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Repensando as encruzilhadas de CTS Entrevista com Jane Calvert

Rethinking STS Crossroads. Interview with Jane Calvert

Resumo

Nessa entrevista, Jane Calvert, pesquisadora e professora na Universidade de Edimburgo, nos convida a refletir sobre os estudos sociais da ciência e tecnologia (CTS) a partir de sua trajetória interdisciplinar e de suas contribuições a esse campo. Sua larga experiência empírica em laboratórios de biologia sintética no Reino Unido deu origem a análises críticas, epistêmicas e sociais, mas também a colaborações e intervenções, enfatizando a peculiaridade dos estudos em CTS em cruzar, emaranhar e contaminar diferentes áreas do conhecimento.

Palavras-chave
Estudos sociais da ciência e tecnologia; institucionalização de CTS; biologia sintética

Abstract

In this interview, Jane Calvert, reader and professor in Science, Technology and Innovation Studies at the University of Edinburgh, invites us to reflect on the Social Studies of Science and Technology from her interdisciplinary trajectory and her contributions to this field. Her long-standing empirical experience in UK synthetic biology laboratories has given rise to epistemic and social critical analysis as well as collaborative and participatory research endeavours, emphasizing the peculiarity of STS studies in crossing, entangle and contaminate different areas of knowledge.

Keywords
Social studies of science and technology; STS institutionalisation; synthetic biology

As imbricadas relações entre ciência e política nos levam a diferentes destinos. Se foram os estudos sociais da ciência e da tecnologia a enfatizar os aspectos políticos inerentes a toda a ciência, são também eles a olhar com desconfiança para a política que rejeita e desmerece dados e resultados científicos - ao negar, por exemplo, a existência do aquecimento global ou o crescente desmatamento da Amazônia brasileira. Estamos continuamente repensando nossos temas e pesquisas diante das desafiadoras encruzilhadas da produção de conhecimento.

Nesta entrevista1 1 A entrevista foi realizada na School of Social and Political Science, na Universidade de Edimburgo, durante minha visita à Escócia em fevereiro de 2019. A visita e a entrevista contaram com o apoio da University of Manchester e do Rutherford Fund Strategic Partner Grant, aos quais agradeço. Agradeço também a Phillip Shapira e Barbara Ribeiro o incentivo e apoio institucional durante minha fellowship no Manchester Institute of Inovation Reasearch (MIoIR). A entrevista foi realizada originalmente em língua inglesa, e a presente versão foi traduzida pela entrevistadora. convidamos a pensar sobre os desdobramentos e o papel desempenhado pelos estudos sociais em ciência e tecnologia no atual contexto geopolítico e sobre sua importância tanto como disciplina acadêmica quanto movimento político-social. Se podemos dizer que ainda não há consenso ou definição precisa sobre o que convencionalmente chamamos de STS - Science and Technology Studies e/ou Science, Technology and Society, em português estudos sociais da ciência e tecnologia e/ou ciência tecnologia e sociedade (CTS) -, há um comum acordo sobre sua crescente relevância e capacidade peculiar em reunir os mais diversos interesses empíricos vindos de pesquisadores com diferentes formações acadêmicas.

A emergência desse campo, por vezes associada a uma posição sociológica antimertoniana, foi caracterizada pelo desejo de olhar criticamente para o interior da ciência, para o modo como se constitui na prática, bem como para as diversas modalidades relacionais entre ciência e sociedade. De um lado, atentava-se para seu processo de emergência e consolidação, para as questões sociais, filosóficas e metodológicas dos procedimentos científicos, bem como para seu papel hegemônico na produção de práticas e conhecimentos. De outro, o ativismo político impulsionado pela preocupação com as consequências sociais e ambientais das ciências - tal como aquelas ligadas à energia nuclear e às tradições intelectuais e metodológicas voltadas para o feminismo, para a análise dos discursos e para o trabalho das políticas públicas - promovia o estabelecimento de uma agenda distinta e igualmente urgente. Ambas as preocupações, embora baseadas em diferentes percursos genealógicos, encontraram acolhimento e promoveram pontos importantes de diálogo e conexão naquilo que agora referimos como um campo mais abrangente em STS.

Como em geral ocorre na formação de novos campos disciplinares, pesquisadores em STS são explícitos em afirmar que seu trabalho diário, mundano e muitas vezes negligenciado, desempenha papel crucial no desenvolvimento desse campo científico-acadêmico, o qual se dá por meio da criação, coordenação e institucionalização de grupos de pesquisa, do esforço de departamentos e programas em formular propostas de ensino nessa área e do estabelecimento de organismos e eventos acadêmicos que possam reunir pesquisadores de diferentes formações e instituições.

Com efeito, a criação da Sociedade para os Estudos Sociais da Ciência (4S) em 1975 e da Associação Europeia para o Estudo da Ciência e da Tecnologia (Easst) em 1994, assim como o desenvolvimento contínuo, ao menos desde a década de 1970, de periódicos importantes como Estudos Sociais da Ciência (SSS) e Minerva, têm marcado de maneira emblemática a institucionalização desse campo e seu fortalecimento. No Brasil, a Associação Brasileira de Estudos Sociais das Ciências e das Tecnologias (Esocite.BR), criada em 2010, e a Reunião Bianual de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReACT), que acontece desde 2007, têm desempenhado papel igualmente crucial e agregador.

