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INDEPENDÊNCIA, MODERNISMO E AS CIÊNCIAS SOCIAIS: UMA CONVERSA COM LILIA SCHWARCZ E ANDRÉ BOTELHO

INDEPENDENCE, MODERNISM AND THE SOCIAL SCIENCES: A CONVERSATION WITH LILIA SCHWARCZ AND ANDRÉ BOTELHO

Resumo

Estimulados pela dupla efeméride do bicentenário da Independência e do centenário da Semana de Arte Moderna, convidamos Lilia Schwarcz e André Botelho para uma conversa sobre as possíveis contribuições das ciências sociais para um enquadramento mais amplo, crítico e reflexivo desses dois eventos fundantes da nacionalidade brasileira.

Palavras-chaves:
Independência; Modernismo; Semana de Arte Moderna; Nação

Abstract

Stimulated by the double celebration of the bicentenary of the Independence and the centenary of the Modern Art Week, we invite Lilia Schwarcz and André Botelho to a conversation about the possible contributions of the social sciences to a wider, more critical and reflexive framing of these two founding events of Brazilian nationality.

Keywords:
Independence; Modernism; Modern Art Week; Nation

A dupla efeméride da Independência, proclamada há 200 anos, e do modernismo, com a Semana de Arte Moderna, ocorrida há 100 anos, vem disparando uma série de reflexões sobre a sociedade brasileira. Esses momentos de celebração ritual, ainda mais no atual contexto de múltiplas crises - potencializadas, é claro, pelas investidas autoritárias do governo em curso -, costumam exigir visões amplas e renovadas sobre o que é, afinal, o Brasil, seus dilemas, impasses e futuros possíveis.

Há cem anos, a percepção compartilhada por diferentes grupos intelectuais de que havia uma forte inadequação entre o repertório dominante de ideias (instituições políticas incluídas) e a sociedade brasileira ensejou diferentes programas políticos e estéticos, dotados de sentidos os mais diversos - alguns de teor democratizante, outros com fortes aspirações autoritárias. O movimento modernista (com seus vários momentos e desdobramentos), em sua proposta de “abrasileiramento do Brasil”, foi uma de suas expressões mais vigorosas, com efeitos múltiplos e longevos.

Porém, vale lembrar que essa mesma percepção de que faltava um repertório adequado de ideias para entender o que tornava a sociedade brasileira tão distinta das sociedades tomadas como referência - no caso, as sociedades do Atlântico Norte, vistas de modo etnocêntrico como modelo obrigatório - também deu forte estímulo à expansão das ciências sociais entre nós, que teriam a “missão” de descortinar de modo “científico” e “objetivo” a realidade recalcitrante da sociedade brasileira. Os recursos das ciências sociais e da história então disponíveis foram acionados de modo ativo em diferentes iniciativas culturais e políticas, moldando um vocabulário básico sobre o caráter estruturante do latifúndio, da escravidão e da condição periférica do país. Aliás, várias das interpretações sobre o Brasil mais difundidas e rotinizadas a partir das décadas de 1920 e 1930 contaram com a participação direta ou indireta das ciências sociais, como se ilustra de modo expressivo na coletânea Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país, organizada por André Botelho e Lilia Schwarcz em 2009 (Botelho & Schwarcz, 2009Botelho, André & Schwarcz, Lilia Moritz. (2009). Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras .).

No ano do bicentenário da Independência e do centenário da Semana de Arte Moderna, como vêm as modernas ciências sociais participando desse processo coletivo de reflexão e de auto-observação da sociedade brasileira? Como nossas disciplinas vêm se sintonizando, por meio de suas agendas de pesquisa, às novas questões e pautas colocadas com força no debate público? Como o estoque até então assentado de interpretações do Brasil vem sendo “irritado” pelo acúmulo de pesquisas empíricas e por novos modelos de enquadramento teórico das desigualdades, das identidades e das diversidades brasileiras?

Para responder a essas perguntas, convidamos dois pesquisadores com vasta e reconhecida produção nas ciências sociais contemporâneas sobre estes dois eventos decisivos da sociedade brasileira, cujas datas celebramos este ano: Lilia Schwarcz e André Botelho. Cada um respondeu a quatro perguntas referentes à efeméride e às questões por ela suscitada: Lilia respondeu às perguntas sobre a Independência e André às perguntas sobre o modernismo.

