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PRISÃO-CAMPO: UMA ANÁLISE DAS CONDIÇÕES DE CONFINAMENTO NO SISTEMA CARCERÁRIO FLUMINENSE1 1 Os relatórios foram requeridos à Defensoria com recurso à Lei de Acesso à Informação nº 12.527/2011. O volume de relatórios analisados não corresponde à totalidade das inspeções feitas no período. * * Este trabalho é fruto de minha atuação como pesquisador de pós-doutorado (PNPD/Capes) junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para sua produção pude me beneficiar da interlocução com Michel Misse, Fernando Rabossi, Rodrigo Santos, Mariana Cavalcanti, Fábio Araújo, Cesar Pinheiro Teixeira, Fábio Mallart e colegas do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), entre outros. A eles, aos editores e aos pareceristas anônimos da revista, meus sinceros agradecimentos.

PRISON-CAMP: AN ANALYSIS OF THE CONFINEMENT CONDITIONS IN THE RIO DE JANEIRO PRISON SYSTEM

Resumo

O objetivo central deste trabalho é lançar luz sobre as condições de confinamento que vigoram nas unidades prisionais do Rio de Janeiro, tais como se apresentam nos relatórios de inspeção elaborados pela Defensoria Pública estadual, no âmbito do programa de monitoramento do sistema carcerário. O material empírico é analisado a partir de reflexões sobre o papel do direito, seus códigos e instituições para a emergência, expansão e funcionamento atual do cárcere. Como os relatórios analisados sugerem uma aproximação entre as prisões inspecionadas e os campos de concentração nazista, procura-se elaborar algumas das condições, implicações e possibilidades de tal associação, avançando a hipótese de que, no sistema penitenciário fluminense, figurações de prisão e de campo estabeleceriam uma relação de “devir”, nos termos de Deleuze e Guattari.

Palavras-chave:
Prisão; Campo; Tortura; Condições de confinamento; Rio de Janeiro

Abstract

The main objective of this work is to shed light on the conditions of confinement that characterize the prisons in Rio de Janeiro, as described in the inspection reports prepared by the state Public Defender, within the scope of the prison system monitoring program. The empirical material is analyzed from reflections on the role of law, its codes and institutions for the emergence, expansion and current functioning of the prison system. Since the analyzed reports suggest an approximation between the inspected prisons and the Nazi concentration camps, we try to elaborate some of the conditions, implications, and possibilities of such an association, advancing the hypothesis that, in the penitentiary system of Rio de Janeiro, prison and camp are figurations that establish a relationship of “becoming,” as defined by Deleuze and Guattari.

Keywords:
Prison; Camp; Torture; Confinement conditions; Rio de Janeiro

O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa alternativa que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos quais passaria aquele que se torna (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, vol. 4.: 18).

INTRODUÇÃO

Neste artigo, debruço-me sobre as condições de confinamento em unidades prisionais do Rio de Janeiro, tais como elas se apresentam nos relatórios de inspeção elaborados pela Defensoria Pública estadual, no âmbito de seu programa de monitoramento do sistema carcerário. Tratarei, mais especificamente, das condições das celas, do fornecimento de certos itens básicos de sobrevivência, do acesso ao banho de sol e da oferta de oportunidades de trabalho. Os modos de a Defensoria apreender e reagir às condições de confinamento com as quais se defronta, bem como as consequências e horizontes que suas ações delineiam, também serão objeto de discussão.

Este estudo é fruto da análise de 40 relatórios referentes a 43 inspeções feitas pela Defensoria Pública, entre os anos de 2015 e 2017, em 33 unidades prisionais geridas pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap)2 2 Em dezembro de 2020, o estado do Rio de Janeiro contabilizava um total de 55.758 pessoas reclusas em estabelecimentos penais e outras 5.771 cumprindo penas em prisão domiciliar, boa parte delas em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Entre 2016 e 2020, em linhas gerais, o perfil demográfico da população carcerária fluminense permaneceu inalterado (Depen, 2021). . Tais relatórios referem-se a um sistema penitenciário estadual composto por 51 unidades prisionais, que, em junho de 2016, abrigavam 50.219 pessoas (em 28.443 vagas) - uma população composta majoritariamente por homens (95%), jovens (59% com menos de 30 anos) e negros (72%) (Depen, 2016Depen - Departamento Penitenciário Nacional. (2016). Infopen - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Dicionário de Dados - junho 2016. Brasília, DF: Ministério da Justiça.)3 3 As fotos que constavam nos relatórios originais foram excluídas das versões que me foram facilitadas pela Defensoria. Stanchi e Dias (2018: 10), que também analisam o sistema carcerário fluminense a partir dessas mesmas inspeções e relatórios, ressaltam que os controles exercidos pela instituição sobre o acesso público ao conteúdo completo de seus relatórios “propiciam a continuidade e funcionalidade dos programas de vistoria, porém homologam a tônica do silêncio”, característica das prisões. .

As inspeções relatadas foram feitas por equipes compostas por defensores públicos do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), do Núcleo do Sistema Penitenciário (Nuspen), seus respectivos estagiários e outros servidores, além de arquitetos do setor de Engenharia Legal da Defensoria. Conforme os relatos, as inspeções consistiam, em linhas gerais, em uma conversa inicial com a direção da unidade, seguida de uma vistoria nos diferentes espaços da prisão, acompanhada de entrevistas reservadas com seus habitantes, podendo, por vezes, se desdobrar em troca de ofícios entre a Defensoria e a Seap para maiores esclarecimentos. As inspeções foram feitas sem aviso prévio e com recurso da máquina fotográfica, seguindo uma agenda ordinária e outra motivada por determinados acontecimentos, como denúncias de tortura ou grandes transferências.

Os relatórios foram elaborados e concluídos, em média, no período de um mês e possuem por volta de 20 a 30 páginas, sem as fotos4 4 Este trabalho se insere em um debate mais amplo sobre o “papel” das defensorias públicas no contexto sociopolítico de encarceramento em massa. Para uma abordagem exploratória da atuação da Defensoria Pública de São Paulo na execução penal e no processo criminal comum, ver Godoi (2017b, 2019b). Sobre a especificidade dos relatórios de inspeção aqui em tela, vale destacar o nível de detalhe com o qual as condições de confinamento prevalecentes no sistema prisional fluminense são descritas. Nesse quesito, tais documentos são incomparáveis àqueles produzidos pelo Ministério Público ou pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Poder Judiciário estadual. Para uma reflexão mais detida sobre a particular interação da qual emerge esse tipo de registro, ver Godoi (2019a). . Diversos modelos foram empregados no período de análise, mas, de forma geral, os relatórios registram nome e endereço da unidade inspecionada; os defensores e auxiliares que realizaram a vistoria e os dispositivos legais que fundamentam a fiscalização; as características da unidade, a facção hegemônica, a capacidade oficial e a população reclusa no dia da vistoria; a divisão interna do espaço prisional, com descrição de celas e galerias; as dinâmicas de banho de sol, fornecimento de água e alimentação; os serviços técnicos reportados pela direção, especificando número de profissionais e frequência de atendimento; oportunidades de estudo, trabalho e lazer; efetivo de servidores por plantão e suas condições de alojamento e trabalho; dinâmica de visitação familiar e íntima; observações decorrentes das entrevistas com os presos; considerações gerais; e, finalmente, recomendações.