As diversas perspectivas engajadas nos estudos em STS estão filiadas a diferentes áreas e também se posicionam de maneiras diferentes em uma mesma disciplina, promovendo reflexões e análises muito particulares a esse campo de investigação, considerado pouco monolítico, ortodoxo ou limitado por correntes teórico-metodológicas já estabelecidas. Bem ao contrário, sua indisciplina frente ao monismo possibilita a entrada de conhecimentos outros - teóricos, metodológicos e empíricos -, produzindo como efeito a desobstrução das rotas de pensamento, contaminando proposital e deliberadamente todos os saberes envolvidos.

Pode, no entanto, ser desconcertante perceber que nossos objetos de estudo se distanciam à medida que o campo se expande, incorporando e interessando cada vez mais outras áreas: neurociências, medicina, saúde, negócios, educação, economia, finanças, artes e humanidades entram em diálogo por meio de uma não disciplina, uma multidisciplinaridade ou um conjunto de compromissos e sensibilidades, ou, ainda, por meio do privilégio de cruzar esses e outros tantos saberes.

Em comum temos o compromisso com a pesquisa centrada no objeto, com o estudo em profundidade das mais diferentes práticas, testando e experimentando novas formas de análise e teorização com fim pragmático, ao mesmo tempo em que estamos insistentemente questionando o status quo social e científico ao abrir caixas-pretas, e assim propor formas alternativas de pensar e de fazer, seja em relação a colegas em um mesmo campo ou em diálogo com nossos sujeitos/objetos de estudos.

Esses foram alguns dos temas que emergiram durante o encontro com Jane Calvert,2 2 Jane Calvert é professora e pesquisadora em estudos sociais da ciência e da tecnologia na Universidade de Edimburgo desde 2007. Seus principais temas de investigação abarcam as relações entre cientistas, engenheiros e cientistas sociais; governança de tecnologias emergentes; ontologia e propriedade intelectual nas ciências da vida. Entre suas publicações recentes estão: The two sides of STS: reflection on an interview with Arie Rip e, em coautoria, “A feeling for the (micro)organism? Yeastiness, organism agnosticism and whole genome synthesis”; “Designing with living systems in the synthetic yeast project” e “What can science and technology studies learn from art and design? reflections on Synthetic Aesthetics”. pesquisadora e professora da Universidade de Edimburgo, um centro de referência, notadamente reconhecido por sua excelência nos estudos sociais da ciência desde os anos 1960, precursor nessa área com a criação da Edinburgh Science Studies Unit (SSU), liderada por Barry Barnes e David Bloor, figuras centrais para o desenvolvimento do campo de STS por meio do Programa Forte em Sociologia do Conhecimento Científico.

Ao longo dos últimos anos, Jane Calvert tem estabelecido colaborações de diferentes tipos, e suas pesquisas e investigações colocam em diálogo de forma contundente a sociologia e a antropologia da ciência, a filosofia da biologia e a política científica. Muito embora seja reconhecida por suas pesquisas em biologia sintética - campo emergente que aplica à biologia princípios da engenharia genética, da química e da biofísica com intenção de construir sistemas biológicos em laboratório -, Jane Calvert tem oferecido importantes contribuições ao campo de STS, sobretudo por meio de uma perspectiva atravessada por saberes vindos da biologia, da engenharia e que se conectam com questões fundamentais da crítica social, tal como a comodificação da natureza e as relações entre natureza e capital. Seu atual projeto de pesquisa investiga o movimento de ideias, práticas, políticas e promessas da engenharia para as ciências da vida e, de forma mais reflexiva, examina a maneira pela qual os cientistas foram mobilizados como parte desse esforço, sobretudo no campo da biologia sintética.

Nesta entrevista, Jane Calvert nos convida a pensar sobre o desenvolvimento e o fortalecimento dos estudos sociais em ciência e tecnologia, sobre sua importância tanto como disciplina acadêmica quanto como movimento político, enfatizando o grande privilégio que essa área possui em cruzar, emaranhar e contaminar diferentes saberes e áreas do conhecimento. Jane Calvert nos relembra que sem as ciências humanas não é possível entender o social, tampouco a própria ciência, a qual, bem sabemos, não se desenvolve num vácuo independente.

Os ecos das questões trazidas nesta entrevista têm um lugar especialmente vívido entre nós frente aos atuais debates em torno da importância e da legitimidade científica. Se do ponto de vista epistemológico e autorreflexivo coube a nós mostrar que ciência e política nunca foram feitas de maneira independente, desde outros posicionamentos políticos o mundo industrial-capitalista parece não querer curvar-se a nenhum tipo de saber que confronte sua hegemonia, seja ele científico ou não. O ataque às ciências - no Brasil, mas não apenas - nos reposiciona no jogo reflexivo, deslocando nossos objetos de investigação e a nós mesmos, enquanto pensadores e críticos, mas também enquanto cientistas.

Magda Ribeiro Você poderia começar falando um pouco sobre sua trajetória acadêmica? E em que momento você passou a se identificar como pesquisadora pertencente ao campo dos STS?

