colonial.

Estas modalidades narrativas de discurso coletivo diante da placa comemorativa se alternam com outros discursos, desta vez mais individuais. Em voz baixa ou alta, cada um dos amigos, logo depois de haver acariciado ou golpeado a placa como quem bate numa porta, interpela o morto para dizer o quanto faz falta, para queixar-se da dor e da angústia, para pedir que "o acompanhe" ou que o proteja contra o medo diante das balas, das facas e dos sofrimentos de feridas, ou para que "lhe facilite o caminho" de uma morte certeira, ajudando-o a morrer rapidamente, ou ainda para guiar seu tiro na vingança da morte do amigo. Alguns colocam em forma escrita estes pedidos, ou escrevem em nome do morto breves epitáfios expressando seu carinho pelos vivos.

Estas inscrições gravadas em placas tumulares ou escritas em pequenos pedaços de papel grudados nas lápides expressam também sentimentos pessoais e de grupo, ansiedades e desejos. Eis algumas mensagens escritas em papeizinhos colocados em cima da lápide ou na parede próxima desta:

Parceiro, você se foi como o vento, foi dura sua partida. Acompanha-me nesta breve vida para que consiga a vingança certeira! Não te esqueço.

Gato, como faz falta, amigo. Você já sabe, me proteja da dor do chumbo, e guia o meu contra os inimigos.

Parceiro, sentimos muita sua falta. Livra-nos do medo da faca e do chumbo e nos ilumina o caminho da morte: que seja rápida e sem dor.

Outras como "Viverá para sempre em nossos corações", "sinto tanto sua falta", "Sei que você não está ausente", "Cuida de mim, nos encontramos logo", "Parceiro, te quero", "Ajuda-me, parceiro, a atirar certeiro" são as formulações escritas mais frequentes.

A continuidade entre mortos violentos e pessoas próximas vivas se constrói também mediante os recordatórios. Tão logo se envolvem em atividades violentas, muitos jovens escrevem as palavras que desejam que se incluam em seus recordatórios. O texto dessas mensagens, escritos com a certeza de uma morte violenta, parecem estender uma ponte, criar um enlace entre passado, presente e futuro de sua inserção familiar e de suas redes de amigos. Se as famílias e os amigos conservam estes recordatórios e com frequência os exibem em álbuns fotográficos e relicários, sua inscrição por amigos anônimos nas paredes próximas ao túmulo do parceiro morto constitui uma apropriação de suas palavras, que ilustra a percepção compartilhada de uma comunidade de destino na morte violenta.

Em 2009, no cemitério da Candelaria, se observavam várias mensagens, entre epitáfio e grafite, assim formuladas:

Isto não é um adeus, mas um até logo, para todos os meus parceiros e aqueles que fizeram o possível para que eu seguisse sempre adiante; obrigado por estar comigo até o último dos meus dias. Para minha família, que apesar de todos os meus erros nunca me deixou sozinho: não me esqueçam. Rezem por mim.

Em outro muro do mesmo cemitério, escrito em grandes letras impressas:

Não tive tempo de dizer adeus porque o afã do vento foi mais rápido que meus desejos de partir. Naquele momento duro meu pensamento esteve sempre com meus amigos. Já sabem que minha partida foi cruel, mas nunca falhei com vocês porque eu, seu parceiro, sempre tive um lugar no meu coração para todos.

Essas práticas rituais verbais e performativas, artefatos da memória, transformam o entorno material permitindo de uma só vez que os jovens construam os significados e o passado. A articulação entre a oralidade e o registro escrito, ritualizados pelo espaço funerário, mostra que as palavras pessoais ditas e escritas dirigidas ao morto por parte dos vivos e a escrita, pelo morto, reapropriada por seus amigos ao escrevê-la no espaço ritual e público do cemitério, constituem um continuum estilístico, com uma funcionalidade dialógica entre interlocutores de status e destinos semelhantes. Porém sua projeção no espaço público do cemitério e sua escritura socializam um estilo e uma intimidade cultural periféricos para além dos limites do grupo de pessoas próximas e do bairro, inscrevendo-os em uma temporalidade duradoura. Deste modo, a escrita de "Los desaparecidos", de Rubén Blades, nas paredes do cemitério, generaliza as experiências repetitivas de morte violenta e luto em forma de destino genérico, estilizando-o.