Para os diferentes tópicos abordados nos relatórios, procurei identificar as condições típicas observadas e os casos extremos. Sintetizei informações referentes a circunstâncias de cada inspeção; estrutura de cada unidade; condições das diferentes celas; condições de banho de sol; fornecimento de alimentação, água e outros itens básicos de sobrevivência; oportunidades de trabalho, educação e lazer; serviços médicos e assistenciais. A análise desse material foi qualitativa, informada por contribuições teóricas e metodológicas de uma antropologia do estado que se volta para práticas documentárias e registros documentais como expedientes estratégicos e reveladores de dispositivos estatais de gestão de populações (Das, 2007Das, Veena. (2007). Life and words: violence and the descent into the ordinary. Berkeley: University of California Press.; Gupta, 2012Gupta, Akhil. (2012). Red Tape: bureaucracy, structural violence and poverty in India. Londres: Duke University Press.; Lowenkron & Ferreira, 2014Lowenkron, Laura & Ferreira, Letícia. (2014). Anthropological perspectives on documents: ethnographic dialogues on the trail of police papers. Vibrant, 11/2, p. 76-112.). Essa estratégia metodológica se alinha à tradição foucaultiana de análise das relações de poder a partir da escavação de saberes soterrados e da experiência de sujeitos historicamente silenciados (Foucault, 1992Foucault, Michel. (1992). A vida dos homens infames. In: Foucault, Michel. O que é um autor? Lisboa: Passagens, p. 89-128., 2005, 2014), sendo ainda devedora de contribuições elaboradas no âmbito dos estudos prisionais no Brasil, da sociologia da punição e da antropologia do direito.

No que segue, portanto, as condições de confinamento que se descortinam são aquelas que decorrem da presença e do olhar da equipe de inspeção da Defensoria no interior do espaço prisional. Tanto a natureza da instituição que produz essa documentação quanto os contextos específicos de sua produção e circulação precisam ser considerados na análise. Mais do que revelar uma perspectiva genérica sobre uma instituição qualquer, os relatórios expressam a perspectiva de agentes estatais encarregados de zelar pelos direitos e interesses dos presos, em instituições punitivas também estatais, que historicamente têm na opacidade e violência dois dos seus mais sólidos alicerces5 5 Para uma rica reconstituição desse processo, atenta às suas nuances e complexidades, ver Moyn (2010). . Nesses termos, os relatórios da defensoria podem ser vistos como uma espécie particular de lente, que possibilita a observação de um determinado plano da realidade carcerária - as condições de confinamento -, configurando uma perspectiva que tem na sua deliberada parcialidade a própria condição de sua objetividade (Haraway, 1988Haraway, Donna. (1988). Situated knowledges: the Science question in feminism ant the privilegie of partial perspective. Feminist Studies, 14/3, p. 575-599.).

AS LEIS DO CÁRCERE

Quando a prisão se estabelece como a forma de punição por excelência da sociedade moderna, ela é tomada, sobretudo, em seu contraste com as penas do antigo mundo da tradição - a roda, o cadafalso e toda uma vasta gama de sevícias corporais. Ela é concebida como a mais razoável e humana das penas. Durkheim (2014Durkheim, Émile. (2014). As duas leis da evolução penal. Primeiros Estudos, 6, p. 123-148.) foi pioneiro em discutir sociologicamente tal passagem. Segundo o autor, a suavização das penas resultaria do desenvolvimento e da complexificação do tecido social, de uma maior descentralização das estruturas de poder e da correspondente transformação dos valores coletivos consagrados que unem um determinado grupo - os quais vão perdendo o caráter sacro de antanho. Assim, a necessidade de vingança coletiva, de uma enérgica resposta social às infrações observadas, se atenua, e a prisão, que antes servia simplesmente para reter um culpado enquanto sua pena não se consumava, pelas severas condições que de costume impõe àqueles que abriga, passa a ser vista como punição suficiente, moderada, conforme os elevados princípios morais da civilização moderna.

Foucault escreve o seu “Vigiar e Punir” (2014Foucault, Michel. (2014). Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.) em franca oposição a tal entendimento. Para esse autor, na passagem do suplício à prisão, o sistema punitivo não evolui nem se suaviza, mas antes se transforma em seus objetivos e meios, ganhando capilaridade e eficiência em um mundo social que passa por aceleradas transformações - das quais Foucault destaca o aumento populacional, o crescimento vertiginoso das concentrações urbanas, a proliferação de uma massa de desterrados do campo e, principalmente, a conformação de um novo regime de materialização da riqueza, não mais fundado na propriedade fundiária, mas agora em máquinas industriais e estoques de mercadorias, por demais expostos à destruição e à pilhagem. Nesse novo contexto, não só as intervenções penais supliciantes tornam-se insuficientes para dar conta dos proliferantes ilegalismos populares (Hirata, 2014Hirata, Daniel. (2014). Ilegalismos. In: Lima, Renato Sérgio; Ratton, José Luiz & Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli. Crime, Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 97-104.) - agora voltados contra a propriedade -, mas também os próprios rituais do suplício tendem a se converter em situações de sedição, nos quais, ao invés de se afirmar a incomensurável força do soberano, é colocada em evidência sua fragilidade diante de massas empobrecidas e revoltosas. Para Foucault (2014Foucault, Michel. (2014). Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.), a prisão atua nas duas direções: opera um recolhimento tático do ritual punitivo, tornando-o mais discreto e cercando-o de precauções que minimizam interferências externas, ao mesmo tempo que difunde seus efeitos em uma maior extensão do tecido social, com menores custos econômicos e políticos.

Para o autor, a prisão também emerge como a concretização limite de uma tecnologia de poder disciplinar muito mais ampla e que é característica da modernidade, que não só opera em diferentes instituições - a fábrica, o hospital, o manicômio, o convento, a escola, o exército etc. -, como reestrutura inteiramente o próprio ordenamento social e urbano. Nesses termos, ela não figura como aquela punição atenuada que irá substituir o cadafalso, mas como a instituição modelar e laboratorial de uma tecnologia de poder específica. A partir de tal perspectiva, Foucault distingue dois objetivos estratégicos principais, que são perseguidos por esse novo arranjo de poder-saber. O primeiro, a docilização dos corpos, refere-se à ordem mais geral do poder disciplinar. A disciplina, com suas técnicas de vigilância, suas obrigatórias prescrições, suas mínimas coerções e suas múltiplas punições, objetiva preparar e dispor os corpos para o trabalho produtivo e a submissão política. O outro objetivo ou funcionalidade, agora específico para as instituições penais, é o que remete à gestão diferencial dos ilegalismos (Hirata, 2014Hirata, Daniel. (2014). Ilegalismos. In: Lima, Renato Sérgio; Ratton, José Luiz & Azevedo, Rodrigo Ghiringhelli. Crime, Polícia e Justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 97-104.), a qual se daria por meio da própria delinquência que a prisão produz. A delinquência é, então, concebida como um meio social bem conhecido, administrável, que cinde as classes populares em dois campos antagônicos - os proletarizados e os não proletarizados (Senellart, 2003Senellart, Michel. (2003). Michel Foucault: plèbe, peuple, population. In: Chêne, Janine. La tentation populiste au coeur de l´Europe. Paris: La Découverte, p. 301-313.) - e que pode ser utilizada para diversos fins, seja para operar negócios escusos que também compõem as rendas de setores das novas classes dominantes, seja para investir contra as organizações da classe trabalhadora, na forma de agitadores, espias, fura-greves etc.

Duas questões particularmente relevantes para este estudo emergem dessas seminais contribuições de Foucault. Em primeiro lugar, é importante ter em mente que toda a sua reflexão sobre as múltiplas utilidades da delinquência decorre da observação de que, desde os seus primórdios, a prisão nunca deixou de fracassar, isto é, de produzir justamente aquilo que visa combater. Assim, desde as primeiras experiências carcerárias, sua reforma se impôs como uma necessidade imediata. Com efeito, segundo Foucault (2014Foucault, Michel. (2014). Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes.), a instituição da pena de prisão, a constatação do seu fracasso e a urgente reivindicação de uma completa reforma institucional não constituem, como seria de se esperar, as etapas de um desenvolvimento histórico linear. Antes, são momentos sincrônicos, facetas articuladas por um só e mesmo processo, de tal maneira que é possível dizer que a reforma constitui o próprio programa do cárcere. Nesses termos, não só o reformismo se mostra inerente à prisão, como ela mesma se apresenta como um de seus mais destacados efeitos (Magalhães Jr. & Hirata, 2017Magalhães Jr., José César & Hirata, Daniel. (2017). Governar pela crítica: o reformismo carcerário em Vigiar e Punir. Dilemas, p. 67-83. Edição especial 2.). Como procurarei mostrar, os achados desta pesquisa tendem a corroborar tal entendimento.