Jane Calvert Sim, isso é interessante, porque acredito que a maioria das pessoas não escuta falar dos STS até chegar à pós-graduação. Quando fui para a universidade eu não queria me especializar. Eu realmente gostava das ciências, particularmente das ciências biológicas; gostava de literatura, literatura inglesa e ciências sociais; eu gostava de tudo basicamente. No sistema de ensino do Reino Unido é muito difícil não se especializar - a maioria das pessoas faz química, história ou algo assim. Mas encontrei uma graduação chamada ciências humanas na Universidade de Sussex, que era uma graduação muito interdisciplinar, oficialmente era biologia, psicologia, antropologia, filosofia e linguística. E pensei “isso é ótimo, eu não preciso me especializar, eu posso fazer tudo!” No primeiro ano fizemos genética eucariótica, ao mesmo tempo em que fazíamos parentesco em antropologia; fazer esses dois cursos simultaneamente foi uma experiência de fato esclarecedora, porque eles eram completamente diferentes. No parentesco aprendemos sobre casamentos entre primos, primos maternos, primos paternos e as diferenças entre eles; já na genética eucariótica essas diferenças não tinham a menor importância. Fazíamos genética com os estudantes de biologia e antropologia com os estudantes de antropologia, e esse conflito de culturas epistêmicas foi realmente desafiador para o primeiro ano de graduação. E toda a graduação foi dessa maneira; o que certamente faz você questionar o que é o conhecimento afinal. Comecei a me interessar por filosofia, porque minha graduação parecia levantar questões filosóficas sobre a natureza da ciência social e a natureza da ciência natural. Então, ao final do meu curso - foram quatro anos, um período mais longo do que o de uma graduação normal no Reino Unido, que em geral leva três anos -, no quarto ano, me dediquei aos cursos de filosofia, e então decidi fazer um mestrado em filosofia da ciência. Durante meu mestrado percebi que a filosofia da ciência não era exatamente a coisa certa para mim, mas consegui obter uma bolsa de doutorado para ingressar na SPRU, que é a Unidade de Pesquisa em Política Científica de Sussex, onde eu poderia fazer estudos mais empíricos e ainda manter o interesse sobre a natureza das ciências. Então a questão que emergiu em meu doutorado foi “o que é pesquisa básica?”.3 3 Pesquisa básica, também chamada de pesquisa pura ou pesquisa fundamental, tem como objetivo a utilização da pesquisa científica como forma de melhorar as próprias teorias científicas, ampliando a compreensão de fenômenos naturais e/ou sociais [N.T.]. Isso envolvia entrevistar pessoas e lhes perguntar como entendiam a pesquisa básica e como achavam que a pesquisa básica se diferenciava da pesquisa aplicada. Acredito que foi durante meu doutorado que comecei a pensar em mim como pesquisadora em STS; então levou um bom tempo, porque antes eu não tinha consciência disso. Não consigo lembrar quando ouvi essa expressão pela primeira vez, mas durante meu doutorado, um de meus colegas me incluiu em uma lista de e-mails da graduação em STS, e foi então que eu descobri a 4S e outras conferências desse tipo. O SPRU, onde fiz meu doutorado, era mais focado em estudos de inovação, embora houvesse um grupo de pessoas bastante interessadas nos estudos sociais de ciência e tecnologia. Fui à minha primeira conferência STS em 2000 e me senti pertencente. Gostei do fato de que as pessoas estavam explorando questões conceituais interessantes, mas também estavam fazendo um trabalho empírico muito fundamentado. Algo de que eu particularmente gosto em STS é que eu tenho sido capaz de estudar as ciências naturais, as ciências sociais e as humanidades simultaneamente, o que é uma posição realmente privilegiada. Em uma manhã eu estarei lendo um artigo de ciência, e na outra eu estarei lendo um de humanidades; é muito difícil fazer isso em qualquer outra área além da STS, então eu simplesmente adoro esse aspecto interdisciplinar. Em alguns momentos é problemático, porque não é de fato um campo - bem, podemos discutir se é ou não -, mas é muito difícil ser um pesquisador ou pesquisadora em STS porque, diferentemente da antropologia, sociologia ou filosofia, não é uma disciplina estabelecida. Mesmo dentro do que chamamos STS, há uma enorme discordância sobre o que seja e como deve ser feito e, principalmente, o que conta como um bom STS. Acho que ser um pesquisador de STS é um processo contínuo de tentar descobrir o que é ser um pesquisador de STS. Talvez seja igual em outras disciplinas, mas para mim tem sido uma busca contínua. Eu não vim de um lugar como Edimburgo, onde as pessoas são treinadas na sociologia do conhecimento científico. Então eu tive que ler muito e ensinar a mim mesma; ainda estou tentando descobrir o tipo de STS que eu quero fazer. É uma questão em andamento para mim.

M.R. Isso se relaciona com minha próxima questão, sobre sua experiência pessoal em tornar-se parte desse campo. Como mencionou em conversa recente com Arie Rip (Calvert & Rip, 2018Calvert, Jane & Rip, Arie. (2018). Things can be done here that cannot so easily be done elsewhere: Jane Calvert talks with Arie Rip. Engaging Science, Technology, and Society, 4, p. 183-201.), você não parece tão pessimista quanto ele sobre o futuro dos STS.

J.C. Sim, penso que é um ótimo campo porque permite que sejamos amplos ao considerar todos esses diferentes tipos de conhecimento, e quero ser otimista em relação a isso. Arie Rip me surpreendeu quando o entrevistei e ele disse: “STS vai acabar”. Mas ele então explicou que queria dizer que o campo continuaria, porém em uma variedade de formas. Eu definitivamente gostaria que o campo crescesse; seria ótimo se cada universidade tivesse um departamento de STS. Mas do ponto de vista institucional é muito difícil criar esse departamento; é difícil até mesmo saber onde o situar. Mesmo aqui em Edimburgo, nós não estamos localizados na área principal ao lado da sociologia, da política ou da antropologia. Pelo fato de eu e meus colegas passarmos muito tempo com cientistas [em seus laboratórios], outros cientistas sociais nos acham um pouco estranhos. Além disso, como eu disse, é um campo do qual você só se aproxima na pós-graduação; em geral os graduandos pensam “quero fazer biologia” ou “quero fazer sociologia”, e só mais tarde eles participam dos estudos em STS. Mas estamos tentando obter e interessar mais alunos de graduação aqui, ao desenvolver uma versão menor de STS. Na University College of London já se pode fazer uma graduação em STS; então essa possibilidade existe concretamente. Estou esperançosa; não sei quão otimista estou, mas gostaria de ver a disseminação dos estudos sociais em ciência e tecnologia de maneira mais ampla.