A escolha destes dois nomes não poderia ser mais oportuna. Lilia vem nos legando trabalhos incontornáveis sobre a organização social, cultural, racial e política do país no pós-Independência, especialmente no período imperial e nos inícios da República, chamando a atenção para a centralidade da escravidão nas formas de se organizar as relações sociais e de se imaginar a sociedade brasileira, seja na imprensa, na literatura, nas artes ou no debate científico (Schwarcz, 1993Schwarcz, Lilia Moritz. (1993). O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras ., 1998Schwarcz, Lilia Moritz. (1998). As barbas do imperador: d. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo: Companhia das Letras ., 2017aSchwarcz, Lilia Moritz. (2017a). A longa viagem da biblioteca dos reis: do terremoto de Lisboa à independência do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras ., 2017bSchwarcz, Lilia Moritz. (2017b). Lima Barreto - triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras ., 2017cSchwarcz, Lilia Moritz. (2017c). Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras .). André, por sua vez, cruzando as perspectivas da sociologia política e da sociologia da cultura e da literatura, vem trazendo um olhar original sobre o modernismo como movimento cultural, bem como sobre o caráter potente, aberto e democratizante da atuação de Mário de Andrade nesta rede de comunicação complexa e descentrada que é o modernismo em movimento (Botelho, 2019Botelho, André. (2019). O retorno da sociedade: política e interpretações do Brasil. Petrópolis: Vozes., 2021Botelho, André. (2021). O modernismo como movimento cultural: uma sociologia política da cultura. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, 111, p. 175-209.; Botelho & Hoelz, 2016Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2016). O mundo é um moinho: sacrifício e cotidiano em Mário de Andrade. Lua Nova: Revista de Cultura e Política , 97, p. 251-284., 2018Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2018). Macunaíma contra o Estado Novo: Mário de Andrade e a democracia. Novos estudos CEBRAP, 37/2, p. 335-357., 2022Botelho, André & Hoelz, Maurício. (2022). O modernismo como movimento cultural: Mário de Andrade, um aprendizado. Petrópolis: Vozes .). Além disso, Lilia e André são pesquisadores da área de pensamento social no Brasil (Schwarcz & Botelho, 2011Schwarcz, Lilia Moritz & Botelho, André. (2011). Simpósio: cinco questões sobre o pensamento social brasileiro. Lua Nova: Revista de Cultura e Política , 82, p. 139-159.), especialização dedicada à intensificação da comunicação entre os textos do passado, isto é, das gerações intelectuais que nos antecederam, e os nossos horizontes contemporâneos de reflexão - e “comunicação” aqui não quer dizer “atualização”, mas a produção ativa de ressonâncias e dissonâncias, proximidades e distanciamentos.

Talvez seja mesmo um ângulo privilegiado observar esses dois eventos “fundantes”, cada qual a seu modo, da nossa nacionalidade e compreensão do país, justamente no momento que não só a ideia de “nação” passa a se desencantar e a concorrer com outros marcadores de identidade e de pertencimento social (Eder, 2003Eder, Klaus. (2003). Identidades coletivas e mobilização de identidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18/53, p. 5-18., 2009Eder, Klaus. (2009). A theory of collective identity making sense of the debate on a ‘european identity’. European Journal of Social Theory, 12/4, p. 427-447.), mas também as próprias formas assentadas e institucionalizadas de se fixar uma “identidade nacional” parecem menos verossímeis ou demasiado estreitas para a complexidade societal brasileira. Podemos arriscar dizendo que uma certa ideia de Brasil explodiu e, com ela, novos desafios estéticos, políticos, intelectuais e - por que não? - científicos se inscrevem na cena contemporânea. A conversa que temos a seguir ajuda a explorar alguns dos caminhos possíveis para se pensar a sociedade brasileira de outro(s) modo(s).

Antonio Brasil Jr. Como já disse Fernando Novais (1984Novais, Fernando A. (1984). Passagens para o novo mundo. Novos Estudos CEBRAP, 2/9, p. 2-8.) em artigo clássico, “Passagens para o novo mundo”, a passagem da colônia à nação, no contexto brasileiro, foi a mais conservadora possível, uma vez que tanto as estruturas sociais coloniais quanto a dinastia no poder foram mantidas nessa transição. Ainda que a validade deste diagnóstico siga de pé, como as pesquisas sobre o processo de independência e sobretudo sobre as diferentes formas de resistência à colonização (e ao escravismo) permitiriam tornar esse quadro mais complexo?

Lilia Schwarcz A frase de Fernando Novais ainda ressoa na nossa História. O Brasil foi o único país das Américas, no contexto dos anos 1820, que ficou independente, mas colocou na chefia do novo Estado um imperador da família portuguesa dos Bragança e que descendia de realezas tradicionais, como as casas de Habsburgo e Bourbon. Além do mais, diferentemente do processo que ocorreu em outros locais, no nosso caso, a emancipação política não foi o resultado de uma revolução; foi antes um acerto com as elites locais, que pretendiam evitar o desmembramento do país e ainda manter o sistema escravocrata. Os políticos dirigentes conheciam a história das colônias espanholas, que se transformaram em 18 novas repúblicas, e não pretendiam o mesmo destino para o Brasil. Ademais, como sinal de que a escravidão era elemento estrutural no país, a primeira nação a assinar a aceitação da autonomia brasileira foi Angola - como bem mostra Luiz Felipe de Alencastro (2000Alencastro, Luiz Felipe de. (2000). O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras.) -, o país com que o Brasil, nesse contexto, mais estabelecia contatos para a realização do perverso comércio de almas: o tráfico negreiro. Por fim, a opção pelo Império, num continente que ia constituindo sua vocação republicana, significou uma medida simbólica para manter o país unificado em torno da figura do rei.

Mas o certo é que o 7 de setembro representa um momento simbólico: o desfecho de um longo processo de ruptura iniciado até antes da vinda da corte de d. João, e que levou, ao fim e ao cabo, a uma solução monárquica, implantada bem no meio das Américas. Cercado de repúblicas por todos os lados, o Brasil colocaria no centro do poder um imperador, para espanto e desconfiança dos vizinhos americanos. O evento representa, também, a expressão visível de uma série de tensões e arranjos que se colavam à crise do sistema colonial e do absolutismo, tão característicos do final do período moderno. Era todo o Antigo Regime que se desintegrava, e com ele as bases do colonialismo mercantilista. E se uma nova unidade política foi implantada, prevaleceu uma noção estreita de cidadania, que alijou do exercício da política vasta parte da população, sobretudo um extenso contingente de escravizados. Com isso, noções frouxas de representatividade das instituições políticas se impuseram, mostrando como a independência criou um Estado, mas não uma Nação.