Esses discursos são sempre acompanhados de oferendas. Candelabros coloridos, cantos das músicas preferidas do morto, fumaça de cigarros e de maconha soprada na placa, bebidas alcoólicas tomadas e em seguida derramadas sobre ela, orações escritas ali depositadas, fitas de música em círculo deixadas próxima do túmulo, tudo sustenta esse discurso cujas modalidades contrastam com aquelas da vida cotidiana desses jovens. De fato, o código normativo do universo social masculino dos bairros periféricos colombianos não autoriza nem o diálogo a dois, nem a queixa, nem a petição ou a manifestação verbal de emoções como a ternura ou o medo.

Assim, contrariamente aos mortos extrafamiliares, santificados como figuras de recurso ou patrones redistribuidores, as oferendas, rezas e solicitações do trabalho ritual dos "parceiros" dos sicários criam a individualidade póstuma de um igual. Mais que uma figura de autoridade, o amigo morto constitui um alter ego especular, mais poderoso que os vivos por precedê-los como explorador e guia em uma morte repentina e violenta, destino final de todos.

Não obstante, a potência dos mortos próximos aparece mais limitada que a dos mortos emblematizados, como Pablo Escobar: se a potência destes se estende à reparação de todos os infortúnios da existência e à recuperação das oportunidades para viver, em contraste, os mortos alter ego oferecem apenas proteção momentânea contra o perigo imediato e o medo. São, sobretudo, guias e acompanhantes no caminho de uma morte repentina, sem agonia, ideal da boa morte dos jovens violentos, em oposição frontal com a representação tradicional majoritária.

A relação destes alter egos mortos ritualizados e de seus amigos e devotos está tecida de ambiguidades. As oferendas são sempre compartilhadas pelos parceiros. Assim, oferecem "rumbas" nas noites de sábado, festas ao redor do túmulo entre amigos e companheiras: discursos, drogas e álcool circulam entre o túmulo e os vivos, o baile inclui o morto, e o amor feito ao pé do túmulo é "dedicado" a ele.

Essas práticas, mais do que ajudar o morto em seu itinerário post mortem, parecem devolver-lhe uma corporeidade no mundo dos vivos, como mais um parceiro. Essa reanimação do falecido parece abolir as fronteiras entre vivos e mortos, refundando a individualidade que o ritual do enterro e a narrativa de seu fim outorgam ao morto, mas restituindo, ao mesmo tempo, sua qualidade de semelhante.

Por outro lado, discursos, gestos rituais, pedidos de proteção e de ajuda para a "boa morte", assim como denúncias e confissões que expressam medo e falta de esperança, constroem e solicitam ao morto em sua alteridade. É apenas por seu intermédio e no cemitério, lugar ritual que ancora sua nova identidade, que a dor pode tomar forma cultural e transformar o luto em experiência comunicável. O luto aparece aqui em duas facetas inseparáveis: o luto do outro é ao mesmo tempo o luto de si mesmo (Losonczy, 1990Losonczy, Anne-Marie. (1990). Le deuil de soi. Corps, ombre et mort chez les Négro-colombiens du Choco. Chanter la Mort, Cahiers de Littérature Orale, 27, p. 113-136.), a vivência antecipada de sua própria morte como horizonte imediato.

Viver vendo-se morto e ritualizar a morte como vivente, esta é a aposta paradoxal deste jogo ritual que articula um duplo luto. Esta prática ritual paradoxal faz emergir um espaço para a formalização do luto, do medo e da dor: permitindo, assim, o "desapego" do imediatismo da indizível experiência da violência absoluta. Constitui, então, uma estratégia cultural de sobrevivência. Porém, ao mesmo tempo, este ritual inscreve-se em representações e valores populares que instituem a violência como demiurgo onipresente, impessoal e inevitável, inacessível a toda intercessão e para além da autoridade das figuras santificadas.