M.R. Em texto recente, você apontou para dois lados fundamentais dos estudos sociais da ciência e da tecnologia: enquanto movimento político e como disciplina acadêmica. Poderia falar mais sobre esses dois aspectos e como você acha que eles estão relacionados?

J.C. Isso foi algo que surgiu na conversa com Arie Rip. Depois de meu doutorado fiz um pós-doutorado na Universidade de Exeter, onde há muitos filósofos da biologia. Fiquei muito interessada em estudar biologia sintética por uma perspectiva filosófica e conceitual, o que é uma orientação bastante acadêmica para o campo. Mas quando cheguei a Edimburgo, comecei a colaborar estreitamente com os cientistas e, com isso, eu me tornei um pouco mais normativa, mais intervencionista em meus engajamentos com os STS. Acho que os lados acadêmico e normativo de STS estão definitivamente ligados, porque o pesquisador ou pesquisadora está continuamente mostrando que as coisas poderiam ser de outra forma, que a produção de conhecimento não tem que ser do jeito que é. Ao mostrar que as coisas poderiam ser diferentes você já toma uma posição mais ativista; então acho que há continuidades importantes entre esses dois lados.

M.R. Você acha que isso poderia estar relacionado ao aspecto técnico-político dos estudos em STS? Quero dizer, os estudos de laboratório insistem em mostrar que a política e a técnica estão absolutamente relacionadas.

J.C. Sim, a noção de que a técnica é política percorre todo o campo dos STS. Acho que existem escolhas sobre o tipo de STS que você deseja fazer. Algumas pessoas definitivamente gostam de fazer um tipo de STS mais acadêmico, independente e observacional. Mas quanto mais eu trabalho em proximidade com cientistas e engenheiros, mais eu acho que é isso que deve ser feito. Essas são pessoas com as quais estou pensando; não me sinto feliz apenas escrevendo sobre elas; sinto que elas são mais como parceiros epistêmicos. Então eu me vejo pairando entre os diferentes tipos de STS. Acho que às vezes há um lugar para o envolvimento em políticas intervencionistas e também é nosso dever dizer quando as coisas não estão certas. Mas também há lugar para muito mais trabalho conceitual e reflexivo - por exemplo, estou também interessada na natureza das espécies na biologia sintética. Então os estudos sociais em ciência e tecnologia permitem que você faça todas essas coisas diferentes.

M.R. Aqui na Universidade de Edimburgo você integra um centro reconhecido por sua liderança e atuação nos estudos sociais em ciência e tecnologia - considerando a importância de David Bloor, do Programa Forte e de muitas outras contribuições fundamentais que nasceram neste lugar. Em que sentido isso afeta sua pesquisa ou sua abordagem em STS?

J.C. Essa é uma ótima questão! A entrevista que fiz com Arie Rip foi parte de uma série de entrevistas publicadas no periódico Engaging Science and Technology Studies, para celebrar o aniversário de 50 anos da Unidade de Estudos da Ciência (SSU) de Edimburgo, fundada em 1966. Como mencionei, não fiz meu doutorado aqui, fiz no SPRU, e então fui para Exeter, mas Barry Barnes estava trabalhando em Exeter na época, e ele foi um dos fundadores do Programa Forte aqui em Edimburgo. Logo, ele era um dos meus chefes em Exeter e teve muita influência sobre mim no período em que estive lá. Quando me mudei para Edimburgo, tive que dar algumas aulas, e me perguntava se eu poderia ensinar sociologia do conhecimento científico, porque achei que essa seria uma ótima maneira de aprender sobre a Escola de Edimburgo, e foi o que fiz durante alguns anos. Estou segura de que isso exerceu influência sobre mim de diversas maneiras, mas é difícil dizer explicitamente como, em parte porque estou muito engajada com cientistas e com o desenvolvimento de políticas científicas e tecnológicas, muito mais do que com a própria tradição de Barnes e Bloor em Edimburgo. Embora existam diferentes vertentes para a tradição de Edimburgo, é claro. David Edge, o primeiro diretor da Unidade de Estudos da Ciência, era um grande divulgador da ciência que trabalhava para a BBC, então ele estava bastante envolvido nas políticas científicas. A Unidade de Estudos da Ciência foi, na verdade, iniciada por C. H. Waddington, um famoso biólogo que desenvolveu o termo epigenética e avançou muito a biologia em Edimburgo. Quando contratou David Edge, ele disse “nós vamos ensinar ciência - você ensina o resto!” (Henry, 2008Henry, John. (2008). Historical and other studies of science, technology and medicine in the University of Edinburgh. Notes and Records of the Royal Society, 62/2, p. 223-235.). Então, ele queria que a Unidade de Estudos da Ciência ensinasse os cientistas a ser cidadãos responsáveis. Mas eles não fizeram exatamente isso; embora tenham oferecido muitos cursos e aulas, se concentraram principalmente no desenvolvimento de ideias teóricas. Eu sinto, em certo sentido, que a expectativa de Waddington ainda está por trás de muitos ensinamentos em STS.

M.R. Você poderia nos dizer o que mais a atraiu na biologia sintética ou como surgiu o interesse em fazer dela seu tema de pesquisa?