Todavia, hoje se sabe que, em primeiro lugar, a independência correspondeu a um processo muito mais longo, que se inicia bem antes de 1822, com exemplos como a Conjuração Mineira e a Revolução dos Alfaiates, na Bahia, e termina muito depois, com a Revolução dos Malês em Salvador, em 1835. Trabalhos também vêm destacando como é frágil a “lenda dourada” de uma independência pacífica e sem contestações. Basta lembrar dos exemplos das províncias do Maranhão, Bahia e Piauí, que contestaram a independência que teve o protagonismo do Sudeste, bem como demoraram a aceitá-la. Também se tem questionado a ideia de que a monarquia era um “destino”, digamos assim. Pernambuco, por exemplo, já em 1817 propunha a República como o melhor regime político para o Brasil. Por fim, existiram outros protagonistas negros, como Delfino, Francisco Antonio Costa, Emiliano Mundrucu, que atuaram fortemente nesse processo. Isso sem esquecer do exemplo de uma série de mulheres, como Maria Quitéria, que lutou junto com os exércitos, Maria Filipa, uma escravizada que combateu a entrada das tropas portuguesas, e mesmo Joana Angélica, que acabou morta em meio aos combates pela emancipação política. O certo é que críticas decoloniais vêm mostrando como nossa história é ainda muito sudestina, masculina e imperial, e precisa se abrir a novas perspectivas, outras origens regionais e protagonismos. O processo da independência brasileira torna-se assim muito mais complexo e multifacetado.

A.B. Jr. Durante muito tempo, as teorias sociais dominantes entenderam o processo de ruptura com a condição colonial e a formação de um país independente com base nos modelos de sociedade tomados dos países centrais, metropolitanos. Acreditava-se que, mais ou cedo ou mais tarde, as sociedades de passado colonial acabariam recriando-se na forma dos modernos Estados-Nação. Atualmente, a partir de várias abordagens distintas ou mesmo concorrentes - sociologia histórica, modernidades múltiplas, vertentes pós ou decoloniais etc. -, entende-se que o processo de construção nacional nestes contextos não obedece a nenhum telos previamente dado, mas gera trajetórias distintas e arranjos sociais próprios. Que tipo de perguntas - inesperadas ou mesmo desconcertantes, do ponto de vista dos modelos de sociedade dos países centrais - podemos arriscar fazer a partir do processo de independência no Brasil? E, mais ainda, como a nossa experiência de construção nacional ajuda a repensar os processos mais gerais de nacionalização da vida social?

L.S. A experiência brasileira tem confirmado a perspectiva aberta com essa questão. O Brasil tornou-se independente com um golpe de filho contra pai, e sem querer ser muito psicanalítica, ainda há de render boas interpretações nesse sentido. Por outro lado, devido ao gigantismo do Estado, demorou para que se conformasse um sentimento de brasilidade, uma noção de uma única nação. Tardou a existir essa concepção unificada de “os brasileiros”. Além do mais, os modelos interpretativos mais conhecidos pautam-se na experiência de países que nunca foram colônias; foram sempre metrópoles. Com isso, também não dão conta de analisar como a experiência colonial e imperial ultrapassa o contexto imediato das emancipações políticas, uma vez que se criaram novas formas de colonização, internas. Por fim, e para começar, há que se pensar na especificidade de um país que aboliu a escravidão moderna apenas em 1888 - depois de Estados Unidos, Porto-Rico e Cuba -, que teve escravizados e escravizadas em todo o seu território, e que recebeu quase a metade dos 10 milhões de africanos e africanas que chegaram com vida ao continente. Com isso, a escravidão converteu-se numa linguagem da diferença e da hierarquia, resultando num país em que a cidadania era para poucos e o mando para menos ainda. Sem atentar para as especificidades dos diferentes contextos coloniais, não há como criar grandes modelos explicativos, que continuam pautados na experiência dos países europeus, no máximo norte-americanos. Deu-se por aqui uma nacionalização na base da diferença, da hierarquia que era justificada pela história, depois, pela biologia e, mais contemporaneamente, pela meritocracia.

A.B. Jr. Voltando à primeira pergunta, sabemos que, mesmo em comparação aos nossos vizinhos, o processo de independência no Brasil chama mais a atenção pelas continuidades instituídas do que pelas rupturas. Sabemos, por exemplo, que a celebração dos “500 anos do Brasil”, tomando como parâmetro os inícios da colonização - ou do começo da ocupação portuguesa do território -, faria pouco sentido em outros países do continente. Por outro lado, não é possível isolar a nossa independência dos demais processos de ruptura colonial nas Américas. Como podemos pensar a nossa independência em contexto, isto é, no quadro mais geral das independências em nosso continente?