Em segundo lugar, vale notar que Foucault faz corresponder a passagem do suplício à prisão, a passagem da lei à norma, como em uma espécie de transição tecnológica ou de meios característicos de cada arranjo de poder-saber. Conforme o autor, a sanção dos crimes cede lugar ao tratamento dos criminosos, de modo que o foco que antes se voltava para a ação proibida se desloca em direção a sujeitos concebidos como “anormais”. A prisão os toma por objeto de conhecimento e intervenção, objetivando elementos que ultrapassam os limites estreitos de seus delitos, alcançando suas disposições subjetivas, seus mais ordinários hábitos cotidianos, suas formas de ser e de pensar, considerando atentamente os mais sutis dos seus desvios.

Para alguns, tal forma de equacionar a questão representa uma verdadeira “expulsão” da lei dos arranjos de poder próprios da modernidade (Hunt, 1992Hunt, Alan. (1992). Foucault’s expulsion of law: toward a retrieval. Law & Social Inquiry, 1, p. 1-38.); para outros, trata-se, mais propriamente, de uma subjugação, de uma colonização ou instrumentalização da lei pela norma (Ewald, 1990Ewald, François. (1990). Norms, discipline, and the law. Representations, 30, p. 138-161.). Outros, ainda, se esmeram em localizar, nos próprios escritos de Foucault, um lugar minimamente digno para o direito no seu modo de conceber a sociedade moderna (Fonseca, 2002Fonseca, Márcio. (2002). Michel Foucault e o Direito. São Paulo: Max Limonad.; Golder & Fitzpatrick, 2009Golder, Ben & Fitzpatrick, Peter. (2009). Foucault’s Law. New York: Routledge.). Mais importante do que situar-me nesse debate exegético, quero chamar a atenção aqui para o fato de que, a partir da segunda metade do século XX, cada vez mais e de diversas maneiras os imperativos da lei parecem remontar sobre o ambiente penitenciário, o que poderia ser visto como uma inflexão legislativa no império da norma.

É possível afirmar que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a prisão tem sido legalmente pensada e instituída, em grande medida, como a negação do campo de concentração nazista, reverberando e atualizando, de certo modo, a negação moderna do suplício clássico. Em grande medida, os campos de concentração e extermínio são a referência empírica oculta, implícita na formulação abstrata de penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, que foram tornados ilegais por meio do artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. A progressiva emergência de padrões internacionais de tratamento dos presos aponta para o aprofundamento desse processo de inflexão jurídica. Além da Declaração Universal de 1948, são marcos legais importantes as Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, de 1955, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, e o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura, de 2002 (Zyl Smit, 2010Zyl Smit, Dirk. (2010). Regulation of prison conditions. Crime and Justice, 39/1, p. 503-563.), que institui mecanismos de fiscalização e controle externo em instituições fechadas análogos ao programa de monitoramento da Defensoria aqui em tela6 6 Nas citações, os destaques são sempre originais. .

Essa inflação legislativa se intensifica e se complexifica no final do século XX. Seus desenvolvimentos em jurisdições nacionais e locais estão diretamente relacionados ao processo de aumento exponencial das taxas de encarceramento e das populações carcerárias em diferentes contextos. De um lado, desdobra-se um muito bem documentado processo de endurecimento penal (Simon, 2007Simon, Jonathan. (2007). Governing through crime: how the war on crime transformed American democracy and created a culture of fear. New York: Oxford University Press.; Wacquant, 2003Wacquant, Löic. (2003). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan.), implicando o retorno de penas retributivas e infamantes (Pratt, 2000Pratt, John. (2000). The return of the wheelbarrow men: or, the arrival of postmodern penality? The British Journal of Criminology, 40/1, p. 127-145.) e o correspondente declínio do ideal ressocializador (Downes, 2001Downes, David. (2001). The macho penal economy: mass incarceration in the United States - a European perspective. Punishment & Society, 3/1, p. 61-80.; Garland, 2005Garland, David. (2005). La cultura del control: crimen y orden social en la sociedad contemporánea. Barcelona: Gedisa.). Como diversos analistas ressaltam, inovações e reformas legais foram decisivas nessa “guinada punitiva” - como, por exemplo, as legislações de tolerância zero, “3 strikes and you’re out”, “mandatory sentences” e outras. No Brasil, a Lei nº 8.072/1990, ou Lei de Crimes Hediondos (Teixeira, 2009Teixeira, Alessandra. (2009). Prisões da exceção: política penal e penitenciária no Brasil contemporâneo. Curitiba: Juruá.), e a “Nova Lei de Drogas”, ou Lei nº 11.343/2006 (Campos, 2019Campos, Marcelo. (2019). Pela metade: a lei de drogas no Brasil. São Paulo: Annablume.), também operam nessa direção.

É preciso reconhecer que tal preeminência da lei sobre a norma também se reforça pela progressiva institucionalização dos códigos e mecanismos de garantia e promoção dos direitos humanos no cárcere. Nos Estados Unidos, por exemplo, já há algum tempo pesquisadores vêm problematizando os modos pelos quais a judicialização das condições de encarceramento acarretou tanto a melhoria nas condições de vida dos reclusos quanto maior racionalização e burocratização do espaço carcerário (Jacobs, 1980Jacobs, James. (1980). The prisoners’ rights movement and its impacts, 1960-80. Crime and Justice, 2, p. 429-470.), tendo sido ainda decisiva para a vertiginosa expansão dos parques penitenciários de diversos estados (Feeley & Swearingen, 2004Feeley, Malcolm & Swearingen, Van. (2004). The prision conditions cases and the bureaucratization of american corrections: influences, impacts and implications. Pace Law Review, 24/2, p. 433-475.; Schoenfeld, 2010Schoenfeld, Heather. (2010). Mass incarceration and the paradox of prison conditions litigation. Law & Society Review, 44/3-4, p. 731-768.). No contexto europeu, diversos pesquisadores associam o processo de reconhecimento e ampliação dos direitos dos presos ao desenvolvimento de novas técnicas de gestão carcerária e a esforços de legitimação da instituição e de sua expansão (Bérard, 2014Bérard, Jean. (2014). Genèse et structure des conflits politiques sur les droits des détenus dans la france contemporaine. Médecine & Hygiène, 38, p. 449-468.; Chantraine & Kaminski, 2007Chantraine, Gilles & Kaminski, Dan. (2007). La politique des droits em prison: police institutionnelle, militantisme juridique, luttes démocratiques. Disponível em <Disponível em https://journals.openedition.org/champpenal/2581 >. Acesso em 11 maio 2019.
https://journals.openedition.org/champpe...
; Kaminski, 2002Kaminski, Dan. (2002). Les droits des détenus au Canada et en Angleterre: entre révolution normative et légitimation de la prison. In: Schutter, Olivier & Kaminski, Dan. L’institution du droit penitentiaire: enjeux de la reconnaissance des droits des détenus. Paris: Bruylant, p. 81-112.). No Brasil, tais convergências entre políticas de reconhecimento de direitos dos reclusos e processos de expansão carcerária também não passaram despercebidas (Marques, 2018Marques, Adalton. (2018). Humanizar e expandir: uma genealogia da segurança pública em São Paulo. São Paulo: IBCCrim.). Esta reflexão dialoga com essas contribuições.