J.C. Meu pós-doutorado em Exeter foi realizado em um centro de genômica e sociedade, então estávamos estudando genômica. Enquanto estive lá, me interessei por biologia de sistemas, que é sem dúvida um desenvolvimento da genômica, e o que mais me interessou foi a aspiração que encontramos na biologia de sistemas a trazer ideias vindas da física e da engenharia para a biologia. Fiquei intrigada com a noção de que a biologia não era boa o suficiente, e os cientistas queriam torná-la mais como uma ciência dura, mais quantitativa e preditiva. A biologia sintética aparecia como um parente da biologia de sistemas, mas o objetivo era construir coisas vivas, e a agenda participativa da engenharia era muito forte. Até certo ponto, a biologia de sistemas estava muito baseada na física e na engenharia, mas a biologia sintética foi uma tentativa explícita de aplicar princípios de engenharia aos sistemas biológicos. Achei isso realmente intrigante em um sentido epistêmico - essa ideia de a maleabilidade biológica unir-se à rigidez da engenharia, particularmente porque a biologia evolui e não faz exatamente o que os engenheiros esperam. Perguntar o que acontece nesse tipo de interação foi o que impulsionou muitas das minhas pesquisas, incluindo meu projeto de pesquisa principal, intitulado “Engineering life” [Construindo a vida]. Essas foram as questões epistêmicas que inicialmente nutriram meu interesse pela biologia sintética, mas o que também é fascinante nesse campo é ver que todo esse esforço é explicitamente social, é uma tentativa de criar tanto uma comunidade quanto uma tecnologia, e é justamente essa comunidade que está aberta a acolher diferentes perspectivas disciplinares. Quando estudei cientistas anteriormente, eu tinha que bater em suas portas, mas na biologia sintética era justamente o oposto - eles estavam me ligando e pedindo para eu me envolvesse, eles queriam a mim e a meus colegas em seus financiamentos e bolsas. O campo parecia ser muito aberto, envolvia alunos de graduação, questionava suposições já dadas sobre propriedade intelectual, parecia estar tentando fazer as coisas de maneira diferente da biotecnologia corrente. Por isso, tinha tanto uma agenda epistêmica realmente interessante quanto uma agenda social, além de proporcionar oportunidades para colaboração e para o envolvimento enquanto pesquisadora em STS. Também foi emocionante ver pessoas tentando desenvolver um novo campo. Isso foi o que me interessou em primeiro lugar.

M.R. Considerando que a biologia sintética é um campo de difícil definição e que ainda não temos a dimensão completa de suas consequências no futuro, como você avalia a presença dos cientistas sociais nessa área? Você mencionou que a porta estava mais aberta do que esteve em outros contexto de investigação; por quê? O que esse campo ganha com a presença dos cientistas sociais?

J.C. Acho que um dos problemas era que as razões pelas quais os biólogos queriam que os cientistas sociais estivessem envolvidos não eram as mesmas razões pelas quais queríamos nos envolver. Acredito que eles tivessem preocupações sobre as objeções públicas ligadas à tecnologia sintética, e isso porque no Reino Unido e na Europa de forma geral há preocupações e restrições sobre as culturas geneticamente modificadas e, portanto, eles estavam preocupados com reações semelhantes. Como disse, eu queria estudar as tensões epistêmicas e a construção de comunidades no campo, e realmente não queria falar ao público sobre suas atitudes em relação à tecnologia, entre outras coisas porque essa não é minha área de especialização. Meu interesse está muito mais voltado para a ciência, sou uma socióloga da ciência e não uma socióloga da opinião pública. Muitas vezes havia a expectativa por parte dos cientistas de que eu, de alguma forma, facilitasse o progresso da tecnologia sintética, livrando-os de obstáculos éticos. Eu não queria fazer isso; e ainda não quero. Muitas vezes, foi um grande desafio fazer o que eu queria em campo, tendo que lidar com a expectativa de que, na verdade, eu faria outras coisas.

M.R. Sim, eu posso imaginar as pessoas pedindo para que você tomasse uma posição ou entregasse algo que lhes interessava…

J.C. Sim, às vezes, mas nem sempre. Eu estive envolvida em vários e diferentes projetos em biologia sintética, em contextos igualmente diferentes. Em Edimburgo, por exemplo, desenvolvemos colaborações por um longo período de tempo; aqui em Edimburgo há um grande centro voltado para a biologia sintética de mamíferos, mas isso só foi financiado há quatro anos. Por muitos anos os biólogos sintéticos daqui não tinham grandes financiamentos, então fizemos pequenas coisas, como workshops; não havia nenhuma pressão externa sobre nós para entregar algo. Penso que isso foi muito bom porque permitiu que eles desenvolvessem uma compreensão mais ampla sobre os STS e compreendessem melhor nossos propósitos. Mas então, em outros contextos, ter concessões e financiamentos poderia significar que a participação de um cientista social estivesse ligada às pesquisas de opinião pública ou algo do gênero.

M.R. Os antropólogos têm uma espécie de obsessão pela distinção entre natureza e cultura; no campo da biologia sintética essa distinção parece tomar a forma de uma diferenciação importante entre natural e artificial, mas, como você menciona em seus trabalhos, ela vai além: a biologia sintética parece reivindicar a própria construção da natureza. Essa distinção é útil para entender o que eles estão fazendo?