L.S. Sim, nossa independência foi pautada num claro movimento de continuidade, mas existiram rupturas também. Imerso no continente americano, no Brasil a linguagem das emancipações políticas também criou um país emancipado de sua metrópole e que construiu suas primeiras instituições públicas em território brasileiro. Com a independência se intentou ainda ensejar uma nova memória e uma historiografia oficial, já que a anterior passava toda pela metrópole portuguesa. Uma nova constituição foi outorgada, em 1824, a qual, a despeito de ser imposta por d. Pedro I, dialogava com os demais corpos de lei que iam sendo construídos nesse momento.

Era o Antigo Regime que ia ruindo e a própria noção de que uma colônia restaria nessa condição, para sempre. Dessa maneira, a despeito das continuidades - o predomínio das elites agrárias, as grandes propriedades monocultoras, a escravidão, a extrema concentração dos poderes -, foi durante o Império que se consolidaram nossas primeiras instituições, é certo, muito reformadas durante a República.

A.B. Jr. Por fim, dando um salto de cem anos à frente - e aí entramos também já no modernismo, caso tomemos como parâmetro a Semana de 1922 -, o centenário da Independência disparou um conjunto de reflexões sobre o descompasso entre a elite letrada e o “Brasil real”, entre os ideais modernos e a realidade “atrasada” do povo, entre o “litoral” e o “sertão”, e, com isso, produziu-se um certo tom geral de revisão e crítica do liberalismo como princípio capaz de organizar a sociedade brasileira. Em 1922, o centenário da Independência criou um clima de opinião de que era necessário tornar as instituições políticas mais condizentes às nossas condições sociais, o que levou a projetos políticos os mais distintos, alguns inclusive de claro teor conservador. Chegando em 2022, em que estamos igualmente enfrentando uma crise política aguda, como você vem avaliando o tom geral do bicentenário? Como os recursos das ciências sociais têm podido participar deste processo de auto-observação e reescrita de nossa memória histórica?

L.S. A semana de arte em São Paulo (e não exatamente de São Paulo), foi, de alguma maneira, animada pela sombra das celebrações do centenário de 1922. Os dois eventos funcionariam, aliás, como o pássaro e sua sombra.

De fato, em São Paulo, o Museu do Ipiranga ia preparando uma série de festejos que visavam “sequestrar a Independência” para a capital dos paulistas. Tanto que o governo fez de tudo para celebrar a famosa tela de Pedro Américo, “Independência ou morte!”, como uma espécie de prova e registro testemunhal de que a emancipação teria ocorrido, com efeito, às margens do Ipiranga. A linguagem por lá utilizada foi da arte acadêmica e do retorno ao passado devidamente edulcorado.

A Semana vinha, pois, com essa intenção de “abrasileiramento” da cultura brasileira, e com o que definiram ser um sentimento de Brasil - um novo sentimento de Brasil. Mas trataram mais dos “seus outros” - das suas projeções sobre o outro - do que os incluíram. A diversidade estava mais nos temas do que na composição do grupo, por isso deixaram de fora outros modernismos - o modernismo carioca, por exemplo, mais ativista, e mais em consonância com um pensamento negro que circulava nessa época num eixo afro-atlântico (Schwarcz, 2012Schwarcz, Lilia Moritz. (2012). Moderna república velha: um outro ano de 1922. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 55, p. 59-88.).

Sendo assim, se ela, você tem razão, mostrou um descompasso entre a elite letrada e o “Brasil real”, também mostrou o descompasso frente a outros modernismos existentes no Brasil. Não há como esquecer, ainda, de “outros, outros” que o presidente Afonso Pena enfrentava nesse momento, com uma série de greves, que revelavam mais essa face de um país urbano, operário e imigrante.

Na minha opinião, e se pensarmos na narrativa que o governo vai construindo no presente momento, trata-se de mais um “sequestro da Independência”, cujo começo se deu durante a Ditadura Militar. Trata-se de contar uma “história fardada da Independência”, destacando a guarda que acompanhava o príncipe e o gesto imaginário imortalizado na não menos imaginária tela de Pedro Américo. O gesto viril, que impõe a ordem, para retirar-nos do caos; é o famoso “golpe da legalidade”. É esse modelo que Jair Bolsonaro performou no dia 7 de setembro de 2021, quando bradou que “a constituição e a liberdade de imprensa” estavam sendo usurpadas. Foi o mesmo golpe da legalidade que ele ensejou ao dizer que seria “obrigado a dar um golpe”. Foi o mesmo golpe da legalidade que foi praticado quando o presidente convocou “o povo (?)” para essas manifestações antidemocráticas.

Efemérides são datas feitas para guardar, mas seu significado está sempre em risco; elas podem ser muitas vezes sequestradas. No dia 7 de setembro de 2021, Bolsonaro subiu num carro de som como se fosse o cavalo de d. Pedro e bradou por independência, emulando as margens do Ipiranga de 1822. E agora, em 2022, o chefe do executivo continua com seu discurso de intimidação e coerção. Do futuro ninguém sabe, mas o que, sim, sabemos é que datas como essas soçobram ao sabor dos seus tempos.

A.B. Jr. O modernismo, enquanto movimento artístico, de ideias e como grupo de intelectuais/artistas, vem sendo pesquisado há vários anos em nossas ciências sociais, por meio de diferentes especializações. Como você veria, de um lado, os principais achados e acertos deste conjunto de pesquisas e, de outro, os principais pontos cegos e problemas nas interpretações dominantes sobre o movimento?