CONDIÇÕES DE CONFINAMENTO

As condições de confinamento vigentes em um sistema prisional remetem tanto à infraestrutura material do cárcere quanto a determinadas dinâmicas sociais estruturantes da experiência de encarceramento - aquelas impostas pela administração penitenciária e as desenvolvidas pelos próprios presos. O termo abarca, portanto, as condições materiais e objetivas da prisão, a maneira como as autoridades penitenciárias dispõem corpos, espaços e recursos, e o artifício dos presos para tornarem tais espaços habitáveis. Deve-se ter em mente que as condições de confinamento variam amplamente no interior de uma mesma unidade, entre diferentes unidades de um mesmo sistema e no decorrer do tempo, em um detalhamento que não poderia ser explorado nos limites deste artigo. Não obstante, aqui pretendo identificar algumas condições de confinamento suficientemente gerais, isto é, impostas pela administração penitenciária à maior parte da população carcerária fluminense. Evoco também alguns casos extremos, que indicam o quanto tais condições podem piorar.

Espaço físico

Um galpão, duas colunas de leitos de três andares, um corredor estreito entre elas; ao fundo, na qualidade de banheiro, alguns buracos no chão e na parede. Umidade, escuridão, pedaços de papelão e de espuma esfarrapada sendo usados como colchão. Os presos se distribuem como podem, dois por leito, dezenas no chão. A cela coletiva pode ser considerada um emblema das condições de confinamento no sistema carcerário fluminense. É a forma arquitetural que mais se repete nos relatórios analisados - e na qual o maior volume de presos passa a maior parte do tempo. É exemplar a descrição que consta no relatório de inspeção feito sobre a Cadeia Pedro Melo da Silva, em 29 de maio de 2017:

[…] são 10 (dez) celas coletivas com capacidade, segundo a direção, para 75 pessoas, cada uma. Porém cada cela foi projetada para apenas 50 vagas e posteriormente (diretor não soube precisar a data) foi realizada uma obra e construído mais um ‘andar’ de comarcas. Portanto, os antigos beliches passaram a ser triliches. Cabe ressaltar que simplesmente construir mais 25 comarcas não é o suficiente para aumentar de fato a capacidade da cela, uma vez que o espaço físico permanece o mesmo, assim como a infraestrutura (número de vasos sanitários, chuveiros e espaço de circulação). Dessa forma, a unidade prisional está ainda mais superlotada do que estaria levando-se em consideração a capacidade declarada pela direção, que é ainda mais reduzida considerando a existência de inúmeras comarcas incapacitadas para uso. Cabe ressaltar que nenhuma das celas possui qualquer tipo de adaptação que as adequem para acautelar internos deficientes e/ou com locomoção reduzida. Cada cela possui em torno de 125 internos. A cela B era a mais superlotada com 60 pessoas dormindo no chão em velhos pedaços de espuma totalmente impróprios para o uso. O aspecto das celas é precário, com piso esburacado, repleto de poças de água. […] Cada cela tem um banheiro coletivo, com apenas 3 ‘bois’ em cada, cabendo ressaltar que muitos estão entupidos, danificados e/ou inutilizados […] Em suma, segundo o que foi visto, estes ambientes parecem mais propícios para a morada de insetos, baratas, ratos, percevejos, do que para as pessoas que lá se encontram. Essa situação é recorrente nos presídios do sistema prisional fluminense.7 7 Por exemplo, no relatório da inspeção feita na Penitenciária Bandeira Stampa, em 6 de dezembro de 2016, se lê: “A alimentação da unidade é fornecida por duas empresas, a MASGOVI e a Premier, sendo a primeira responsável pelo café da manhã e lanche e a segunda pelo almoço e jantar. A empresa MASGOVI, que é responsável pelo fornecimento de insumos alimentares de todas as unidades do Complexo de Gericinó, apareceu em reportagem em 2010 por ter sido citada em relatório do Tribunal de Contas do Estado por suspeitas de monopólio no fornecimento destes insumos para o Sistema Penitenciário e também por sobrepreço mensal de R$ 416 mil em um contrato assinado pela MASGOVI em 2008, com dispensa de licitação”.

Diante dessas situações típicas, a equipe de inspeção, depois de documentar exaustivamente a precariedade das instalações, sempre recomenda a limitação de ingressos na unidade. Essa recomendação se repete em quase todos os documentos analisados, nos mesmos termos que os constantes sobre o relatório de inspeção feito na Penitenciária Alfredo Tranjan, de 22 de fevereiro de 2017:

1. Redução do número de presos privados de liberdade na unidade até o limite máximo comportado, qual seja 881 internos, como orienta o Principio XVII dos Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas - Resolução nº 1/08 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Para isso recomenda-se que a Penitenciária Alfredo Tranjan não permita a entrada de mais nenhum interno até atingir sua capacidade e que após isso só entre algum interno após a saída de outro.

Para além da superlotação, em praticamente todos os relatórios os defensores chamam a atenção para a precariedade das instalações elétricas. O espaço é invariavelmente atravessado, em todas as suas dimensões, por uma trama de fios elétricos improvisados com o alumínio das marmitas - as “quentinhas” -, em instalações precárias que viabilizam a iluminação do ambiente, bem como o funcionamento de aparelhos de rádio, televisão e ventiladores. Nos relatórios, sempre se ressaltam os riscos de incêndio e a ausência de extintores e de um plano de evacuação em caso de emergência.

Outras duas questões são recorrentes nas descrições das celas: a umidade e o lixo. A umidade emana do chão, das paredes e do teto, através de infiltrações, goteiras e vazamentos de diversas proporções, algumas chegando a inundar o piso. O lixo, por sua vez, não é retirado com a devida frequência, de modo que ele se acumula no interior das celas, em baldes e tonéis destampados, ou mesmo pelos cantos. Invariavelmente, os defensores insistem que esses fatores criam condições para a proliferação de doenças infectocontagiosas - principalmente a tuberculose - e de pragas - como mosquitos, pernilongos, percevejos, baratas e ratos. O relato da inspeção feita na Penitenciária Jonas Lopes de Carvalho, em 19 de janeiro de 2016, revela a que ponto tais infestações podem chegar:

Segundo relatos de centenas de internos, há uma terrível infestação de ratos. Muitos narraram que foram mordidos por roedores enquanto dormiam e que estariam travando uma verdadeira ‘guerra contra os ratos’. Na galeria B6, havia uma cela desativada que segundo os internos era atualmente um ‘imenso ninho de ratos’. Por toda essa galeria pudemos observar placas improvisadas com alumínio reutilizado das quentinhas, presos na parte de baixo das grades das celas. Ao perguntar o motivo daquilo, recebemos a explicação dos internos: trata-se de ‘cercas elétricas’ contra os ratos. As placas de alumínio são conectadas à energia elétrica através de fios todas as noites com uma forma de criar alguma barreira que dificulte o acesso dos ratos às celas.

As condições das celas comuns se apresentam em menor escala e maior intensidade nas celas de seguro e isolamento. No seguro são alocados, sobretudo, presos relacionados a facções não hegemônicas na unidade, enquanto no isolamento ficam presos que estariam cumprindo algum tipo de sanção disciplinar. Interessante notar que, desde a perspectiva das condições de confinamento, essas celas não se diferenciam substancialmente, como se pode perceber no relatório da inspeção feita na Cadeia Pública Cotrim Neto, de 8 de fevereiro de 2017:

Em uma quadra, de forma totalmente improvisada, foram construídos 04 pequenos espaços destinados às celas descritas no item acima [de seguro e isolamento]. Todas têm formatos parecidos, nenhuma conta com incidência de luz natural. Em todas elas há uma porta gradeada mais dois pequenos vãos que posicionados no alinhamento da porta (ao lado e acima), impedem a circulação de ar e comprometem qualquer chance da cela atingir a “salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana” prevista no artigo 88 da Lei de Execução Penal. A lotação destas celas atingiu níveis inaceitáveis. No espaço destinado ao Isolamento, por exemplo, havia 06 internos e apenas uma comarca e nenhum colchão. A cela identificada como “SEG. 1” não possui nenhuma comarca e contava no momento com 18 internos, com um espaço de circulação de 9,39 m2, o que significa uma área de circulação de aproximadamente 0,52 m2 para cada preso. Só estava sendo possível todos os internos permanecerem nesse espaço em razão da improvisação de redes com lençóis amarrados nas grades. A cela identificada como “SEG. 2” contava com 04 comarcas em péssimo estado de conservação. O espaço era dividido por 17 internos. Uma das comarcas, sofria com uma infiltração que fazia com que a água minasse por debaixo dos pedaços de papelão que faziam as vezes de colchão, forçando os internos que já dividem aquela comarca a dormir sobre papelões molhados. A cela identificada como “SEG. 3” também contava com 04 comarcas, no mesmo e lamentável estado, e 18 internos dividiam este espaço; para tornar a situação ainda pior, a cela foi descrita como um “barril de pólvora”, tanto por agentes quanto pelos próprios presos, pois estes 18 internos são identificados com diversas “facções criminosas” diferentes. Os próprios internos reconheceram que este fator é apenas mais um para dificultar o convívio em um espaço tão pequeno e insalubre. A cela “SEG. 2”, tanto quanto a “SEG. 3”, contam com os mesmos 7,68 m 2 de tamanho e a irrisória medida de 4,71 m 2 de área de circulação. Nesse caso, contando com o número de internos no momento da visita, havia disponível respectivamente 0,27 m2 e 0,26 m2 para cada interno “circular”. Além do calor, do cheiro insuportável, superlotação, falta de colchões, escassez de água e insalubridade geral do ambiente, os internos destas celas não possuem acesso à cantina da unidade, não recebem visitas ou custódia. Desta forma, não possuem qualquer tipo de material higiênico, de limpeza ou medicamentos, uma vez que o Estado simplesmente não fornece. Esses internos também não têm o direito ao banho de sol respeitado. Alguns relataram que estão há mais de 03 meses sem sair para o banho de sol e outros que de vez em quando podem apenas sair da cela por aproximadamente 10 minutos e circular dentro da quadra coberta. Foram ouvidos relatos de violência física e verbal por parte dos agentes penitenciários. Além disso, são proibidos televisores, rádios e relógios nessas celas causando uma profunda desorientação temporal. Desta feita, não só o ambiente é caótico, absurdo e lamentável, mas também o estado em que se encontram os internos que lá estão. Seus corpos aparentam falta de saúde e fragilidade que remetem às fotos tiradas dos campos de concentração nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Após a vistoria a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, através do Núcleo do Sistema Penitenciário (NUSPEN), ajuizou na Vara de Execuções Penais pedido solicitando providências para a interdição judicial e posterior demolição física do que chamou de “sarcófagos prisionais”, e definiu com precisão que “…a Cadeia Pública Cotrim Neto, em pleno século 21, repristinou as odiosas e mortificantes masmorras medievais, verdadeiras criptas onde jazem pessoas privadas de liberdade postas sob a custódia estatal.”

Diante de circunstâncias extremas como essas, diversificam-se os cursos de ação da equipe de inspeção registrados nos relatórios. Além de documentar e recomendar a desativação desses espaços, é comum que os defensores exijam a imediata instalação de ao menos uma lâmpada em uma cela demasiado escura ou a imediata remoção de um algum detento especialmente debilitado. Há, ainda, ocasiões em que os defensores tomam medidas para a formalização de denúncias de tortura, acompanhando o interno até a delegacia de polícia mais próxima e exigindo sua transferência para outra unidade (Godoi, 2019aGodoi, Rafael. (2019a). A prisão fora e acima da lei. Tempo Social, 31/3, p. 141-160.).

Recursos básicos

Dinâmicas de fornecimento de água, luz, alimentação e outros itens básicos de sobrevivência também conformam as condições de confinamento. Sobre a alimentação que, via de regra, é fornecida aos presos do Rio de Janeiro, o relato da inspeção feita no Presídio Carlos Tinoco da Fonseca, em 21 de junho de 2016, é exemplar:

A alimentação dos internos consiste em café da manhã, almoço, jantar e lanche. Todas as quatro refeições são fornecidas de maneira precária e insuficiente. O café da manhã consiste em pão preparado na própria unidade e um pouco de café ou café com leite e os internos precisam improvisar copos feitos com garrafas pet. O almoço e o jantar são fornecidos pela Nutry Energe Refeições Industriais, empresa sediada em Niterói - RJ […]. As quentinhas servidas no dia traziam moela, arroz e algum creme de cor abóbora, cujo aroma não possibilitava identificar do que era feito. No geral, a comida trazia um aspecto péssimo e um odor ainda pior. Como é comum a praticamente todas as unidades do sistema fluminense, notamos uma quantidade imensa de comida jogada fora por estar imprópria para o consumo. Ao longo das entrevistas, muitos internos afirmaram que, apesar de horrorosa, ao menos havia mudado o cardápio, pois, segundo os mesmos, há algumas semanas que era servido o mesmo prato com arroz, farofa e um salsichão. Porém, ao fim da visita, notamos a chegada das quentinhas do jantar e nos depararmos exatamente com esta opção para o jantar.

Praticamente todos os relatórios registram pouca variação de cardápio, comidas mal cozidas ou já estragadas e o enorme desperdício decorrente. Também relatam o não fornecimento de copos e talheres, o nome das empresas contratadas e possíveis escândalos de corrupção em que estejam envolvidas8 8 Agravo de Instrumento nº 0014521-23.2015.8.19.0000, de 10 de junho de 2015. Acordão disponível em <https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/228533878/agravo-de-instrumento-ai-145212320158190000-rj-0014521-2320158190000/inteiro-teor-228533892> Acesso em 11 maio 2019. , além da disparidade entre os produtos propagandeados em suas páginas eletrônicas e as “quentinhas” efetivamente distribuídas na unidade.

A carência nutricional decorrente de tal estado alimentar é parcialmente suprida por alimentos fornecidos aos presos por seus familiares - encaminhados em pacotes conhecidos como “sucata” - ou adquiridos nas cantinas das unidades. Essa mesma lógica opera e se radicaliza no abastecimento de outros itens básicos de sobrevivência, como bens de consumo de higiene pessoal e limpeza, os quais, diferentemente da alimentação diária, só excepcionalmente são fornecidos pela administração prisional. Itens dessa natureza ou são comprados na cantina ou adentram a prisão pela chamada “custódia”, cuja frequência varia bastante e se compõe com a da “sucata”, sem necessariamente coincidir com ela. Nesse ponto, a análise se volta para o “sistema de abastecimento” (Godoi, 2017aGodoi, Rafael. (2017a). Fluxos em cadeia: as prisões em São Paulo na virada dos tempos. São Paulo: Boitempo .: 185), que responsabiliza presos e familiares por parte significativa dos custos de manutenção da própria prisão - eis uma dimensão fundamental do encarceramento contemporâneo que se articula às condições de confinamento e que mereceria uma discussão à parte. Aqui, resta indicar as duas principais recomendações da equipe de inspeção sobre o assunto: que a Seap se esforce para reduzir os preços da cantina e que advirta a empresa fornecedora sobre a péssima qualidade dos alimentos.

Embora a água brote das paredes e do chão em vazamentos múltiplos, os presos enfrentam ainda um verdadeiro regime de escassez de água, que os obriga a criar suas próprias políticas de abastecimento. O tema é onipresente nos relatórios e sempre foco de controvérsia: os gestores dizem que o fornecimento de água é de tal maneira, os presos dizem que é de outra. Invariavelmente, a quantidade e a qualidade da água se mostram insuficientes. Sobre tal questão, o relatório de inspeção realizado sobre Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, de 24 de abril de 2017, é modelar:

O fornecimento de água é realizado em quantidade insuficiente e a água possui qualidade duvidosa para consumo humano, fatores que potencializam e desencadeiam uma série de problemas de saúde. A direção informou que a água é fornecida aos internos ao longo do dia por 10 vezes em sessões de 30 minutos. No entanto, em entrevistas com internos de todas as galerias visitadas as informações sobre o fornecimento variam entre 3 ou 4 vezes por dia em intervalos que duram entre 15 e 20 minutos cada. O regime de fornecimento obriga os internos a utilizar recursos improvisados, que comprometem ainda mais a qualidade da água consumida por eles. No decorrer da visita, a equipe constatou, em absolutamente todos os alojamentos coletivos, o uso de baldes, garrafas pet, barris e toneis para aprovisionar água para uso e consumo ao longo do dia.