J.C. Acho que a distinção particular entre natureza e cultura não aparece dessa maneira nas conversas e discussões feitas por biólogos sintéticos. Por exemplo, eu estive estudando o projeto de levedura sintética em que eles tentavam construir uma levedura totalmente nova; eles estavam tentando construir sinteticamente um genoma completo. O fermento inicial já é uma levedura de laboratório, que cresce apenas e somente no laboratório e, portanto, só sobrevive no laboratório. De certa forma, isso já é muito artificial, então eles estão fazendo uma versão artificial de uma coisa já artificial. Mas eles chamam a linhagem de levedura inicial de tipo selvagem ou de levedura natural, mesmo que não seja de fato selvagem ou natural. Suponho que os conceitos pelos quais estamos interessados não são necessariamente de interesse para os cientistas de laboratório. Como eu disse, chamei meu projeto de “Engineering Life”, mas um termo que nunca aparece é precisamente “vida”. Particularmente, quanto mais orientados para a engenharia estão os biólogos mais eles parecem realmente não falar sobre isso; a vida desaparece enquanto categoria para eles. Mas se perguntarmos sobre como os biólogos sintéticos usam a distinção entre natural e artificial, essa é uma questão interessante, acho que é uma questão empírica a ser seguida com eles. Por um tempo, eu estive perguntando às pessoas em minhas entrevistas sobre a vida, e isso as confundia um pouco, e elas diziam coisas como “ah, eu não estou falando sobre humanos, eu não trabalho com humanos”, como se o conceito não fosse relevante de outra forma.

M.R. Isso se relaciona com outro ponto que chamou minha atenção enquanto eu lia suas análises críticas em biologia sintética. Você nos mostra o quanto a biologia sintética é suscetível e adequada à mercantilização. Como você acha que a proeminência econômica e a lógica dos sistemas de propriedade poderiam influenciar o desenvolvimento desse campo?

J.C. Sim, nesse artigo (Calvert, 2008Calvert, Jane. (2008). The commodification of emergence: systems biology, synthetic biology and intellectual property. BioSciences, 3, p. 383-398.) eu refleti sobre o modo como a biologia sintética, ao tornar-se uma entidade biológica discreta que pode ser substituída, tal qual uma peça de lego - uma metáfora que eles usam muito -, torna-se algo propício a ser vendido, uma vez que pode ser separada de seu contexto. É claro que não é completamente separada, já que muitos experimentos mostram que o contexto influencia o comportamento do construto, e os biólogos sintéticos sabem disso, eles estão cientes disso. O Instituto J. Craig Venter realizou vários projetos em que tentaram fazer genomas sintéticos; em um trabalho de 2016 eles falam sobre o quão importante é o contexto ao fazer um genoma mínimo, o que eu acho muito interessante, porque é um reconhecimento da natureza contingente do genoma. Então, embora eu ache que as aspirações à mercantilização estejam lá, elas não estão necessariamente refletidas nas entidades que são produzidas na biologia sintética.

M.R. O campo da biologia sintética, me parece, também se ajusta muito bem aos estudos em STS, no sentido de que esse novo campo tem atravessado diferentes áreas, tal como a biologia, a engenharia, a física, cruzando tipos distintos de conhecimento. Como você avalia os efeitos desse movimento para estabelecer um novo campo como a biologia sintética?

J.C. Sempre há dúvidas sobre se a biologia sintética é nova e, embora possa ser nova no sentido de financiamento, outras pessoas argumentarão que ela não é nova e que estamos manipulando a vida há muito tempo. Esses também são argumentos políticos sobre o que deve ser considerado novidade. Eu acho que a biologia sintética está explicitamente baseada em diferentes disciplinas e metodologias, e essa é uma das razões pelas quais ela se torna um campo razoavelmente fácil para a entrada de cientistas sociais, já que as pessoas estão conversando o tempo todo com pessoas que não têm as mesmas bagagens e experiências. Um cientista da computação pode ter que explicar um modelo a um biólogo, por exemplo, ou um biólogo pode ter que explicar a terminologia biológica a um físico. É realmente fascinante estudar essas dinâmicas entre as pessoas e suas diferentes expectativas disciplinares. Mas também existem as pessoas híbridas, isto é, pessoas que fazem pesquisas “molhadas” e “secas”, e que conseguem construir a ponte entre elas; talvez tenham vindo de uma formação em engenharia, mas que agora se refizeram em biologia, ou vice-versa. Não me parece que essa seja uma característica distintiva da biologia sintética; acho que muitos campos têm essa mistura interdisciplinar. De certa forma, a biologia sintética é um pouco como os STS, porque é um campo jovem, não é muito bem definida e une pessoas de diferentes origens, embora seja bem mais nova que os STS.

M.R. E com relação ao crescimento e fortalecimento da biologia sintética você se sente tão otimista quanto em relação aos STS…

J.C. No ano passado, eu e minha equipe organizamos o workshop “Fim da biologia sintética?”. Lá escrevemos obituários e elogios e até tivemos um caixão. Foi muito divertido. Brincadeiras à parte, estávamos tentando perguntar o que está acontecendo com a biologia sintética agora, porque muitas das aspirações presentes no início da formação do campo - torná-lo mais aberto em termos de regimes de propriedade intelectual, em vez de patentes, e sendo também muito aberto a diferentes disciplinas - pareciam estar desaparecendo, e o campo estaria se tornando mais parecido com a regular biotecnologia industrial. Com o workshop queríamos desafiar os biólogos sintéticos e outros a pensar se o campo estava acabando e se as esperanças originais estavam desaparecendo. Os cientistas negaram o fim da biologia sintética, mas admitiram que o campo está mudando e se transformando, embora tenham dito que isso pode ser um sinal de sucesso. Também tem havido muito financiamento militar nesse campo, particularmente nos EUA. No Reino Unido, muito dinheiro entrou em biologia sintética nos últimos dez anos, mas as pessoas agora estão pensando que, para obter mais financiamento, as coisas teriam que mudar um pouco. Então talvez o foco não seja estritamente a biologia sintética, mas algo um pouco diferente; poderia ser a biologia de engenharia ou a genômica sintética ou a biotecnologia industrial. Então talvez isso seja uma coisa a acrescentar sobre a biologia sintética, não é o seu fim, mas sua natureza está mudando.