André Botelho Penso que as ciências sociais têm dado contribuições muito significativas ao debate sobre o modernismo, direta e indiretamente; neste último caso, como perspectiva compartilhada em várias disciplinas, situando os valores, os interesses, as ideias, as práticas artísticas, as trajetórias dos modernistas no contexto da sociedade brasileira do seu tempo. A sociologia pode oferecer - e o tem feito - meios de compreensão mais amplos do modernismo, tanto por meio da questão da renovação estética, quanto para além dela. A imensa fortuna crítica do modernismo o tem tratado, principalmente, como um “movimento artístico de vanguarda” voltado a um só tempo para o combate da estética parnasiana, então hegemônica, e para a renovação da poesia, da literatura e das artes plásticas brasileiras, especialmente. E está certa. Em grande medida, o modernismo foi e é isso mesmo. Mas a sociologia permite justamente pensar outras dimensões envolvidas, divisando ideais de “cultura” e mesmo de “sociedade” mais amplas, implicadas nas propostas de renovação artística e intelectual.

Essas afirmações podem parecer um truísmo, mas cabe lembrá-las num momento como este, das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em que assistimos a simplificações e anacronismos grosseiros que cobram do movimento modernista e de seus protagonistas práticas sociais que seriam histórica e sociologicamente inverossímeis numa sociedade desigual, conservadora e hierárquica como a brasileira dos anos 1920-30. O problema desse tipo de anacronismo, ademais, não é só o de fazer uso dos valores do presente no tribunal do passado, mas o de perder os significados daquilo que, de fato, nossos “antepassados” fizeram no seu contexto próprio, e o sentido do que fizeram na média e na longa durações da ordem do processo, pois o presente - qualquer presente - sempre esconde um processo, de que é parte - simultaneamente ponto de chegada e ponto de partida.

Ocorre que há várias formas de se compreender “contexto” - e, na verdade, “contextos”, no plural - nas ciências sociais. Então, quando passamos da perspectiva sociológica mais difusa, que ajudou a explicar os significados e sentidos sociais mais gerais do modernismo, para o interior das disciplinas que formam as ciências sociais, especialmente a sociologia da cultura, o debate ganha ainda mais complexidade. Embora não seja a única frente ou linha de investigação sobre o modernismo na sociologia, uma das mais consolidadas certamente é a que diz respeito à questão mais perene e ampla na história brasileira sobre o papel social dos intelectuais e suas relações com as estruturas de poder do Estado, particularmente com o Estado Novo (1937-1945). Três posições básicas sobre o problema são distinguíveis na fortuna crítica sociológica e podem ser consideradas de modo geral representativas e mesmo emblemáticas de diferentes formas de conceber e tratar o “contexto social”.

Desde Intelectuais e classe dirigente no Brasil (19201945), Sérgio Miceli (1979Miceli, Sérgio. (1979). Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel.) vem abordando as relações dos intelectuais e artistas com as classes dirigentes como estratégicas para a explicação das posições por eles assumidas no “mercado de postos”, em expansão na sociedade brasileira entre 1920 e 1945, tanto no setor privado quanto no público, em especial nas estruturas de poder do Estado. No fundo, o autor procura expor a matriz dos interesses subjacentes ao ethos de missão cultivado por intelectuais de diferentes orientações ideológicas, como se eles fossem portadores dos interesses gerais da sociedade e seus mediadores junto ao Estado. De outro lado, temos Um poeta na política: Mário de Andrade, paixão e compromisso, de Helena Bomeny (2012Bomeny, Helena. (2012). Um poeta na política: Mário de Andrade, paixão e compromisso. Rio de Janeiro: Casa da Palavra.), que, na verdade, consideramos praticamente um balanço de décadas de pesquisas da autora e, em parte, também do grupo de que fez parte no CPDOC-FGV (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil - Fundação Getúlio Vargas), sobre os experimentos políticos na área da cultura e da educação do Estado Novo. Nesses trabalhos, partese das afinidades entre o empenho dos modernistas na renovação cultural brasileira e o lugar estratégico que a ideia de “cultura nacional” passava a assumir no projeto centralizador do Estado autoritário e corporativo que então se implantava para pensar as relações entre essas diferentes esferas. Eles forjam, assim, uma visão mais matizada sobre os condicionantes históricos do jogo político e institucional em que se veem os intelectuais, o que certamente foi favorecido pela recusa em reproduzir a visão mecanicista sobre o próprio Estado, como se constituísse um bloco unívoco e homogêneo de poder.

Ao apontar as afinidades entre o trabalho dos intelectuais sobre “identidade nacional” e “cultura brasileira” e o lugar central que essas tópicas assumiam na própria reordenação do Estado e na nacionalização da sociedade brasileira então em curso, esses trabalhos nos ajudam a reconhecer os limites de uma explicação sobre a participação dos intelectuais em termos de “cooptação” por parte do Estado. Concordo, assim, com os limites de uma abordagem centrada exclusivamente nas trajetórias dos intelectuais, sobretudo quando se leva em conta que, no caso em questão, o Estado Novo envolveu a colaboração de intelectuais das mais diferentes orientações ideológicas, ao centro, à direita e à esquerda, e que, além disso, tinham concepções distintas sobre o país e sobre os temas do contexto intelectual da época, a exemplo justamente de “identidade nacional” e “cultura popular”. O ponto, porém, é que, se há mais diversidade nas relações entre intelectuais e Estado, seja pelo lado dos intelectuais seja pelo Estado Novo, há também menos convergência entre as ideias e os temas dominantes da época. Não só a política, mas também as ideias são um campo de forças, e existem várias maneiras de se participar de um mesmo “contexto intelectual”.