O acesso contínuo à água corrente não é facultado à maioria absoluta das pessoas presas no Rio de Janeiro. A intermitência do fornecimento obriga que grandes volumes sejam armazenados nos mais variados recipientes: baldes, garrafas PET, sacos plásticos e até copos descartáveis. Portanto, além dos presos, de seus pertences, das instalações elétricas improvisadas e do lixo acumulado, as celas estão abarrotadas de recipientes diversos cheios de água. Diante de tais circunstâncias, a recomendação que se lê no relatório de inspeção do Instituto Penal Vicente Piragibe, de 16 de fevereiro de 2016, também figura nos demais relatórios:

8. Fornecimento de água potável aos presos de forma CONTÍNUA E ININTERRUPTA, inclusive nos horários das refeições, de acordo com o item 20.2 das Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos da ONU; Princípio XI.1 , dos Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas - Resolução nº 1/08 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e art. 13 da Resolução nº 14, de 11.11.94, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Usos do tempo

Nas prisões fluminenses, o acesso ao banho de sol se mostra ainda mais precário que o direito à água corrente. Na maior parte dos relatórios, os gestores reportam que o banho de sol é realizado com certa periodicidade - diária, semanal ou quinzenal, por exemplo -, enquanto os internos invariavelmente negam que usufruem desse direito nos mesmos termos. Entretanto, ambos costumam reconhecer no espaço chamado de “solário” o único lugar disponível para essa prática. No relatório da inspeção feita no Presídio Milton Dias Moreira, de 19 de abril de 2016, lê-se:

Durante a vistoria a direção informou que considera que os internos usufruem o direito ao banho de sol diariamente, pois as galerias dos pavilhões são cobertas por um solário, e todas as celas são abertas de manhã e fechadas no final do dia. Porém, o que a nossa equipe percebeu é que as celas ficam abertas liberando a circulação dos presos nas galerias devido a uma impossibilidade física de manter todos presos nas celas ao longo do dia por conta da assustadora superlotação da unidade. Além disso, o que a direção chama de “solário” é apenas uma estreita abertura gradeada no teto da galeria por onde entra um mínimo de luz natural, não configurando nem de longe um espaço adequado para o banho de sol. Informou ainda a direção que os presos do isolamento não têm acesso a esse direito.

A Defensoria sustenta que o acesso ao “solário” não constitui um verdadeiro banho de sol, já que não possibilita uma suficiente incidência de luz natural, nem se dá em um espaço suficientemente amplo para a realização de exercícios físicos. Com base nesse entendimento e mobilizando como provas os relatórios aqui analisados, em 2015 a Defensoria ajuizou uma Ação Civil Pública sobre a matéria e obteve uma decisão judicial parcialmente favorável, determinando que a administração estadual implementasse, em todas as unidades prisionais do estado, o banho de sol diário, por no mínimo uma hora, em local adequado à prática de atividade física9 9 Conforme Stanchi e Dias (2018), a Resolução Seap nº 721, de 18 de julho de 2018, formalizou o trabalho não remunerado no sistema prisional fluminense. . Entretanto, como se percebe em todos os relatórios de inspeções feitas após a referida decisão, a Seap em nenhum momento alterou sua política de banho de sol em “solários” (Godoi, 2019aGodoi, Rafael. (2019a). A prisão fora e acima da lei. Tempo Social, 31/3, p. 141-160.).

Se o banho de sol é restrito, as oportunidades de trabalho são ainda mais escassas no sistema carcerário fluminense. As vagas ofertadas em parceria com a iniciativa privada são mínimas. Como a maior parte do fornecimento de alimentação é terceirizado, as oportunidades de trabalho em cozinhas e padarias são extremamente pontuais. Assim, na maioria das unidades, a única atividade laboral remunerada e que garante remição de pena é a “faxina”. Como “faxina”, os presos podem trabalhar na cantina, na limpeza dos espaços comuns, na distribuição da comida, no recolhimento do lixo, além de fazer pequenos serviços de reforma e manutenção: são, portanto, funcionários precarizados da prisão. A quantidade de presos que ocupa essa posição varia conforme as dimensões da unidade: não passam de uma dúzia em algumas, chegam a dezenas em outras. Esses sujeitos recebem menos de um salário mínimo e são remunerados pela Fundação Santa Cabrini, a mesma autarquia estadual formalmente responsável por gerir as parcerias com empresas e por oferecer cursos profissionalizantes.

O trabalho na “faxina” e nas poucas oficinas existentes, apesar da baixíssima remuneração praticada, ainda remete a um regime de exploração do trabalho minimamente regular, diferindo de outras atividades correntes no cárcere fluminense. Afirmações como a encontrada no relatório de inspeção na Cadeia Pública Cotrim Neto, de 1º de julho de 2015, são frequentes nos relatórios analisados:

No que diz respeito ao trabalho, além do serviço de “faxina” realizado por alguns internos, há também a reciclagem do alumínio das quentinhas utilizadas nas refeições. A Direção informou que a renda gerada por essa reciclagem é revertida em melhorias para a unidade e não é remunerada.

Onde há fornecimento da alimentação nas chamadas “quentinhas”, as embalagens de alumínio são separadas, limpas, compactadas e encaminhadas para venda. Um volume indeterminado de internos exerce essas atividades voluntariamente - isto é, sem remuneração nem remição de pena. Os defensores sempre destacam as condições insalubres em que o trabalho é feito e a carência de itens básicos de segurança, como botas e luvas. Os diretores são unânimes em afirmar que os recursos provenientes dessas atividades são revertidos em melhorias na própria unidade, embora em nenhum relatório conste qualquer obra ou equipamento que tenha sido assim custeado. O trabalho voluntário na reciclagem de alumínio também envolve a separação, o acúmulo e o transporte de um volume enorme de restos de alimento, os quais, por sua vez, são vendidos como lavagem para criadores de porcos - como consta, por exemplo, no relato da inspeção feita em 1º de dezembro de 2015, na Penitenciária Industrial Esmeraldino Bandeira:

Realidade em todas as unidades já visitadas, tanto a má qualidade da comida como a sua sistemática ida para o lixo se explica com os relatos de alguns presos de que esta comida não se joga fora, senão é utilizada como alimento de porcos, e assim é vendida. Não só esta informação é comum em diversos presídios já vistoriados, como o próprio subdiretor afirmou que tal “recicle” é uma fonte de renda para o presídio.

Por diversas vezes a péssima qualidade da alimentação ofertada aos presos é relacionada a essa sua utilização mais lucrativa, sugerindo uma outra dinâmica de capitalização que não decorreria da exploração do trabalho, mas da paradoxal imposição da fome e do desperdício. Diante de tal quadro, as recomendações mais comuns nos relatórios são a implementação de programas de trabalho coletivo e de atividades para a ocupação útil, além de oferecimento de cursos profissionalizantes.

DEVIR CAMPO, DEVIR PRISÃO

Nessas páginas, mais do que oferecer uma descrição exaustiva das condições de confinamento que vigoram no sistema prisional fluminense, procurei apontar alguns de seus aspectos mais comuns e outros mais extremos. Assim, pretendi divisar as condições de confinamento como dimensão fundamental do cárcere, cuja violência e precariedade parecem-me, atualmente, por demais banalizadas ou mesmo naturalizadas, tanto no debate público quanto no especializado - como se não constituíssem em si mesmas um desafio ao entendimento, nem à ação. Ao registrar o teor geral das recomendações encaminhadas pela Defensoria a partir das diversas observações sobre as condições degradantes impostas à população carcerária, procurei ressaltar uma espécie de instanciação local, atual e rotinizada daquela articulação primordial - e sincrônica - entre um diagnóstico do horror e o imperativo da reforma, que constitui a prisão como forma de punição por excelência.