M.R. Considerando todas essas mudanças, qual a importância do trabalho de campo etnográfico no desenvolvimento de sua abordagem e no esforço de seguir um campo tão dinâmico como o da biologia sintética?

J.C. Minha pesquisa tem sido extremamente multilocalizada. Fui muito influenciada pela noção de etnografia multissituada de George Marcus, basicamente porque os biólogos sintéticos passam muito tempo em locais diferentes. Particularmente quando eles estão tentando legitimar o campo e obter financiamento, eles passam muito tempo fora do laboratório. Fiz estudos de laboratório, o que é uma atividade típica em STS, mas na verdade meus compromissos iniciais estavam mais fora do laboratório do que dentro. Por exemplo, passei muito tempo estudando as conferências, uma área muito interessante para aprender sobre o campo. Você pode realmente contribuir para o campo também, porque os biólogos sintéticos gostam de ter cientistas sociais palestrando em suas conferências. Eu tenho dado aulas aos alunos de biologia sintética, então estou me envolvendo com a biologia sintética nesse contexto também. Também desenvolvi um projeto em biologia sintética com artistas e designers, o que me levou a seus estúdios e espaços de trabalho. Estive envolvida em iniciativas políticas em torno da biologia sintética e de alguns grupos e comunidades de bioética. Portanto, existem muitos lugares diferentes. Esta tem sido a minha metodologia - ser uma pesquisadora multissituada nesse campo. Isso é diferente dos tradicionais STS, sobretudo dos estudos de laboratório. No entanto, para ser sincera, eu não sei mais se isso é de fato muito comum, pois acho que as pessoas estão fazendo muitas coisas diferentes em STS.

M.R. O projeto que você mencionou, envolvendo biologia sintética, artistas e designers, foi uma iniciativa muito inovadora e também um grande desafio. Como foi essa experiência de colaboração entre arte, ciência e tecnologia e que deu origem ao livro de 2017 Synthetic Aesthetics: investigating Synthetic Biology’s designs on nature.

J.C. Há muitas coisas a dizer sobre isso! Pablo Schyfter e eu escrevemos um artigo (Calvert & Schyfter, 2016Calvert, Jane & Schyfter, Pablo. (2016). What can science and technology studies learn from art and design? Reflections on ‘Synthetic Aesthetics’. Social Studies of Science, p. 195-215.) do ponto de vista de STS sobre o projeto da estética sintética, buscando refletir sobre o que podemos aprender com essa experiência enquanto pesquisadores em STS. Foi um projeto muito inesperado, surgiu de um evento bastante estranho chamado Caixa de Areia, em que 30 pessoas foram reunidas durante uma semana para elaboração de projetos. Eu nunca havia trabalhado com artistas e designers antes da “Estética Sintética”. Gostei muito das ideias que os artistas e designers trouxeram para o projeto, as quais foram tão inesperadas, que realmente me desafiaram a pensar de novas maneiras. Suponho que um dos problemas desse projeto foi que os cientistas sociais pareciam se tornar menos importantes, já que os biólogos sintéticos e os artistas e designers viam uns aos outros fazendo coisas absolutamente novas enquanto não viam o mesmo em relação a nós, cientistas sociais. O lugar dos STS nessa colaboração foi interessante, e eu achei as conversas com artistas e designers realmente úteis, particularmente com Daisy Ginsberg, a primeira autora do livro (Ginsberg, Calvert & Schyfter, 2017Ginsberg, Alexandra D.; Calvert, Jane & Schyfter, Pablo. (2017). Synthetic Aesthetics: investigating synthetic biology’s designs on nature. Cambridge, Mass: The MIT Press.). Ela diz que, como cientistas sociais, nós trazemos a teoria, trazemos ideias, trazemos conceitos. Eu acho que muitos pesquisadores dos STS estão buscando “atuar e fazer”. Não sou muito boa em fazer coisas, então prefiro que os artistas e designers façam isso; não quero tomar o lugar deles; vejo o poder que isso tem, e os tipos de conversas que “fazer coisas” possibilita ter com os cientistas, conversas diferentes das que nós [cientistas sociais] tínhamos. Então, acho que colaborar com artistas e designers pode ser extremamente valioso. Na verdade, tivemos uma colaboração com alguns artistas em um pequeno projeto chamado “Crossing Kingdoms”. Os artistas vieram para Edimburgo a fim de trabalhar com os cientistas aqui, e eles os conheceram muito rapidamente porque tinham um problema que precisava ser resolvido - eles precisavam de reagentes e queriam trabalhar com microfluídica. Mas essa foi uma lição sobre como possibilitar um trabalho interdisciplinar que atravessa fronteiras. O livro Synthetic Aesthetics [Estética Sintética] foi interpretado de várias maneiras desde que foi publicado. Não é exatamente um livro em STS, mas uma série de contribuições de perspectivas e pessoas muito diversificadas. Alguns comentaristas disseram que estávamos vendendo o campo da biologia sintética, que estávamos apenas fazendo a biologia sintética brilhar porque colocamos muitas fotos no livro (queríamos torná-lo muito visual). Para mim isso foi um problema porque vi esse projeto como uma forma de lançar um olhar crítico. Mas acho que há sempre o perigo de receber esse tipo de acusação. Nos capítulos que escrevi tentei abordar algumas dessas questões diretamente. Quero manter uma perspectiva crítica, e muitos dos artistas e designers foram bastante críticos também. Para ser honesta, os biólogos sintéticos também eram críticos. Alguns deles são críticos em relação ao campo e para onde o estão levando. Para mim, o projeto foi sobre o aproveitamento dessas diferentes perspectivas críticas. É um livro muito misto, então tem uma mistura de respostas, o que eu acho ótimo. Queríamos levantar questões, não queríamos que fosse um projeto de comunicação científica, queríamos questionar os imaginários futuros ligados ao campo da biologia sintética.