Por fim, em diálogo com essas vertentes, destacaria o trabalho que eu mesmo venho realizando nos últimos anos, nos termos de uma sociologia política da cultura, analisando o modernismo como um movimento cultural. Acabamos de publicar, Maurício Hoelz e eu, o livro O modernismo como movimento cultural (2022), que formula essa proposta de uma nova inteligibilidade sociológica do modernismo, que passamos a ver e a discutir como uma forma de ação coletiva voltada para a mudança de ordem cultural da sociedade brasileira. Assim, penso que a própria disjuntiva missão/cooptação dos intelectuais modernistas, que ensejou amplo e polêmico debate na sociologia até aqui, em parte perde o pé, pois essa ação coletiva - mas não consensual ou com sentidos unívocos - não se explica nem só por seu voluntarismo, nem apenas pelos constrangimentos estruturais à reprodução social dos intelectuais. Como movimento cultural, o modernismo interage com as estruturas de poder do Estado, alvo central da ação coletiva conflitiva e reivindicatória também no plano da cultura. O movimento cultural produz efeitos, ou não, de acordo com a sua interação num campo de forças abrangente e cambiante, o que inclui outros movimentos culturais, grupos ocupando posições no interior do Estado e, em alguns casos, também movimentos sociais. Vale a pena levar em conta ainda as várias escalas da diacronia, pois, a despeito da longa duração da modernização conservadora entre nós, houve períodos - curtos - de abertura e promoção pública e privada de inovações culturais e de legitimação da ação dos movimentos culturais democratizantes. O caso de Mário de Andrade parece capturar bem esse anticlímax que foi a redefiniçao autoritária dos recursos culturais que ele vinha mobilizando em várias frentes.

A.B. Jr. O modernismo, como é sabido, foi um movimento de renovação estética, intelectual e política que criou ressonâncias diversas, algumas mais circunscritas aos seus contextos, outras de longa duração, alterando as formas básicas por meio das quais a sociedade brasileira se auto-observa. Quais seriam, a seu ver, os principais efeitos do modernismo em sua interação histórica com a sociedade brasileira?

A.B. Essa formulação me parece precisa: o modernismo alterou as formas básicas por meio das quais a sociedade brasileira se auto-observa. É isso mesmo. O principal efeito do modernismo, nesse sentido, me parece ter sido o da “democratização da cultura” brasileira. Basta verificar o que se considera “cultura” e “cultura brasileira” antes e depois dele. Antes dele, período não por acaso chamado “belle époque”, a cultura que se procurava forjar na sociedade de matriz colonial era uma cultura pretensamente eurocêntrica, erudita e branca. Várias manifestações populares, especialmente de matrizes afrodescendentes, eram estigmatizadas, quando não criminalizadas. O modernismo pretendeu, em conjunto, operar uma espécie de abrasileiramento do Brasil, juntando “sentimento” e “pensamento” brasileiros. Não por acaso, um dos seus emblemas é aquilo que, em carta ao jovem Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade (2015Andrade, Mário de. (2015). A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras .) chamou de “mal de Nabuco” que assolaria as elites brasileiras, em geral, e sua intelectualidade, em particular. Uma espécie de divisão ou dualidade que o escritor, político e diplomata Joaquim Nabuco (1900Nabuco, Joaquim. (1900). Minha formação. Rio de Janeiro: Garnier.) prendeu em páginas notáveis do capítulo III das suas memórias, Minha formação, publicadas em 1900: “o sentimento em nós é brasileiro, mas a imaginação europeia”.

Com esse trabalho de abrasileiramento do Brasil, o Brasil deixava de ser apenas o lugar do sentimento, e passava a ser também o lugar da imaginação, do pensamento e da criação artística, que, juntos, poderiam nos proporcionar, inclusive, uma visão mais integrada da nossa inserção no mundo. E é esta nova percepção que se coloca na base do projeto coletivo modernista de desrecalque da cultura brasileira, e em alguns casos de reconhecimento da dignidade de formas culturais não eurocêntricas. Como argumentamos em O modernismo como movimento cultural, é este o caso de Mário de Andrade. Ao lermos sua obra maior, Macunaíma, escrita em 1926 e publicada em 1928, ao lado do ainda hoje subestimado Ensaio sobre música brasileira, do mesmo ano, percebemos como Mário opera com uma noção bastante arrojada das identidades coletivas. Elas são vistas como feixes de relações que se constituem na negociação e no jogo contextual de diferenças, referências e conflitos (que não se resolvem). Percebemos também uma visão que poderíamos chamar de instrumental do nacionalismo, que o considera um expediente transitório e crítico do eurocentrismo a serviço de um ideal cosmopolita. A valorização da cultura brasileira e das práticas populares promovida nesses livros não deve ser confundida com a busca de uma identidade essencializada - seja pura, seja misturada - e estável, e assume sentido contestatório dos padrões estéticos passadistas e do gosto das elites burguesas pautadas pelos modelos europeus de “civilização” e “progresso”. Por buscar reduzir a distância e esfumar as fronteiras sociais entre o erudito e o popular, adquiria significado não apenas cosmopolita como progressista, no contexto de uma sociedade excludente com pretensos ares de europeização.