Vale notar que, ao relatar as condições de confinamento vigentes no sistema penitenciário do Rio de Janeiro, a equipe de inspeção da Defensoria evoca abertamente a imagem de “masmorras medievais” e de “campos de concentração nazistas” para qualificar suas observações - mobilizando justamente figurações que os tratados internacionais de direitos humanos e um expansivo direito penitenciário, há tempos, procuram purgar de suas jurisdições.

A imagem do campo emerge com destaque no relato do aspecto geral dos corpos fragilizados que a equipe de inspeção encontra em um setor de seguro e isolamento da Cadeia Pública Cotrim Neto e remete diretamente à produção, no cárcere, daquela mera vida típica do campo, da qual nos falam tanto Agamben (2002Agamben, Giorgio. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG., 2004Agamben, Giorgio. (2004). Estado de exceção. São Paulo: Boitempo., 2008Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo .) quanto Primo Levi (1988Levi, Primo. (1988). É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco., 2004Levi, Primo. (2004). Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra.). Nas reflexões desses dois autores, a produção de uma “sobrevida” - no sentido de uma vida que permanece, apesar de já desprovida de seus atributos propriamente humanos; de uma vida nua, portanto - aparece como mais característica e definidora do campo que a própria industrialização da morte, a qual seria, tecnicamente, seu corolário. Daí a centralidade, nas reflexões de ambos os autores, dos chamados “muçulmanos”, as testemunhas integrais, com seus corpos definhados e o entendimento embotado, reduzidos a uma condição de quase animalidade e instalados em uma zona de indistinção entre a vida e a morte - e, por isso mesmo, matáveis. Os relatórios da Defensoria estão repletos de fulgurações desses corpos paradigmáticos. Outro exemplo eloquente se encontra no relatório da inspeção feita na Cadeia Pública Romeiro Neto, no dia 10 de março de 2015:

No 1º andar da unidade, existem dez celas de isolamento, uma ao lado da outra, com iluminação proveniente das lâmpadas da galeria e da janela que, pela manhã, recebe luz natural. Não há luz no interior das celas. Durante nossa inspeção, apenas duas celas eram utilizadas. O aspecto dos internos que lá estavam chamou a atenção da equipe em razão de total padecimento e por não conseguirem conversar e sem sequer perceber nossa presença.

Os efeitos nefastos que condições de confinamento degradantes geram sobre os corpos - que se revelam de forma particularmente nítida em celas de seguro e isolamento (Mallart, 2019Mallart, Fábio. (2019). Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo. Tese de Doutorado. PPGS/Universidade de São Paulo.), mas que, como os relatório da Defensoria não cansam de documentar, também operam, ainda que sob outras intensidades, nos demais espaços do sistema prisional - talvez sejam mesmo o ponto de contato mais notável entre as realidades díspares do campo de concentração e do cárcere. Entretanto, no que se refere especificamente às condições de confinamento, é possível identificar diversos outros pontos de contato, por exemplo, entre o que Primo Levi conta do campo e o que a Defensoria relata das prisões: desde a disposição espacial das celas coletivas, com seus treliches e sua superlotação, passando pela frequente violência física e verbal de funcionários, o trabalho “voluntário” e degradante, a escassez de água, a alimentação pobre, a proliferação de doenças, a insalubridade dos ambientes, até a prosaica ausência de copos e talheres.

Por outro lado, é preciso reconhecer que, por piores que sejam as condições de confinamento que vigoram no sistema carcerário fluminense, um abismo separa suas prisões dos paradigmáticos campos de concentração e extermínio da Alemanha nazista. Ainda que nelas se verifiquem índices alarmantes e crescentes de mortalidade (Stanchi & Dias, 2018Stanchi, Malu & Dias, João Marcelo. (2018). Necropolítica das prisões cariocas: análise das tecnologias de produção da morte a partir dos relatórios de vistoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. In: Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, 4., 2018, Dourados. Anais […]. São Paulo: Andhep.: 7), não existem câmaras de gás ou crematórios operando em escala industrial. De uma perspectiva sociológica e empírica, qualquer exercício de aproximação desses dois termos deve partir do reconhecimento dessa heterogeneidade ontológica fundamental e irredutível.

A relação de necessária exclusão entre a prisão e o campo foi explícita e formalmente desenvolvida por Agamben em suas reflexões sobre o estado de exceção e a vida nua:

Uma das teses da presente investigação é a de que o próprio estado de exceção, como estrutura política fundamental, em nosso tempo, emerge sempre mais ao primeiro plano e tende, por fim, a tornar-se a regra. Quando nosso tempo procurou dar uma localização visível permanente a este ilocalizável, o resultado foi o campo de concentração. Não é o cárcere, mas o campo, na realidade, o espaço que corresponde a esta estrutura originária do nómos. Isto mostra-se, ademais, no fato de que enquanto o direito carcerário não está fora do ordenamento normal, mas constitui apenas um âmbito particular do direito penal, a constelação jurídica que orienta o campo é, como veremos, a lei marcial ou o estado de sítio (Agamben, 2002Agamben, Giorgio. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG.: 27).

Portanto, Agamben define o campo como o espaço de suspensão soberana da lei e a prisão como um lugar regido pelo direito penal instituído. Segundo o autor, enquanto o campo exclui incluindo, segundo a lógica da exceção “que serve […] para incluir o que é expulso”, a prisão inclui excluindo, conforme a lógica do exemplo, aquilo que, ao destacar-se de um conjunto, “exibe seu pertencer a ele” (Agamben, 2008Agamben, Giorgio. (2008). O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. São Paulo: Boitempo .: 29). Ou seja, é justamente porque um sujeito é visto como parte da coletividade que ele ataca com um crime, que pode ser segregado e punido exemplarmente na prisão. No campo, pelo contrário, é por ser posto fora de uma certa comunidade política que o sujeito, reduzido à vida nua, pode ser integrado aos domínios da soberania e exposto a uma morte que não constitui nem crime, nem sacrifício - nem punição, valeria acrescentar.

De todo modo, é justamente por prisão e campo remeterem a fenômenos históricos e sociais distintos que esses termos podem se iluminar reciprocamente e de diversas maneiras. Indagar sobre como essas duas realidades, ao mesmo tempo, diferem e se aproximam tem se mostrado um exercício bastante profícuo em tempos de proliferação de centros de detenção indefinida como o de Guantánamo (Butler, 2006Butler, Judith. (2006). Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Paidós.), quando o encarceramento em massa passa a produzir uma vasta casta racial subordinada (Alexander, 2018Alexander, Michelle. (2018). A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo .) e multiplicam-se as prisões-depósitos a norte e a sul do globo (Birkbeck, 2011Birkbeck, Christopher. (2011). Imprisonment and internment: comparing penal institutions North and South. Punishment & Society, 13/3, p. 307-332.). Com efeito, o par de oposição prisão-campo parece cada vez mais desestabilizado (Czajka, 2005Czajka, Agnes. (2005). Inclusive exclusion: citizenship and the american prisoner and prison. Studies in Political Economy, 76, p. 111-142.; Teixeira, 2009Teixeira, Alessandra. (2009). Prisões da exceção: política penal e penitenciária no Brasil contemporâneo. Curitiba: Juruá.).