M.R. Antes de encerrar, seria ótimo se você pudesse nos contar sobre seus planos futuros e novos projetos…

J.C. É uma questão difícil pois estive envolvida em um grande projeto que está neste momento no seu último ano e estou tentando decidir o que virá em seguida. Obviamente, temos que escrever todas as coisas que fizemos até agora. Uma vez que você tem experiência em uma área, é fácil seguir nela, então, nesse sentido, eu estou muito interessada na síntese do genoma completo, não tanto construindo partes biológicas, ou caminhos metabólicos, mas tentando criar genomas sintéticos completos e, notadamente, organismos inteiros. Eu gostaria de voltar meu olhar para essa ideia, o que seria uma continuação de meu trabalho com a biologia sintética. Mas perguntas sobre o que é ser uma pesquisadora de STS, o que é fazer uma boa pesquisa em STS, o que é colaborar de perto com cientistas e engenheiros e outros grupos, e estar imersa nessas situações, às vezes difíceis, às vezes desconfortáveis, onde você pode ser acusado de “se tornar um nativo” ou de querer vender-se, todas essas questões realmente me interessam. Estou interessada em fazer algo mais reflexivo sobre o lugar dos estudos sociais em ciência e tecnologia, considerando os financiamentos atuais, especialmente quando a ciência e a tecnologia são percebidas pelos governos como a fonte do crescimento econômico. Deverão os STS contribuir ou comprometer-se com essa agenda, com essa visão do futuro? E, em caso negativo, como a criticamos? Essas são as grandes questões que têm me interessado.

M.R. Agradeço-lhe por essa conversa tão inspiradora e por me receber durante minha visita à Universidade de Edimburgo. Por fim, você gostaria de adicionar ou dizer algo aos pesquisadores e leitores brasileiros a quem direcionamos essa entrevista?

J.C. Uma coisa realmente valiosa que os estudos sociais brasileiros em ciência e tecnologia podem trazer é a conexão com o conhecimento tradicional e com diferentes tipos de valoração. Acho que trazer visões distintas sobre ciência e tecnologia é fundamental para os STS, e isso é muito particular em relação aos STS no Brasil. Quando estive no Brasil fiquei impressionada com o quão forte são as ciências sociais, e os estudos sociais em ciência, tecnologia e sociedade parecem ser algo em que tem havido um histórico de investimento, e isso é muito importante pois em muitos países o interesse se confina à inovação e tecnologia. Foi muito revigorante ver essa abordagem brasileira; os pesquisadores brasileiros em STS devem fazer uso dessa trajetória e manter um trabalho realmente interessante. O que eu gosto sobre os STS é o modo como estão conectados globalmente, porque somos um pequeno campo, mas podemos nos conectar em torno do mundo todo porque temos em comum o interesse nos estudos sociais em ciência e tecnologia.

NOTAS

  • 1
    A entrevista foi realizada na School of Social and Political Science, na Universidade de Edimburgo, durante minha visita à Escócia em fevereiro de 2019. A visita e a entrevista contaram com o apoio da University of Manchester e do Rutherford Fund Strategic Partner Grant, aos quais agradeço. Agradeço também a Phillip Shapira e Barbara Ribeiro o incentivo e apoio institucional durante minha fellowship no Manchester Institute of Inovation Reasearch (MIoIR). A entrevista foi realizada originalmente em língua inglesa, e a presente versão foi traduzida pela entrevistadora.
  • 2
    Jane Calvert é professora e pesquisadora em estudos sociais da ciência e da tecnologia na Universidade de Edimburgo desde 2007. Seus principais temas de investigação abarcam as relações entre cientistas, engenheiros e cientistas sociais; governança de tecnologias emergentes; ontologia e propriedade intelectual nas ciências da vida. Entre suas publicações recentes estão: The two sides of STS: reflection on an interview with Arie Rip e, em coautoria, “A feeling for the (micro)organism? Yeastiness, organism agnosticism and whole genome synthesis”; “Designing with living systems in the synthetic yeast project” e “What can science and technology studies learn from art and design? reflections on Synthetic Aesthetics”.
  • 3
    Pesquisa básica, também chamada de pesquisa pura ou pesquisa fundamental, tem como objetivo a utilização da pesquisa científica como forma de melhorar as próprias teorias científicas, ampliando a compreensão de fenômenos naturais e/ou sociais [N.T.].

Referências

  • Calvert, Jane. (2008). The commodification of emergence: systems biology, synthetic biology and intellectual property. BioSciences, 3, p. 383-398.
  • Calvert, Jane & Rip, Arie. (2018). Things can be done here that cannot so easily be done elsewhere: Jane Calvert talks with Arie Rip. Engaging Science, Technology, and Society, 4, p. 183-201.
  • Calvert, Jane & Schyfter, Pablo. (2016). What can science and technology studies learn from art and design? Reflections on ‘Synthetic Aesthetics’. Social Studies of Science, p. 195-215.
  • Ginsberg, Alexandra D.; Calvert, Jane & Schyfter, Pablo. (2017). Synthetic Aesthetics: investigating synthetic biology’s designs on nature Cambridge, Mass: The MIT Press.
  • Henry, John. (2008). Historical and other studies of science, technology and medicine in the University of Edinburgh. Notes and Records of the Royal Society, 62/2, p. 223-235.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2020
  • Aceito
    01 Maio 2020
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