A.B. Jr. É certo que não se pode falar em modernismo, no singular, haja vista a dispersão e a heterogeneidade deste movimento de renovação da cultura brasileira. No entanto, a efeméride do centenário da Semana de 1922, que é tomada como marco histórico, recoloca a questão sobre o que reúne e o que separa os diferentes movimentos renovadores entre si. Como o atual estado da pesquisa sobre o assunto vem enfrentando esse problema?

A.B. Sim, foram muitos os modernistas e são muitos os modernismos, é preciso enfatizar; e isso mesmo considerando apenas a sua matriz paulista, que, apesar de sua diversidade interna, acabou conseguindo impor, em grande medida, uma representação hegemônica unitária sobre o seu papel na renovação cultural - o que, porém, está longe de qualquer consenso, se lembramos da importância dos grupos modernistas do Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, por exemplo. Houve convívio e colaboração, mas também disputas e conflitos entre diferentes grupos ou correntes modernistas. Algumas delas conseguiram mais êxito na representação de seus ideais junto ao conjunto da sociedade e no próprio Estado, quer por afinidades ideológicas, quer por senso de oportunidade ou outros motivos.

Três vertentes “paulistas” nos chamam a atenção. De um lado, os nativistas do movimento Verde-Amarelo, e entre eles o integralista Plínio Salgado, parecem, em grande medida, talhados para contarem a história autoritária que acabamos por viver em grande parte do século XX brasileiro, e que corremos o risco de ver agora retomada, já não nos faltando para isso o uso programático, agora farsesco, do auriverde pátrio que eles impunham. De outro lado, está a antropofagia de Oswald de Andrade, cujo sentido heroico e triunfalista de ruptura, dado pelo próprio criador, se mostrou extremamente influente nas culturas das vanguardas que se sucederam no Brasil, tendo sido reivindicada, retomada e atualizada do concretismo ao tropicalismo, passando pelo Teatro Oficina e artistas contemporâneos destacados - caso bastante curioso de vanguardas que também se afirmam pela continuidade e atualização que pretendem dar do modernismo oswaldiano, como de certa forma foi o caso do tropicalismo.

Entre essas duas vertentes, há Mário de Andrade. Aliás, muito do que se supõe e mesmo se atribui a Mário no senso comum do modernismo, rotinizado, aliás, com a concorrência direta ou indireta de trabalhos acadêmicos, está equivocadamente ligado a essas duas outras vertentes paulistas, que, mesmo com sentidos distintos e públicos até mesmo adversários, acabaram por se impor ao conjunto do imaginário modernista. As tensões e ambiguidades constitutivas das ideias de Mário de Andrade e seu sentido crítico em relação aos temas dominantes de seu tempo foram, em grande medida, perdidas nos últimos 100 anos. Apagadas as ambiguidades e contradições, ele pôde, então, ser monumentalizado como matriz oficial da modernidade cultural brasileira. Por esse mesmo motivo, infelizmente, Mário já vem sofrendo como uma espécie de palmatória do modernismo, sendo-lhe cobradas todas as violências simbólicas implicadas na sociedade brasileira da sua época, no modernismo como movimento cultural e na nacionalização que ele operou de práticas e valores culturais de um Brasil tão diverso e desigual.

Verdade que novas pesquisas, em geral monográficas, vêm apontando cada vez mais a necessidade de falarmos de experiências modernistas, no plural, em diferentes regiões, estados e cidades. Mas uma questão importante é saber se, de fato, se trata de uma diversidade de modernismos ou de uma multiplicação e reprodução dos valores e práticas modernistas consagradas nas experiências paulistas hegemônicas. Muitas vezes lemos estudos que praticamente reproduzem para outros contextos aquilo que foi a experiência paulista. Diversidade ou repetição? Faltam-nos ainda estudos comparativos, de conjunto e sistemáticos de diferentes experiências para respondermos de modo consistente a essa pergunta.

A.B. Jr. Agora chegamos em nossa última pergunta. No contexto de surgimento do modernismo, a questão nacional se colocava como urgente e os diferentes projetos políticos gravitavam em torno de que se convencionou chamar de “identidade nacional”. Como sabemos, o movimento abrigou inúmeras posições a respeito e nos legou um repertório em nada unívoco sobre o que, afinal, constitui essa identidade ou, radicalizando o problema, sua improbabilidade. Como a atual abertura da “caixa de pandora” das identidades, que conforma o cenário contemporâneo, para parafrasear o sociólogo alemão Klaus Eder (2003Eder, Klaus. (2003). Identidades coletivas e mobilização de identidades. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 18/53, p. 5-18.) - entendendo que “identidade nacional” é uma identidade em relação de conflito e/ou concorrência com outros marcadores identitários -, pode ajudar a reabrir a investigação sociológica sobre o movimento?