A partir das condições de confinamento aqui observadas, quero avançar a hipótese de que entre o campo e as prisões descritas neste trabalho existiria uma relação de “devir”, nos termos propostos por Deleuze e Guattari (1997Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, vol. 4.): como uma modalidade específica de relação que não se confunde com relações de transformação, semelhança ou analogia. Não se trata, portanto, de sugerir que a prisão venha se convertendo em um campo, nem que ela cada vez mais se pareça com ele, ou que ela estaria para nós como ele estava para a Alemanha de outrora. Prisão e campo, nesse sentido, permaneceriam realidades heterogêneas, “de escalas e reinos inteiramente diferentes, sem qualquer filiação possível” (Deleuze & Guattari, 1997Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1997). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, vol. 4.: 19), mas formariam um “bloco de coexistência” (1997: 89) atual e real, unido por relações que os autores qualificam como de contágio, vizinhança e simbiose. O devir como “um verbo tendo toda sua consistência”, cujo complemento necessário não é “devir em”, mas “devir com”, indicando essa copresença de elementos heterogêneos, constitui pela relação um vetor de modificação, formando “um bloco que corre seguindo sua própria linha” (1997: 19).

Nesses termos, o sistema carcerário fluminense não se comporia de simples prisões, nem se confundiria com o puro campo, mas constituiria, antes, uma prisão-campo - é esse o bloco de devir que parece se revelar nos relatórios da Defensoria: nos corpos amontoados e debilitados, nos galpões repletos de treliches, nas infestações de pragas e ratos, no trabalho “voluntário” e degradante. O reconhecimento desse devir-campo das prisões fluminenses tem um rendimento analítico que ultrapassa a qualificação das condições de confinamento vigentes, abrindo também possibilidades para se apreender as inspeções e os próprios relatórios da Defensoria Pública aqui analisados.

No interior da prisão-campo, a equipe de inspeção da Defensoria Pública figura como uma instanciação local - uma territorialização - daquela vasta legislação e da ampla jurisprudência que, na atualidade, estabelecem padrões de tratamento e direitos dos presos. Porém, a instanciação dessas leis do cárcere se depara, na inspeção, com uma administração penitenciária que mais remete àquele poder soberano de decidir sobre a exceção. A extensa e diversificada legislação fartamente citada nos relatórios indica que as prisões fluminenses absolutamente não se submetem à lei (Godoi, 2019aGodoi, Rafael. (2019a). A prisão fora e acima da lei. Tempo Social, 31/3, p. 141-160.) quando punem aqueles que lá são postos, acusados ou condenados, justamente, por uma infração legal. O sistema carcerário fluminense atualiza, portanto, algo muito próximo da estrutura formal da exceção soberana, na medida em que suspende a lei para aplicar a lei.

Ao devassar as condições de confinamento do cárcere, a Defensoria permite reconhecer o devir-campo do sistema prisional fluminense, ao mesmo tempo que, ao inspecionar e relatar, reafirma continuamente a condição e a promessa de que aquelas instituições não são e não devem ser mais do que simples prisões, e que nelas todos os códigos, tratados e decisões judiciais que estabelecem padrões de tratamento e direitos dos presos devem ser respeitados. Assim, a Defensoria constitui particular instanciação da lei, uma fração de Estado que atua no interesse dos presos e se debate com um regime de gestão prisional calcado na exceção. Encarna e atualiza, assim, o devir-simples prisão dessa prisão-campo.

REFERÊNCIAS

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NOTAS

  • 1
    Os relatórios foram requeridos à Defensoria com recurso à Lei de Acesso à Informação nº 12.527/2011. O volume de relatórios analisados não corresponde à totalidade das inspeções feitas no período.
  • 2
    Em dezembro de 2020, o estado do Rio de Janeiro contabilizava um total de 55.758 pessoas reclusas em estabelecimentos penais e outras 5.771 cumprindo penas em prisão domiciliar, boa parte delas em decorrência da pandemia do novo coronavírus. Entre 2016 e 2020, em linhas gerais, o perfil demográfico da população carcerária fluminense permaneceu inalterado (Depen, 2021Depen - Departamento Penitenciário Nacional. (2021). Infopen - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Período de julho a dezembro de 2020. Brasília, DF: Ministério da Justiça .).
  • 3
    As fotos que constavam nos relatórios originais foram excluídas das versões que me foram facilitadas pela Defensoria. Stanchi e Dias (2018Stanchi, Malu & Dias, João Marcelo. (2018). Necropolítica das prisões cariocas: análise das tecnologias de produção da morte a partir dos relatórios de vistoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. In: Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, 4., 2018, Dourados. Anais […]. São Paulo: Andhep.: 10), que também analisam o sistema carcerário fluminense a partir dessas mesmas inspeções e relatórios, ressaltam que os controles exercidos pela instituição sobre o acesso público ao conteúdo completo de seus relatórios “propiciam a continuidade e funcionalidade dos programas de vistoria, porém homologam a tônica do silêncio”, característica das prisões.
  • 4
    Este trabalho se insere em um debate mais amplo sobre o “papel” das defensorias públicas no contexto sociopolítico de encarceramento em massa. Para uma abordagem exploratória da atuação da Defensoria Pública de São Paulo na execução penal e no processo criminal comum, ver Godoi (2017bGodoi, Rafael. (2017b). O controle da pena: presos, defensores e processos nos circuitos do sistema de justiça. Dilemas, 10/3, p. 389-411., 2019bGodoi, Rafael (2019b). A arte de livrar: notas etnográficas sobre a defesa judicial pública no sistema de justiça criminal comum. Revista Brasileira de Segurança Pública, 13/1, p. 140-156.). Sobre a especificidade dos relatórios de inspeção aqui em tela, vale destacar o nível de detalhe com o qual as condições de confinamento prevalecentes no sistema prisional fluminense são descritas. Nesse quesito, tais documentos são incomparáveis àqueles produzidos pelo Ministério Público ou pelo Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Poder Judiciário estadual. Para uma reflexão mais detida sobre a particular interação da qual emerge esse tipo de registro, ver Godoi (2019aGodoi, Rafael. (2019a). A prisão fora e acima da lei. Tempo Social, 31/3, p. 141-160.).
  • 5
    Para uma rica reconstituição desse processo, atenta às suas nuances e complexidades, ver Moyn (2010Moyn, Samuel. (2010). The last utopia: human rights in history. Cambridge: Harvard University Press.).
  • 6
    Nas citações, os destaques são sempre originais.
  • 7
    Por exemplo, no relatório da inspeção feita na Penitenciária Bandeira Stampa, em 6 de dezembro de 2016, se lê: “A alimentação da unidade é fornecida por duas empresas, a MASGOVI e a Premier, sendo a primeira responsável pelo café da manhã e lanche e a segunda pelo almoço e jantar. A empresa MASGOVI, que é responsável pelo fornecimento de insumos alimentares de todas as unidades do Complexo de Gericinó, apareceu em reportagem em 2010 por ter sido citada em relatório do Tribunal de Contas do Estado por suspeitas de monopólio no fornecimento destes insumos para o Sistema Penitenciário e também por sobrepreço mensal de R$ 416 mil em um contrato assinado pela MASGOVI em 2008, com dispensa de licitação”.
  • 8
    Agravo de Instrumento nº 0014521-23.2015.8.19.0000, de 10 de junho de 2015. Acordão disponível em <https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/228533878/agravo-de-instrumento-ai-145212320158190000-rj-0014521-2320158190000/inteiro-teor-228533892> Acesso em 11 maio 2019.
  • 9
    Conforme Stanchi e Dias (2018Stanchi, Malu & Dias, João Marcelo. (2018). Necropolítica das prisões cariocas: análise das tecnologias de produção da morte a partir dos relatórios de vistoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. In: Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, 4., 2018, Dourados. Anais […]. São Paulo: Andhep.), a Resolução Seap nº 721, de 18 de julho de 2018, formalizou o trabalho não remunerado no sistema prisional fluminense.
  • *
    Este trabalho é fruto de minha atuação como pesquisador de pós-doutorado (PNPD/Capes) junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu), ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para sua produção pude me beneficiar da interlocução com Michel Misse, Fernando Rabossi, Rodrigo Santos, Mariana Cavalcanti, Fábio Araújo, Cesar Pinheiro Teixeira, Fábio Mallart e colegas do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ), entre outros. A eles, aos editores e aos pareceristas anônimos da revista, meus sinceros agradecimentos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2020
  • Revisado
    17 Set 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
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