RITUAL, LUTO E MEMÓRIA: À GUISA DE CONCLUSÃO

Os rituais dos jovens sicários de Medelín de individuação post mortem pela narrativa e devoção aos mortos próximos, que os erigem em interlocutores, alter ego, protetores e guias, permitem dar forma e expressão a um luto desdobrado, mas constroem apenas uma memória de curta duração. Efetivamente, a violência multiforme produz continuamente novos cadáveres de jovens sicários, inclusive entre os enlutados de um irmão, de um amigo, de um primo. Nenhuma figura emblemática de alcance supralocal emerge desta repetição de mortos quase idênticos de alter egos que formam parte de pequenos grupos atomizados. Nenhum destes mortos pode tornar-se o suporte de pedidos contra o infortúnio, o recurso de um público mais amplo, construindo assim memórias sedimentadas de mais longa duração. "Soldados" anônimos da violência, de vida breve, ancorados nos bairros mais periféricos da cidade, seu perfil contrasta com o do Patrón Pablo Escobar, homem de idade madura, "general" cuja vida e suas artimanhas se inscreveram no movimento incessante entre lugares nacionais e internacionais. O perfil individual dos jovens mortos se apaga rápido, até que sobreviva somente a silhueta genérica do parceiro, adolescente, autor e vítima da violência.

Neste universo, os suportes de uma memória compartilhada e transmissível, que submerge suas raízes na cultura colonial criolla, são as figuras narrativas das histórias orais: visões e encontros de espíritos errantes, de bruxas, de ressuscitados, de fantasmas que proferem maldições. Estes personagens são os avatares de um diabo multiforme e onipresente, metáfora da violência todo-poderosa. Na realidade, essas visões noturnas espantosas, que o consumo de drogas obstrui e potencializa, incitam, em algumas ocasiões, os jovens violentos ao "pacto": dar sua alma post mortem ao diabo, em contrapartida ao aumento de sua potência violenta em vida.

A representação local dessa figura se constrói a partir de um símbolo recorrente: o do Mal em uma tradição cristã-espanhola, com sua ubiquidade graças à sua capacidade de assumir múltiplas formas corporais. Da ausência de vera figura deriva a impossibilidade de lhe assinalar um lugar e um território, de fixar sua identidade, tudo aquilo que o tornaria acessível à negociação ritual coletiva.

Finalmente, os rituais urbanos emergentes e os cemitérios colombianos não conseguem articular a conformação cultural do luto e a construção de uma memória coletiva dos mortos pela violência, graças à santificação emblemática. A defasagem entre luto e memória se manifesta no desdobramento do primeiro em luto de si e luto alheio, e na fragmentação e atemporalidade da segunda, que a transforma em rememoração. Esses processos constroem figuras de um trabalho de luto circular e inconcluso, associadas à impossibilidade de um regime coletivo de memória expressa em uma narrativa unificada e em dispositivos jurídicos separando vítimas de verdugos. Sua ausência é própria à maioria das sociedades sequestradas por uma violência generalizada e onipresente.

  • Tradução de Andre Veiga Bittencourt

NOTA

  • 1
    A atual pesquisa foi iniciada em 1997 no Cemitério Central, no Cemitério Sul e no Cemitério do Chapinero, de Bogotá. Pela observação, dia após dia, das práticas rituais do cemitério: eu mesma depositava oferendas. Muitas pessoas conhecidas neste âmbito foram minhas interlocutoras e guias, mas também realizei paralelamente longas entrevistas com as pessoas do cemitério e vendedores ambulantes (ver Losonczy, 1998Losonczy, Anne-Marie. (1998). Le saint et le citoyen au bord des tombes. Sanctification populaire de morts dans les cimetières urbains colombiens. Religiologiques, 18, p. 149-175.). Em 2001 o trabalho de campo se estendeu aos cemitérios de Cali, Cartagena e Santa Marta, e em janeiro de 2002 passei mais de um mês nos de Bello, El Universal, San Pedro e Jardines de Montesacro, na cidade de Medelín, acompanhando, de dia e às vezes à noite, os adolescentes sicários que se reuniam ao redor do túmulo de amigos mortos. Visitava alguns deles em suas casas, entrevistando os familiares, participava como convidada em vários enterros e assisti no necrotério municipal o levantamento e identificação de vários corpos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2014
  • Aceito
    26 Maio 2015
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