A.B. Gosto muito da menção ao Klaus Eder, porque ele é um autor muito importante para o meu trabalho. Quando se pensa o modernismo como movimento cultural, não se pode deixar de levar em conta o problema central da mobilização de identidades coletivas, tão bem trabalhada por ele. Temas como “identidade nacional”, “nacionalismo” e “brasilidade” domesticaram quase por completo o debate e a inquietação sobre o modernismo. No entanto, foram e ainda são empregados no singular, como se “identidade” ou “brasilidade” pudessem significar a mesma coisa de um autor para outro, de um contexto para outro ou mesmo em diferentes regiões do Brasil e para diferentes atores sociais. O nacionalismo não era um dado naturalizado do contexto, ponto de partida que permitiria sem mais explicá-lo, mas justamente o problema, possível ponto de chegada, cujo sentido e significado estavam sendo disputados e construídos na sociedade e nos textos.

O caso de Mário de Andrade, como já me referi antes, é muito instigante. A fortuna crítica sedimentou de tal modo uma imagem dele como ideólogo de um nacionalismo cultural que não tem sido fácil prospectar outras dimensões e significados de suas ideias. Argumentamos, contra essa imagem normalizadora, que, em vez de formulador de uma visão sintética, unívoca e estável de identidade, Mário se mostrou crítico às ideias de autocentramento e de autenticidade da cultura brasileira. Além do mais, se posicionou contra um sentido eurocêntrico da cultura brasileira e manteve uma escuta atenta à sua diversidade regional. Nesse sentido, a própria valorização das culturas populares, tão emblemática em sua obra e trajetória, pode ser revista menos nas chaves usuais de um colecionismo romântico, ou diluída no movimento folclórico dos anos 1930-1960, e mais como política de reconhecimento. Se Mário valorizou a cultura popular, seu interesse não se extingue nas manifestações que colheu, mas antes no reconhecimento social e político que provocou delas e na dignidade e visibilidade que procurou conferir a seus portadores sociais. E, sobretudo, diferentemente de outras correntes do modernismo, o fato de ter buscado problematizar tanto as fronteiras e a hierarquia simbólica entre erudito e popular indica que Mário não pensou apenas as diversidades culturais ou a diversidade em si mesma, mas antes se mostrou atento às suas relações com os processos duradouros de desigualdades sociais na sociedade brasileira.

Como, entretanto, por conta da persistência e da recriação das desigualdades sociais (fenômenos diferentes, mas correlatos e implicados um no outro), conviveu pouco com a democratização social e com a própria democracia, enquanto forma de exercício do poder político e institucional, a força crítica que movia algumas vertentes do modernismo, especialmente a de Mário de Andrade, parece ter perdido alcance e mesmo fôlego. No meio do caminho do modernismo tinha uma ditadura, a do Estado Novo. A seu modo autoritária, centralizada e populista, ela trouxe para a esfera pública a questão da cultura brasileira pela qual os modernistas de diferentes orientações políticoideológicas vinham batalhando. No contexto de exceção, de restrição às liberdades civis e políticas, de repressão policial da ditadura Vargas, porém, foram muitos os limites impostos tanto à democratização dos bens culturais quanto à afirmação da cultura como parte de um processo de democratização mais amplo, da sociedade e do Estado. Ao mesmo tempo, criações e conquistas modernistas iam sendo, pari passu, apropriadas, transformadas e ressignificadas em clichês e produtos de brasilidade na então nascente indústria cultural. Penso ser tarefa das ciências sociais contextualizar as ideias de um autor/movimento cultural, mas não devemos nem dissolver as diferenças numa homogeneidade artificialmente construída, nem, tampouco, ignorar que todos somos criaturas do nosso tempo e da nossa sociedade, não apenas com as possibilidades reais ou virtuais, mas também com os limites que isso também acarreta.

Num momento como o presente, em que mais uma vez a sociedade brasileira se vê diante de um conflito agudo pelo controle político da mudança, é preciso estar atento para esse problema. Pensamos, assim, contribuir para esse desafio também do nosso tempo, reabrindo com O modernismo como movimento cultural uma discussão teórica sobre o modernismo como espaço simbólico de conflito, em que a cultura não seja tratada como mero reflexo da mudança em outras esferas da vida social. O que vivemos no presente e o que já sabemos sobre o modernismo (e há muito conhecimento acumulado, embora nem sempre criativo) nos parece exigir urgentemente um gesto mais ousado e mais radical teoricamente para requalificar a cultura não apenas como dispositivo do consenso, como tradicionalmente vem sendo feito, mas como um campo aberto de conflito crucial pelo controle dos significados das mudanças na sociedade.

Esse é o aprendizado que o modernismo nos traz, quando o situamos no processo e nas relações sociais e políticas do seu e do nosso tempo, o que permite colocar, inclusive, o próprio legado do modernismo em permanente escrutínio e debate. Por isso, é necessário não apenas incrementar a pesquisa empírica documental e as descrições históricas e biográficas sobre os modernistas e sobre o modernismo, mas também adensar a teoria social sobre ele e sobre os processos de significação das ações coletivas em geral. As ações coletivas sempre envolvem fundamentos narrativos da ordem e da mudança sociais e que atuam na construção de identidades e nas mobilizações coletivas de identidades. Se a posição do indivíduo na sociedade é central, sociologicamente, não parece suficiente para definir sua compreensão do mundo social. E é esse o papel da teoria. E ele nunca foi tão urgente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2022
  • Aceito
    15 Jun 2022
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